No dia 23 de Junho de 1970 foi feriado nacional no Brasil. As crianças não foram para as escolas, os supermercados e lojas não abriram e as repartições públicas foram fechadas. O motivo?
Chegava no Brasil a seleção brasileira de futebol depois da conquista da da Copa do Mundo do México. O então presidente Emílio Garrastazu Médici organizou uma recepção em Brasília que reuniu cerca de 200 mil pessoas para a celebração da conquista do TRI. Os jogadores desfilaram pela cidade e subiram a rampa do Palácio da Planalto, onde se reuniram com o presidente e posaram com a taça diante da multidão.
Em outras cidades, milhões de pessoas saíram às ruas para comemorar a vitória, os jornais da época se referiam àquela semana como “um Carnaval em Junho” e como “uma loucura coletiva”. O Brasil já tinha ganhado a Copa em 58 e 62, só que em 70 havia algo de diferente. Uma matéria do jornal Folha de São Paulo se referia à conquista do mundial como um "reflexo da situação interna do Brasil” que vinha para confirmar a “fé inabalável do brasileiro com as potencialidades e com o destino do país”.
E não era à toa, naquele ano o PIB brasileiro crescia 10,4%, a inflação atingia seu menor índice dos últimos 10 anos e a indústria nacional se desenvolvia a passos largos. Os anos que se seguiram viriam acompanhados de grandes obras de infraestrutura - a usina nuclear Angra 1, a Hidrelétrica de Itaipu, os vastos projetos habitacionais e a ambiciosa Rodovia Transamazônica. O Brasil vivia o chamado “Milagre Econômico" e a vitória no futebol embalava um sentimento nacionalista de esperança, uma crença de que chegava a hora do Brasil ser grande, éramos o país do futuro e o futuro era naquele momento.
Ou pelo menos, essa era a versão que a Ditadura queria que você acreditasse. Por trás da vitória na Copa e dos números na economia, havia um quadro de repressão e censura sistemática, de corrupção generalizada e de uma política fiscal que anos depois causaria uma das mais graves crises econômicas do país. Essa é a história de como a Ditadura criou o mito de um Brasil que nunca existiu.
Era uma vez no Brasil a história de uma conspiração civil-militar que derrubou o presidente da República e instaurou um regime ditatorial. Essa história na verdade se repetiu algumas vezes por aqui, mas a que a gente vai contar hoje aconteceu lá em 1964. O golpe começou em 31 de Março, e no dia seguinte alguns jornais já o classificavam como um movimento “pela democracia”, por ironia da história, justamente no dia da mentira.
No dia 2, o então presidente da Câmara dos Deputados Ranieri Mazzilli assumiria a presidência da república e ficaria por lá até que uma eleição indireta elegesse o primeiro presidente da Ditadura, o general Castello Branco. Depois dele e de seu governo viriam ainda outros quatro presidentes militares e mais de 20 anos sem democracia. Mas, afinal, o que foram esses 20 anos?
Por que muita gente por aí ainda continua dizendo que essa foi a melhor época de se viver? De 1964 a 1985, a economia brasileira cresceu em média 6,15%, número consideravelmente superior à média mundial de 3,66% e da América Latina de 4,75%. No auge do milagre econômico, o Brasil chegou a crescer 14% em único ano.
Já a inflação caiu de 92% em 1964 para 15,6% em 1973. O projeto de desenvolvimento industrial fazia do Brasil uma das mais promissoras economias do mundo. Nos primeiros anos do regime, a indústria crescia uma média de 13,3% ao ano.
Já as exportações brasileiras davam um salto e disputavam espaço em diferentes mercados do mundo. O Brasil cresceu, mas nem todo mundo se beneficiou com esse crescimento. No ano de 1970 - o mesmo ano da Copa - quando o país crescia mais de 10%, o presidente Médici disse que a economia ia bem, mas o povo ia mal.
Ou seja, o crescimento da economia não significava uma melhora na vida da população. Prova disso é que o índice Gini brasileiro - que mede a concentração de renda - foi de 0,497 em 1960 para 0,622 em 1972, indicando uma disparada da desigualdade econômica no país. E é aí que a fantasia por trás dos números promissores e das manchetes otimistas começa a desaparecer… Até porque quando a gente fala de economia, não existe milagre.
Segundo estudo da Universidade Federal do Rio de Janeiro, só no período de 1970 a 1972, os 20% mais pobres haviam ficado ainda mais pobres, enquanto os 10% mais ricos haviam ficado ainda mais ricos, aumentando seus rendimentos em torno de 68%. Isso aconteceu porque, o controle da inflação e o aumento da produção só foi possível por conta de uma política de controle e arrocho salarial. Na prática, isso quer dizer que nos anos do “Milagre Econômico”, os trabalhadores que ganhavam um salário mínimo não tiveram qualquer aumento em seu poder aquisitivo.
Estima-se que durante a Ditadura, o salário mínimo caiu 50% em valores reais. É fato: havia uma crença no governo militar de que o crescimento econômico era mais importante do que a distribuição de renda. A Delfim Neto, ministro que comandou a economia de 1967 a 1974, se atribuiu a famosa frase “primeiro precisamos fazer o bolo crescer, para depois dividi-lo”.
Só que a hora de dividir esse bolo nunca chegou. E isso só foi possível porque no Brasil vigorava uma Ditadura, ou seja, as políticas econômicas não estavam sob discussão de toda sociedade e a restrição dos direitos políticos faziam com que os trabalhadores não pudessem defender suas pautas. Na verdade, a política salarial imposta pelo governo só aconteceu por conta de intervenções nos sindicatos e da perseguição de seus opositores.
Os anos do milagre econômico foram também os anos de chumbo da Ditadura, e isso não foi por acaso. O projeto de desenvolvimento industrial, apesar de importantes contribuições dos governos desse período, não foi iniciado na Ditadura e já apresentava excelentes resultados antes dela. Por isso, tudo leva a crer que um crescimento muito satisfatório teria sido possível com uma política salarial justa, com “maior liberdade individual e participação da população nas decisões e nos ganhos do crescimento”, como já havia acontecido em anos anteriores.
E a coisa não para por aí: quando a conta de todo esse desenvolvimento chegou: o preço foi alto. Justamente porque, para financiar o crescimento industrial, os militares recorreram ao crédito internacional, fazendo com que a dependência do país aumentasse e a dívida externa fosse a alturas. A situação ficou ainda pior quando a Crise do Petróleo de 1973 fez tudo ficar ainda mais caro.
Assim, quando os militares deixaram o poder em 1984, a dívida estava quase quatro vezes maior e representava 54% do PIB. A herança do crescimento acelerado associado ao endividamento viria depois com a crise da “estagflação” e faria dos anos 80 a década perdida na economia brasileira. Outro grande feito da Ditadura foi a construção de importantes obras de infraestrutura.
A Usina de Itaipu, maior usina hidrelétrica do país e carro chefe das obras do período, apesar de seus grandes resultados deixou uma dívida bilionária que até hoje não foi quitada. Segundo dados da própria empresa, o empreendimento custou mais de 27 bilhões de dólares, dos quais 99,2% vieram de empréstimos e financiamentos. Mas os problemas não pararam por aí, a Usina de Itaipu também está no centro de um dos problemas menos conhecidos da Ditadura: a corrupção.
Em março de 1979 o diplomata brasileiro José Jobim foi sequestrado e dois dias depois encontrado morto, a investigação apontaria suicidio como causa da morte, apesar de indicios de agressão e tortura. A versão nunca foi aceita pela família, e em 2014, o relatório da Comissão Nacional da Verdade apontou que Jobim foi sequestrado, mantido em cativeiro por dois dias e meio e interrogado sob tortura por agentes da Ditadura. O motivo?
Dias antes de seu sequestro, o diplomata comentou com amigos e colegas que preparava um livro de memórias, em que revelaria denúncias de superfaturamento na construção de Itaipu, amparadas por uma ampla documentação guardada pelo diplomata. Na semana seguinte, Jobim não seria o único a desaparecer: seus documentos e materiais de trabalho também sumiram de sua casa. O renomado embaixador teria representado o Brasil nas primeiras negociações de Itaipu no governo Jango, quando o projeto ainda se chamava “Sete Quedas”.
A ascensão da Ditadura, no entanto, mudou os rumos da proposta: a obra inicialmente orçada em 1,3 bilhão de dólares, previa no governo militar um investimento inicial de 13 bilhões de dólares! E detalhe: os dois projetos possuíam a mesma capacidade de produção de energia. Segundo o historiador Pedro Henrique Pedreira Campos, por não ter sido feito uma apuração do caso à época é difícil detalhar qual foi a proporção tomada pela corrupção na construção da Usina, mas há indícios de desvios de verba na realização da obra e tudo aponta que ela saiu mais caro “devido à apropriação indevida de recursos”.
Foi também nessa época que o índice de escolarização cresceu e a taxa de analfabetismo infantil diminuiu. Mas será que a educação naquela época era realmente melhor? Segundo dados do IBGE, no fim da Ditadura, 28 em cada 100 crianças de 4 a 6 anos estavam na escola.
Para comparar: atualmente esse número é superior a 90. Cabe notar ainda que o analfabetismo caiu a um ritmo mais lento durante a ditadura do que durante o período democrático. Além disso, a constituição de 1967, apesar de assegurar a obrigatoriedade e gratuidade do ensino primário, não garantia a universalização do direito à educação - isto é, o Estado não tinha obrigação de levar o ensino para todo o território nacional.
Assim, naquela época, havia menos crianças na escola do que hoje em dia: em 1970, apenas 67,1% da população de 7 a 14 anos frequentavam a escola, em 1985, no fim do regime, esse número subiu para 81,8% e atualmente é de 98,5%. E tem mais: não era todo mundo que podia se matricular nas escolas - na verdade, em muitos casos, era necessário um bom desempenho para garantia da gratuidade do ensino médio e superior. O resultado disso: muita gente sequer terminava de estudar.
Apesar do aumento da oferta de educação entre 1964 e 1973 ela não se traduziu em uma expansão do ensino público, na verdade, boa parte desse crescimento foi puxado pelo ensino privado que cresceu bastante no período. Das 513 instituições de ensino superior criadas entre 1968 e 1976, 81% dessas eram particulares. E isso não foi por acaso: o incentivo ao ensino privado associado a um baixo investimento em educação era uma política educacional dos governos militares.
Quase no fim da ditadura, em 1982, um estudo publicado pelo Banco Mundial demonstrou que o Brasil tinha o menor percentual de gasto público em educação da América Latina: 6,5% do PIB! E o resultado desse baixo investimento era percebido na infraestrutura precária de escolas e na baixa valorização dos professores - só na região Nordeste, 36% do quadro docente tinha apenas o 1º grau completo. Ou seja, a melhora em alguns índices de educação durante a Ditadura esconde um processo de desinvestimento que acabou por sucatear o ensino público e relativizar seu princípio de gratuidade.
Por isso, é até possível dizer que o Brasil cresceu e se desenvolveu durante o período da Ditadura Militar, mas o custo de mais de 20 anos sem democracia foi alto e o progresso adquirido na época trouxe problemas que só seriam superados anos depois. A imagem de um Brasil promissor lá na Copa de 70 se tornaria, com o tempo, o retrato distante de um regime autoritário que escondia sua verdadeira face.