A língua falada é hesitante, interrompida, redundante, não planejada, fragmentada, incompleta, com frases curtas e simples. Vamos falando e criando ao mesmo tempo. Outra característica são marcas de discurso ao fim de frases, como o “tá”.
Mas você já notou quantos sentidos pode ter essa simples expressão? Uma expressão nominal: "tá legal", "tá bom", "tá ruim". Ou, então, uma expressão verbal: "tá falando", "tá falado".
"Tá chegando aí"— aí é um verbo auxiliar. E aquele "tá" da conversação, "Tá. Então, tá", é um marcador de assentimento.
Você, agora, entrou em acordo com uma pessoa e usa esse "tá". Mas “tá” não é aceito como correto. .
. ou é? Vamos dizer o seguinte: "E se não aceitar?
O que acontece? " Não é uma questão de aceitar ou não aceitar. É uma questão de entender porque que de repente esse verbo "estar" mudou as suas formas de construção e encolheu.
Muito mais interessante, é ir atrás e tentar descobrir, do que dizer: "Não, isso aí está errado, isso é besteira. " "Imagina, que que é isso, tá falando muito mal, você, com esse seu 'tá', aí. "Tá?
" "Tá bom? " Quando a gente fala em língua, logo a gente pense em gramática. Entretanto, quando você começa a estudar bem uma língua, o que você vê, é que a gramática corresponde a um setor da língua.
A gramática estuda isso: como é que eu pego as palavras e as combino com outras palavras, obtendo estruturas replicáveis, que recorrem? Mas, escuta, língua não é só estrutura, também são as palavras que se estruturam, então eu tenho todo um setor de palavras: o léxico. Essas palavras e essas impressões da gramática têm sentidos.
Ah, bom. Isso é um outro domínio, então, que é o estudo dos sentidos, que é a semântica. E, finalmente, temos a propriedade de estruturar as nossas sentenças, criando texto ou discurso.
E esses elementos todos, nós dominamos quando aprendemos a falar como crianças. Todo mundo conversa. Esse é o uso básico da língua.
Era, mesmo, de se esperar, portanto, que algumas propriedades da língua falada tivessem um poder articulador mais forte. É o que eu tenho defendido nessa abordagem multissistêmica da língua: que tudo vem da conversação. Quando veio o gravador portátil, nós nos dispusemos à transcrever para o papel tudo o que a pessoa tinha falado, do jeito que falou.
Por exemplo, as repetições: a pessoa fala, "Não, porque aí o menino foi… e como é que foi mesmo? ah, aí ele chegou e disse. .
. " Essas coisas da língua falada, que são muitas interrupções, muita hesitação, muita repetição. E tudo isso era regular.
Na hora que você descrevia, não era ocasional. Aquilo que se falava: "A língua falada é uma bagunça" — não, não é. Basta você descrever com cuidado.
Não tem nada de bagunça. Aliás, se as línguas fossem bagunçadas, elas não seriam línguas, porque não teria intercompreensão. "Bom, vocês aqui só comem churrasco, né?
Vocês não comem peixe. " Aí o gaúcho falou assim: "Peixe? Peixe aqui no Rio Grande do Sul… A gente come peixe só na semana santa.
" Bom, a sintaxe da oralidade não é uma sintaxe que corre regularmente como na língua escrita. Ele vem como termo solto, depois ele é repetido com algum complemento informativo, depois ele aparece como objeto direto: "a gente come peixe". Então, o que a gente viu, é que o manejo da sintaxe, por parte do falante, é muito interessante.
A língua escrita já é uma fixação disso tudo. Eu costumo dizer que a língua escrita, como um documento linguística, mente pra caramba, porque ele já dá a coisa passada a limpo, por assim dizer. E você fica sem saber como se montou, na cabeça do indivíduo, aquilo.
Mas, como na oralidade você põe tudo no ar—completo ou incompleto—, você revela os mecanismos da língua. E ao mesmo tempo, ela aponta mais pro futuro, enquanto a língua escrita aponta para a documentação do que foi no passado. É uma língua cuja as propriedades estão sempre sendo postas em questão pela comunidade que fala.
Não são poucos os exemplos dessa transformação. Nas ruas e nas redes sociais, regionalismos, expressões, e novas formas de construção da língua, são assimiladas ao nosso vocabulários diariamente e isso cria novas regras. O que está acontecendo com o português do Brasil, é que o artigo está ficando como o marcador do gênero e do número.
No padrão culto, coloca-se "s" para marcar o plural no artigo, no substantivo, e no complemento: "As meninas altas". Já na língua falada, encontra-se exemplos em que se apagou o "s" do complemento: "As meninas alta". Hoje, é possível observar casos em que o próprio substantivo perdeu seu marcador: "As menina alta".
Nesse caso, o que marca o plural e o gênero, é o artigo. Pode ser uma forma de economizar algo que é redundante na língua. É possível observar, também, o inverso: variação em palavras que eram invariáveis, como o caso recente, observado em redes sociais, do pronome "Que" em "Ques pessoas?
”. Certamente há alguma relação entre essa marcação de concordância só no artigo e só no sujeito, porque há uma harmonia na estrutura da língua: algo que acontece num domínio, acontecerá no outro. A gente faz um esforço para abranger todas as classes e todas as regiões, mas se nota uma diferença: o "Tu", em muitos lugares, foi trocado por "Você".
O "Nós", está sendo trocado por "A gente". "Vós", na fala do dia a dia, não existe mais. E depois, o "Eles", que pode ficar "Eis" — está também encurtando essa palavra.
De sorte que eu tenho essa mudança no quadro dos pronomes e eu vou ter uma mudança no quadro da morfologia do verbo. Invés de ser assim: "Falo, Falas, Falamos, Falais, Falam" —seis formas diferentes— o que eu tenho, no português do Brasil, é tudo "Fala, Fala, Fala". .
. E quanto às gírias? É extremamente rica, a gíria.
Às vezes, na gíria, sobrevive um traço antigo da sua língua. É um objeto de estudos e é língua, também. O que acha da expressão "Deu ruim"?
"Deu ruim": uma coisa que não deu certo. Querem dizer uma coisa só, que seria: "Arruinou". Esses verbos suportes são muito substituíveis uns pelos outros.
Você pode trocar o "ficou" e o "ficou ruim" pelo "dar", porque o "dar" aparece em outras construções desse tipo: são duas palavras que querem dizer uma coisa só. "Cadê o fulano? " "Deu no pé" — a gente não fala?
"Foi embora. " Então eu pego aquele "deu", que aparece como verbo suporte naquela expressão, e passo pra esse aqui: "Deu ruim". Quando a pessoa disse isso pela primeira vez— quem disse isso—, fez um raciocínio muito interessante, uma coisa rica.
Nem que ele não saiba explicar. Mas aconteceu isso na cabeça dele, na mente, pra ele poder usar essa expressão "Deu ruim". Tudo isso tem explicações que revelam características da nossa vida.
Nada disso é besteira. O linguista não está preocupado se o indivíduo está falando a língua de estado ou escrevendo aquela língua. Não, ele está se expressando.
Então qualquer fato que o gramático pode considerar errado, pro linguista é uma pergunta interessante: "Ué, mas porque aconteceu isso aqui? " Se a pessoa usa uma expressão que é da família dela, a escola fala: "Está errado. Você é burro, teu pai é burro, a família todo é burra.
Vocês estão falando tudo errado. Tem que ser assim. .
. " Esse comportamento cria uma barreira entre a criança e a escola: "Eu não quero isso. .
. Eles me condenam lá. .
. " E condenam aonde? Na sua língua, que é a coisa mais preciosa que você tem.
O que a escola deve fazer é agregar uma outra língua — que é a língua da escola, a língua escrita — agregar isso sem descartar completamente a língua familiar. Tem que respeitar a variabilidade, porque isso é inerente à língua. Então você fica bilíngue.
. . bilíngue na sua própria língua.