Um dos pontos mais polêmicos da doutrina de Santo Tomás é a questão de se o mundo pode ter existido, poderia ter existido desde sempre. Opuseram-se a esta doutrina de Santo Tomás os dominicanos e, em particular, São Boaventura. Santo Tomás escreveu a respeito disso um opúsculo chamado "Da Eternidade do Mundo", contra os murmurantes, e entre estes murmurantes está ninguém menos que São Boaventura.
Em outras partes de sua obra, em outros lugares, ele diz que, segundo a razão, o universo poderia ter existido desde sempre. Então, escrevi um opúsculo relativamente longo, intitulado "Se se Contradiz Santo Tomás", ao ponto de que não repugna ao intelecto que o mundo tivesse existido desde sempre. Este escrito está incluído no livro indicado no comentário aqui embaixo.
Pois bem, tentarei reproduzi-lo aqui da melhor maneira possível. Então, faz-se a Santo Tomás não raramente a seguinte objeção: em suas demonstrações da existência de Deus, as cinco vias, Santo Tomás diz que é impossível remontar ao infinito na série de porquês, porque assim seria impossível a própria série de causas, motivo pelo qual se deve reconhecer a existência de um primeiro motor imóvel. É a primeira via, que seja a causa eficiente das causas eficientes dos entes; eis a segunda via.
E seja não só o ente absolutamente necessário, terceira via, mas também a causa do ser dos demais entes, quarta via, e a causa que conduz os entes a seu fim, quinta via. Mas se é assim, então não se entende, diz a objeção, como Santo Tomás pode pôr que não repugna à razão que o mundo tivesse existido desde sempre; se isso fosse possível, Deus não seria o primeiro da série das causas motoras, nem a primeira causa eficiente, nem a fonte de todas as perfeições, etc. Logo, a objeção diz que contradiz gravemente Santo Tomás.
Quanto à criação do mundo, ou estarão certos que, negando as Escrituras, negam a criação do universo no tempo, ou estarão certos os que pretendem demonstrar, como São Boaventura, que a criação não podia ter-se dado senão no tempo? Ocorre, porém, que esta objeção não procede, e ela resulta de duas coisas: primeiro, de modo geral, de uma passagem da doutrina de Santo Tomás sem relacioná-la organicamente, digamos assim, às demais passagens; e, de modo particular, se deve ao desconhecimento de que se o ponto de partida da especulação metafísica deve ser sempre da ordem do sensível, como vemos nas cinco vias de Santo Tomás, seu termo, seu fim, deverá ser sempre de ordem estritamente analógica, como o diz o Cardeal Caetano, ainda que entendendo a analogia de modo equivocado. Pois bem, vou explicá-lo.
Nas cinco vias pelas quais Santo Tomás demonstra que Deus existe, ele não se preocupa com que as noções e os conceitos que são utilizados nessas vias sejam unívocos ou análogos, enquanto na terceira questão da Suma, a que se segue às cinco vias, Santo Tomás já toma os conceitos e as noções inteiramente em seu termo, ou seja, já se encontra em plena analogia. As cinco vias estabelecem, de todo modo, que Deus existe e não especialmente como ele é. O conhecimento que para nós, nesta vida, necessariamente há de partir do que ele não é.
As cinco vias respondem, antes de tudo, à questão em latim “an sit”, ou seja, se existe Deus, mas requer também necessariamente um desdobramento numa segunda etapa; mas na verdade, como diz o padre Leite Penido, entre as duas etapas não há propriamente separação, já que uma fundamenta a outra e como que lhe dá início. Então, se nos limitamos, como o antropomorfismo, a compreender da seguinte maneira: as cinco vias, se as coisas são movidas e movem, é porque há um motor primeiro; se as coisas são causas eficientes de outras, é porque há uma causa de todas; se há entes possíveis, é porque há o ente absolutamente necessário; se os entes têm suas perfeições, é porque há uma máxima de que estas mesmas perfeições são efeito; se existe finalidade nas e para as coisas destituídas de inteligência, é porque então há um intelecto que as ordena e conduz a seu fim. Se, portanto, nos limitamos a entender a coisa assim, acabamos por afirmar, por conseguinte, que aquele ente encontrado ao termo de todas as séries, das quais é motor eficiente, necessário, dador e condutor, é de algum modo homogêneo a todas as coisas, com esta limitação de caráter, repito, ant.
Escapa à crítica de Kant e similares às provas, às demonstrações da existência de Deus. Mas há que insistir em um ponto: para dar a razão dos motores causados, da eficiência causada, da necessidade causada, das perfeições causadas e do próprio fim causado, é preciso encontrar a causa de tudo isso. Se, no entanto, esta primeira causa está ela própria sujeita à mesma deficiência, ou seja, ser causada, então haveremos de recomeçar e procederemos assim ao infinito.
Para não ficar preso no círculo de tal deficiência, é preciso então um ente que não só seja a causa de tais coisas, senão que escape a elas, saia de seu âmbito. Então o termo, e é isto que a objeção não entende: o termo das séries referidas, o termo que as remata, enquanto primeiríssimo, não lhes pode ser de modo algum homogêneo, o que implica dizer que este ter está fora ou acima das mesmas causas, das mesmas séries de causas. Sem dúvida, esta conclusão já se encontra iniciada, como que iniciada nas cinco vias.
Nas cinco vias, Santo Tomás não se limita a dizer que se há movimento, há um motor; que se há eficientecias, há um eficiente; que se há possíveis, há um necessário; que se há perfeições, há o perfeito; e que se há, enfim, ordem, há um fim, o ordenador a este mesmo fim. Ele se limitasse a isso, e não sairia do círculo do antropomorfismo. Não!
Ele vai além, e as cinco vias já afirmam, entre outras coisas, a algo que é positivo, negativo. Trata-se de um motor, sim, mas imóvel; causa, sim, mas incausada, ou seja, não causada; ente necessário, sim, mas cuja necessidade não provém de outro. Dirá, no entanto, que o pensamento de fulcro antropomórfico não só todos os motores causa-fins que nos dá a experiência sensível são necessários para alcançar o primeiro motor, a primeira causa, o fim dos fins.
Mas este mesmo motor causa-fim tem de ter, terá de ter, alguma homogeneidade com aqueles, ou seja, com os efeitos, sob pena de mergulharmos no incoerente, no nada. Por isso, aliás, prossegue o pensamento de tendência antropomórfica: é que é necessário aplicar a Deus o conceito mesmo de motor, de causa e de fim, que são tomados todos da ordem do sensível. Mas à que esta objeção, que estes conceitos, quando aplicados a Deus, já não podem considerar-se de maneira unívoca, mas análoga.
Logo, o que falta a tal objeção é a capacidade da analogia. Pois bem, isto, como eu disse, já se dá, inicialmente, nas próprias vias. De algum modo, se rechaça a univocidade e evita-se, assim, qualquer vestígio de antropomorfismo, ou seja, de tomar a Deus sob traços humanos.
E eu poderia mostrar isso a partir das cinco vias, mas me limito a reproduzir, pouco mais ou menos, o que diz o padre Leite Penido com respeito à quarta via. Ele o diz no seu livro sobre analogia. Só uma observação: o padre Penido é estritamente de observância, é um seguidor estrito de Caetano, inclusive na questão da analogia.
Eu não sigo o padre Santiago Ramírez, que em 1962, depois de ser caetanista nesta questão, muda de posição. Então eu não adiro à doutrina da analogia do padre Penido, mas quanto ao que vou expor aqui, ele o faz brilhantemente. Diz ele, pouco mais ou menos: “Consideremos a noção de ciência.
Ao começar minhas investigações metafísicas, tenho da ciência um conceito perfeitamente unívoco, e o aplico a todos os homens indiferentemente. Se, no entanto, observo que na ciência há graus, como que infinitos, alargo em analogia de desigualdade. Esta idade, algo mesquinha, é ainda univocidade, mas mais maleável.
Chego, assim, a estabelecer uma escala de intensidades variadas. Mas o conceito permanece fundamentalmente o mesmo; as variações não são senão acidentais. ” Continua o nosso padre Penido, dizendo: “Posso, por fim, imaginar uma ciência crescendo constantemente e, no extremo limite disso, julgo que descubro uma superciência.
Ou seja, a ciência divina. Se fosse assim, nada se explicaria, e teria sido inútil entregar-se a tal investigação de dilatação, de ampliação, porque esta nova Perfeição não é ciência existente, é a simples amplificação da minha mesma ciência. E, como minha ciência é participada, também o será aquela superciência.
E não foi para achar, no fim de meu raciocínio, a mesma indigência inicial. Não foi para isso que me aventurei na quarta via. Então é preciso abandonar a via do aumento e tomar a via do ser.
Importa agora encontrar ao fim da via do ser um máximo tal que não seja unívoco, uma ciência primeira, sim, mas por essência não participada, que seja a razão de ser das outras ciências. Somente o que é por essência pode explicar o que é por participação. Então, se retomo meu conceito inicial de ciência, percebo agora que ele se alterou.
Por quê? Porque, a partir deste instante, deve moldar-se a duas realidades essencialmente diversas: em um caso está uma ciência não participada; no outro caso, seja qual for o grau de sua perfeição, uma ciência participada. O que quer dizer que Santo Tomás, na sua ciência, a inteligência de Cristo, não é sua ciência.
Enquanto Deus é, por identidade, sua própria ciência. Entre ser a própria ciência e não sê-lo, a diferença não é de grau como entre comparativo e superlativo; é uma diferença que alcança, atinge o próprio ser. Deus não é sapientíssimo; ele é super ou sobre sapiente.
Repito: Deus não é sapientíssimo; ele é super ou sobre sapiente. Como diz Santo Tomás, há uma primazia que se mantém dentro do mesmo gênero e que se expressa pelo comparativo ou, então, pelo superlativo; a outra, que ultrapassa o próprio gênero e que se exprime graças à partícula 'super' ou 'sobre'. Eu começara, na minha investigação, por afirmar que a ciência de Deus era a minha elevada ao superlativo.
Mas, vistas as diferenças, fui forçado a corrigir o que dissera: é, sim, a minha ciência, mas não participada, o que equivale a dizer que a sua negativa não é a minha ciência; é absolutamente diversa. E, no entanto, Deus é ciência. Eliminei o que minha ciência implicava, supunha, de imperfeito.
Fui obrigado a afirmar a superciência. Em uma palavra, ao término da investigação, tenho de renunciar ao meu conceito unívoco por outro muito mais flexível, que não representa minha ciência, mas uma ciência analógica, que é diversamente a minha e a de Deus. É uma perfeita colocação do padre Penido, portanto, como o padre Ointe.
É uma série de operações que a inteligência humana entrega-se penosamente para pensar, toscamente ainda, mas certa verdade: cada perfeição divina é preciso, primeiro, afirmá-la, depois negá-la, e depois, ainda, sobre elevá-la. E, por fim, unir a ela a noção participada. Então, esquematicamente, trata-se do seguinte: há uma causa (afirmação) incausada (negação), não causada (super causa: sublimação), e causante (relação), ainda que só da parte do causado.
São os passos da analogia. Mas, assim, já se pode mostrar o seguinte: que as cinco vias de Santo Tomás absolutamente não contradizem sua posição de que não repugna à razão que a criação tivesse sido feita desde sempre. E, segundo que, suposto o que acabo de dizer, tudo o.
. . Que eu acabo de dizer não está certo.
Os que, negando as escrituras, negam a possibilidade da criação no tempo também não estão certos. Os que pretendem mostrar que a criação não pode ter se dado senão no tempo é que, enquanto tal, ou seja, não enquanto esta ou aquela causa eficiente, só exige prioridade ou anterioridade de natureza, não de duração. Por isso, é, ela pode agir desde que é ou existe, de modo que, enquanto tal, o ente possível tampouco requer que sua existência seja posterior à da causa.
Por isso, não há impossibilidade alguma de que o mundo pudesse ter existido por criação, ou seja, de nada, ex nihilo, desde sempre, se não se podem admitir as consequências que resultariam da criação desde sempre de alguns entes corruptíveis. Isso, porém, só demonstra, só prova que cada um destes entes corruptíveis não poderia ter sido criado desde sempre, mas não que outros entes, e em especial o mundo como um todo, o universo como um todo e segundo sucessão, uma coisa atrás da outra, não pudessem ter sido criados desde sempre. Isto que eu acabo de dizer é assim porque, ainda que as causas médias ou intermediárias fossem, de certo modo, infinitas, nem por isso se suprimiria a necessidade da causa primeira.
Isso pode mostrar-se segundo todas as quatro causas, mas vou limitar-me à causa eficiente, motor eficiente, e à causa material. Comecemos então pela causa motor eficiente. Mas, antes de tudo, é preciso dizer que é impossível fazer remontar a infinito as causas eficientes ou motoras.
Como diz Santo Tomás no comentário à Física de Aristóteles, é impossível que a causa que se diz princípio do movimento, ou seja, a causa eficiente, proceda ao infinito, como quando dizemos que o homem é movido a deixar o casaco por causa do ar quente, que o ar foi esquentado pelo sol, que o sol foi movido por alguma outra coisa, e assim ao infinito. Isto resulta do seguinte: na causalidade eficiente, o efeito é sempre posterior à causa, ainda que seja posterior só por natureza, não na duração. Por isso, se há três coisas que se ordenam de modo causal entre si, como primeira, média e última, necessariamente, a primeira será causa das seguintes, ou seja, tanto da média como da última.
Mas não se pode dizer que a última seja a causa das outras, porque não pode ser causa de nenhuma; se fosse causa de alguma, já não seria a última. Então, o efeito é sempre posterior à causa no âmbito da causalidade eficiente. Mas tampouco pode acontecer que uma causa média seja a causa de todas, porque não pode ser causa senão da seguinte.
Se, no entanto, não houver uma só causa média, mas muitas, para estas valerá também o que eu disse: não podem ser causa de todas, por quê? Como são médias, não podem ser causa da anterior, e dá-se a mesma coisa se as causas médias são potencialmente infinitas em número, ou seja, efetivamente sem começo e potencialmente sem fim no tempo, não sem começo nem fim na eternidade, coisa que é só de Deus. Daí, justamente a possibilidade de que o mundo tivesse sido criado desde sempre.
Enquanto são médias, nenhuma dessas causas pode ser causa da primeira, entendida agora como a causa que é a primeira da série, mas estando fora, como eu disse, ou acima da mesma série. Toda causa eficiente ou motora que não seja a primeira, ou seja, que seja a segunda, requer a causa eficiente ou a primeira. Pelo que se a causa média, uma, muitas, infinitas, do modo que eu disse, segundo sucessão, tem de haver sempre uma causa primeira, que de algum modo, de modo algum, seja ela média.
A primeira, a causa primária de tudo, não pode ser média; enquanto as outras sim podem tornar-se médias. Se, no entanto, se admite um processo absoluto ao infinito das causas motoras ou eficientes, todas as causas médias, e nenhuma, todas seriam causas médias, e nenhuma seria a primeira. Mas a causa primeira é a causa de todas as outras.
Por isso, se se eliminasse a causa primeira, ou seja, a causa que não é causada por nenhuma anterior, decorreria daí que se eliminariam também todas as causas, e eliminadas todas as causas, também se eliminaria tudo aquilo de que tais causas são causas, ou seja, não haveria nada. Mas, para mostrar depois que não há processo ao infinito no gênero da causa material, ouçamos primeiro o que nos diz Santo Tomás. Diz: não é possível proceder ao infinito em que algo se faça de algo, como de matéria, como, por exemplo, que a carne se faça da terra, a terra do ar, o ar do fogo, que isto não se detenha em algo primeiro, senão que proceda a infinito.
Claro que aí está implicada a teoria dos quatro elementos, coisa que caducou, mas o argumento é preciso e pode substituir-se. Os quatro elementos podem substituir-se por qualquer outra coisa. Além disso, como diz o padre Caldeirão, ainda de modo preambular, há que considerar que o paciente se sujeita ao agente, de maneira que proceder na ordem dos agentes supõe subir, ascender, enquanto proceder na ordem dos pacientes implica descer.
Mas, assim como o agir se atribui à causa eficiente ou motora, assim o padecer se atribui à matéria. Portanto, o processo das causas motoras é ascendente, ao passo que o processo das causas materiais é descendente. Já se mostrou, no entanto, que não é possível proceder ascendentemente ao infinito no âmbito das causas eficientes.
É preciso mostrar agora que tampouco é preciso proceder descendentemente ao infinito no âmbito das causas materiais. Pois bem, já o solucionou Santo Tomás no seu comentário ao livro da Metafísica, lição 3, e é o seguinte: no gênero das causas eficientes, é evidente. .
. Já não se move nada, pelo que já não se investiga se se procede ao infinito. É descendentemente, ou seja, ao inferior.
Segundo esse gênero de causas, investiga-se apenas se pode, se se pode proceder ascendentemente, ou seja, ao superior, do mais particular ao mais universal. Mas no gênero das causas materiais, temos por suposto que existe algo primeiro, que é o fundamento de tudo mais. Que algo é este?
A matéria-prima, descoberta por Aristóteles. Desse modo, apresenta-se o problema de se se pode proceder ao infinito descendo, ou seja, indo do mais universal ao mais particular, segundo o próprio processo daquilo que se gera da matéria. Assim, se se pusesse que a matéria-prima de todas as coisas fosse o fogo ou o plasma, haveria que perguntar se se pode dar que do fogo ou do plasma se gere a água ou o hidrogênio; se da água ou do hidrogênio se gera a terra ou o carbono; se do carbono se geram os carbonatos; se dos carbonatos outros materiais e assim ao infinito, indo do mais geral ao mais particular.
Para solver, para solucionar esta questão, é preciso considerar os modos como algo se faz de outro propriamente e essencialmente. É preciso excluir o modo impróprio, ou seja, aquele segundo o qual se diz que algo se faz de outro algo tão somente porque se faz. Depois deste algo, como quando se diz que a epifania se faz do Natal.
Mas isto que a epifania se faça do Natal não se diz propriamente porque todo e qualquer fazer-se é determinada mudança, e em toda mudança se requer não só a ordem de dois termos, mas também um sujeito para ambos os termos, o que não se dá no caso da epifania e do Natal. Então, diz-se propriamente que algo se faz de outro algo quando algum sujeito muda disto para aquilo. O que pode dar-se de dois modos: em primeiro lugar, como da criança se faz o homem, ou seja, na medida em que passa ou muda do estado infantil para o estado adulto; em segundo lugar, como da água se faz o ar, ou seja, por certa transmutação.
Mas também é dupla a diferença entre estes dois últimos modos. Antes de tudo, no primeiro modo se diz que da criança se faz o homem, assim como do que se está fazendo se faz o já feito. Ou seja, assim como daquilo que se está perfazendo já se faz o perfeito.
O que está fazendo-se ou perfazendo-se é algo intermediário, médio entre o ente e o não ente, assim como a geração é algo médio entre o ser e o não ser. Mas assim como pelo meio se chega ao extremo, assim do que se gera se faz o gerado e do que se perfaz se faz o perfeito. Desse modo, da criança se faz o homem, ou do que aprende se faz o sábio.
Em segundo lugar, no entanto, é o segundo modo, segundo o qual se diz que da água se faz o ar. Um dos extremos não está para o outro como aquilo que se está fazendo está para aquilo que já está feito, antes como o termo de que se parte está para o termo a que se chega. De modo que da corrupção de um se faz justamente o outro.
Depois do que eu acabo de dizer, decorre outra diferença. No primeiro modo, um está para o outro como que se está fazendo está para o já feito, e como o meio está para o extremo. É evidente que há uma ordem natural entre os dois, e por isso eles não podem reverter-se entre si indiferentemente.
De fato, não se pode dizer que, assim como da criança se faz o homem, assim do homem se faz a criança, porque estes dois, de um dos quais se faz o outro segundo o primeiro modo, não estão entre si como dois termos de certa transmutação, mas como dois termos dos quais um vem depois do outro necessariamente. Isso é assim porque o gerado, ou seja, aquilo que é termo da geração, não se faz da geração, como se a própria geração mudasse naquilo que é. O ser vem após a geração porque se segue a geração segundo uma ordem natural, assim como o termo vem ao fim do caminho e o último vem após o médium.
Se então se consideram a geração e o ser, veremos que não diferem do modo excluído no qual só se considerava ordem, como quando se diz que o dia se faz da aurora porque vem depois desta. Tampouco aqui, no entanto, podemos dizer que pela ordem natural que seguem a aurora inversamente se faz do dia, justo como pela mesma razão não se pode dizer que do homem se faz a criança. Depois, segundo o outro modo em que algo se faz de outro algo, dá-se sim inversão, reversão ou reflexão, assim como o ar se gera da corrupção da água.
Assim também a água se gera da corrupção do ar. É que ambas estas coisas não estão para uma para outra segundo certa ordem natural como de meio para termo, mas sim como dois extremos que podem ser ambos ou primeiros ou últimos. Pois bem, se se supõem tais distinções e, ainda segundo o nosso Santo Tomás, veremos que é impossível um processo ao infinito nos dois modos referidos no primeiro, ou seja, aquele em que da criança se faz o homem.
Não se pode proceder ao infinito porque a criança se encontra como um meio entre dois extremos, ou seja, o ser e o não ser. É impossível que, dados estes dois extremos, haja meios infinitos, porque, de fato, o extremo repugna ao infinito. É a mesma razão que para as causas eficientes ou motoras, onde sempre se dá necessariamente uma ordem de anterior a posterior, sem reflexão, inversão ou reversão.
Segundo caso: Além disso, tampouco se pode remontar ao infinito. Aqui, no entanto, porque neste segundo modo se dá, sim, inversão, reflexão ou reversão dos extremos entre si, a corrupção de um implica a geração de outro, mas onde se dá reflexão, inversão ou reversão, volta-se ao primeiro, de modo que o que primeiramente foi princípio passa agora a ser termo ou término. Isto, porém, não pode dar seu infinito pela simples razão de que no infinito não há princípio nem fim.
É preciso concluir, então, que nada pode fazer-se de outro ao infinito, como no entanto de Santo Tomás em muitos lugares, e sobretudo no referido opúsculo da eternidade do mundo contra murmurantes que traduzi, né? Vejam aí no comentário: embora saibamos por fé que o mundo foi criado no tempo, não é, no entanto, impossível que ele tivesse sido criado desde sempre. Neste caso, como não se pode remontar ao infinito nas causas materiais, então se deveria encontrar um princípio material desde sempre existente, de que se fizessem todas as coisas.
E, neste caso, pareceriam então ter razão os filósofos pré-aristotélicos para refutar isso. No entanto, basta seguir uma vez mais a Santo Tomás. Vamos ver: Aristóteles mostra em que sentido algo provém de um princípio material.
Para isso, ele se vale de duas suposições gerais, quanto às quais todos os filósofos antigos estavam de acordo. A primeira é precisamente que existe um primeiro princípio material, o que impede que se remonte ao infinito na geração. A segunda é a citern a perpetuidade da matéria-prima ou primeiro princípio material, tal como postulado por esses mesmos filósofos pré-aristotélicos.
Desta segunda suposição, conclui Aristóteles imediatamente que de tal matéria-prima não se faz nada no segundo modo, ou seja, como do ar corrompido se faz a água, porque o que é sempre terna não pode corromper-se. É verdade que se poderia objetar que tais filósofos não faziam de seu primeiro princípio material algo uno segundo o número, mas enquanto se paternava por sucessão, assim como se pode passar a eternidade no gênero humano. Mas exclui isso Aristóteles, partindo da primeira suposição, ou seja, dizendo que porque a geração não é infinita, ascendentemente e descendentemente, se num princípio material é necessário que de tal princípio e de que as demais coisas se façam, fazem por sua corrupção, não seja aquilo mesmo postulado por tais filósofos.
Então, insista-se em que não pode ser tal, se de sua corrupção se geram as outras coisas e se ele mesmo se gera da corrupção das outras coisas, de modo que não resta senão que as coisas se façam de um primeiro princípio material, como de um imperfeito existente em potência, que é intermediário entre o puro ente e o puro não ente. E não como a água se faz da corrupção do ar, e o ar da corrupção da água, mas podemos considerar de certo modo o inverso: considerar isto de certo modo o inverso da causa motor ou eficiente primeira. Assim como a primeira causa motor eficiente, para sê-lo, tem de estar quanto ao ser acima da própria série de causas, de que é primeira, assim também a matéria-prima, para sê-lo, tem de estar quanto ao ser abaixo da própria série de entes, de que é princípio material primeiro, ou seja, tem de ser subjacente a eles, no sentido de implícita neles.
Porque a matéria-prima, por si, não tem forma nem ser, senão que está em potência para absolutamente todas as formas. Justamente, todavia, por ser pura potência entre o não ente simplicitér ou absoluto e o ente, é que a matéria-prima, como que mais que tudo, tem de ter sido criada, ou seja, tem de ter sido produzida, feita de nada. Ex inquilo, contra.
. . Agora, o que supunha Aristóteles, como no entanto a matéria-prima é pura potência, não pode ter sido criada senão já como subjacente, ausente em sua mesma multiplicidade de formas, ou seja, só pode dar-se à matéria-prima já informada, já com forma.
E por isso é que não se pode proceder por si a um infinito segundo sucessão. A matéria-prima pode, no entanto, subjazer numa sucessão potencialmente infinita e infinita em potência, por exemplo, de homens, né? E com isso voltamos às causas eficientes.
Há que dizer, e diz agora Santo Tomás na Suma Teológica, questão 46, da primeira parte, artigo 2, que nas causas eficientes não é possível proceder ao infinito por essência. Como que as causas que, por essência, se requerem para algum efeito, se multiplicassem ao infinito, assim como se a pedra fosse movida pelo bastão e o bastão pela mão, e isto ao infinito. Acidentalmente, porém, não se considera impossível proceder ao infinito nas causas agentes.
É como se todas as causas que se multiplicassem ao infinito não tivessem ordem senão a uma só causa, e sua multiplicação fosse acidental, assim como o artífice usa ou pode usar muitos martelos acidentalmente, porque um após outro se quebra. É assim acidental a cada um desses martelos que ele opere após a ação de outro martelo. Semelhantemente, é acidental a este homem, enquanto gera, que seja gerado por outro.
Ele gera enquanto homem e não enquanto é filho de outro homem. Todos os homens que geram, geram têm o mesmo grau nas causas eficientes, ou seja, o grau de gênero singular. Por isso mesmo é que não é impossível que um homem seja gerado por outro ao infinito, mas isto seria impossível se a geração deste homem de outro homem e de um corpo elementar, e do Sol, e assim ao infinito; ou seja, enquanto ordenadas essencialmente, é impossível que estas causas não se detenham numa causa primeira e universal.
Então, se é possível que um homem seja gerado por outro ao infinito, enquanto este é um gênero singular e como no homem subjaz. Aquele primeiro princípio material, a matéria-prima, que é como um meio entre o puro não-ente e o ente, então é possível que, deste modo, a matéria-prima também proceda ao infinito. E é deste mesmo modo que, então, poderia ter sido criada por Deus desde sempre.
De tudo o que eu disse, resulta que aqui se trata de investigar, de pesquisar, não a origem temporal, mas a origem entitativa do mundo, do mundo como um todo e de cada série sua. O que só é possível se seguimos aqueles Quatro Passos ou degraus analógicos que eh referir antes. Além disso, como diz ainda o padre Penido, uma dependência ontológica não tem nada que ver com o tempo; consiste apenas numa relação, que esta relação tenha começado a existir em dado momento ou não, pouco importa, desde que haja uma fonte e um ente que receba da fonte.
Ele não faz senão repetir, neste passo, o dito por Santo Tomás em "De Potentia Dei", da potência de Deus, questão 3, artigo 14. Pois bem, o mundo, então, poderia ter sido criado desde sempre, sem que isso implicasse co-eternidade com o Criador, porque Deus é anterior ao mundo em duração, mas este anterior não designa prioridade de tempo, designa prioridade de eternidade. E atenção: a eternidade é a posse perfeita, completa e simultânea de tudo.
Tudo na eternidade é simultâneo; não existe passado, presente e futuro; tudo é simultâneo. Isto é a eternidade. E só Deus é eterno; por isso, ainda que o mundo existisse desde sempre, ele não seria eterno, porque ele não seria uma só coisa; ele teria passado, presente e futuro.
É impossível que não tivesse. Então, ele seria eterno, entre aspas, só por sucessão, enquanto em Deus o é por simultaneidade. Então, é preciso insistir em que, com quanto não repugne ao intelecto que o mundo tivesse existido desde sempre, é de fé, como diz sempre Santo Tomás, que o mundo foi criado no tempo.
Nós sabemos isso porque no início do Gênesis está: "No princípio, Deus criou o céu e a terra. " Vejam, este "no princípio" tem duplo sentido: princípio quer dizer aqui o verbo de Deus, em que tudo foi feito, como diz São João no Prólogo do seu evangelho. Mas princípio aqui também quer dizer início do tempo.
Mas é mais que isso, por quê? Porque é mais conveniente que tenha sido criado no tempo, porque, desse modo, se manifesta o poder e a majestade de Deus de modo melhor e mais patente. Como diz Santo Tomás, ainda na Suma Teológica, é preciso considerar que o agente unicamente, Deus, deu seu efeito tanto tempo quanto quis e segundo o que foi conveniente para demonstrar seu próprio poder de modo mais manifesto.
Ele conduz ao conhecimento, não de modo mais manifesto, conduz ao conhecimento da potência divina criadora que o mundo não tenha existido desde sempre, do que se tivesse sido sempre. Tudo o que não foi sempre é manifestamente dotado de causa; tem causa. Mas não é tão manifesto que tenha causa algo que sempre existiu.
É muito mais evidente que haja uma causa para aquilo que começou no tempo do que haja uma causa para aquilo que não começou no tempo. Outra coisa que há que dizer é que, ainda que Deus tivesse criado desde sempre algum ente ou universo como um todo segundo sucessão, insiste-se que não se trataria de eternidade. Vou repetir a definição de Boécio: eternidade é a posse simultaneamente total e perfeita de uma vida interminável.
Se, todavia, Deus tivesse criado desde sempre algum ente incorruptível, este estaria ou no tempo ou no ato de cuja razão não faz parte a simultaneidade perfeita e total. Mas, se tivesse criado desde sempre o universo como um todo, este haveria de ser necessariamente segundo algum modo de sucessão, e por isso tampouco seria de sua noção a simultaneidade total e perfeita, de modo que não há repugnância entre a eternidade de Deus e que o universo tivesse sido criado desde sempre. E, por fim, observo que, como eu disse, é preciso um ente que não só seja a causa das coisas deficientes, senão que escape a elas, saia delas, ponha-se acima, esteja acima delas.
Mas acontece que, quando se encontra tal ente, este ente que está acima ou fora da série das causas das coisas deficientes, já não o podemos dizer somente ente, porque este ente acima da série das coisas deficientes é seu próprio, e portanto, mais que ente, é o ser; é o próprio ser subsistente por si mesmo, como diz Santo Tomás. Muito obrigado pela atenção e até nosso próximo vídeo.