Oi gente, eu sou o Raphael Sebba e eu recebi um convite do Tese Onze para falar sobre um assunto que tem a ver com racismo ambiental, arquitetura hostil, direito à cidade, imperialismo e muitas outras questões que a gente discute no dia a dia, e esse assunto é o espaço como uma dimensão de poder. Para começo de conversa, é importante eu me apresentar: eu moro aqui no Distrito Federal, sou mestre em Planejamento Urbano pela Universidade de Brasília, minha formação foi em Sociologia também na UnB, e sou um ativista do direito à cidade, dos direitos dos animais, do Cerrado, enfim, de todas as pautas que tem a ver com a democracia, com a população do Brasil e do mundo. [Música] Primeiro conceito que eu quero conversar com vocês é especificamente sobre direito à cidade, eu sei que muita gente já deve ter ouvido falar desse conceito, algumas pessoas devem, inclusive, tem um envolvimento mais ativo mas muita gente nunca ouviu falar ou já ouviu falar e não entende direito o que que é, afinal de contas, é uma coisa um pouco abstrata - Como assim a cidade como um direito?
O que que isso significa na prática? Eu acho que é sempre mais fácil a gente falar dando exemplos, eu quero que você pense se na sua cidade você tem direito a exercer a cidade plenamente no seu cotidiano, você tem direito aí aos espaços de lazer que ela oferece, você tem direito ao usufrite todos os benefícios que ela traz, ou se você tem restrições no seu acesso à cidade? Provavelmente essa resposta depende de quem você é, da cor da sua pele, da renda que você tem, do lugar que você mora, e de várias outras variáveis que performam uma série de injustiças e desigualdades nos centros urbanos e nas cidades como um todo.
Eu gosto de pensar direito a cidade a partir de três perspectivas diferentes: a primeira, mais intuitiva, é o direito de estar nos lugares, de estar na cidade, de transitar pela cidade, aproveitar cada pedaço dela, e você tem várias restrições à esse direito, uma restrição óbvia é a distância, se você tá longe de um local, você não tem o direito de acessar esse lugar a não ser que você tenha um automóvel ou um transporte público que funcione, então quando a gente defende a Tarifa Zero, por exemplo, a gente tá fazendo um debate de direito à cidade porque ao garantir um transporte de graça você tá garantindo que as pessoas possam transitar pela cidade. Nesse sentido mesmo que você tenha uma atração de graça uma atividade cultural num ponto da cidade as pessoas não têm o direito de aproveitar esse momento e esse espaço das cidades elas não puderem chegar, então se a tarifa é 5,50 para ir e 5,50 para voltar, ou ela tem esses R$ 11,00 para desembolsar ou ela não vai, mesmo que seja de graça, para ela passa a ser pago, mesma coisa vale para o horário também de circulação dos ônibus, se passa 11:30, meia-noite e para de ter ônibus, as pessoas que dependem desse transporte estão tendo o seu direito a permanecer na cidade e usufruir daquela atração cultural restringido. Isso vale para atração cultural e vale para tudo, vale para trabalho, vale para estudo, vale para manifestação ou organização política, vale para todos os processos que a gente vê acontecendo simultaneamente no centros urbanos e aí a gente entra na segunda perspectiva pela qual acho que é legal pensar o direito à cidade que é a perspectiva da distribuição justa, tanto dos ônus quanto dos bônus do espaço urbano.
Estar na cidade traz uma série de pontos positivos para o nosso cotidiano, acesso a lazer, acesso à saúde, acesso à educação, você tem uma concentração de serviços, você tem uma diversidade de pessoas. Você tem também ônus decorrentes do espaço urbano, você tende a ter mais conflitos, você tende a ter também processos de violência aparecendo, você tende a ter impactos ambientais que afetam negativamente as pessoas e o direito à cidade, e ele advoga a ideia de que tantos tantos os ônus quanto os bônus do espaço público do espaço urbano tem que ser distribuído de forma justa, o que não acontece hoje. O que a gente vê é uma concentração tanto dos bônus, então determinadas áreas e determinadas populações tem acesso à tudo que o espaço urbano traz de melhor, quanto dos ônus, outras comunidades, outros territórios, outras áreas concentram todos os aspectos negativos que a gente tem dentro de um centro Urbano.
Por exemplo, quando você tem uma concentração de pessoas você precisa ter um sistema de esgoto que funcione para destinar de forma devida os resíduos gerados pelas pessoas, em determinadas comunidades esse direito ao saneamento básico, ele é plenamente assegurado, então as pessoas não têm esse ônus de tá convivendo com um conjunto de outras pessoas. Em outros locais não. Você não tem garantia desse direito fundamental porque os investimentos não estão sendo destinados para essa outra área, então você tem concentração de ônus em determinadas regiões, isso vale também para destinação de resíduos como um todo.
Um ótimo exemplo de concentração de ônus é destinação de resíduos sólidos, aqui no Distrito Federal, por exemplo, a gente tem a Cidade Estrutural, por muito tempo recebeu lixo de todo DF e até do Entorno, ali tinha um grande lixão que era depositado sem nenhum cuidado, sem nenhum respeito, pelas pessoas, sem nenhum cuidado com o impacto climático e ambiental que aqueles resíduos iriam gerar. Muitas comunidades, muitas pessoas passaram a trabalhar do lixo, ter renda a partir daquele material, mas uma perspectiva muito da busca individual de tirar uma receita de um contexto que era absolutamente desrespeitoso - não era um aterro, era de fato um lixão onde tudo era depositado, mas aquele lixo não era produzido na cidade estrutural, era produzido em todo Distrito Federal, era a produção Econômica que a vida cotidiana de toda a população do Distrito Federal que gerava aqueles resíduos e eles eram depositados em um ponto específico da cidade, os impactos negativos ficavam concentrados naquele ponto específico. E como que a gente pode distribuir melhor os ônus e os bônus da cidade, como que a gente pode garantir acesso pleno à cidade à toda a população?
Para responder essas perguntas eu entro no terceiro aspecto pelo qual acho que é importante a gente passar o direito à cidade, que é o direito de definir os rumos, o futuro, como que a gente vai construir os nossos espaços urbanos, é uma dimensão democrática da sociedade, e que é fundamental para a forma como a gente vive, então o direito à cidade além do direito de exercer e usufruir do espaço urbano, do direito de distribuir de forma justa os ônus e os bônus do espaço urbano, é também o direito de definir o futuro do espaço urbano. Todo esse debate conceitual do direito à cidade tem ressonância na prática, a gente vive cotidianamente com a disputa pelo direito à cidade com conflitos relacionados ao espaço urbano. Inclusive tem um livro muito interessante de uma pensadora e arquiteta brasileira chamada Raquel Rolnik que chama "Guerra dos Lugares", em que ela investiga as formas pela qual o Déficit Habitacional e o problema da moradia se apresenta em diferentes contextos, diferentes países, tem uma pesquisa brilhante nesse sentido que vale a pena conhecer.
Nesse livro "Guerra dos Lugares" e em muitos outros você consegue ver na prática como que existem processos de violência espacial. Como que você tem processos de violentar comunidades e pessoas a partir do manejo e da organização do espaço. E aqui eu quero entrar em um assunto muito importante que a relação umbilical entre espaço e poder.
É muito comum nas Ciências Sociais a gente pesquisar o espaço ou a cidade como consequência de relações sociais. Então como que o sistema capitalista molda e produz cidades, como que relações de poder ou interesse do Capital Financeiro molda a formação e a produção do espaço urbano. Mas também é muito importante que a gente investigue a forma como a cidade em si gera efeito e impacto nas pessoas - porque o espaço ele é, ao mesmo tempo, consequência e causa de fenômenos sociais.
Nesse debate dos efeitos da arquitetura, dos efeitos da cidade, tem um conceito que tem ganhado muito destaque, que é o conceito de arquitetura hostil que são formas de você ter configurações espaciais voltadas para a violência contra pessoas . Uma imagem muito forte da arquitetura hostil e do combate a ela que rodou a internet recentemente foi a do padre Lancelotti com uma marreta quebrando blocos de concreto que estavam colocados em viadutos em São Paulo para que pessoas não pudessem se alojar naqueles lugares. Um outro exemplo, agora aqui do Distrito Federal, são as novas paradas de ônibus que o governador Ibaneis está colocando pela cidade que tem esse banco fininho.
curtinho. Não é por acaso, é para que ninguém possa deitar ali. Essa noção de arquitetura hostil ela é interessante porque ela tem uma escala micro muito cotidiana, mas ela faz parte de um processo maior de violência espacial.
Inclusive, eu acho a palavra hostil muito leve porque o que a gente tá vendo são processos efetivamente de violência não apenas de uma hostilidade contra determinados grupos. Quando a gente pensa na escala da cidade, por exemplo, colocar a comunidades periféricas a 20 30 km da região central é uma forma de violência espacial porque você tá usando o espaço como um elemento de segregação. Quando você bota uma tarifa a 5,50, 6, 7 reais, preço impeditivos, 10 como é o caso do transporte para o entorno do Distrito Federal, você tá tendo um processo de violência espacial porque você tá cerceando direito de deslocamento das pessoas no Espaço a partir de um critério de renda ou ainda no transporte público quando você força as pessoas a viajarem sem conforto apertadas correndo risco.
Esse é um processo de violência espacial porque elas estão inseridas em um contexto espacial que força elas a estarem em um processo violento contra o seu corpo para poder chegar no trabalho, chegar na escola, chegar em qualquer outro ponto que elas queiram acessar dentro da Metrópole. Numa escala ainda maior, quando uma grande Corporação compra minério que foi extraído de um território indígena e deixa ali uma série de resíduos, contaminação dos rios com Mercúrio, assassinato de comunidades inteiras, ela lucra e ela vai embora levando acumulação e reproduzindo seu capital, você tá tendo também uma forma de violência espacial em que você tá tirando riqueza de um determinado território e deixando ali todos os anos decorrentes desse processo. E à essa altura você já deve ter reparado que esse debate tem tudo a ver com racismo ambiental também porque quando a gente pensa em uma comunidade sendo devastada para extração de minério a gente sabe que quem tá ali não é a população branca, a gente sabe que quem tá aí são comunidades que historicamente tem a sua vida desvalorizada em função da acumulação do Capital.
Quando você pensa, por exemplo, uma barragem que se rompeu e soterrou uma cidade, você não precisa ir lá para imaginar a cor das pessoas que ficaram debaixo da lama. E já que eu tô falando de um processo global de fluxos do Capital eu não posso deixar de comentar um autor brasileiro muito importante o geógrafo Professor Milton Santos. Para quem não conhece, tem que conhecer, já é um dos grandes pensadores da intelectualidade brasileira, é um autor que formulou vários conceitos importantes para pensar o processo de globalização e o processo de evolução do capitalismo no século 21.
E não dá para falar de toda a obra do Professor Milton Santos, inclusive porque preciso aprender mais sobre ele, é uma figura que você passa a vida estudando e ainda tem mais o que aprender. Mas quero comentar duas categorias analíticas que são muito importantes para a gente pensar o espaço como poder, o direito à cidade, racismo ambiental, arquitetura hostil e tudo isso que eu discuti ao longo desse vídeo, que é a noção dos "fixos e dos fluxos". Milton Santos tem o entendimento de que o espaço é composto não só pelas estruturas fixas na cidade, os edifícios, as casas, as ruas, o semáforo, os postes, mas também por elementos fluxos, pelo que passa pelos fixos, inclusive, as pessoas, mas também os veículos, a energia, o acesso à água, tudo que transita por entre os fixos.
Pensar o espaço dessa forma é muito revolucionário porque nos permite refletir sobre os usos que a gente faz o espaço urbano. Às vezes a gente acha que para transformar a cidade a gente vai precisar fazer uma série de obras, transformar tudo e isso vai ser uma coisa muito difícil, e não necessariamente, às vezes só que a gente precisa é pensar como que a gente quer ocupar os fixos que já existem. Da mesma forma que a Avenida Paulista ou o Eixão é um espaço ao longo da semana quando você só tem carro passando por ali no espaço, diferente aos domingos quando é proibido o trânsito de carros e a rua é ocupada por pessoas, o conjunto da cidade como um todo pode se transformar em um outro espaço a partir de outros usos e outros Fluxos que a gente atribua a esses fixos.
Do mesmo jeito que ao longo da semana você tem barulho, poluição, acidente, morte, no Eixão, na Avenida Paulista, e nos domingos você tem a economia circulando a economia local, você tem música, Você tem gente sorrindo, Você tem uma ocupação sustentável do espaço, você pode pensar a cidade como um todo deixando para trás impactos negativos, injustiças e desigualdades, e colocando no lugar usos que façam sentido, que tenham as pessoas como centro do processo. Inclusive subvertendo e ressignificando fixos que já existem na cidade. Milton Santos tem um outro conceito muito legal que é de "rugosidades espaciais", rugosidades no sentido de rugas mesmo, como existindo no rosto, no corpo, que são marcas do que a gente já viveu.
Milton Santos apresenta a noção de que o espaço, ele tem fixos que permanecem mesmo que seus fluxos já tenham mudado completamente. Um orelhão, por exemplo, ninguém mais usa o orelhão para fazer a ligação mas ele continua presente no espaço e essa noção de que o espaço se transforma mesmo com a manutenção das suas estruturas é muito revolucionária porque nos permite pensar como com essas estruturas que a gente tem hoje, a gente pode pensar outros usos e outras sociedades possíveis. Bom gente, mas esse é um vídeo introdutório, não dá para falar profundamente de tudo em 10, 15 minutos, então se você quiser conhecer um pouco mais, não deixa de olhar as referências que eu tô deixando aqui, tô deixando alguns textos, algumas obras, para quem quiser conhecer um pouco mais.
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