Olá, meus queridos. Que bom ter você aqui comigo hoje. Sei que o mundo lá fora anda tão corrido, né?
Todo mundo com pressa, sem tempo para ouvir as histórias dos mais velhos. Mas você parou para me ouvir e isso, isso aquece meu velho coração de um jeito que você nem imagina. Sabe, às vezes a vida nos leva por caminhos que a gente nunca imaginou trilhar.
É como quando a gente planta uma sementinha sem saber que flor vai nascer. Foi assim comigo. Uma história que começou com um simples bom dia.
Vim para a entrevista de emprego e terminou virando o amor da minha vida inteira. Antes de começar a contar minha história, queria pedir um favorzinho do coração. Se inscreve aqui no canal, viu?
e deixa nos comentários de qual cidade você está me assistindo. Isso me ajuda a sentir que estamos pertinho, como se você estivesse aqui na minha sala tomando um cafezinho recémado comigo, sentindo o cheirinho de pão de queijo que acabei de tirar do forno. Agora vamos lá.
Acomode-se bem, que vou contar como uma casa me abraçou quando eu mais precisava de um lar e como o amor pode nascer nos lugares mais inesperados, mesmo quando a gente já não espera mais nada da vida. Eu tinha 30 anos quando cheguei na capital. Era uma época em que uma mulher sozinha do interior era vista com olhos desconfiados, como se carregasse algum segredo ou vergonha.
Vim de riachão do Jacuip, um lugarzinho tão pequeno na Bahia que nem aparecia direito nos mapas dos correios. Na minha malinha de couro, já desgastada pelo tempo, trouxe algumas roupas simples, um terço que minha mãe me deu na despedida, a foto amarelada dos meus pais e um coração cheio de esperança. Ah, e também um endereço anotado num papel já meio amassado que eu passei a noite inteira apertando na mão com medo de perder.
Rua das acáccias, número 28. Foi o que me disseram lá na rodoviária, quando perguntei onde ficava a casa da família que precisava de uma empregada doméstica. Cheguei lá depois de quase uma hora andando, os pés já doloridos dentro do único par de sapatos decentes que eu tinha.
Quando finalmente encontrei, era uma casa bonita que tirou meu fôlego, não dessas mansões que a gente vê nas revistas, mas uma casa de gente de bem, com paredes amarelo claro e janelas grandes de madeira escura. Na frente, um jardinzinho cuidado com tanto carinho que até as pedras do caminho pareciam estar no lugar certo. Mais tarde, eu descobriria que aquele jardim era o refúgio da dona celeste, onde ela ia para conversar com Deus, como ela mesma dizia.
Ajeitei o vestido azul claro que tinha passado a ferro ainda na rodoviária. Respirei fundo, sentindo o cheiro de dama da noite que vinha do jardim, e bati na porta. Minhas mãos tremiam tanto que eu podia ouvir o barulhinho das minhas unhas batendo umas nas outras.
Foi o Senr. Henrique que abriu a porta alto, com os ombros largos, como quem carregou responsabilidades à vida toda. Os cabelos já grisalhos nas têmporas contrastavam com o rosto ainda firme.
E aqueles olhos, meu Deus, que olhos azuis profundos, pareciam ver dentro da alma da gente, mas de um jeito bom. sabe como quem olha para entender, não para julgar. Ele tinha 52 anos, mas carregava uma dignidade silenciosa que vinha não da idade, mas do caráter.
"Bom dia, eu sou a Margarida. Vim pela vaga de empregada", eu disse, a voz quase falhando, o coração quase saindo pela boca de tanto nervoso. Ele me olhou por um instante que pareceu uma eternidade.
Depois um leve sorriso apareceu no canto da boca dele. "Entre, Margarida, minha esposa está te esperando. " A voz dele era grave, mas tinha uma gentileza que me acalmou instantaneamente.
Segui seus passos pelo corredor de piso de madeira que rangia levemente sobsos pés. As paredes eram cheias de porta-retratos com fotos em preto e branco, imagens congeladas de momentos felizes. O cheiro da casa era uma mistura de lavanda e alguma coisa sendo assada no forno.
E foi então que conheci dona Celeste. Meu Deus do céu, como aquela imagem ficou gravada na minha memória. Ela estava sentada numa poltrona de veludo verde escuro perto da janela, à luz do fim da tarde banhando seu rosto pálido, magrinha, tão frágil, que parecia que um vento mais forte poderia levá-la.
Usava um vestido simples, azul marinho, e um lenço de seda clara, cobrindo a cabeça, onde os cabelos já tinham rareado. Mais tarde eu descobriria que ela lutava contra um câncer que lhe roubava as forças dia após dia. Mas meu Deus!
Que sorriso aquela mulher tinha? Daqueles que parecem iluminar não só a sala, mas a vida inteira da gente. Um sorriso que começava nos lábios finos e subia até os olhos, fazendo pequenas rugas nos cantos que contavam histórias de muitas alegrias vividas.
Margarida, que nome bonito, como a flor que nasce nos campos, sem precisar que ninguém plante, ela disse. E sua voz era como uma música suave, daquelas que a gente escuta e sente paz imediatamente. Naquele momento, senti que ia não só gostar dela, mas amá-la como se fosse da minha própria família.
A entrevista foi breve, mas intensa. Eles precisavam de alguém que não só cuidasse da casa, lavasse as roupas no tanque dos fundos, preparasse as refeições no fogão à lenha da cozinha, mantivesse os móveis antigos de madeira escura sempre brilhando, mas principalmente alguém que fizesse companhia para a dona Celeste. O Sr.
Henrique trabalhava o dia todo como engenheiro numa empresa de construção. Cía quando o sol mal tinha nascido e voltava quando já estava escurecendo, e não suportava a ideia de deixar a esposa sozinha com a doença que a consumia. "Você acha que consegue, minha filha?
", dona Celeste perguntou, segurando minha mão com seus dedos finos e frios. Aliança de ouro parecia grande demais para aquela mão delicada. Não é só varrer o chão e fazer comida, não.
É aguentar os dias ruins, quando nem levantar da cama eu consigo. É ouvir os mesmos causos antigos que eu conto quando a dor me deixa confusa. É ter paciência quando eu chorar sem motivo aparente.
Olhei fundo nos olhos dela, castanhos como terra boa de plantar, e falei com o coração aberto: "Dona Celeste, minha mãe sempre dizia que Deus coloca as pessoas certas no nosso caminho na hora exata. A senhora pode não acreditar, mas eu rezei a noite toda pedindo que essa porta se abrisse para mim. Acho que foi ele que me trouxe até aqui hoje.
Não foi coincidência. " E assim começou minha jornada naquela casa. Nos primeiros dias, eu só observava, aprendia os gostos e costumes daquele lar.
Como o Senr. Henrique gostava do café bem forte e sem açúcar, servido na xícara de porcelana, que tinha sido presente de casamento. Como ficava em silêncio lendo o jornal durante o café da manhã, mas sempre fazia questão de beijar a testa da esposa antes de sair, num gesto tão cheio de amor que me fazia desviar o olhar para não invadir aquele momento íntimo.
Aprendi como dona Celeste só conseguia dormir se a janela estivesse um pouquinho aberta. para sentir o vento noturno e ouvir o canto dos grilos. Como ela guardava flores secas entre as páginas dos livros de poesia que tanto amava.
Como sorria ao ouvir no rádio aquelas canções antigas de Francisco Alves e Orlando Silva, fechando os olhos como se viajasse para um tempo em que seu corpo não doía. Passei a acordar com o primeiro canto do galo para acender o fogão à lenha e deixar o café pronto antes do Senr. Henrique sair.
A cozinha logo se enchia com o cheiro de pão caseiro que eu aprendera a fazer com minha avó. Ele sempre descia as escadas ajeitando a gravata e ao sentir o cheiro, seu rosto cansado se iluminava por um instante. Obrigado, Margarida, está uma delícia.
Era só isso que ele dizia. Mas o jeito como seus olhos se demoravam nos meus, por um segundo a mais do que o necessário, me dizia que aquele simples gesto significava muito. Era como se aquele café quentinho fosse um pedacinho de normalidade num mundo que estava desmoronando para ele, com a doença da esposa avançando inexoravelmente.
Com dona Celeste, os dias tinham outro ritmo. Eu a ajudava a tomar banho, ensaboando com cuidado aquele corpo que ia ficando cada vez mais frágil. secava e penteava seus cabelos, que iam ficando ralos, a doença consumindo não só suas forças, mas também sua beleza exterior.
Um dia, ela mesma pediu que eu cortasse o que restava bem curtinho. Para que sofrer aos poucos, Margarida? Melhor arrancar o espinho de uma vez.
Sentada na varanda dos fundos, com uma tesoura na mão e o coração apertado, cortei os últimos fios de cabelo castanho que ainda resistiam. Enquanto as mechas caíam no chão de cimento, ela não derramou uma lágrima sequer. Mas eu chorei por nós duas em silêncio, enquanto varria depois aqueles pedacinhos dela que o vento logo levaria.
Nas tardes em que ela se sentia um pouco melhor, eu lia para ela quando seus olhos cansavam demais para enxergar as letras pequenas dos livros. Foi assim que conheci Castro Alves, Cecília Meirelles e tantos outros poetas que ela amava. E aos poucos, entre uma leitura e outra, ela foi me contando pedaços da sua vida, como quem entrega pequenos tesouros de confiança.
"Sabe, Margarida,", ela me disse uma tarde, enquanto eu ajeitava as almofadas ao redor dela na cama. "Eu Henrique nunca pudemos ter filhos. Foi uma dor que carregamos em silêncio por muitos anos.
No começo, eu chorava toda vez que via uma mulher grávida na rua. Depois aprendi a sorrir e seguir em frente. Foi uma tristeza grande para nós dois, mas a gente aprendeu a ser família um pro outro.
Eu ouvia, guardando cada palavra no coração, enquanto alisava os lençóis de algodão alvejado que eu mesma tinha posto para quarar no sol da manhã. Ela continuou, a voz ficando mais baixa, quase um sussurro. Às vezes Deus não nos dá o que pedimos com tanto fervor, mas nos dá exatamente o que precisamos.
Eu implorei por filhos durante anos, acendi velas, fiz promessas, mas o que recebi foi um amor que me sustenta até hoje, mesmo com esse corpo falhando. Um amor que não me deixa desistir quando a dor aperta, o Henrique. E aqui ela sorriu com os olhos marejados.
Ele nunca me olhou com pena, sabia? Mesmo nos dias em que nem levantar eu consigo, ele me olha como se eu fosse a mesma moça por quem se apaixonou a 30 anos. Aos poucos, quase sem perceber, aquela casa foi virando meu lar também.
As paredes que antes me pareciam imponentes foram se tornando acolhedoras. Passei a conhecer cada canto, cada rangido do açoalho, cada mancha no teto que parecia desenhar figuras diferentes conforme a luz do dia. Depois do almoço, quando dona Celeste descansava um pouco, eu cuidava do jardim que ela tanto amava, mas já não conseguia mais manter.
Aprendia a podar as rosezeiras do jeito certo, a reconhecer quando as hortênsias precisavam de mais água, a afofar a terra ao redor dos pés de alecrim que perfumavam o ar. Com as mãos na terra, eu sentia que estava de alguma forma mantendo viva uma parte dela. À noite, jantávamos os três juntos.
No começo, eu comia na cozinha, separada deles, como mandava o costume. Mas foi a própria dona Celeste, que uma noite apareceu na porta da cozinha, apoiada em sua bengala de madeira entalhada. Que bobagem é essa, Margarida?
Somos tão poucos nessa casa grande e você aí sozinha. Vem sentar conosco, menina. A comida fica mais gostosa quando compartilhada.
E assim passamos a dividir não só a mesa de jacarandá na sala de jantar, mas as histórias, as lembranças e até as lágrimas silenciosas que escorriam pelo rosto do Senr. Henrique quando os resultados dos exames da dona Celeste traziam notícias que ninguém queria ouvir. Foi numa dessas noites de inverno, com a chuva batendo nas janelas, que dona Celeste segurou nossas mãos sobre a mesa, a minha e a do marido, e disse com uma certeza tranquila: "Vocês dois são a minha família.
Os laços que Deus dá nem sempre são de sangue, às vezes são de alma. " Um dia estava eu limpando o quarto deles, tirando o pó dos móveis com um pano úmido, quando encontrei dentro de uma caixinha de madeira uma foto antiga, já um pouco amarelada pelo tempo. Era dona celeste, jovem, linda, com um vestido branco simples até os joelhos, um ramo pequeno de flores do campo nas mãos, ao lado do Sr.
Henrique, muito mais novo, com o cabelo todo escuro e um sorriso que eu nunca tinha visto em seu rosto agora, sempre tão sério. Estavam em pé num jardim simples, com um pé de jabuticaba ao fundo. Quando ela me viu olhando a foto com tanto interesse, sorriu daquele jeito que iluminava o quarto inteiro.
Foi nosso casamento. Nada grandioso, como se faz hoje em dia. só nós dois, o padre da paróquia, alguns amigos próximos e o amor que prometemos cuidar como se fosse uma plantinha delicada.
Naquela tarde, sentadas na varanda enquanto o sol ia baixando lentamente no horizonte, pintando o céu de laranja e rosa, ela me contou como conheceu o Sr. Henrique numa biblioteca municipal. Ela procurava um livro de poesia para uma apresentação na escola onde dava aulas para crianças.
Ele a ajudou a alcançar o volume na prateleira alta demais para ela. "Nosso primeiro encontro foi entre livros e versos de Drmon", ela disse, os olhos brilhando com a lembrança. "E assim seguiu nossa história.
Ele me escreveu cartas por três meses antes de me pedirem namoro. Cartas com poemas copiados à mão, com palavras que ele dizia não ter coragem de falar, olhando nos meus olhos. Guardo todas até hoje numa caixa debaixo da nossa cama.
Aos poucos eles foram me incluindo na vida deles, não como uma empregada, mas como família. Quando a irmã do Senhor Henrique veio visitar de São Paulo, trazendo presentes caros e olhares desconfiados para a casa, que já não brilhava como antes por causa da doença, dona Celeste fez questão de me apresentar. Esta é nossa Margarida.
Não sei o que seria de nós sem ela. Quando o médico me mandou para casa, dizendo que não havia mais o que fazer no hospital, foi ela quem me deu forças para continuar lutando. Ela não cuida só da casa, Ivone.
Ela cuida das nossas almas. Nossa, Margarida, o jeito como ela disse aquilo, com tanto carinho na voz fraca me encheu os olhos d'água. Eu, que tinha vindo sozinha do interior, sem ninguém no mundo além de um primo distante que mal lembrava meu nome, encontrei pessoas que me acolheram como se eu fosse parte deles, como se aquele espaço entre eles tivesse sido reservado para mim desde sempre.
E foi assim que, sem perceber, a casa deles virou a casa que me abraçou. E cada tábua do açoalho, cada porta que rangia, cada janela que deixava entrar a luz dourada do final da tarde, tudo passou a fazer parte de mim também. A cada dia que passava, eu agradecia a Deus por terme dado coragem de bater naquela porta da rua das acáccias, número 28, mesmo com o coração apertado de medo e solidão.
Mas o destino, meus queridos, às vezes tem planos que a gente nem imagina. E foi assim que o segundo capítulo da minha história começou num dia de chuva que nunca vou esquecer. Foi numa manhã de domingo que dona Celeste partiu deste mundo.
Uma manhã bonita, com passarinhos cantando no jardim que ela tanto amava, como se a natureza inteira estivesse se despedindo dela também. Na noite anterior, ela parecia até um pouco melhor. Pediu para sentar na varanda depois do jantar, quis tomar um pouco de chá de erva cidreira que eu tinha feito, segurou minha mão e a do Senr.
Henrique enquanto olhava as estrelas. Vocês dois são as minhas estrelas aqui na Terra", ela disse com um sorriso fraco. "Nunca se esqueçam disso.
" Pela madrugada, ouvi um barulho vindo do quarto deles. Era o Senr. Henrique me chamando com uma voz que eu nunca tinha ouvido antes, quebrada, desesperada.
Corri pelo corredor, o coração quase saindo pela boca. Quando entrei no quarto, ele estava sentado na beira da cama, segurando a mão dela, o rosto molhado de lágrimas. Margarida, ela se foi.
Ela se foi. Nunca vou esquecer daquele momento, do rosto sereno dela, como se estivesse apenas dormindo, das mãos do Senr. Henrique tremendo tanto que mal conseguiam segurar as dela.
Do silêncio pesado que parecia engolir a casa inteira. Não sei de onde tirei forças, mas me aproximei, fechei os olhos dela com cuidado e abracei o Sr. Henrique.
Ele chorou no meu ombro como uma criança perdida, os soluços sacudindo aquele corpo forte que parecia ter virado o papel de repente. "O senhor não está sozinho", eu sussurrei. "Eu estou aqui.
Os dias que se seguiram foram como caminhar dentro de um sonho ruim. o velório, o enterro, as pessoas chegando com suas palavras de conforto que não confortavam nada. O Senr.
Henrique parecia uma sombra de si mesmo, respondendo automaticamente, agradecendo as condolências como se estivesse apenas representando um papel. À noite, quando todos foram embora e a casa finalmente ficou em silêncio, eu o encontrei sentado na poltrona verde que era a favorita dela, olhando para o vazio, segurando um dos livros de poesia que ela tanto amava. "O senhor precisa comer alguma coisa", eu disse, colocando uma bandeja com sopa e pão na mesinha ao lado.
Ele ergueu os olhos para mim e meu coração apertou. Nunca tinha visto tanta dor em um único olhar. Para que, Margarida?
Para que continuar? Me sentei no chão, aos pés dele, como tantas vezes tinha feito aos pés dela quando lia poesias nas tardes quietas. Por que a dona Celeste não ia querer o senhor assim?
Porque cada dia que o senhor continua é uma forma de honrar o amor que vocês tiveram. Ele não respondeu, mas pegou a colher e começou a tomar a sopa devagar. Era um começo.
Nas semanas seguintes, criei uma rotina silenciosa com ele. Pela manhã, deixava o café pronto antes dele descer, com o pão quentinho que sabia que ele gostava. Ele tomava em silêncio, às vezes conseguindo dar um pequeno sorriso de agradecimento.
No fim do dia, quando voltava do trabalho, para onde tinha voltado, porque ficar em casa só faz pensar nela o tempo todo, eu servia o jantar e ficávamos à mesa, às vezes em completo silêncio, às vezes falando sobre banalidades do dia. Uma noite, quase dois meses depois do falecimento, eu estava na cozinha terminando de lavar a louça, quando ouvi um barulho vindo da sala. Fui verificar e encontrei o Senr.
Henrique sentado no chão, cercado por fotografias antigas espalhadas ao redor dele. Me aproximei devagar, sem saber se devia interromper aquele momento, mas ele ergueu os olhos para mim e, pela primeira vez viu um sorriso genuíno em seu rosto. Margarida, venha ver.
Encontrei estas fotos antigas da Celeste. Olhe como ela era linda. Sentei-me ao lado dele no tapete e peguei uma das fotos.
Era dona celeste, jovem, talvez com 20 e poucos anos, sorrindo para a câmera com um vestido de verão, os cabelos ao vento. Esta foi no nosso segundo encontro, ele explicou, a voz suave com a lembrança. Fomos a um piquenique no parque municipal.
Ela trouxe uma cesta com pãezinhos que tinha feito e recitou poemas de cor enquanto comíamos. Acho que me apaixonei por ela naquele exato momento. Aquela noite foi diferente.
Pela primeira vez, o Senr. Henrique falou sobre ela sem que a dor embargasse sua voz. contou histórias do namoro, do casamento, de momentos engraçados e ternos que tinham compartilhado.
E eu ouvi cada palavra guardando aqueles pedaços dela, deles no meu coração. Quando já era bem tarde, ele recolheu as fotos cuidadosamente e levantou-se do chão com um suspiro. "Obrigado, Margarida", ele disse, segurando minhas mãos entre as suas.
Obrigado por ficar, por cuidar desta casa, de mim. Foi a primeira vez que senti um calor diferente no peito quando ele tocou minhas mãos. Um calor que me assustou, que me fez baixar os olhos, confusa.
Não precisa agradecer, Senr. Henrique. A dona Celeste era muito importante para mim também.
Aos poucos, os dias foram ficando menos pesados. A dor continuava lá, claro, mas começamos a encontrar pequenos momentos de luz entre as sombras, um comentário sobre algo que tinha acontecido no trabalho dele que me fazia sorrir, uma receita nova que eu experimentava e ele elogiava. O sol de fim de tarde entrando pelas janelas da sala enquanto tomávamos café juntos.
Comecei a perceber pequenas mudanças na nossa rotina. O Sr. Henrique passou a chegar mais cedo do trabalho.
Às vezes trazia um doce da confeitaria perto do escritório. Por que você gosta tanto de doces, Margarida? Ou um livro que tinha visto na vitrine da livraria e achou que eu ia gostar.
Numa manhã de sábado, estava eu no jardim, cuidando das rosezeiras que dona Celeste tanto amava quando senti uma presença atrás de mim. Era ele observando-me com um olhar que não consegui decifrar. Celeste falava sempre que você tinha mãos abençoadas para as plantas.
Ele disse, se aproximando, que tudo que você tocava florescia. Senti meu rosto esquentar com o elogio inesperado. Aprendi com minha avó lá no interior.
Ela dizia que planta é como gente, precisa de cuidado e conversa. Ele sorriu, um sorriso que chegou aos olhos pela primeira vez em muito tempo. E você conversa com as plantas, Margarida?
Converso sim, Senr. Henrique, principalmente com estas rosas. Conto para elas como foi meu dia, o que estou sentindo.
Me calei de repente, percebendo que tinha falado demais, mas ele não pareceu achar estranho. Pelo contrário, agachou-se ao meu lado e tocou uma das rosas com cuidado. E o que você tem contado para elas ultimamente?
Nossos olhares se encontraram e algo silencioso passou entre nós. Algo que fez meu coração disparar de um jeito que nunca tinha sentido antes. Que que estou feliz por ver o senhor começando a sorrir de novo.
Naquela noite jantamos juntos como de costume, mas algo tinha mudado. A conversa fluía mais fácil, havia mais sorrisos, menos silêncios pesados. Depois do jantar, ao invés de se retirar para o escritório, como sempre fazia, ele me convidou.
"Gostaria de ouvir um pouco de música comigo na sala, Margarida? " Aceitei, surpresa e um pouco nervosa. Ele colocou um disco na vitrola.
Era música clássica, algo que nunca tinha ouvido antes, e sentou-se na poltrona. Eu fiquei no sofá, as mãos inquietas no colo, sem saber bem o que fazer. Esta era uma das favoritas dela", ele comentou, fechando os olhos por um momento.
"Chopan". Ela dizia que era como ouvir chuva caindo gentilmente. A música preenchia a sala com uma beleza que me tocou profundamente.
Quando olhei para ele novamente, percebi que me observava. "O senhor sente muito a falta dela, não é? ", perguntei baixinho.
"Todos os dias? " Ele respondeu com honestidade, mas hesitou. Nos últimos tempos tenho sentido que a dor está diferente, menos sufocante.
Isso é bom, não é? É, Margarida. E ao mesmo tempo, às vezes me sinto culpado por isso.
Levantei-me do sofá e, num impulso que não consegui controlar, sentei-me no braço da poltrona dele. A dona Celeste não ia querer que o Senhor vivesse na tristeza para sempre. Ela mesma me disse uma vez que amor é liberdade, nunca prisão.
Ele pegou minha mão então e assegurou com tanta delicadeza que senti lágrimas nos olhos. Você sempre sabe o que dizer, não é? sempre sabe como acalmar meu coração.
Foi naquele momento, ouvindo Chopen na sala, iluminada apenas por um abajur, que percebi que algo profundo estava nascendo entre nós. Algo que me assustava e me encantava ao mesmo tempo. Um domingo, alguns meses depois, estávamos os dois na cozinha.
Eu ensinava a ele como fazer o bolo de fubá que tanto gostava. Já está na hora do senhor aprender a se virar um pouco na cozinha. Quando nossas mãos se tocaram sobre a tigela de massa.
Senti um arrepio percorrer meu corpo inteiro. Margarida. Ele disse meu nome de um jeito diferente, mais suave.
Preciso te contar uma coisa, mas não sei como você vai reagir. Meu coração quase parou. Será que ele ia me dizer que não precisava mais de mim?
Que estava na hora de eu procurar outro lugar? O que foi, Senr. Henrique?
", perguntei, secando as mãos no avental, tentando esconder o tremor que sentia. "Nos últimos meses, desde que a Ceste partiu, você tem sido minha força, meu conforto, minha luz". Ele engoliu em seco, visivelmente nervoso.
Sei que pode parecer cedo demais, que pode parecer errado, mas estou começando a sentir algo por você que vai além da gratidão. Foi como se o chão se abrisse sobre meus pés. Tantas emoções se misturaram dentro de mim.
surpresa, alegria, culpa, medo, mas e a dona celeste? Foi tudo que consegui dizer, a voz quase sumindo. Ele sorriu com ternura, tocando meu rosto de leve.
Lembra do último dia dela, quando estávamos os três na varanda olhando as estrelas? Ela segurou nossas mãos juntas e disse que éramos as estrelas dela na terra. Às vezes penso que que talvez ela soubesse, que talvez ela quisesse que não ficássemos sozinhos.
As lágrimas começaram a cair, então, sem que eu pudesse controlar. Lágrimas de alívio, de medo, de um sentimento que vinha crescendo silenciosamente dentro de mim também. Eu não queria, nunca quis desrespeitar a memória dela.
Confessei entre soluços. Nem eu, Margarida, nem eu. Mas acho que o maior respeito que podemos prestar a ela é sermos honestos com nossos corações.
E meu coração, meu coração está começando a bater por você. Naquela tarde, sentados à mesa da cozinha com a massa do bolo esquecida, conversamos por horas sobre medos, sobre culpas, sobre o futuro, sobre como os sentimentos tinham começado a mudar aos poucos, quase imperceptivelmente, sobre como cada pequeno gesto de cuidado tinha plantado uma semente que agora florescia. Não quero apressar nada", ele disse, segurando minhas mãos sobre a mesa.
"Podemos ir com calma, descobrindo esse novo caminho juntos. O que você acha? " Respirei fundo, olhando para aqueles olhos azuis que agora me olhavam não mais com tristeza, mas com esperança.
Eu acho que que talvez seja isso que a vida reservou para nós. Um amor que nasceu do cuidado, do respeito, da dor compartilhada. O primeiro beijo veio semanas depois, numa tarde quieta de domingo.
Foi um beijo respeitoso, quase tímido, como de dois jovens descobrindo o amor pela primeira vez. Meu coração batia tão forte que pensei que ele poderia ouvir. Passamos a nos sentar juntos na varanda nas noites estreladas, conversando sobre nossas vidas, descobrindo coisas um do outro que não sabíamos.
Eu contei sobre minha infância no interior, sobre os sonhos que tinha quando menina, sobre os medos que carregava. Ele me falou sobre sua juventude, seus anos de estudo, a primeira vez que viu Celeste. "Ela sempre será parte da nossa história", ele disse uma noite, olhando para as estrelas.
"Não quero que você pense que estou tentando substituí-la". Eu sei", respondi, aconchegando-me mais perto dele. "Cada amor tem seu lugar, seu tempo.
O que sinto por você não diminui o respeito e o carinho que tenho pela memória dela. " Aos poucos, os vizinhos começaram a perceber a mudança, os olhares curiosos, os comentários mal disfarçados. "O luto dele foi bem curto, não?
" "Ou ela era empregada e agora é o quê? " Uma tarde, a irmã dele apareceu sem avisar. Ivone, com seus vestidos caros e seu jeito de olhar por cima do ombro.
Ela me encontrou na sala, arrumando flores num vaso, flores que Henrique tinha trazido para mim. Então, os rumores são verdadeiros. Ela disse com desdém.
Você conseguiu o que queria, não é? Enganou meu irmão quando ele estava vulnerável. Senti o sangue gelar nas veias.
Antes que pudesse responder, ouvi a voz de Henrique atrás de mim, firme como nunca tinha ouvido antes. Não permito que fale assim com ela, Ivone. Não na minha casa, não com a mulher que amo.
Foi a primeira vez que ele disse aquelas palavras, a mulher que amo. E foram ditas não para mim num momento de intimidade, mas como uma declaração de proteção, de respeito. Henrique, você perdeu o juízo.
Ela era sua empregada. O que as pessoas vão dizer? O que Celeste diria?
Vi os punhos dele se cerrarem, mas sua voz permaneceu controlada. Celeste conhecia o coração de Margarida melhor que ninguém. Ela saberia que não há pessoa mais digna, mais honesta, mais amorosa para estar ao meu lado.
Ivone saiu batendo a porta, jurando nunca mais voltar. Quando ficamos sozinhos, ele me abraçou forte. Sinto muito por isso, murmurou contra meu cabelo.
As pessoas vão falar, respondi, escondendo o rosto em seu peito. Vão dizer coisas terríveis sobre nós. Ele se afastou um pouco, olhando-me nos olhos com uma certeza tranquila.
Deixe que falem. Só nós dois sabemos a verdade do que há em nossos corações. Naquela noite, sob as estrelas da varanda, ele me pediu em casamento.
Não houve anel, não houve palavras grande eloquentes, apenas um homem de coração partido que encontrou um novo caminho e uma mulher que nunca imaginou que o destino lhe traria tanto amor. Quero construir uma vida com você, Margarida. Uma vida de respeito, de parceria, de amor tranquilo.
Nos casamos numa cerimônia simples, apenas nós dois e alguns poucos amigos que realmente entendiam nossa história. Usava um vestido azul claro, não branco, pois não parecia certo, e ele, um terno cinza que combinava com os fios prateados em seus cabelos. Antes de saírmos para a cerimônia, parei por um momento no quarto que tinha sido deles, de Henrique e Celeste.
Olhei para o retrato dela sobre a cômoda. Tinha insistido que permanecesse ali. "Espero que você aprove, minha amiga", sussurrei para a fotografia sorridente.
Prometo cuidar dele como você cuidaria. Prometo honrar tudo que você me ensinou. E assim começou nossa vida juntos, não como um conto de fadas, mas como uma história real, com altos e baixos, com dias de sol e dias de chuva, com lembranças que às vezes traziam lágrimas aos olhos dele, mas que aprendemos a acolher com serenidade.
Vivemos juntos por muitos anos, anos de café compartilhado pela manhã, de mãos que se procuravam no escuro antes de dormir, de conversas tranquilas na varanda vendo o pôr do sol. de um amor que nasceu não de paixão arrebatadora, mas da compreensão profunda do valor do companheirismo, do cuidado mútuo, do respeito. Hoje, aos 80 anos, vivo sozinha nesta mesma casa da rua das acácias.
A casa que primeiro foi deles, depois foi nossa e agora é só minha, mas nunca me sinto verdadeiramente sozinha aqui. As paredes guardam todas as nossas histórias, todos os nossos risos, todas as nossas lágrimas. Henrique partiu há 5 anos.
Foi num dia de primavera, com o quintal todo florido como ele gostava. adormeceu tranquilo, de mãos dadas comigo, depois de me dizer: "Você foi o presente que a vida me deu quando eu achava que não merecia mais presentes. " Continuo a viver nossa rotina.
Acordo cedo, preparo meu café como ele gostava, forte, sem açúcar. Cuido do jardim todas as manhãs. Converso com as plantas, que agora são minhas confidentes.
À tarde, sento-me na varanda na minha cadeira de balanço, aquela que ele mandou fazer especialmente para mim no nosso 20º aniversário de casamento. "Para que você tenha onde descansar quando ficarmos velhinhos", ele disse na ocasião com aquele sorriso que nunca perdeu a capacidade de aquecer meu coração. De vez em quando recebo a visita de jovens casais do bairro que vem tomar um chá comigo e ouvir nossa história.
Muitos não acreditam quando conto. Como assim, dona Margarida? A senhora era empregada e depois casou com o patrão?
Perguntam, os olhos arregalados de surpresa. Eu só sorrio, balançando-me suavemente na cadeira. A vida não segue os roteiros que a gente imagina, meus filhos.
Às vezes, o amor está onde a gente menos espera. Uma dessas tardes estava eu sentada aqui mesmo, bordando uma toalha de mesa. Os dedos já não são tão ágeis, mas ainda gosto de manter as mãos ocupadas.
Quando uma jovem vizinha me perguntou, "Dona Margarida, a senhora nunca sentiu, sei lá, como se estivesse vivendo na sombra da primeira esposa do seu marido. Nunca sentiu ciúmes dela? " A pergunta me pegou de surpresa, mas não me ofendeu.
Era uma curiosidade natural, principalmente vinda de alguém tão jovem. Pousei o bordado no colo e olhei para o retrato que mantenho na sala. Uma foto de nós três tirada pouco antes de Celeste partir.
Estávamos no jardim, ela sentada numa cadeira, eu e Henrique em pé ao lado dela, todos sorrindo, apesar das circunstâncias. Nunca, minha querida. Sabe por quê?
Porque o amor que Henrique sentia por Celeste não competia com o amor que ele sentiu por mim. Eram amores diferentes, nascidos em momentos diferentes da vida dele. Um não diminuía o outro.
Fiz uma pausa, procurando as palavras certas para explicar algo tão complexo de maneira simples. Veja bem, quando Celeste estava doente, ela me disse uma coisa que nunca esqueci. Estávamos sozinhas, eu ajeitando as almofadas ao redor dela na cama, quando ela segurou minha mão e disse: "Margarida, o coração da gente é como um jardim.
Tem espaço para muitas flores diferentes e cada uma tem sua beleza própria. Na época não entendi bem o que ela queria dizer. Hoje entendo perfeitamente.
A jovem pareceu refletir profundamente sobre minhas palavras. Mas não foi estranho a senhora viver na mesma casa, usar as coisas que eram dela? Sorri com a inocência da pergunta.
No começo, sim, havia cantos da casa que pareciam ainda pertencer a ela, o lado da cama onde ela dormia, que ficou vazio por meses, mesmo depois que começamos a nos aproximar. A penteadeira com seus perfumes que Henrique não teve coragem de tirar. Mas aos poucos fomos criando nossos próprios espaços, nossas próprias memórias.
Lembrei-me então de um momento especial e meus olhos se encheram de lágrimas. Sabe o que Henrique fez no dia em que me pediu em casamento? Ele me levou até o quarto que tinha sido deles, abriu a porta e disse: "Este quarto guardou um grande amor.
Agora vai guardar outro, se você aceitar". E então juntos, mudamos a disposição dos móveis, pintamos as paredes de uma cor diferente, compramos uma colxa nova, não para apagar o passado, entende? Mas para mostrar que estávamos prontos para escrever um novo capítulo.
A menina suspirou encantada com a história. A senhora teve muita coragem, dona Margarida. Não foi coragem, minha filha.
Foi amor. E o amor verdadeiro nos faz superar medos que nem sabíamos que tínhamos. Em dias como hoje, quando o vento balança as cortinas da mesma maneira que balançava naquelas tardes em que nos sentávamos juntos para ler, quase posso sentir a presença deles, de Celeste, com seu sorriso sereno e seus olhos sábios, de Henrique, com suas mãos grandes que seguravam as minhas como se fossem feitas de porcelana.
Às vezes os vizinhos mais antigos me perguntam se não penso em vender a casa, mudar para um lugar menor, mais prático para uma senhora da sua idade. Sempre respondo com um sorriso e um balançar de cabeça. Esta casa é parte de mim tanto quanto eu sou parte dela.
Cada canto tem uma história. Como poderia deixar para trás tantas memórias? No nosso quarto, que já foi deles, depois nosso, agora só meu, ainda mantenho o baú de madeira, onde Henrique guardava as cartas que Celeste lhe escreveu durante o namoro.
Ao lado, em outro baú idêntico, as cartas que ele escreveu para mim nos anos que estivemos juntos. Foi uma surpresa descobrir depois que ele partiu que tinha o hábito de me escrever pequenas cartas, às vezes só algumas linhas, e guardar em seu escritório. Encontrei-as numa gaveta trancada, todas organizadas por data.
A primeira era de uma semana depois do nosso primeiro beijo. Margarida, hoje percebi que você tem um pequeno sinal atrás da orelha esquerda. como nunca tinha notado antes.
Será que passei anos sem realmente olhar para você? Agora quero descobrir cada detalhe, cada segredo que você guarda. Seu H.
Esta casa viu nosso amor florescer e amadurecer. Viu nossas brigas também, porque sim, nós brigávamos como qualquer casal normal. Ele era teimoso como uma mula velha, principalmente quando se tratava de saúde.
Quantas vezes tive que praticamente obrigá-lo a ir ao médico quando a tosse não passava. E eu, bem, sempre fui ciumenta das secretárias jovens que trabalhavam com ele. "Bobagem sua", ele dizia beijando minha testa.
"Meu coração já tem dona há muito tempo. Lembro-me de uma discussão séria que tivemos alguns anos depois de casados. Eu queria reformar a cozinha, mudar tudo, modernizar.
Ele resistia, dizia que estava bom do jeito que estava. Esta cozinha tem história, Margarida, argumentava. História demais às vezes sufoca, Henrique, respondi magoada por achar que ele queria manter a casa exatamente como era no tempo de Celeste.
Ficamos três dias mal nos falando, até que uma noite ele entrou na cozinha, onde eu preparava o jantar, em silêncio. Colocou um envelope na mesa. "O que é isso?
", perguntei sem abrir. "Veja você mesma. Dentro havia desenhos, plantas, ideias para uma cozinha nova".
Ele tinha procurado um arquiteto, mostrado referências, pensado em cada detalhe. "Por que mudou de ideia? ", perguntei confusa e emocionada.
"Porque você estava certa. Precisamos honrar o passado, mas também criar nosso próprio presente. Esta é a nossa casa agora, Margarida, nossa história.
Foi assim que aprendemos a equilibrar as memórias com a vida que construíamos juntos. Nunca tentamos apagar celeste de nossas vidas. Pelo contrário, mantínhamos sua memória com carinho.
Todo ano, no aniversário de sua partida, íamos juntos ao cemitério levar flores. Henrique sempre escolhia lírios brancos, os favoritos dela, e eu levava margaridas, porque foi como ela me chamou no nosso primeiro encontro, como a flor. Quando completamos 25 anos de casados, fizemos uma pequena celebração aqui mesmo no jardim.
Convidamos os poucos amigos que entendiam e respeitavam nossa história. Durante o brinde, Henrique disse algo que jamais esquecerei. Agradeço a Deus por terme dado não um, mas dois grandes amores na vida.
Porque só quem amou verdadeiramente uma vez pode entender o milagre que é encontrar o amor novamente. Lembro-me de olhar para o céu naquele momento, pontilhado de estrelas, e pensar que Celeste estaria sorrindo para nós. Os anos foram passando, envelhecemos juntos, vimos o mundo mudar ao nosso redor.
Carros substituíram as carroças nas ruas. televisões, chegaram à casas vizinhas, o bairro foi crescendo, se modernizando, mas dentro de casa mantínhamos nosso ritmo tranquilo, nossa rotina simples. Henrique se aposentou e finalmente tive ele em casa o dia todo.
Aprendi que amor também é paciência, muita paciência, quando ele decidiu que seu novo hobby seria marcenaria e encheu o quintal de ferramentas e pedaços de madeira. Em troca, ganhei belas estantes para meus livros feitas com suas próprias mãos. À medida que a idade avançava, os papéis começaram a se inverter.
Agora era eu quem cuidava dele quando a saúde começou a fraquejar. Do mesmo jeito que um dia cuidei de Celeste, agora ajudava Henrique com seus remédios, com o banho, com os exercícios que o médico recomendava para as juntas doloridas. Uma noite, dois anos antes de ele partir, estávamos sentados na varanda como de costume.
Ele segurou minha mão e disse: "Sabe o que é engraçado, Margarida? A vida dá voltas tão inesperadas. Quando te contratei há tantos anos, era você quem ia cuidar da minha primeira esposa.
Agora é você quem cuida de mim na velice. E cuidaria de novo e de novo e de novo, respondi sem hesitar. Cuidar de quem amamos não é sacrifício, é privilégio.
Ele sorriu daquele jeito que sempre fazia meu coração acelerar, mesmo depois de tantos anos. Nunca imaginei que cuidando da minha casa você acabaria cuidando do meu coração também. Nos últimos meses de vida dele, quando já estava bastante fraco, passávamos horas na cama de mãos dadas, relembrando nossa história.
Como nos aproximamos aos poucos após a partida de Celeste, o primeiro café que tomamos juntos na varanda. Não mais como patrão e empregada, mas como dois corações solitários buscando conforto. Nosso primeiro beijo, tímido e respeitoso.
A primeira vez que dormimos juntos depois de casados, como se fôssemos dois jovens inexperientes, descobrindo o amor pela primeira vez. "Você me deu uma segunda chance de ser feliz, Margarida. " Ele sussurrou uma noite, a voz já fraca.
Uma segunda chance que eu não sabia que merecia. Quando ele partiu, não foi uma surpresa. Foi como se ele tivesse combinado com Deus a hora certa de ir.
Estava em paz, sereno. Segurei sua mão até o último suspiro, agradecendo em silêncio pelos anos que tivemos juntos. O luto desta vez foi diferente para mim.
Não tinha mais aquela dor desesperada que vi nos olhos de Henrique quando Celeste partiu. Era uma dor madura, um vazio que convivia com a gratidão por tudo que vivemos. Nos primeiros meses, conversava com ele pela casa como se ainda estivesse aqui.
Henrique, hoje as rosas estão lindas ou o café está do jeito que você gosta, forte e sem açúcar. Até hoje às vezes me pego fazendo isso, principalmente nas manhãs de domingo, que eram as nossas favoritas para ficar em casa. Só nós dois.
Agora, nesta idade avançada, tenho tempo para refletir sobre a vida que tive. Nunca imaginei quando saí do interior com apenas uma malinha e muito medo que o destino me reservaria uma história assim, uma história de dois amores tão diferentes e tão importantes. Celeste me ensinou sobre dignidade diante do sofrimento, sobre como o amor pode permanecer intacto mesmo quando o corpo falha.
Henrique me mostrou que o coração tem uma capacidade incrível de se reconstruir, de encontrar novos caminhos, mesmo depois da perda mais profunda. E eu, bem, acho que minha lição foi sobre paciência, sobre como deixar que as coisas aconteçam no seu tempo certo, sem forçar, sem cobrar, sobre como a vida tem seus próprios planos para nós, muitas vezes melhores do que aqueles que sonhamos. Quando olho para esta casa agora, vejo camadas e mais camadas de história.
A casa que foi construída por um jovem casal cheio de sonhos. A casa que acolheu a doença e a despedida. A casa que testemunhou o nascimento silencioso de um novo amor.
A casa que viu nosso envelhecimento lado a lado. As rugas surgindo, os cabelos embranquecendo, mas os corações permanecendo jovens. As pessoas me perguntam se não me sinto só agora, como poderia?
Tenho as memórias, tenho as cartas, tenho as fotografias nas paredes que contam nossa história e, principalmente, tenho a certeza de que fui profundamente amada. Duas vezes, de maneiras diferentes, mas igualmente verdadeiras. Sento-me aqui na minha cadeira de balanço, junto à janela onde a luz entra suave no fim da tarde.
A mesma luz que iluminou tantos capítulos da minha vida. Bordo, leio, recebo visitas, conto e reconto nossa história para quem quiser ouvir. Nunca imaginei que cuidando da dor de outra mulher, eu encontraria o homem que cuidaria de mim até o fim dos seus dias.
Gosto de dizer. Não foi um conto de fadas, foi vida real. com dores, perdas, alegrias, descobertas, com cuidado, respeito e amor de verdade.
Quero agradecer a vocês que ficaram até aqui ouvindo a história de uma velha senhora. Espero que algo do que contei tenha tocado seus corações. Agradeço a Deus pela oportunidade que tive de conhecer e cuidar do Senr.
Henrique, de compartilhar tantos anos ao lado de um homem tão bom, tão íntegro, tão amoroso. Sabe, meus queridos, se tem uma lição que aprendi em todos esses anos, é que a vida raramente segue o caminho que planejamos. Às vezes ela nos leva por desvios que parecem dolorosos, incompreensíveis, mas se tivermos paciência, se mantivermos o coração aberto, descobrimos que esses desvios nos levam exatamente para onde precisávamos estar.
O amor tem muitas faces, muitas formas. Não importa a idade, não importa as circunstâncias. Quando ele chega, precisamos ter a coragem de abrir a porta e deixá-lo entrar, mesmo que venha em uma embalagem diferente da que esperávamos.
E lembrem-se sempre, cuidar de quem amamos não é um fardo, é um privilégio. Cada momento de cuidado, cada gesto de atenção, cada palavra de conforto que oferecemos a alguém é uma forma de amor que permanece muito além do nosso tempo aqui na Terra. Obrigada por me ouvirem.
Obrigada por permitirem que minha história viva através de vocês e que Deus abençoe cada um com um amor que transborde, que cure, que transforme, como o amor que tive a bênção de viver. Yeah.