Meu nome é Roberto Assunção, mas na estrada todo mundo me conhece como Betão do Volante. Tenho 48 anos e 32 deles vivendo entre o ronco do motor e o silêncio da estrada. Conheço cada curva desse Brasilzão como a palma da minha mão calejada. Já rodei tanto que dava para dar duas voltas na terra, meu irmão. E olha, muita história eu tenho para contar, mas essa que vou dividir com vocês agora, essa me arrepia o pelo do braço, só de lembrar. Era uma noite abafada, céu carregado. Parecia que ia desabar um toró daqueles. Eu vinha de
um frete puxado lá de Dourados, com destino a São João da Barra, carga de grão fechada na correria, daquelas que a gente não pode recusar porque o bolso tá vazio e as contas estão batendo na porta. Tava cansado, com o corpo moído depois de quase 15 horas no batente, mas não o bastante para ignorar o que vi naquela curva fechada da BR153, a Belém Brasília, altura de Goiás. Uma mulher sozinha no meio do nada, vestida de branco dos pés à cabeça, de vé, meu parceiro, como se tivesse saído de um casamento ou de uma igreja.
Pé descalço no asfalto quente, mão levantada pedindo carona. Devia ser umas 11 e pouco da noite, escuridão que só quem roda de madrugada conhece. Parecia cena de filme ou reza. Misericórdia, pensei comigo. Mulher sozinha nesse fim de mundo vai acabar mal. Reduzzi. Joguei o pisca, encostei no acostamento estreito. Acendi a luz interna da cabine para ela ver que eu não era nenhum malfeitor. Abaixei o vidro e uma brisa estranha, quente e fria, ao mesmo tempo, entrou no caminhão. Vai para onde, dona? Perguntei meio receoso. Porque naquela estrada à noite não é todo mundo que presta.
Ela sorriu, um sorriso calmo, doce, o rosto iluminado apenas pelos farol do meu Scania, mas dava para ver que era uma senhora de seus 40 e pouco ano. Tinha uma expressão serena que não combinava com com aquela situação. Os olhos dela brilhavam de um jeito que até hoje não sei expli. "Vou com o senhor, até onde o senhor for", ela respondeu com uma voz mansa que parecia acalmar até o barulho do motor. "Rapaz, não sei explicar o que aconteceu comigo naquela hora. Eu, que sempre fui desconfiado, que já tinha passado por cada perrengue nessas estradas,
que sabia que dar carona hoje em dia é pedir para se complicar. Abri a porta sem pensar duas vezes. Abre essa porta, Roberto. Uma voz dentro de mim dizia, como se fosse natural, como se aquilo acontecesse todo dia. Então, sobe aí, senhora. Mas é viagem longa, viu? Ainda tenho umas boa hora de estrada pela frente. O tempo não me preocupa, filho. Ela respondeu, me chamando de filho, como se me conhecesse desde pequeno. Às vezes é no caminho mais longo que a gente encontra os atalhos da vida. Eu nem entendi direito o que ela quis dizer,
mas balancei a cabeça concordando, porque tem hora que a gente só concorda mesmo sem entender. Ela subiu na boleia com uma leveza que parecia não pesar nada. Nem mochila carregava, só uma bolsinha pequena branca, pendurada no braço. Sentou do meu lado, ajeitou o vestido branco comprido, colocou as mão delicada no colo e ficou olhando pra frente como se já conhecesse aquela estrada. "Tá fugindo de alguma coisa, dona?", perguntei enquanto engatava a primeira e voltava pro asfalto. "Porque esse lugar aqui é perigoso demais para uma senhora sozinha." "Não estou fugindo, estou indo ao encontro." Ela respondeu
enigmática, sem tirar os olhos da estrada escu. E o perigo, meu filho, nem sempre está onde a gente pensa que está. Aquilo me deu um calafrio na espinha, mas engoli seco e segui Liguei o rádio para quebrar o silêncio. Tocava uma moda sertaneja antiga, daquelas que fala de saudade e estrada. Ela começou a cantar olar baixinho, como se conhecesse cada verso. "Vai ser uma longa noite", pensei comigo, sem imaginar que aquela seria a noite que mudaria minha vida para sempre. A estrada se estendia como uma cobra preta na nossa frente. A lua, que antes estava
coberta por nuvem, apareceu de repente, grande e redonda, iluminando. E ali, naquela boleia que já foi minha casa por tantos anos, eu senti algo diferente, como se o mundo lá fora tivesse parado, como se só existisse aquela estrada, aquele caminhão e aquela mulher misteriosa que acabava de entrar na minha vida. E foi assim, parceiro, que começou a história mais estranha que esse velho caminhoneiro já viveu. Ela entrou. Sentei mais ereto. Um perfume de flor invadiu a cabine. Não era perfume comum, era cheiro de missa, de casa de vó, daqueles que a gente sente. E na
mesma hora vem lembrança de infância, de domingo de manhã, de terço na mão da mãe. Coisa esquisita, viu? O rádio que antes estava alto, de repente parecia baixo dema como se tivesse vergonha de fazer barulho perto dela. Eu que sou falador, fiquei meio sem jeito. A mulher tinha um olhar que parecia atravessar a gente. Daqueles que leem até o que tá escondido. Obrigada pela carona ela falou depois de uns 5 minutos em silêncio. Não é qualquer um que para para ajudar nos dias de É senhora. A estrada tá perigosa, mas não dava para deixar a
senhora ali sozinha numa hora dessas. Respondi orgulhoso de ter feito a boa ação do dia. Roberto, o senhor sempre foi assim, não é? Ajudando os outros mesmo, quando seu próprio coração tá precisando de ajuda. Travei, gelei dos pés à cabeça. Como que ela sabia meu nome? Eu não tinha falado. Tenho certeza. Como? Como a senhora sabe meu nome? Ela sorriu de novo, um sorriso de mãe. A estrada fala, meu filho, fala muito. E quem anda por ela tanto tempo como o senhor acaba deixando marca. Conversava pouco, mas cada palavra pesava uma tonelada. Parecia que ela
soltava as frases assim de propósito para mexer com a gente. Falava mansinho, olhando mais pra estrada que para mim. Eu, nervoso, apertava o volante com força. Já tinha pegado muito caroneiro esquisito nessa vida, mas aquela mulher, aquela era diferente. Me perguntou se eu acreditava em sinal. Disse que sim, que caminhoneiro é bicho supersticioso. Comentei do santo que carregava no painel, da fita do Senhor do Bom Fim, amarrada no retrovisor, da oração de São Cristóvão colada no quebra-sol. Ela apenas balançou a cabeça como se dissesse: "Não é disso que tô falando". Falo dos sinais que a
vida dá, Roberto, o senhor percebe eles ou só segue rodando sem prestar atenção no que acontece ao redor? Aquilo me pegou de jeito, porque para falar a verdade a gente vive no automático mesmo. Pega frete, entrega carga, dorme, come, segue viagem, repete tudo de novo no outro dia. É uma vida que vai engolindo a gente sem a gente perceber. A senhora fala deuns negócios difícil de entender?", comentei desconversando. Disse que a estrada sabia mais sobre mim do que minha própria família. Ela riu baixinho. "É porque a estrada te vê todos os dias? Sua família só
te vê de vez em quando, não é? Quando dá tempo de passar em casa." Aquilo doeu. Doeu porque era verdade. Três, quatro dias por mês em casa. Quando muito, meu filho mais novo já nem me reconhecia de a mulher, coitada aguentou o quanto você tem um vazio aí dentro que nenhum volante preenche. Engoli como ela sabia de o buraco que eu carregava no peito, escondido debaixo de muita conversa fiada, de muita risada forçada nos postos de gasolina, de muito cafezinho com os colegas para disfarçar a solidão, o caminhão engolindo o asfalto e eu quieto pensando.
Ela parecia esperar como se soubesse que uma hora eu ia abrir o jogo. E abri mesmo, porque tem hora que a gente precisa falar, nem que seja para uma estranha numa estrada perdida. Comecei falando do meu filho que não vejo há anos, o Juninho que hoje já deve ter uns 15 anos, mas que na minha cabeça ainda é aquele moleque de oito que gostava de brincar com caminhãozinho de plástico. Falei da última vez que vi ele prometendo que voltava logo, que ia trazer um presente. E como demorei dois meses para conseguir voltar por causa de
um frete que emendou no outro. Contei da Ana, a mulher que me largou por causa dessa vida. Não aguento mais dormir sozinha", ela disse no bilhete. Não aguento mais explicar pro menino porque o pai nunca tá nos aniversários dele e foi embora pra casa da mãe dela em Joinville, levando o moleque junto. Tentei ir atrás, mas o tempo, esse danado, nunca sob. Sempre um frete melhor, uma carga urgente, um patrão ameaçando cortar se não aceitar. Falei das noites dormindo no banco com saudade de uma da solidão que é tomar café sozinho em posto de beira
de estrada, vendo os outros caminhoneiro falando com a família pelo celular, mostrando o moleque, a mulher, enquanto eu só tinha o rádio e as estrelas como companhia. Essa vida come a gente por dentro, dona. A gente acha que tá construindo alguma coisa, mas quando vai ver, só construiu estrada. E estrada não tem fim. Só tem mais curva, mais buraco, mais pedágio. E ela ouvia como se fosse minha mãe, sem julgar, sem dizer que eu devia ter feito diferente, sem dar conselho fácil, tipo, larga essa vida. Só ouvia com aqueles olhos que pareciam guardar o mundo
inteiro. De vez em quando, ela fazia uma pergunta pequena, certeira, que me fazia falar mais ainda, como se tivesse abrindo gaveta trancada dentro de mim. E o senhor ainda tem esperança, Roberto? Essa me pegou de surpresa. Esperança? Nunca tinha parado para pensar. A gente na estrada vai vivendo um dia de cada esperança é artigo de luxo. Acho que sim, dona. Sei lá. A gente sempre acha que um dia as coisas vão melhorar, que um dia vou juntar um dinheirinho, comprar meu próprio caminhão, fazer meu horário. Aí, quem sabe consigo ter uma vida mais normal. Ela
balançou a cabeça devagar, como quem diz, "Entendo", e ficou em silêncio por um tempo, enquanto a gente passava por uma cidadezinha pequena, com umas casas simples, todas apagadas aquela hora. "Às vezes, Roberto, a gente busca lá na frente o que já está do nosso lado, só que não consegue ver." Não entendi direito o que ela quis dizer, mas senti um calor estranho no peito, como se ela tivesse acendido um fósforo num quarto escuro. A noite seguia, a estrada também, e aquela mulher misteriosa ia me desvendando como se tivesse lendo um livro aberto. Quando cheguei no
posto de parada perto de Tumbiara, meu estômago estava ronc era quase 2as da madrugada. Eu precisava esticar as pernas, encher o tanque e botar algo na barriga também. O posto era daqueles grande, 24 hora, cheio de caminhão parado, luz forte e churrasco rolando na churrasqueira de tambor. Reduzzi, dei seta e entrei devagar no pátio de terra. Bati. Vamos parar um pouco aqui, dona. Preciso abastecer e comer alguma. Foi aí que ela me olhou de um jeito diferente. Parecia assustada, coisa que não tinha visto nela até agora. Roberto, por favor, não pare aqui. Mas por que,
dona? É um posto bom. Conheço o pessoal. A comida é limpa. Ela balançou a cabeça firme, olhando ao redor como se tivesse procurando algo ou alguém. "Esse lugar não é bom para mim. Sinto uma escuridão aqui." Achei esquisito. O posto era o mais iluminado da região, cheio de gente. Escuridão, dona, tá mais claro que dia de sol. Nem toda a escuridão se vê com os olhos Roberto. Aquilo me deu um arrepio na espinha. Olhei melhor pro Tinha uns caminhoneiros sentado em roda, bebendo, jogando truco. Uns outros conversando com umas mulher de short curto demais pro
frio que estava fazendo. Na entrada do restaurante, uns cara de cara fechada fumando e olhando para todo mundo que passava. Foi aí que reparei numa coisa. Era o único posto num raio de uns 50 km que não tinha uma capelinha de beira de estrada, nem uma imagem de santo na entrada. Todo posto de estrada tem, né? Mas aquele ali nada, nem uma fitinha do bom fim. A senhora tem medo de alguma coisa aqui? Ela me pediu para não descer. Disse que sentia que ali não era lugar para ela. Fiquei inquieto. Pela primeira vez pensei que
talvez não devia ter dado carona. Vai que a mulher era fugitiva ou estava metida em alguma encrenca. A senhora tem nome? Perguntei tentando quebrar o clima pesado que tinha se formado. Ela respondeu sem olhar para mim. Maria Ali me deu um calafrio, porque a mulher parecia saída de um altar, a expressão no rosto dela, a pele que parecia brilhar mesmo na escuridão da cabine, uma serenidade no olhar que fazia a gente esquecer do mundo. E agora o nome Maria, como a mãe de Jesus, como minha própria mãe, que Deus a tenha. Eu que não sou
de recuar, dei marcha a ré. Tirei o Scania dali sem nem abastecer. Tudo bem, dona a gente segue mais um. Tem outro posto, uns 30 km para Ela sorri. Obrigada. O senhor sabe ouvir. Isso é raro. Voltei pra estrada, agora mais vazia que antes. A lua tinha sumido atrás de umas nuvens pesada e o escuro parecia mais escuro. Liguei o farol alto que varria o asfalto e mostrava um mato alto nas beiras da pista. Essa estrada é sua amiga, não é, Roberto? Tantos anos juntos, ela deve conhecer todos os seus segredos. Achei engraçado ela falar
da estrada como se fosse gente. É, dona Maria, a gente tem uma relação, eu e essa faixa de asfalto, mas não sei se é bem amizade. Às vezes parece mais briga. Ela ri. Um riso leve, como sinim. As melhores amizades são assim mesmo. Tem dias difíceis. O silêncio voltou, mas não era um silêncio pesado. Era como se a gente não precisasse mesmo falar o tempo. O motor roncava firme, engolindo o quilômetro. A noite ia passando. Depois de uns 40 minutos, avistei outro posto, menor, mais simples, mas com uma capelinha de São Cristóvão bem na entrada.
Senti que ali era lugar melhor. Vamos parar aqui, dona? Preciso mesmo tomar um café e esticar as pernas. Aqui sim, ela disse, parecendo mais tranco. Este lugar tem luz verdadeira. Parei o caminhão num canto mais afastado, onde cabia meu escania grandão. Quando desliguei o motor, percebi como tava mesmo cansado, os olhos ardendo, a coluna reclamando depois de tanto tempo sentado. A senhora quer descer também? Comer alguma coisa? Não, obrigada. Prefiro ficar aqui. Achei estranho de novo. Quem viaja há tanto tempo e não quer nem esticar as pernas. A senhora não tá com fome, não? Faz
tempo que a gente tá na estrada. Eu me alimento de outras coisas, Roberto. Não se preocupe comigo. Cada vez mais esquisito, mas o cansaço era tanto que não fiquei pensando muito. Saí da cabine, tranquei a porta e fui até o restaurante. Comi um prato de feijão com arroz e bife. Tomei um café preto daqueles de coar na hora e voltei pro caminhão levando uma marmita pequena, caso ela mudasse de ideia. Quando voltei, ela estava exatamente na mesma posição, como se não tivesse se mexido 1 cm. Só que agora tava cantar olando baixinho uma música que
eu não conhecia. Parecia coisa de igreja. Trouxe um lanche pra senhora caso queira. O senhor é gentil, Roberto, mas não preciso disso. O que tenho para oferecer é algo diferente. Depois que saímos dali, ela abriu aquela bolsinha branca que carregar de dentro. Tirou um vidrinho com um líquido escuro. É um chá de ervas especiais. Acalma o corpo e alimenta a alma. Olhei desconfiado. Nunca fui de tomar coisa de estranho. Que tipo de chá é esse, dona? É calmante, de erva doce e outras ervas que cultivo. Vai ajudar o senhor a seguir viagem mais tranquilo. Não
sei por, mas aceitei. Talvez porque estava mesmo precisando relaxar. O corpo todo duro de tensão. Talvez porque naquela altura já senti uma confiança estranha naquela mulher. Ela despejou um pouco do líquido na tampa do frasco, uma tampa que mais parecia copinho, e me entregou. Beba devagar, sinta o sabor. Deixe que ele encontre os lugares dentro de você que precisam de ali. E bobo que fui, aceitei. O líquido era doce no começo, depois amargo. Desceu quente pela garganta, espalhando um calor gostoso pelo corpo. É bom mesmo, dona. Faz tempo que não me sinto tão leve. Ela
sorriu guardando o frasco. O senhor merece paz, Roberto. Merece descanso. Já carregou tanto peso nessa vida. Minha vista começou a ficar meio embaçada. As linhas da estrada começaram a dançar na minha frente. Encostei no acostamento com o coração acelerado. Alguma coisa estava muito errada. Dona Maria, que que a senhora pôs nesse chá? Minha língua parecia pesada demais. As palavras saíam enrolada. Descanse, Roberto, apenas descanse. Foi a última coisa que ouvi antes do mundo apagar. Não sei quanto tempo se passou. Só sei que quando abri os olho, o céu estava clareando. Um sol fraquinho batia na
minha cara. Meu corpo estava deitado no mato, perto da estrada, com orvalho molhando minha roupa. A cabeça doía como se tivesse levado uma pancada forte, a boca seca que nem deserto, com um gosto amargo que não saía nem cuspindo. O pior nem foi isso. Foi quando me sentei meio zonzo ainda, e olhei pro acostamento. O caminhão não estava mais. Esfreguei os olhos pensando que estava sonhando, a, mas não era sonho. Era o pior pesadelo da minha vida. Meu Scania, meu ganhapão tinha sumido junto com toda a carga de grão que valia uma fortuna. Me levantei
correndo, cambaleando que nem bêbado. Rodei em volta, olhando para todo lado. Nada, só a estrada vazia e o mato baixo. Algumas marcas de pneu no acostamento e mais nada. Meu mundo tinha desaparecido. Cadê meu caminhão? Berrei pra estrada vazia, a voz saindo arranhada da garganta seca. Foi aí que me toquei. Não tinha só perdido o caminho, tinha perdido tudo. Apalpei os bolso, sem carteira, sem documentos, sem celular, sem dinheiro. Tava que nem um mendigo na beira da estrada. Era um caminhão novo, quitado com suor. Não era financiado, não. Tinha economizado se anos, pegando todo tipo
de frete, dormindo mal, comendo pior para juntar a entrada. Depois, mais 4 anos pagando parcela. tinha quitado ele fazia só oito meses. Meu orgulho, minha vida, meu futuro e agora tudo virado poeira na estrada. Levaram inclusive o que restava da minha fé. Gritei, xinguei, jurei vingança, chutei o mato, joguei pedra na estrada, amaldiçoei o dia que tinha nascido. Desgraçada, filha da berrei, lembrando da tal, a santa do asfalto, a mulher de branco, que tinha me enganado como se eu fosse um bebê de colo, um caminhoneiro de 48 anos, rodado, experiente, calejado nas malandragens da vida,
caindo num golpe velho. Pior que o golpe em si, foi a humilhação. Como pude ser tão idiota? Como aceitei aquela bebida? Mas não adiantava. O que aconteceu ali foi mais que um roubo. Foi uma traição que mexeu com a alma. Porque no fundo, por algumas horas, acreditei que tinha encontrado alguém que me entendia, que sabia da minha dor sem eu precisar explicar, e era tudo fingimento, tudo armado para me roubar. Fiquei sentado na beira da estrada um tempão, até que um carro de passeio parou. Um senhor de idade e a esposa, com cara de assustado,
perguntando se eu tava bem. Roubaram meu caminhão, falei a voz embargada. Me deram um chá com droga e levaram tudo. O senhor, que graças a Deus era gente boa, me deu uma garrafa d'água, um pacote de bolacha e me deixou usar o celular dele para ligar pra polícia. Depois me deu carona até a cidade mais próxima, onde tinha uma delegacia. Cheguei lá acabado, o olho vermelho, a roupa suja de terra, parecendo um desses maloqueiro que pede trocado no farol. O policial nem queria me atender direito, achando que eu era vagabundo. Só depois que insisti muito,
que mostrei a carteira da Associação dos Caminhoneiro, que por sorte estava num bolso escondido da jaqueta, é que ele começou a me levar a sério. É o terceiro caso esse mês, disse o delegado depois de ouvir minha história. Sempre nesse mesmo fui até a polícia, relatei tudo. Mostrei o retrato falado da mulher que eles me pediram para descrever. O delegado, um cara de uns 50 anos, barriga de chope e olhar cansado, só balançou a cabeça quando viu o desenho pronto. Esse rosto não é o primeiro a aparecer aqui. Só muda o nome Maria, Clara, Luzia,
mas sempre a mesma descrição, mesma abordagem, mesmo fim. Uma mulher bonita, de vestido branco, aparentando uns 40 anos, jeito calmo, voz mansa, pedindo carona sozinha na estrada. "Essa quadrilha tá agindo há meses", explicou o delegado. "Eles usam sempre a mesma mulher como isca. Ela dá um tipo de sonífero pro motorista e depois os comparsas aparecem com um caminhão guincho, levam seu veículo e somem." "E o senhor não faz nada?", perguntei revoltado. Fazemos o que podemos, mas é uma quadrilha profissional. Quando achamos os caminhões já tão desmontados, a carga vendida e a mulher, essa ninguém nunca
pegou. Fiquei sem chão e sem rumo. Minha carteira de motorista estava no caminhão, meus documentos também. Meu celular com todos os contatos dos clientes, dos amigos, da família distante, tudo perdido. Para completar, a transportadora, para quem eu prestava serviço, não quis nem saber da minha desgraça. Disse que eu ia ter que pagar pela carga perdida. Como? Não sabia. Era uma dívida que eu nunca ia conseguir quitar. Até onde uns parceiros me acolheu por uns dias. O Tonio da Bahia, um caminhoneiro antigo que conheci numa das empresas que trabalhei, me deu pouso, roupa limpa, comida, me
emprestou uns trocado para fazer documento novo. "Não é a primeira vez que vejo isso acontecer, Betão", disse ele enquanto a gente tomava uma pinga na varanda da casa dele. "Essa vida de estrada tem cada emboscada." Me deu carona até um terminal de cargas no outro dia. Disse que conhecia o gerente, que talvez conseguisse um trabalho de ajudante para mim. Não é muito, mas dá para sobreviver até você se ajeitar. Agradeci com o coração apertado, de dono de caminhão a ajudante de carga, de comandante a servente, mas não tinha escolha. Precisava comer, juntar algum dinheiro, recomeçar.
Lá fiquei sabendo de pelo menos outros três motoristas com histórias parecidas. Um deles, o Cléber Mineiro, me chamou num canto para contar sua versão. "Peguei uma tal de clara, toda de branco também", disse ele baixinho, como se tivesse medo de ser ouv. Mas comigo foi diferente, Betão. Quando acordei no acostamento, o caminhão estava lá ainda, só que ela tinha sumido como fumaça, literalmente. Deixou só um cheiro de vela e flores no ar. Achei que ele estava inventando ou que tinha batido a cabeça. Perguntei da carga se tinham roubado. Tava tudo lá, intacto. Só levaram meu
celular e deixaram uma medalhinha de santo no banco. Aquilo não fazia sentido. Por que roubar só de alguns? Por que deixar o caminhão de um e levar o de outro? Tem coisa estranha nessa história toda, comentou o Ton quando contei. Parece que cada um tá vendo o que quer ver. Talvez ele tivesse razão. Talvez a pancada na cabeça, a raiva do roubo, fizesse a gente misturar fantasia com realidade. Mas uma coisa era certa. Aquela mulher de branco tinha destruído minha e, por mais que eu tentasse entender, não achava explicação que fizesse sentido. Passei uma semana
naquela cidade dormindo de favor na casa do Tonho. Ele me deixava no terminal de carga todo dia cedinho e eu ficava lá carregando e descarregando o caminhão dos outros. Um trabalho pesado que espremendo dava uma mixaria, mas era o que tinha. E homem que não tem escolha, agradece até pelo pouco. Com os primeiros trocado que juntei, tirei documento novo. Era estranho demais ter que fazer identidade. CPF, carteira de motorista, tudo de novo. Como se eu fosse um recém-nascido na vida, como se o Roberto de antes tivesse morrido junto com o sumiço do caminhão. No quinto
dia de quebradeira, tomei coragem e fui até a polícia de novo. Queria saber se tinham novidade, se acharam meu Scania. Se pegaram algum bandido. Calma, seu Roberto, disse o delegado, o mesmo barrigudo de antes. Essas coisas demoram. A gente tem que seguir o procedimento. Percebi na hora que ele tava só me enrolando, que na verdade não ia fazer nada. Pra polícia é só mais um caminhão roubado na estatística. Mais um caminhoneiro trouxa que deu carona paraa pessoa errada. "Quero ver o retrato falado de novo", pedi, tentando disfarçar a raiva que me subia pelo gogó. O
investigador, um rapaz magrelo, que parecia ter saído da fraldas ontem, abriu uma pasta e me mostrou o desenho que tinham feito baseado na minha descrição. Tive que admitir que ficou parecido, os traços delicado, os olhos grande e calmo, o sorrisinho fechado que a Maria tinha. O delegado só balançou a cabeça. Esse rosto não é o primeiro a aparecer aqui, só muda o nome. E puxou mais umas cinco ou seis folhas de retrato. Podia jurar que eram a mesma pessoa, só que com pequenas diferença. O cabelo preso ou solto, com vé ou sem, brinco ou colar.
Mas o rosto, aqueles olhos, era ela, minha Maria. O que significa isso? Perguntei, sentindo um frio na barriga. Significa que sua amiguinha fantasma tá fazendo um estrago nas rodovias daqui. Já levou pelo menos oito caminhão nos últimos três mês. E por que vocês não prendem ela? O delegado riu. Aquela risada de quem sabe mais que a gente, porque ninguém consegue achar. Não tem impressão digital, não tem registro em câmera de segurança, não tem passagem por pedágio. É como se ela só existisse nos relatos dos motorista. Saí de lá mais confuso que entrei. Ou era uma
quadrilha muito organizada, com mulher parecida, ou tinha algo mais esquisito acontecendo, algo que meu juízo não conseguia explicar. Fiquei sem chão e sem rumo, até que um parceiro me acolheu por uns dias. O Tonho da Baia, como já falei, me deu uma mão quando eu mais precisava. Me deu carona até um terminal de carga. Quem sabe você consegue uma carona até sua cidade ou um bico de ajudante de caminhoneiro. Agradeci, mas sabia que voltar para minha cidade era pior. Lá iam me ver como fracassado. O caminhoneiro que perdeu tudo por causa de uma mulher na
estrada. A vergonha doía mais que a fome. No terminal fui até o café que ficava na entrada. Juntei uns trocado para tomar um cafezinho e comer um pão com manteiga. Era ali que os motoristas se reunia antes das viagens para trocar ideia, saber das condição da estrada, dos bloqueio, das blitz. Sentei num canto e fiquei só ouvindo. Foi quando escutei um papo na mesa do lado. "Vocês já ouviram falar da fantasma do volante?", perguntou um motorista mais velho. Barba grisalha e cara marcada de sol. "Que história é essa?", rio um mais novo, daqueles que acha
que já sabe tudo da vida. Dizem que tem uma mulher de branco aparecendo nas estradas por aí. Pede carona, some com o caminhão e ninguém mais vê. Meu coração disparou. Era dela que estavam falando, da minha Maria. Resolvi me meter na conversa. Contei minha história sem esconder nada. Falei do chá, do desmaio, do roubo. Os cara ficaram me olhando, alguns com cara de dó, outros desconfiado. "Comigo foi diferente", disse um caminhoneiro de Goiânia depois que acabei. Eu não perdi o caminhão. Ela sumiu no meio da viagem. Numa hora tava no banco do carona, na outra
tinha desaparecido. E o caminhão em movimento. "Tá de brincadeira", zombou o jovem. Tô falando sério. Passei uma semana sem dormir direito. Achei que estava ficando doido. E ela te falou alguma coisa antes de sumir? Falou que eu devia mudar de vida, que a estrada ia acabar me matando se eu não parasse. O café ficou em silêncio, cada um com seus pensamento, suas dúvida. Percebi que não era o único atormentado por aquela figura. Lá fiquei sabendo de pelo menos outros três motoristas com histórias parecidas. Um deles chegou a dizer que a mulher sumiu como fumaça, literalmente.
Outro jurou que depois que ela sumiu, ele encontrou uma medalha de Nossa Senhora no banco. Um terceiro disse que o caminhão foi encontrado, mas num lugar completamente diferente, a quilômetro de onde ele tinha parado. A Maria virou lenda nas rodovias. Todo mundo tinha uma história para contar ou conhecia alguém que viveu algo parecido. Uns dizia que ela era uma alma penada, mulher de caminhoneiro que morreu esperando o marido voltar. Outros que era uma quadrilha profissional de roubo de carg, os mais religioso, que era provação divina. Um senhor de idade desses que já transportou de tudo
nessa vida, ficou me olhando sério durante a conversa toda. Depois me chamou num canto. Moço, essa aí que o senhor pegou não é uma mulher comum, não? Como assim? Perguntei já arrepiado. Ela escolhe. Uns perde tudo, outros ganha aviso, outros só leva susto. Depende do que a pessoa precisa na vida. Tá dizendo que eu precisava perder meu caminhão? perguntei já levantando a voz. Calma, filho. Tô dizendo que às vez. Saí dali mais confuso que um bezerro desmamado. Não tinha como acreditar em assombração, em mulher fantasma, em coisa sobrenatural. Aquilo devia ser só conversa de caminhoneiro
supersticioso, história de estrada dessas que quanto mais conta, mais aumenta. O que eu sabia, por certo, era que alguém tinha me roubado, tinha me drogado, levado meu caminhão, minha carga e minha dignidade. Mas por que todos tinham história tão diferente? Porque alguns perdiam tudo e outros não? Se fosse um bando de ladrão comum, o golpe seria sempre o mesmo. A não ser que não, não podia ser. Tinha que ter explicação lógica. Naquela noite dormi mal. Sonhei com a Maria, mas no sonho ela não me roubava. só ficava me olhando com aqueles olhos penetrante, dizendo que
um dia eu ia entender. Acordei suado, com o coração batendo, que nem cavalo em disparado. "Essa mulher não vai sair da minha cabeça nunca", pensei, olhando pro teto da sala do Tonho, onde eu dormia num colchão velho. A Maria virou minha obsessão, meu pesadelo, meu mistério pessoal. Comecei a juntar os cacos. É o que a gente faz depois que o tombo é grande, né? vai catando o que sobrou, tentando montar de novo alguma coisa que pareça uma Depois de duas semanas naquela situação, consegui um bico de verdade. Não era grande coisa, mas era melhor que
carregar saco no terminal. Um amigo do Tono, dono de uma transportadora pequena, me deu chance de voltar a dirigir em caminhão emprestado, carga leve, só para sobreviver. Não era nem de longe o que eu tinha. An. Era um Mercedes velho, caindo aos pedaços, com mais remendo que roupa de mendigo. O banco machucava as costas, o câmbio era duro, o motor esquentava toda hora, mas era um volante nas mãos de novo. Era estrada debaixo dos pneus. "Você tá com sorte, Betão?", disse o patrão novo, um senhor baixinho de poucos conseguem voltar depois de perder tudo. Mas
a cabeça não esqueci. Por mais que eu tentasse focar no trabalho, a imagem daquela mulher sentada no banco voltava toda hora. A calma, as palavras, o chá e principalmente a sensação de ter sido feito de palhaço, de ter confiado quando não. Cada carona que pediam eu negava. Cada vez que vi alguém na beira da estrada acelerava mais ainda. Tinha virado bicho desconf. Não falava com ninguém nos postos, não contava minha história. Só queria esquecer. Mas não tinha jeito. A lembrança era como chiclete grudado no cabelo. Quanto mais tenta tirar, mais enrola. Toda vez que passo
naquela curva, meus olhos. Não sei se por medo ou por saudade, aquela curva da BR153, perto de Itumbiara virou um lugar assombrado para mim. Sempre que passava por ali, o coração disparava, a mão suava no volante, ficava olhando cada vulto, cada sombra na beira da estrada. Que besteira, Betão", dizia para mim mesmo. "Ela não vai tá aí de novo." E se tivesse, você ia fazer o quê? Parar e perder outro caminhão. Mas a verdade é que uma parte de mim queria encontrar ela de novo, olhar naqueles olhos e perguntar: "Por quê? Por que eu? O
que eu fiz para merecer aquilo?" E foi ali, numa dessas viagens que entendi. Ela não roubou só meu caminhão. Ela levou minha confiança, minha paz, me deixou nu por dentro, mais pobre que mendigo, porque mendigo ainda tem a esperança. Eu nem isso tinha mais. Comecei a perceber que o estrago era maior do que imaginava. Não dormia direito, sempre acordando no meio da noite, achando que tinha alguém na cabine comigo. Não conseguia conversar com os outros caminhoneiros como antes, sempre suspeitando que estavam rindo da minha desgraça pelas costas. Não sentia prazer em nada, nem em comer
aquela comida de posto que eu tanto gostava, nem em tomar uma cerveja no fim de semana, nem em ligar o rádio e cantar junto. Virei uma casca vazia de homem, um caminhão sem carga, um motor funcionando no automático. Os meses foi passando, três, quatro, cinco, a dor foi diminuindo, mas deixou uma cicatriz grande, daquelas que muda o formato da gente, que faz a gente virar outra pessoa. Você tá muito fechado, Betão", comentou Tono. Numa das pouca noite que nos encontramos num posto. "Parece que deixou de acreditar nas pessoa." "E não é isso mesmo?", respondi: "Amar,
essa vida já me ensinou que confiar é bobagem. Se for assim, é melhor nem viver. A gente só segue por causa dos outros. Se não tem ninguém para confiar, para que levantar da Ele tinha razão. No fundo, eu sabia, mas a ferida estava aberta demais ainda. A humilhação de ter sido enganado doía mais que a perda material. Numa tarde de domingo, tava parado num posto pequeno, esperando a hora de seguir viagem. Sentado na mureta, olhando do movimento, pensando na vida. Do outro lado do pátio, vi uma cena. Um caminhoneiro mais velho ajudando uma família que
estava com o carro quebrado. Pegou a mangueira, encaixou no radiador, completou a água, depois abriu o capô do próprio caminhão, pegou uma ferramenta e ajeitou alguma coisa no motor do carro. A família agradecendo, as crianças sorrindo. Fiquei olhando aquilo e pensando: "Antes eu era assim, antes eu parava para ajudar. Aquela mulher não tinha levado só meu caminhão, tinha levado o melhor de mim, a parte que acreditava nas pessoa, que estendia a mão, que via o mundo como lugar onde ainda tinha bondade. E isso, isso foi o roubo. Verdade. Um dia, conversando com um frentista num
posto em Minas, falei da minha história. Ele ouviu tudo, balançando a cabeça. Essa Maria te deixou marcado, hein, compadre? Deixou, respondi arrastando a palavra. Mas não pelo que ela fez. É pelo que eu deixei de ser depois dela frentista, um senhor de cabelo branco me deu um tapa no ombro. Sabe qual é o problema? A gente passa tanto tempo olhando no retrovisor que esquece de prestar atenção na estrada na frente. Essa mulher te roubou o passado. Não deixa ela roubar teu futuro também. Aquilo me pegou de jeito. Fiquei pensando nessa frase por quilômetro e quilômetro.
Não deixa ela roubar teu futuro também. Era isso que eu estava fazendo, deixando ela continuar me roubando todo dia, toda hora, cada vez que eu deixava de ajudar alguém por medo, cada vez que eu fechava a cara para um estranho, cada vez que eu passava reto por alguém precisando de socorro, era como se ela estivesse ali me roubando de novo. Resolvi mudar. Não da noite pro dia, porque ferida grande não fecha assim rápido, mas devagar. Comecei a falar mais nos postos, a conversar com os outros caminhoneiros sobre o tempo, sobre a estrada, sobre futebol, coisa
boba, mas que ia me devolvendo pr as pessoas. Parei de olhar cada estranho como se fosse ladrão. Voltei a dar bom dia pro frentista, pra moça da lanchonete, pro segurança do Posto. Pequenas coisas que a gente nem valoriza, mas que faz parte do que é ser gente. Não voltei a dar carona, isso não. A lição tinha sido cara demais para esquecer tão fácil. Mas parei de pensar na Maria todo dia. Parei de sonhar com ela. Parei de procurar ela em cada curva. Era hora de seguir viagem. A vida é estrada comprida demais para ficar parado
na mesma parada, olhando pro mesmo buraco. "A estrada não tem fim, Betão", dizia meu pai, que também foi caminhoneiro. "Mas a viagem é sua. Você decide como quer chegar". Meses depois do acontecido, eu estava num ponto mais calmo. Já não sonhava tanto com a Maria. Já conseguia fazer meu trabalho sem ficar o tempo todo remoendo. O caminhão velho que o patrão me deu para dirigir tinha virado meu companheiro de estrada. Não era bonito, não era potente, mas era honesto desses que não te deixa na mão se você cuidar direito dele. Numa dessas viagens para São
Paulo, o rádio do caminhão pifou de vez. Aquele velho que já cheiava mais que tocava resolveu se aposentar. E a estrada sem música é mais comprida. Todo o caminhoneiro sabe disso. Num posto de beira de estrada, viu uma banquinha daquelas que vende de tudo. Lanterna, boné, faca, canivete e radinho de pilha. Juntei os trocado contado e comprei um radinho velho numa feira, daqueles pequenininho, que podia prender no quebra-sol. Não era grande coisa, mas melhor que o silêncio ou o barulho do Liguei o aparelho e fui passando as estação. Música sertaneja, noticiário, propaganda de loja. Até
que parei num canal que tinha uma voz grave dessas de padre ou pastor. Era uma pregação. Normalmente eu passava direto. Nunca fui muito de igreja, mas alguma coisa me fez parar e ouvi. O homem falava com uma convicção que prendia a atenção. Meus irmãos dizia a voz no radinho. Às vezes a gente não entende o que Deus permite na nossa vida. as provação, as perda, os tombo. A gente só enxerga a dor do momento, a ferida aberta. Aquilo parecia que era diretamente para mim. Aumentei o volume. Às vezes, Deus permite que o mal use disfarces
de luz para testar se a gente aprendeu a discernir. Essa frase me acertou como um soco no peito. Disfarces de luz. Não era isso que a Maria tinha feito? Se vestido de branco, falado mansinho, parecendo uma santa, uma enviada? Só para me roubar. O inimigo conhece nossas fraqueza continuou a voz. Sabe onde estamos vulnerável. Se apresenta como amigo, como conselheiro, como companheiro de jornada e quando menos esperamos nos derruba no chão. A estrada na frente ficou embaçada. Percebi que era um lágrima nos meus olhos. Encostei no acostamento porque não dava mais para dirigir assim. Mas
a queda não é o fim da história, meus irmãos. É apenas um capítulo. Porque o que o inimigo não sabe é que Deus usa até mesmo o mal que nos fazem para nos fortalecer, para nos ensinar, para nos mostrar um caminho novo. Desliguei o motor e fiquei ali parado, só ouvindo. Era como se aquele homem que nem sabia da minha existência tivesse lendo minha vida inteira, cada página da minha desgraça. Quando perdemos algo que amamos, um bem, um trabalho, uma pessoa. O primeiro sentimento é revolta. Depois vem o desespero, a sensação de que nada mais
vale a pena, que estamos abandonado. Era exatamente assim que eu tinha me sentido, abandonado, roubado, não só das coisas material, mas da minha fé nas pessoa. Mas é aí, meus irmãos, no fundo do poço, que encontramos a pedra mais preciosa, a verdade sobre nós mesmos, o que realmente importa, o que ninguém pode roubar da gente. Naquele dia parei num posto, desci do caminhão, olhei pro céu azul limpo. Tinha um vento fresco que balançava as árvores do outro lado da pista. E de repente, como se fosse um raio, veio um pensamento claro na minha cabeça. Eu
ainda estava vivo. Podia ter sido pior. Ela podia ter me matado, me deixado jogado na beira da estrada. Mas eu tava ali respirando, com saúde, com chance de recomeçar e agradeci não pela perda, mas pela lição, porque desde então eu ouço mais meu instinto. Antes eu era afobado, confiava fácil, me jogava de cabeça na situação. Agora sou mais cauteloso, penso duas vezes. Analiso melhor cada pessoa, cada proposta, cada oferta que aparece na minha e ajudo quem precisa. Mas com os dois olho bem aberto. Voltei a parar para socorrer um carro quebrado na estrada. Voltei a
dar informação para quem tá perdido. Voltei a conversar com os outros nos postos de gasolina, a trocar ideia sobre a vida, sobre os problemas, sobre as pequena alegria. Só não voltei a dar carona. Nisso aí, o tombo ensinou bem. Daquele dia em diante, a história da Maria começou a fazer um sentido diferente na minha cabeça. Não que eu tivesse perdoado, nem aceitado, mas comecei a ver que talvez tivesse um propósito maior naquilo. Porque antes do roubo, eu era um caminhoneiro orgulhoso de achava que sabia tudo, que ninguém podia me passar a perna, que a estrada
não tinha segredo para mim. vivia correndo, preocupado com frete, com dinheiro, sem tempo paraa família, pros amigos, para mim mesmo. Depois tive que voltar pro básico, reaprender a viver com pouco, a dar valor pras coisa pequena, a agradecer pelo pão de cada dia, pelo trabalho que aparecia, pelo teto emprestado. Nunca imaginei que ia dizer isso, mas aquele roubo me obrigou a descer do trono que eu mesmo tinha constru me trouxe de volta pro chão, me ensinou humildade na porrada. Contei essa minha conclusão pro Tonho. Certa vez que a gente se encontrou num viu só. Deus
escreve certo por linha torta, ele disse sor. É, mas podia escrever um pouco mais suave, né? Brinquei arrancando risada. Mas no fundo a gente sabe que certas lição só entram na cabeça dura quando a bordoada é forte. E eu, cabeça dura, que só precisei perder tudo para entender que tudo pode ser perdido num piscar de olho, que nada é tão seguro quanto a gente pensa, que um caminhão, por mais bonito que seja, é só lata e motor. O que importa mesmo é quem tá atrás do volante. Foi nessa época que fiz uma coisa que nunca
tinha feito antes. Entrei numa igreja, não paraa missa. nem para cul. Entrei num dia de semana quando tava vazia. Sentei num banco no fundo e fiquei olhando pro altar, pras imagens, pras vela acesa. Não sabia rezar direito, nunca fui de decorar oração. Mas falei com Deus do meu jeito mesmo, pedindo direção, pedindo paz. Foi como se tivesse tirado um peso das costas, como se finalmente entendesse que não precisava carregar aquela carga sozinho. Saí dali diferente. Não virei santo, longe disso. Continuo o mesmo Betão de sempre, com meus defeitos, minhas raiva, minhas falhas. Mas agora sei
que a estrada tem mais curva do que a gente consegue enxergar e que às vezes a gente precisa perder o caminho para encontrar a direção certa. Se foi Maria, se foi só uma bandida disfarçada, se era coisa de outro mundo, não sei e talvez nunca vá saber. Tem mistério na vida que a gente não desvendar, por mais que tente. Tem pergunta que fica sem resposta e com o tempo a gente aprende a conviver com isso. Essa história já aconteceu faz dois anos. Hoje tô melhor, graças a Deus, e muito esforço. Não recuperei meu Scania. Claro,
esse já deve ter virado peça ou foi parar na mão de algum bandidão, mas consegui me endireitar na vida. O patrão que me deu aquela chance viu que sou trabalhador sério, responsável. Foi aumentando minha responsabilidade, me dando frete melhor, carga mais valiosa. Há uns s meses, ele me ofereceu uma parceria. Tinha um caminhão usado, um Volvo branco, não tão novo quanto o meu finado Scania, mas em bom estado, me propôs que eu pagasse aos pouco, descontando uma parte do frete. Foi duro no começo, porque o ganho ficava pequeno depois do desconto, mas aceitei. Era minha
chance de voltar a ter meu próprio veículo. Hoje já paguei mais da metade. Não falta muito para ser dono de É diferente de antes, porque agora dou valor diferente pras. Cada parcela que pago não é só dinheiro saindo, é independência voltando, é dignidade recuperada. Mas uma coisa é certa, aquela noite me tirou tudo para me devolver outra, a coragem de recomeçar, porque tem gente que cai e fica no chão, chorando a derrota. E tem gente que cai, levanta, limpa a poeira e segue caminho. Antes eu achava que era dos forte, que nada me der. Precisei
provar do chão para descobrir que minha força não estava em não cair, estava em conseguir levantar depois da queda. Hoje, todo frete que faço é com mais sabedoria, mais fé e menos ingenuidade. Valorizo cada quilômetro rodado porque sei o quanto custou voltar pra estrada. Agradeço cada carga que chega inteira no destino. Respeito mais o caminhão. Cuido melhor. Não corro tanto. Não faço loucura. A vida na boleia continua dura. Claro, estrada esburacada, pedágio caro, combustível nas alturas, prazo apertado, comida de posto. Nada disso mudou. O que mudou foi o caminhoneiro, eu. E o que me assusta
até hoje, o que me faz pensar nas horas mais quieta da madrugada, é como tudo pode mudar numa curva só, num encontro só, numa decisão errada. Naquele dia eu podia ter ignorado aquela mulher na beira da estrada. Podia ter passado direto, mas parei. Abri a porta, dei espaço, convidei a desgraça para entrar e ela entrou, se sentou do meu lado, me deu um chá e levou o que era meu. A vida cobra juros, meu pai dizia, e a cobrança veio pesada. Mas sabe de uma coisa? Paguei, quitei a dívida e segui viagem. De vez em
quando ainda pego aquela curva na BR153 e ainda olho, meio sem querer, meio querendo, se tem alguém pedindo carona. Nunca mais vi a Maria ou qualquer mulher de branco sozinha na estrada. Outro dia, um caminhoneiro mais jovem me perguntou se eu acreditava em fantasma. Por quê? Qui. Porque ouvi falar de uma mulher misteriosa que aparece nas estradas por aí. Uns diz que ela é assombração, outros que é golpista. Queria saber se é verdade. Sorri pensando no que devia responder. Podia contar tudo nos mínimo detalhe. Podia fazer ele se arrepiar inteiro com minha história de terror,
mas só disse. Tem coisa na estrada que é melhor não encontrar, rapaz. E tem encontro que é melhor não ter. Ele ficou curioso, pediu para eu falar mais, mas mudei de assunto. Não gosto de ficar relembrando aquilo. E também tem história que só faz sentido para quem vive. Contar pros outros vira só causo de beira de estrada, desses que ninguém acredita de verdade. O que importa mesmo é o que aprendi, o que ficou depois que a tempestade passou e ficou muita coisa. Aprendi que a gente só dá valor de verdade pro que tem depois que
perde, que a amizade verdadeira aparece na hora do aperto, como o Tonho que me estendeu a mão quando eu estava no fundo, que recomeçar é possível, mesmo quando parece que acabou tudo. Hoje olho no retrovisor e vejo o caminho que percorri desde aquela noite. Quanto desespero, quanta raiva, quanto medo, mas também quanta força descobri que tinha, quanta capacidade de reagir, de reconstruir, de seguir em frente. E você aí, meu irmão de estrada, já deu carona para alguém que parecia mais do que era? Já confiou em quem não devia? Já perdeu algo importante por causa de
um erro de julgamento? Se você tá passando por um momento assim difícil, de perda grande, de tombo feio, me escuta. Não é o fim da linha, é só uma parada forçada. O motor pode voltar a funcionar, a viagem pode continuar, a estrada não tem fim. Todo caminhoneiro sabe que depois da curva mais fechada, da subida mais íngreme, vem sempre um trecho de reta, um respiro, uma vista bonita. É só não desistir antes de chegar lá. Comenta tua história aí. Quero saber se mais alguém já cruzou com a Maria ou com alguma situação parecida. Quero saber
se tem mais gente que caiu e levantou, que perdeu e reconquistou, que desistiu e depois voltou com mais força. Porque tem estrada demais pra gente, mas tem lição em cada. E é compartilhando as histórias que a gente impede outros companheiros de cair na mesma cilada. Dirigir caminhão é fácil, já me disse um amigo uma vez. Difícil é conduzir a vida pros lugar certo. Eu tava perdido. Me perdi numa curva da BR153 quando dei carona para Maria, mas encontrei meu rumo de novo. Talvez esse fosse o plano desde o começo. A estrada segue e eu também.
Com mais calômetre na estrada, mais história para contar, mais cautela no coração, mas também com mais gratidão por cada dia, cada frete, cada amanhecer visto da boleia. E a Maria? Bom, se um dia encontrar ela de novo, o que Deus me livre, só tenho uma coisa para dizer. Obrigado pela lição. Foi cara demais, doeu para caramba, mas aprendi. Porque no fim das contas, seja ela bandida, fantasma ou provação divina, foi depois dela que virei um homem melhor, mais forte, mais sábio, mais humano. E isso, meus amigos, isso ninguém pode roubar de mim. M.