Ah, nostalgia, aquelas lembranças mais tenras da nossa infância que aquecem o nosso coração e afagam o nosso espírito. Isso é muito bom, né? Não, é uma merda, é uma merda, é uma merda.
Galera, esse aqui é um vídeo mais curtinho e direto ao ponto, que talvez não fique tão curtinho porque eu falo bastante, mas enfim. E tem a ver com aquela imagem maravilhosa, aquela coisa empolgante que foi ver o Robert Downey Jr. anunciando que vai ser o Doutor Destino nos filmes da Marvel, e eu já até fico imaginando você que começou a ver esse vídeo dizendo: ih cara, não surta, é só mais um anúncio de filme super-herói, é gibi de hominho, sacou?
E você está completamente certo, só que tem algo mais aí. Tá ligado quando você tem uma sensação muito desagradável, você tem um brulho no estômago diante de um negócio que você não entende direito por que você está sentindo isso? ♪ Vai dar merda, vai dar merda.
É como se você estivesse diante de um negócio que tá, é só uma coisa qualquer, talvez até mesmo um pequeno incômodo, mas ele tá mexendo contigo mais do que deveria, ou te provocando a pensar coisas que vão além simplesmente daquele evento. E esse é o ponto que eu quero chegar aqui, aquela imagem do anúncio que rolou na San Diego Comic Con, que o Robert Downey Jr. que interpretou o Tony Stark, o Homem de Ferro nos filmes da Marvel, vai voltar para esse mesmo universo Marvel, sendo agora o famoso vilão Doutor Destino, que caso você nunca tenha ledo os quadrinhos, é um dos personagens mais interessantes que a Marvel tem.
Há quem diga que esse anúncio lá na Comic Con foi apenas um. . .
Gracejo. Mas sinceramente, eu acho que tá mais no espírito de se colar, colou. O ponto central aqui é que as imagens daquele anúncio, aquela semiótica triunfante do Downey Jr.
sério, de braços abertos, quase que fazendo um cosplay de Jesus Cristo da Marvel, o verdadeiro salvador, que retorna, tira sua máscara e a todos salva, isso sem contar os fiéis que ali estavam e que honraram, extremamente empolgados, enfim, toda aquela imageria nerd, que eu tenho um profundo asco, pra ser franco, parece sintetizar algo que vai muito, muito além, simplesmente, do anúncio de um filme da Disney. Inclusive vai além do próprio gênero de filme super-herói, vai além de Hollywood, Pra dizer então de um jeito mais simples, Downey Jr. como o Doutor Destino, parece ser uma imagem síntese de um problema grande, bem grande, bem complexo, de ordem política e estética, que não diz respeito tão somente ao nerd, mas diz respeito a você.
. . Se bem que você também pode ser nerd, que droga.
E pra não ficar aqui fazendo suspense, vamos direto ao ponto. O cospobre do Downey Jr. de Doctor Doom, é uma imagem síntese da praga da nostalgia.
E eu quero frisar aqui a palavra, praga, pois é algo que está contaminando a cultura. Só que aqui tem um grande porém, e já aviso vocês, tem a ver com a indústria cultural dos Estados Unidos, tem a ver com uma sensação, um mal estar, que os Estados Unidos estão passando agora. E que nós aqui estamos importando, porque a gente sempre importou muito da porcaria que eles produzem, só que desta vez, seria bom dizer: ok, entendi, mas eu não vou querer essa tranqueira que você tá empurrando pra nós, e isso, vou repetir, não tem a ver com um filme, não tem a ver com um personagem, é algo que vai além.
Então nesse vídeo aqui, eu vou tentar amarrar com vocês aqui uma série de coisas, o sucesso de Divertidamente 2, a tranqueira que é Deadpool vs Wolverine. Ah, mas é tão divertido. .
. Vou voltar obviamente nesse anúncio do retorno do Downey Jr. pro universo da Marvel, mas também quero falar desse comics, dos anúncios do James Gunn, esse diretor que vai salvar o universo DC, mas também quero falar com vocês mais coisa, por isso que eu tô falando, vai além, quero comentar esse monte de distopia que tá acendendo esse ano, vocês repararam a quantidade de séries, de filmes sobre fim de mundo, por que diabos tá tendo tanta produção distópica, por que que isso virou um espetáculo tão legal?
E claro, quero aprofundar com vocês aqui sobre o que é nostalgia, e explicar de forma bem clara por que que isso é um problema, tanto estético quanto político. Mas antes de eu arranjar raiva com todo nerd que existe nessa porcaria de internet, peço que você curta o vídeo se estiver curtindo, se inscreva caso esteja novo por aqui e compartilhe. Esse canal só existe porque tem apoiadores e tem recomendações bem legais, como lives aqui comigo, grupo de estudo, grupo no Telegram, sorteio de gibi e conteúdo exclusivo.
Eu vou deixar o link do nosso apoio na descrição do vídeo e no primeiro comentário fixado. E considere ser membro aqui no Youtube por R$ 6,90 ao mês e ter acesso à Sarjeta Flix, com uma série de vídeos exclusivos e lives também exclusivas para os membros que rola a cada 15 dias e a gente geralmente analisa algum filme, que é vocês que escolhem. .
. ou não, às vezes eu escolho por vocês também. Eu não tenho que ficar sendo tão democrático assim.
E inclusive a próxima live exclusiva vai ser sobre Cidade das Sombras, o melhor sci-fi dos anos 90. Será? Mas vambora.
Acho que já tá bastante óbvio pra todo mundo que a gente tem assistido a um processo cada vez mais de radicalização daquilo que a gente pode chamar de mercado da nostalgia. E isso, pra eu manter aqui um recorte e uma certa objetividade, eu tô falando muito da indústria cultural dos Estados Unidos, ou seja, o quanto as megacorporações americanas estão investindo nisso. As últimas semanas mesmo parecem terem sido totalmente povoadas disso.
Exemplo, Divertidamente 2, um filme que tá tendo uma bilheteria monstruosa e que em grande parte é quase que um remake do 1, sendo que a diferença do 2 pro 1 é 5 anos. Ah, mas traz coisas novas. Sim, é um filme que apela ainda mais pra identificação do público, sobretudo apelando pra essa discussão contemporânea sobre saúde mental e sobre o quanto estamos cada vez mais ansiosos.
Aliás, guarde bem essa palavra, ansiedade. Pouco tempo depois sai Deadpool vs Wolverine, que, pra dizer de uma maneira bastante sintética, é um filme infantil pra adulto. A única coisa que faz ele ser adulto é ele ser extremamente violento.
Mas notem, ainda é um filme infantil, púdico, fede a corporativismo Disney. Tem 500 massacres, não tem uma única f*da. E obviamente é um filme que se embriaga de nostalgia ao trazer Hugh Jackman de volta como Wolverine.
Ou mesmo uma série de outros atores que voltam a interpretar personagens do universo Marvel da Fox. Guarde então também pra você essa expressão, coisas infantis para adultos. Por fim temos o maior evento nerd do mundo, a San Diego Comic Con, com seus anúncios exclusivos, coisas que você não pode viver sem.
E eu tenho uma preguiça imensa desses eventos, eu acho que é só um lugar que você paga pra pegar fila e saber de coisa que você saberia de qualquer forma estando em casa. Enfim, não vou perder tempo com esse negócio. Na amada San Diego Comic Con, além desse anúncio esquisitíssimo do Downey Jr.
dizendo que agora vai ser o Doutor Destino, e isso tá gerando uma tremenda especulação na internet. É porque o Doutor Destino vai aparecer no universo alternativo do Quarteto Fantástico, e aí nesse universo alternativo o Tony Stark é o Doutor Destino? Provavelmente não, provavelmente é só o fato de que o Doutor Destino tem a mesma cara do Tony Stark.
E aí o que vai acontecer é que esses universos vão se cruzar em algum momento, e aí toda galera que enfrentou o Thanos, pá, vai encontrar o Doutor Destino e vai dizer ''Oh meu Deus, você parece o Tony Stark''. Fico imaginando esse Homem-Aranha dos últimos filmes da Marvel, que praticamente é o Homem-Aranha da Faria Lima, dizendo ''Oh, Senhor Stark, você está de volta, ah, ah, Pluto, ah''. E aí sai das sombras o Downey Jr.
com um terno verde dizendo ''Não, meu nome é Victor''. Enfim, foda-se. Pouco importa a título de o que vai ser do universo Marvel, sinceramente já abandonei esse negócio faz tempo.
O que eu acho aqui bastante emblemático é a Marvel que há algum tempo já parece estar um tanto perdida. Cabe lembrar, desde Vingadores Ultimato, a Marvel não tem acertado tanto, a aposta no multiverso é um negócio que deixou todo mundo cada vez mais confuso e que virou um clichê, a DC também apostou nisso e, sinceramente, não parece estar dando muito certo. Aliás, o filme do Deadpool vs Wolverine tem um tanto de autocrítica, aliás, mais um negócio pra falar mal de Deadpool vs Wolverine.
É um filme que é o tempo todo uma espécie de assessoria de imprensa descoladinha da própria Disney. É eles falando pro público: ó, a gente pensa isso, a gente tá planejando aquilo, a gente reconhece isso, mas também a gente quer valorizar tal coisa. E no filme do Deadpool vs Wolverine tem um momento que o Deadpool fala, aliás, Marvel chega de multiverso, não tá dando muito certo.
Não se iludam, né, não é o Deadpool falando isso, é a própria Disney falando isso. É, a gente reconhece, tá bom, ficou meio confuso, o Kang não emplacou como um grande vilão. E aí quando parece que, finalmente, a coisa vai dar um passo pra frente, o que a gente tem é um ritornelo, Downey Jr.
é o Doutor Destino, o cara que deu o pontapé no universo Marvel tá de volta. A novidade é aquilo que você olha no espelho do retrovisor. Só que tudo isso que eu tô falando não se restringe a Disney, não é restrito a Marvel.
Apesar dos anúncios da DC Comics terem sido mais discretos, me chamou muito a atenção também o vídeo do James Gunn anunciando a logo do que vai ser o DC Studios. E ele fala, fala, fala pra no final das contas dizer tão somente o seguinte: nós vamos apelar para o clássico. Vamos usar a logo da DC, que todo mundo já conhece, é aquela que tem a ver com o nosso passado, é aquela que nos traz nostalgia, e é isso, entendeu, a gente vai usar a logo veia.
E aí você pode até dizer, pô, mas a logo veia é bonita, eu também acho. Mas percebam, eu tô querendo aqui mostrar, é um monte de coisinha junto, e que a gente pode expandir ainda mais nesse universo de filme de super-herói, ainda sobre a mesma Disney. Nós temos pra cá, a gente tá vendo uma porrada de live actions de antigos desenhos animados.
Já a Pixar, a partir do seu chefe criativo, Pete Docter, anunciou que, sim, eles ainda vão trabalhar com projetos originais, mas eles estão enfatizando as continuações. Inclusive em uma entrevista pra revista Time, ele mesmo admitiu: olha, até eu quero fazer coisas originais, mas o pessoal não assiste, então a gente faz as continuações porque são já marcas consolidadas, e era isso. Inclusive, tá vindo mais um Toy Story, não sei o que eles tem mais pra contar com essa porra, mas tá vindo mais um Toy Story.
E o que é mais doido é que tudo isso não se restringe tão somente aos grandes estúdios. Mesmo filmes de médio orçamento, ou projetos com um certo aroma de independência, ainda assim, em muitos, são reciclagens de coisas que já estão consolidadas. E aí vem uma parada doida aí nisso tudo que eu tô falando.
Em paralelo a tanta adaptação, remake e continuação, a gente tá tendo uma grande leva de filmes e séries distópicas. Pra comentar, só esse ano, tivemos a série de Fallout, que inclusive tem vídeo aqui no canal, teve mais um filme do Planeta dos Macacos, teve mais um Mad Max com Furiosa, tá vindo a adaptação do game Borderlands, tivemos Duna parte 2, uma continuação de Um Lugar Silencioso, e o retorno de franquias que também apelam pra um fim do mundo, ou pra uma certa imagem de destruição, e aí Exterminador do Futuro, Aliens. E cabe comentar, né, isso já vem na esteira de muitos outros sucessos dos anos anteriores, como o ano passado foi o caso de The Last of Us.
E aí você deve tá perguntando, tá, peraí lá, tu tava falando de nostalgia, filme de super-herói, bababá, agora tu começou a falar de distopia, irmão, que que cê tá falando? E a resposta aqui é que hoje os Estados Unidos estão diante do fim do mundo. O mal estar na sociedade americana é tamanho que a ausência de futuro e esse excesso de passado tá marcando profundamente a indústria cultural deles.
Aqui eu quero deixar claro que quando eu falo de fim de mundo, eu tô falando de um fim de mundo muito simbólico, ainda que tenha fortes consequências materiais. Um exemplo clássico, para os indígenas, aqui nas Américas, quando chegaram as caravelas dos europeus, aquilo foi o início do fim de um mundo. E fins de mundo estão acontecendo o tempo todo.
Pra você que tá num momento difícil, e pode ser por causa de guerra, de doença, de evento climático, sei lá, pra você, muitas vezes, o momento é a cara do fim do mundo. E aqui, buscando fazer uma interpretação que olha pra cultura como um grande sintoma dos anseios de uma sociedade, dá pra dizer que os Estados Unidos, dá pra dizer que a cultura americana vive o mal estar do fim do mundo. E isso num panorama mais longo faz muito sentido.
Daria pra dizer que desde o 11 de setembro alguma coisa quebrou. Teve a presidência do Bush filho, que era um completo imbecil, aí depois veio o Obama e você vai dizer, pô, aqui os Estados Unidos se reergueu, mais ou menos, porque a ascensão de um presidente negro produziu um ressentimento gigantesco em outra parte do país. Não é por acaso que o Donald Trump se coloca até hoje como uma espécie de anti-Obama.
E por mais que tenha Trump, tenha Biden, tenha sei lá quem vai vir agora, o lance é que os Estados Unidos parecem cada vez mais um arremedo de toda aquela grandiosidade que eles criaram sobre si no século XX. E aí você vai dizer, tá, mas essa grandiosidade é mítica, os Estados Unidos sempre foram muito problemáticos. E sim, você está certo, mas o mito parava de pé no século XX.
No século XXI ele tem cada vez mais dificuldade de se sustentar. E mitos não só são aquelas mentiras que a gente conta pros outros, mas também são aquelas mentiras que a gente conta pra nós mesmos. Some esses problemas internos com questões externas, como um mundo mais multipolarizado, com ascensão chinesa e uma mudança ainda gradual da hegemonia cultural.
Aqui pra deixar bem claro, eu tô falando de uma mudança do polo cultural do mundo. Parem pra pensar, no século XX as pessoas o que elas mais consumiam eram produções culturais dos Estados Unidos, e agora você olha pras mais novas gerações e o pessoal gosta muito de ver coisa japonesa, coreana, chinesa, tailandesa, se isso vai se consolidar não tem como a gente prever. Mas é bem possível que o reaça do futuro não é aquele cara que fala: pô, o rock de verdade era aquele que tinha nos anos 90, Guns N' Roses, aaaah.
O reaça do futuro talvez seja o cara que fala, no meu tempo que era bom, quando tinha BTS. Aliás, todo esse papo que eu tô comentando com vocês talvez seja sintetizado por um filme que saiu esse ano, e não por acaso de um dos maiores diretores americanos de todos os tempos. Eu tô falando de Megalopolis, do Coppola, e basicamente é um filme que tá falando sobre a ruína do Império Romano, mas é, a ruína dos Estados Unidos, a queda de um império e o mal estar a partir desta queda.
Só que eu tô falando falando e até agora eu não mostrei qual é o grande problema disso tudo. Talvez pros gringos lá seja um problema, mas pra nós não, apera lá que é um pouco mais complicado. Vamos examinar com mais profundidade a nostalgia, pra poder entender o próprio mercado de nostalgia, que cabe frisar, nós aqui no Brasil também estamos muito embriagados disso.
Nostalgia etimologicamente vem do grego, que é composto de 'nostos', que é voltar a casa, e 'augia', que pode ser lido como dor, sofrimento, anseio. Porém apesar da palavra nostalgia ter esses radicais em grego, é uma palavra que surge no contexto moderno, a partir do suíço Johannes Hofer na sua tese de medicina de 1688, onde ele pensa a nostalgia antes de tudo como uma doença. Guardem bem isso também, nostalgia enquanto doença.
E essa reflexão médica sobre a nostalgia que foi tomando corpo a partir de outros pesquisadores, a partir de outros médicos, tinha a ver muito com os soldados que estavam em campanha e que tinham muita saudade da sua pátria. Então o papo sobre nostalgia surge também na ascensão do sentimento nacionalista. Inclusive há documentos que mostram que após a revolução francesa houve muita nostalgia pelo antigo regime, que inclusive passou a ser chamado de antigo regime por causa da revolução.
Essa nostalgia tomou corpo poético, principalmente a partir do nacionalismo romântico, algo que vai se fortalecer no século XIX. Inclusive essa ligação bastante curiosa entre nostalgia e nacionalismo fez com que surgisse uma série de discursos entre poetas e escritores de que somente a nossa pátria, o nosso lar, era capaz de despertar na gente uma saudade, de despertar na gente uma vontade muito forte de voltar pra casa. E como é comum nesses discursos nacionalistas, cada um requisita uma exclusividade.
A nossa pátria é tão maravilhosa que somente dela as pessoas sentem saudade. E a maior prova disso é que somente a nossa pátria, o nosso povo e a nossa língua tem uma palavra específica pra esse sentimento, pra esse anseio de voltar pra casa. E esse engodo foi fomentado por escritores, por poetas, os portugueses disseram que só eles tinham saudade, os russos, toska, os tchecos, stesk, os romenos, dor.
Dá pra falar também de palavras do alemão, como heimweh, ou a expressão espanhola mal de corazón. Enfim, em todos esses casos, cada um queria requisitar pra si que apenas a sua pátria era tão maravilhosa e só dela dava pra sentir saudade. Existia uma nostalgia única da nossa querida nação, porque de única não tinha nada, todo mundo também sentia isso.
Por que eu tô puxando esse papo todo? É que a partir desses nacionalismos que vão se fortalecer no século XIX, não por acaso no início do século XX, a gente tem a ascensão dos regimes fascistas, que são de certa maneira a coroação desse processo. O fascismo italiano queria restaurar a grandiosidade do império romano.
Já o fascismo alemão, o nazismo, buscava esteticamente resgatar uma série de referenciais clássicos e se agarrava na reciclagem de valores medievais. Repito, tudo isso, romantizações. O jeito que os fascistas viam a Roma Antiga não era exatamente como era a Roma Antiga.
E o jeito que os nazistas viam a arte clássica não era exatamente como era a arte clássica. Como diz a pesquisadora Svetlana Boym, essa nostalgia que surge, que toma corpo dentro da guinada nacionalista, vai culminar em teorias da conspiração. E essas teorias da conspiração servem pra dizer porque que pra você o mundo hoje não presta, porque que as coisas não estão boas, porque que antes era melhor.
E nesse ponto aqui a gente precisa aprofundar o próprio sentimento nostálgico, porque ele é antes de tudo uma pátria imaginária. E aquela hora eu falo pátria não só no sentido nacionalista, pense na sua infância, você com certeza tem memórias muito gostosas da sua infância, se é que você teve uma infância feliz, às vezes você não teve, enfim, mas se você teve, ela vai parecer pra você uma espécie de pátria imaginária muito encantada, uma pátria que pode se restringir tão somente a você, seus pais, ou às pessoas que te criaram, enfim, as pessoas queridas à sua volta, às vezes apenas a sua casa, aquela casa é a sua pátria, é essa terra encantada do seu passado. Só que gente, todo mundo sabe, isso são idealizações, por exemplo, eu nasci em 84, nossos anos 80 foram muito legais né, sim, com inflação galopante no Brasil, as pessoas tendo que correr pra comprar as coisas porque no dia seguinte o salário não dava conta, eu obviamente guardo memórias muito ricas dos anos 80, já os meus pais, bem, eles lembram de muito sofrimento.
Daí que acreditar que esse passado imaginário, que essa terra encantada, que essa pátria idílica, que ela de fato existiu, isso é doideira, é delírio puro, sacou? Mas se tem uma coisa que caracteriza o humano, é de ele querer provar por A mais B que aquilo que ele sente, faz sentido, como eu tô fazendo aqui nesse vídeo. E no caso do nostálgico, muitas vezes ele descamba em conspiracionismo, porque ele precisa explicar o quanto que o seu mal estar, o seu desconforto, tem razão.
As coisas pioraram, você não percebeu, tá tudo pior, antes era melhor, temos que dar um passo atrás, temos que voltar pra minha infância, temos que voltar pra idade média, temos que voltar pra antiguidade, temos que voltar, temos que continuar indo num sentido contrário. E por que que nós temos que continuar indo pra trás? Porque na nossa frente a gente não vê nada, é uma visão escatológica, sacou?
Perante a nossa frente só tem o fim, tudo só vai ruir, vai se destruir, há um apocalipse no horizonte. Sacaram então como tudo isso se amarra quando a gente olha pra indústria cultural dos EUA? Se nostalgia é etimologicamente um anseio, uma dor por querer voltar pra casa, distopia por sua vez remete a dias que são infelicidade, privação, sofrimento, e topos, que é lugar, ou seja, distopia é um lugar infeliz.
Percebam como então tem tudo a ver? Este lugar é infeliz, ou mesmo o lugar do dia seguinte, o amanhã, é infeliz, então eu preciso voltar, eu tenho saudade de alguma coisa, lá atrás eu me sentia melhor. É esse emaranhado então de sensações que nos ajuda a pensar esta nação que são os EUA, e o quanto a sua produção cultural hoje basicamente só consegue fazer coisas que vão nessa direção.
Porém como diz a própria Svetlana Boym, talvez dê pra pensar em dois tipos de nostalgia, uma seria a nostalgia restauradora, a outra a nostalgia reflexiva. E essa distinção aqui é importante porque não se trata de vilanizar a nostalgia, em alguma dose ela é um sentimento humano e saudável, só que é também preciso pensar quando é que esse negócio descamba. Então a pergunta é a seguinte, quando é que o mal estar perante o hoje e uma saudade da infância ou do passado, se traduz naquela conspiração que a gente vê muito em nerd dizendo que bom era antigamente, que agora tudo está sendo manipulado pelos comunistas woke lacradores?
Ah, mas isso não é teoria da conspiração, não é. Esse exemplo que eu acabei de dar talvez seja o que a gente possa pensar como nostalgia restauradora. E é aquela que a gente percebe hoje também muito na política, com slogans como Make America Great Again.
Notem, é sempre um resgate do passado, um passado grandioso que você não consegue nem situar exatamente quando, mas é a saudade da própria grandiosidade, sem um lugar específico. Alan Moore já dizia, não por acaso a ascensão dessas histórias de super-heróis vieram juntas de toda uma ascensão de movimentos de extrema direita no mundo. O próprio Alan Moore insiste muito que isso tem a ver com o gênero do super-herói, mas eu acrescentaria aí que tem a ver também com uma maneira como eles estão sendo abordados.
E aí eu volto para tudo aquilo que começou esse vídeo. Notem, tudo passa pelo filtro da nostalgia e tudo vai na direção da nostalgia, porque à frente só há distopia. A nostalgia restauradora, portanto, é aquela que aparece estética e politicamente como um movimento violento, de ênfase de que é preciso voltar pra casa.
E esse voltar pra casa, na verdade, é apenas uma maneira violenta de você fazer existir aquela coisa que você tem só na sua imaginação. Aquele passado que você romantiza, diante de uma nostalgia restauradora, vai acabar se tornando realidade. Nem que pra isso você tenha que destruir pessoas à sua volta.
Nem que pra isso você tenha que fingir que você não está vendo o mundo atual. Nem que pra isso você tenha que abraçar o negacionismo. Ah não, hoje nada presta, isso aqui tá errado, isso aqui inclusive é controlado por reptilianos.
E bom mesmo era quando não tinha esse monte de gente estranha aqui. Essas pessoas aí, com esses cabelos diferentes. Vamos então expulsar eles, vamos fechar fronteira, vamos garantir a pureza racial, étnica, cultural, sei lá.
Uma pureza que, cabe dizer, nunca existiu também. Percebam então, a partir desses vários exemplos que eu tô dando aqui pra vocês, o quanto que tudo isso não tem a ver tão somente com um filminho de super-herói. Não tem a ver só com um estúdio que entendeu que o futuro dele é o passado.
Tem a ver com uma postura maior de consequências culturais e políticas, e que os filmes de gibi de hominho são apenas a ponta desse iceberg. Mas eu falei aqui de uma outra nostalgia, uma que talvez não seja tão tóxica, e é o que a gente pode chamar de nostalgia reflexiva, é aquela que tem uma postura crítica perante a própria nostalgia. A ênfase não está no voltar pra casa, a ênfase não está no NOSTOS, mas sim na ALGIA, no sofrimento, no anseio.
Ou seja, para dizer de outra forma, não se trata de querer resgatar uma pátria imaginária, mas de explorar na gente mesmo esses sentimentos, esse desconforto, esse descompasso perante o mundo atual. Porque, por mais que pareça que a nostalgia sempre vai na direção de algo um tanto reacionário, e aqui eu falo no sentido amplo da palavra, ou seja, algo que procura reagir perante o agora, dá pra pensar também a nostalgia como um radical do revolucionário, aquilo que perante um desconforto afirma, olha galera, precisamos mudar. A nostalgia então não seria só retrospectiva, ela também pode ser prospectiva.
E a gente tem alguns exemplos culturais bem interessantes, peguemos por exemplo o caso do afrofuturismo, que não se enganem, é uma estética da nostalgia ainda. Muito do que o afrofuturismo faz é resgatar aquelas narrativas perdidas de negros escravizados que vieram para as Américas, recolhendo fragmentos de culturas, de línguas, e construindo com isso um retorno no futuro. Cabe lembrar, a grande maioria dos escravizados que chegaram à América tiveram a sua cultura negada.
Daí que é uma imagem utópica imaginar que tudo isso que se perdeu vai se reencontrar, só que no futuro. E eu tô frisando aqui essa questão diaspórica de negros africanos escravizados, porque os próprios africanos não se reconhecem no afrofuturismo, tanto que lá se utiliza um outro termo, o africanofuturismo, que já é um outro movimento e eu nem vou explorar aqui. Caso vocês queiram saber mais eu vou deixar aqui entre as referências um artigo de dois pesquisadores nigerianos que explicam bem isso.
Mas enfim, o que interessa é que, apesar do afrofuturismo ainda ser povoado de nostalgia, é uma estética que não estanca no tempo, que sequer inclusive procura resgatar uma pátria perdida. Pro afrofuturismo é bastante claro que eles não estão procurando resgatar a África de séculos atrás, mas sim de se abastecer com aquele pouco que restou de reconstruir uma memória em direção ao futuro, em direção a algo que talvez a gente possa construir. Outro exemplo, ainda mais improvável dessa nostalgia reflexiva, o cyberpunk japonês.
Peguemos o caso de Akira de Katsuhiro Otomo, muito é lembrado quanto que o cyberpunk não acredita no futuro, a visão inclusive bastante pessimista, alta tecnologia e baixa qualidade de vida. Mas por mais improvável que seja, existe também no cyberpunk japonês muita nostalgia, só que aqui no caso reflexiva, indo atrás de anseios do passado, só que explorando eles de uma maneira não muito limpinha. No caso de Akira, reparem, a gente tem a reencenação das bombas de Hiroshima e Nagasaki, o imperialismo japonês também retorna na figura do próprio Akira, e uma possibilidade de superação surge quando todo o passado retorna.
Quando você repete as coisas mais uma vez, você pelo menos dá a chance de que elas agora possam ser de outra forma. Por mais que o futuro seja sombrio, e é isso que o cyberpunk mostra, é a partir da reencenação da memória que a gente pode encontrar uma saída. Pra sintetizar, dá pra dizer que o cyberpunk japonês explora a nostalgia de voltar pra casa, mas no entendimento de que é preciso se livrar da casa, pois é ela também um dos motivos que culminou na nossa tragédia.
Percebam então como que esse deslocamento da nostalgia é potente, fazendo com que você possa se portar de uma maneira reacionária e revolucionária, inclusive ao mesmo tempo, mas, repito, com ênfases que podem ser diferentes. Só que é claro, quando a gente coloca aqui no preto e branco uma nostalgia restauradora e uma nostalgia reflexiva, é preciso lembrar que a gente tá lidando com ideias. No mundo real, as coisas estão mais numa zona de cinza, mas ainda assim é preciso pensar nessas diferenças de ênfase.
E aí tudo isso que eu tô falando aqui serve como uma provocação agora muito específica pra você que é brasileiro. Vou ser bem direto, essa sensação de fim de mundo e essa saudade de um passado idealizado é a porra de uma noia dos Estados Unidos. É a porra de uma noia que eles lá estão vivendo agora e faz sentido eles estarem vivendo isso.
Nós não precisamos importar essa mentalidade. Até onde eu vejo, eu não enxergo nenhum fim do mundo pro Brasil. Sim, tem um monte de problema pela frente, mas não fim do mundo, saca?
E também, sinceramente, não consigo ver nada muito maravilhoso no passado que a gente precisa retornar. Dito de outra forma então, é por isso que a gente precisa ter uma produção cultural nacional, sacou? Forte, potente, criativa, selvagem, pra não ficar importando uma mentalidade que se você for parar pra pensar, nem tem muito a ver com a gente agora.
São os caras lá que tão sofrendo isso, não é com a gente. Só que todo dia a gente é bombardeado com esse sentimento nostálgico e isso vai produzindo uma subjetividade em nós, tá ligado? Não por acaso, a gente hoje vive uma onda no YouTube Brasil de canais de nostalgia, da galera só falando de filme mais antigo, de obras da infância, da adolescência do pessoal.
Eu noto isso aqui com meu canal, sacou? E eu quando tento falar de obras mais atuais, elas nunca bombam tanto quanto aquelas mais antigas. E tudo bem, repito: ok a gente ter uma certa saudade, também é normal que coisas que têm referenciais em comum entre nós acabem chamando mais a atenção, mas também não dá pra deixar de perceber nesse processo todo o quanto o nosso farol tá apenas aceso pra trás.
Resumindo então este meu vídeo maravilhoso, o que eu quero dizer é, foda-se que o Downey Jr. vai ser o Doutor Destino, foda-se a Marvel, foda-se a Disney, foda-se esses filmes hollywoodianos, foda-se essas séries distópicas e se você estiver incomodado porque tudo isso abala a sua nostalgia, foda-se você também. E assim ó, eu deixei um monte de coisa fora aqui desse vídeo que eu podia explorar.
Eu queria trazer um pouco as ideias do pensador Andreas Huyssen, então vou deixar apenas a sugestão de leitura. Também tem vários quadrinhos que exploram a nostalgia, Robert Crumb nos anos 60 e 70 tinha um personagem chamado Mister Nostalgia, que era um cara que achava que tava tudo errado na sua época e não por acaso, era um cara que se tornava extremamente racista, preconceituoso. Yoshiharu Tsuge, mangaka, também explorou muito isso na mesma época, inclusive ele tem nos anos 60 alguns mangás sobre o Japão rural que estava sumindo e o quanto que isso deixava ele triste, mas ao mesmo tempo ele era crítico o suficiente pra mostrar que conforme ele idealizava esse Japão, mais monstruoso ele ia se tornando.
E aqui no Brasil também tem o exemplo do Wood e Stock, do Angéli, a tirinha dos velhos ripongas que olham pra juventude da sua época, no caso anos 80 e 90, e pensam, poxa, no nosso tempo que era bom, a gente consumia e L*D vontade, agora os jovens aí nem mais conseguem aguentar uma ov***ose. Outro papo aqui que dava pra aprofundar, mas eu já vou descartar de cara, é a hipótese de que essa nostalgia toda se justifica porque o público está mais velho. Sim, a longevidade está aumentando, tanto os EUA quanto o Brasil batem entre 66 e 77 anos em média, então faz sentido você cada vez produzir coisas pra um público que ainda tá vivo e que lembra bem aquilo que assistiu, aquilo que viveu 20, 30 anos atrás.
Só que eu repito, essa cultura da nostalgia fomentada por um mercado da nostalgia dos Estados Unidos, é um fenômeno que você percebe em gente de 20 anos, a galera tá mal começando a vida, mas já tem saudade da sua infância querida, aquele tempo mais simples. Notem então que não tem tanto a ver com longevidade, mas mais com a produção de uma subjetividade. Que é o que eu já expliquei tudo aqui, então se você precisa de mais detalhes, revê o vídeo.
E comenta aí embaixo pra brigar comigo, porque isso ajuda aqui o vídeo a engajar, então você pode brigar à vontade. - Eu vou chegar no Twitter hoje, muito. Sério.
- E claro, a gente pode discutir também, eu acho que vale a pena. Muitas das obras que eu mencionei aqui você pode achar pela internet, você pode achar num sebo, numa livraria, mas é aquela velha história, se você for na Amazon atrás de qualquer livro sobre o assunto, ou se você for atrás de qualquer coisa, se usar o nosso link aqui, vai ajudar bastante. Então usa aí, tá?
Ajuda, ajuda. No mais, fica a sugestão pra que você veja o nosso vídeo sobre o anime Suzume, que explora justamente como a gente pode lidar de maneira saudável com os nossos traumas passados, sem com isso idealizá-los. E segue a gente nas nossas outras redes sociais, TikTok, Twitter e Instagram.
Obrigado por assistir e tchau!