Se o sonho de educação que nos inspira é solidário e democrático, não é falando aos outros, de cima para baixo, como se fôssemos os portadores últimos da verdade é que estimulamos o diálogo. É escutando que aprendemos a falar com eles. Só consegue falar com os alunos, e não apenas aos alunos, quem os escuta pacientemente e criticamente, ainda que, na dinâmica do diálogo, também precise falar a eles.
Mas quem aprende a escutar dificilmente comete, com muita frequência, o erro pedagógico de falar impositivamente. Até quando discorda das concepções do outro, o professor democrático fala com o outro encarando-o como um sujeito e não como um objeto do seu discurso. O educador que escuta aprende a difícil lição de transformar o seu discurso em uma fala com o aluno.
E essa habilidade traz ganhos para o professor também. Porque ao falar com os alunos o próprio professor conquista a oportunidade de, ao ouvi-los, aprender mais. Paulo Freire se mostra preocupado com um determinado discurso, recorrente em vários ambientes, que falando em nome da eficiência, acaba, na prática, asfixiando a liberdade, a criatividade, o risco e o gosto pela aventura intelectual para sustentar a padronização e a repetição de fórmulas de manuais supostamente definitivos.
E ele ressalta que esses impedimentos não necessariamente são feitos partir da truculência, mas sim a partir de um conjunto de dinâmicas mais sutis que vão domesticando e alienando a liberdade e a criatividade através da burocratização das rotinas de aprendizado. Cada coisa em um horário. Aprende isso, depois isso, depois isso, independente de suas curiosidades, não importando se você vislumbrou caminhos mais criativos, inesperados e significativos para aquele conteúdo.
Então essa burocratização da mente, para usar um termo de Paulo Freire, acaba levando os estudantes à acomodação daqueles que são convencidos de que os conhecimentos já estão consolidados, que a escola é daquele jeito porque não tinha como ser diferente e que a própria sociedade também é assim, um fato consumado. Não há o que fazer. Mas para Paulo Freire, como nós temos visto em todos os vídeos, a história não é uma determinação inexorável, mas uma possibilidade.
“Sempre recusei os fatalismos. Prefiro a rebeldia que me confirma como gente e que jamais deixou de provar que o ser humano é maior do que os mecanismos que o minimizam. ” No período em que Paulo Freire publicou Pedagogia da Autonomia, em 1996, ainda estava em voga uma ideia que foi recuperada pelo economista político Francis Fukuyama, que supunha que a supremacia dos valores do capitalismo, da democracia e do neoliberalismo, sobretudo após o desmantelamento da União Soviética e o fim da Guerra Fria, haviam feito com que a história da humanidade tivesse chegado ao seu objetivo, ao seu fim.
Caberia às nações que ainda não eram assim direcionar as suas políticas neste rumo inevitável. O próprio Fukuyama reviu os seus conceitos e publicou um outro artigo admitindo que a história, naturalmente, ainda oferecia alternativas, e que o processo histórico da humanidade ainda se movimentava em direções imprevistas. A história não havia chegado a um fim.
Mas mesmo assim a ideia pegou, muitos nem souberam interpretar muito bem o que ele queria dizer, mas a noção de que a história estava morta, de que qualquer projeto que divergisse do neoliberalismo era necessariamente anacrônico e havia deixado de ter sentido histórico, e que por isso qualquer sonho, qualquer projeto de uma sociedade diferente dessa em que a lógica do mercado dita todas as regras era simplesmente perda de tempo, então, a noção de "fim da história" acabou se tornando hegemônica e todas aquelas ideias típicas do neoliberalismo também se tornaram hegemônicas. Inclusive na educação. Para Paulo Freire, essa noção de fim da história exige do educador uma reflexão crítica no sentido de não se submeter a essa verdadeira asfixia da liberdade.
Não é possível educar em um contexto que nos induz à imobilidade, à negação da liberdade e à proibição da busca de alternativas. Quanto mais a educação se deixa capturar pela noção da morte da história, mais os professores e os alunos tendem a se imobilizar e a desistir de sua capacidade de transformar os conhecimentos e a história. O desprezo pela formação integral do ser humano e a redução da educação ao puro treinamento técnico que busca apenas adaptar o sujeito à realidade isso acaba fortalecendo a maneira autoritária de falar de cima para baixo.
Os próprios sistemas de avaliação reforçam esse caráter autoritário e punitivo. E é óbvio que Paulo Freire não é contra o processo de avaliação, mas por que a avaliação não pode ser, por exemplo, mais um momento de aprendizado? É claro que os conhecimentos devem ser medidos, avaliados, corrigidos a crítica que se faz é em relação àquelas avaliações que querem ou punir ou domesticar o aluno.
Aquela em que o aluno decora um conteúdo exclusivamente para a prova, para se esquecer no dia seguinte, porque o conteúdo nunca mais vai ter nada a ver com a sua vida. Agora, quando se fala em diálogo, é preciso ficar claro que isso exige um exercício, uma disciplina. No processo da educação dialógica, a disciplina do silêncio, que ambos os lados, professor e alunos, devem exercitar, cada um ao seu tempo, é absolutamente fundamental.
Quem tem o que dizer deve ter o direito de dizer e a consciência de que, certamente, ele não é o único que tem o que dizer. E além disso, ele deve saber que o que ele tem a dizer não é necessariamente, por mais importante que seja, a verdade final e definitiva. É por isso que quem tem o que dizer deve assumir o dever de motivar e de desafiar quem escuta, no sentido de levá-lo a falar também, seja questionando ou respondendo.
Paulo Freire entende que é intolerável aquele professor autoritário que se dá a si mesmo o direito de se comportar como se fosse o proprietário da verdade e que ainda toma o tempo dos alunos para se afirmar. A fala de um professor autoritário se dá em um ambiente silenciado, que é diferente de um ambiente de sujeitos em silêncio. Em uma relação de diálogo, que é a relação do professor democrático com a sua turma.
Que aprende a falar escutando. Que alterna falas e silêncios para que todos possam igualmente construir e expressar os seus conhecimentos, suas dúvidas, e ouvir com atenção. O silêncio no espaço da comunicação é fundamental.
De um lado, ao escutar a fala do outro como sujeito, ativamente, e não como objeto, de forma passiva, com o meu silêncio eu tenho condições de acompanhar o próprio movimento do pensamento que se constrói e é revelado pela linguagem. E por outro lado, isso torna possível, para aqueles realmente comprometidos em se comunicar, e não apenas a fazer comunicados, a conhecer as contribuições criativas de quem está escutando. Paulo Freire nos lembra que uma das características humanas fundamentais é a capacidade de pensar sobre o mundo, tornar o mundo inteligível, compreensível, e comunicar essas descobertas, até para favorecer a transformação desse mundo a partir dos novos conhecimentos.
O mundo não tem uma inteligibilidade inata. É a inteligência humana que confere sentidos ao mundo, que teoriza sobre a realidade, com recursos inventados por seres humanos, com matemática, com física, com sociologia. É isso que faz o mundo inteligível, compreensível para a inteligência humana.
Por isso que uma grande questão da educação é fazer com que os estudantes aprendam a produzir inteligibilidade para o mundo. Que aprendam a interpretar o mundo. A produzir inteligência sobre o mundo a partir da linguagem.
E é por isso que Paulo Freire diz que ensinar não é transferir conteúdo, não é fazer com que o aluno decore isso ou aquilo. O papel do professor é falar com clareza sobre o objeto, e provocar o aluno para que ele, a partir dos recursos da sala de aula, produza a compreensão do objeto. Essa compreensão não pode ser entregue pelo professor.
O aluno precisa se apropriar dela. Ele precisa se apropriar da inteligência do conteúdo, da própria inteligibilidade do conteúdo. Ensinar e aprender exige o esforço do professor em deflagrar a ação de desvendar os caminhos para a compreensão do conteúdo, e exige também, é claro, o esforço do estudante, como sujeito de aprendizagem, em participar do exercício de desvendamento.
E isso não tem nada a ver com transferência de conteúdo. É por isso que a tarefa do professor, em uma perspectiva progressista, é apoiar o estudante para que o próprio estudante vença suas dificuldades na compreensão dos conteúdos, na formulação da inteligibilidade dos conteúdos, e entre em um estado de curiosidade permanente para que ele continue estimulado a continuar aprendendo. É nesse sentido que escutar é tão importante.
Ouvir para conhecer as dúvidas, os receios, os vacilos. Tolerar e ser compreensivo diante as incompetências provisórias dos educandos, que são naturais em um processo de aprendizagem, o professor também deve assumir as suas incompetências provisórias, mas tudo isso é um exercício indispensável para que o professor aprenda a, mais uma vez, falar com os alunos. E não aos alunos.
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