Bom dia, boa tarde e boa noite! Eu sou a Jéssica e esse é o Entrelinhas, um programa da UFPR TV destinado à apresentação e debate das obras literárias e que por um acaso do destino ou nem tanto são também parte dos livros cobrados nos vestibulares. Se você ainda não conhece o programa, seja bem-vindo e bem-vinda.
Fique sabendo que nós não temos só esse vídeo não, tá, tem vários outros e se você não viu, dá uma olhada no nosso canal. É só abrir a playlist, curtir e guardar para você assistir mais tarde. Antes da gente começar, é sempre bom dar aquele aviso e deixar bem claro esse programa ele procura ser uma contextualização desses livros.
Isso quer dizer que só o que eu vou dizer aqui, não substitui o prazer de ler a obra completa. Bom dito isso, vamos ao que interessa para realizar esse programa contamos com a colaboração da Gabriele Fenerick, que é Doutoranda em Letras da UFPR. Fica aqui o nosso super agradecimento a ela.
O papo ajudou a gente a entender melhor como "A Falência" é uma obra excelente, que fez sucesso na época do seu lançamento, mas que sumiu por décadas das prateleiras de literatura brasileira. Você quer saber porque isso aconteceu? Então vamos nessa, esse é o Entrelinhas.
Nosso livro de hoje, é publicado e se passa no início do século XX no Brasil. Esse período é marcado por um processo intenso de modernização, do qual a visão política e social está passando por várias transformações. A República Brasileira havia sido proclamada há poucos anos, em 1889.
Em uma espécie de golpe de Estado, organizado pelo exército e apoiado pelos mais ricos. Quem tomou a posse como os primeiros presidentes do Brasil, foram os Marechais. Mas isso não aconteceu de maneira pacífica.
Várias revoltas aconteceram Brasil afora. Os defensores da monarquia ainda se faziam presentes entre a população, que ainda não tinha certeza se a decisão de fundar uma República tinha sido o melhor caminho. Nesta época também, a economia brasileira está enfrentando áreas de mudança: novos processos de produção, formas de comércio e os lucros vindos das plantações de café no sudeste, impulsionam os sonhos da burguesia.
Abolição da escravatura, publicada em 1888, trouxe mudanças no emprego da mão-de-obra desses espaços: presença de migrantes vindo da europa são comuns no trabalho com café. Mas também é lógico que, apesar da escravidão ser proibida, muita mão-de-obra preta ainda estava sendo usada com pouquíssima ou nenhuma remuneração. Esse povo todo trabalhava na preparação transporte e comercialização do café, praticamente o único produto de exportação do nosso país.
A cidade também se moderniza, principalmente o Rio de Janeiro, onde em todos os lugares são realizadas novas construções de palacetes, parques e ruas, tudo copiado da Europa. Novos meios de transporte: como bonde, levam as pessoas para todo lado, não demoraria muito para as carruagens e cavalos ficarem para trás para dar lugar ao automóvel. Por outro lado, o espaço da cidade também sofre com a falta de planejamento.
Na capital, os morros começavam a ser habitados como escravos recém libertados e gente que não tinha para onde ir. É nesse ambiente de modernização, um pouco otimista, mas nem tanto que a escritora do nosso livro viveu parte da sua vida e é onde ela situa o romance "A Falência". Júlia Lopes de Almeida nasceu na metade do século XIX, em 1862, no Rio de Janeiro.
É filha do médico Valentim José Silveira Lopes, que mais tarde recebeu o título de Visconde de São Valentim e de Adelina Pereira Lopes. O casal de origem portuguesa veio para o Brasil com a intenção de ter uma vida mais confortável, na então capital do Império Brasileiro. Júlia demonstrou gostar das Letras desde muito cedo.
Com 22 anos de idade, já está escrevendo para o jornal carioca "O País", o mesmo que publicava os escritos de Machado de Assis. No jornal ela começa escrevendo sobre um pseudônimo, em uma coluna chamada "A moda". A ideia era que esse espaço fosse dedicado a tratar de assuntos do vestuário feminino.
Mas como ela é uma mulher à frente do seu tempo, ela usa o espaço para criticar os costumes da época e fazer as leitoras questionarem certos tipos de comportamento da sociedade. Quando acontece essa virada na forma da escrita, ela passa também a assinar com seu nome completo: Júlia Lopes de Almeida. Ela viaja por alguns anos para Portugal e começa a publicar romances, por ali ela se casa com o escritor português Filinto de Almeida.
Júlia teve uma produção literária muito extensa. Além dos romances, também escreveu peças de teatro, novelas e livros de assuntos diversos. Foi também pioneira na literatura infantil e é dela uma das primeiras obras do gênero publicadas no país em 1886.
Em 1897, foi fundada a Academia Brasileira de Letras. A ideia de construir essa instituição, vem do sentimento de nacionalismo inaugurado com a república. Criar um espaço tipo, um panteão no qual se poderiam encontrar os homens das letras mais incríveis da nação, pois é, os homens.
Inspirado no modelo francês de academia, os círculos intelectuais do Rio de Janeiro acabaram lendo a palavra "Homem" bem ao pé da letra. Então, apesar de ser uma das escritoras mais respeitadas no Brasil, deixaram Júlia Lopes fora da ABL, sob a alegação de que seguindo os moldes franceses, apenas os homens poderiam assumir. Pois é, é sempre assim né!
Bom, mas para não ficar mais feio, como uma espécie de compensação acabaram por dar uma cadeira ao seu marido que também era escritor, lembra? Mas que nem perto possuí uma produção literária, como a dela. Mas, cá entre nós, como se diz em literatura: "A emenda ficou pior que o soneto, né"!
O fato é que, a ABL levaria ainda longos 80 anos para aceitar a a primeira mulher na instituição e o que aconteceu somente com Raquel de Queiroz em 1977. Termos notícias dessa injustiça, é mais um indício da genialidade de Júlia, mas também, infelizmente, da baixa valorização que as mulheres possuíam no século passado no Brasil. De qualquer forma, ela seguiu publicando muitas obras que tiveram sucesso de venda e crítica nos meios literários, e só veio a falecer em 1934 aos 71 anos de idade.
Dentre essas obras, está "A Falência", o livro tema do nosso episódio. // [Gabriele]: - Por estar vivendo da pena e que a gente que seria um sinônimo de viver como escritora, financeiramente por si só, ela já transpõe, transpassa essa ideia de uma mulher de feminilidade tão delicada e tão restrita ao lar. Muitas vezes, a gente encontra obras que tratam da historiografia literária brasileira que nem mesmo a mencionam como uma das melhores escritoras da época, mesmo ela sendo assim reconhecida.
Tem um crítico, inclusive, não me recordo o nome agora, mas que ele se refere a Júlia como um dos melhores escritores no masculino, um dos melhores escritores do século XX. A Falência é o livro de maior destaque da Júlia Lopes de Almeida ou pelo menos aquele que teve maior relevância nos últimos tempos, com várias reedições e análises. É o quarto romance da escritora, publicado em 1901.
Ele pode ser visto como realista, que é uma corrente da literatura que faz retratos do cotidiano nas situações abordadas. Então nesse ponto, "A Falência" pode ser vista com características semelhantes às obras de Machado de Assis, por exemplo, por outro lado em alguns momentos da obra Júlia Lopes de Almeida, também se preocupa com a descrição dos espaços e acontecimentos, uma característica que pode ser também atribuída ao naturalismo. Então, dá pra gente falar dos dois movimentos para caracterizar a obra.
Agora sobre a história: acompanhamos a trajetória de Francisco Teodor. Um Imigrante português, que por seus próprios meios acaba se tornando um rico comerciante de café. É dele um dos vários armazens que comercializam o produto na Zona Portuária do Rio.
Depois de anos de trabalho e enriquecimento, ele decide que precisa se casar. Pesquisando por aqui e por ali, ele encontra Camila. Uma moça de família pobre que pretende ir morar longe da capital.
O comerciante acaba gostando da educação da moça e pede então a mão de Camila em casamento. Os negócios prosperaram mais ainda e e então acompanhamos o casal em uma fase mais avançada já abraçados com a riqueza plena e absoluta, estão agora morando em um Palacete e tem quatro filhos: Mário, o mais velho. Rute, a filha do meio e que tem talentos musicais e as gêmeas mais novas, Lia e Raquel.
Na família, Mário representa o primogênito, aquele que em teoria deveria tomar o lugar do pai nos negócios, mas que durante o livro se mostra um bom vivan e que mais se interessa por uma amante francesa do que outros assuntos. A casa é visitada constantemente por pessoas que fazem parte dos círculos mais ricos e cultos do Rio de Janeiro. Eles participam de festas enormes, nas quais Teodoro gasta muito dinheiro, mais para aparentar riqueza do que para se divertir.
Entre os visitantes mais frequentes, está o DrGervázio. Médico da família, que se torna também amante de sua esposa. Camila uma mulher muito bonita, não faz muito caso a esse respeito e quase não esconde o romance da sociedade.
Teodoro não se sabe se concentrado totalmente em seus negócios ou concentrado em virar a cara para não ver, nem percebe a traição. A riqueza desmedida da família aparece em muitas passagens do romance, além das festas, a autora descreve presentes que o marido dá pra esposa e pras filhas, as comidas servidas nos almoços, as obras de arte adquiridos para o palacete e a completa falta de noção com os valores gastos no dia a dia. É uma família que ganhou na loteria mesmo, esbanjam dinheiro feito às custas de muita exploração dos empregados da venda do café.
Só alegria na vida deles e também um distanciamento enorme da realidade média da população, coisa que nunca vemos por aí, né. A escravidão recém abolida, também transparece no enredo do livro. São várias passagens nas quais os negros aparecem nas ruas do Rio de Janeiro trabalhando de costas nuas, carregando sacas de café, varrendo os poucos grãos que caem no chão ou se encontram em situação de marginalidade, habitando cortiços e vielas das primeiras periferias do Brasil.
No dia a dia das casas, as criadas negras são retratadas como serviçais repreendidas pelos patrões. Na família de Francisco Teodoro, por exemplo, a personagem Noca representa uma senhora que cria os filhos dos patrões, tem conhecimentos de botânica e do cuidado da casa. As tias de Camila também possuem uma criada mais jovem, que inclusive chega a insinuar em algum momento do romance que precisa de veneno para assassinar uma das senhoras que a maltrata.
Essa situações dos escravos recém libertados que continuaram em situação de miséria, abandono e submetidos a rotinas de trabalho forçado, é discutido pela autora. Ela era adepta da ideia da abolição, mas parece perceber de um jeito um tanto melancólico que não é apenas o simples ato oficial de libertação que por ia fim aos inúmeros casos de violência e melhoraria a condição da população negra no Brasil e a gente sabe que isso é a mais pura verdade. O romance prossegue e Francisco tem a chance de aumentar ainda mais os seus lucros com o café, utilizando uma grande novidade da época: a Bolsa de Valores.
Por ter uma visão mais tradicional dos negócios, ele fica na dúvida se deve ou não investir nisso, mas acaba cedendo na ambição de se tornar um dos homens mais ricos do Rio de Janeiro. Agora fica atento, que vem o momento **spoiler** (então se você ainda tá lendo o livro, acelera essa parte, se você não quiser estragar a surpresa. Agora se você já leu, então pode seguir).
Bom como vocês devem imaginar, apostar na bolsa e com o café que tem uma variação de preço constante, não é lá uma boa opção. Então é claro que as coisas não vão bem e Francisco Teodoro vê toda a sua riqueza indo pelo ralo junto com o seu prestígio entre os comerciantes da cidade. No final do livro, ele precisa decretar falência e fechar as portas do armazém.
Em um ato desesperado, o comerciante comete suicídio em seu Palacete no Rio, bem no momento em que Camila de madrugada vai visitá-lo em seu escritório. Sua família em choque precisa então aprender a viver uma vida bem mais modesta, em uma casa em outro bairro da cidade. Camila solitária e deprimida acaba ainda descobrindo que o médico da família o Drgervázio, seu amante de longa data na verdade, é um homem casado, que babado, né!
Pois então, apesar de tudo parecer perdido, Júlia Lopes não dá destino trágico as suas personagens femininas. O livro termina com Camila caindo na real e percebendo que tem que ajudar nos trabalhos da casa, que agora depende só da força das mulheres para sobrevivência. Um final muito diferente de boa parte dos livros da época e por não dizer bastante feminista.
Quando a gente conversou com a Gabriele, especialista no livro, ela contou pra gente que uma das maiores inovações de "A Falência" está no destino dado pela autora com relação à personagem Camila, veja só. [Gabriele]: O que a gente costumava ver na época obras escritas por homens, que tratavam das mulheres como adúlteras sempre tinham para essas mulheres uma consequência muito terrível, como a morte ou a prisão ou o enlouquecimento. Enfim, e a Júlia apesar dela trazer essa discussão no livro, ela não dá um destino tão trágico para Camila e isso acaba sendo uma inovação, indo contra a a visão do que os homens escreviam sobre as mulheres naquele momento.
Um aspecto bacana para prestar atenção está no título da obra, no qual podemos ler "A Falência" com outros olhos. // [Gabriele]: Porque ele traz a falência do personagem que é um dos personagens principais o Francisco Teodoro, a falência do negócio dele e a gente tem uma falência ali de valores sociais, falência trazida pela modernidade, a falência do tradicional. Se a gente pensar de de uma maneira mais profunda, a Júlia traz essa discussão do que é ou não do que tá vindo ou não socialmente assim, que pode falecer culturas anteriores.
// A primeira coisa que você tem que saber sobre "A Falência" é que: essa obra fez bastante sucesso na época que foi publicada, mas muito por conta do status que as mulheres tinham naquele período e também em épocas posteriores, o romance acabou esquecido por décadas e décadas pelas editoras e não viu sequer uma republicação. Então, por isso muita gente sequer conhece o nome de Júlia Lopes de Almeida, quando estuda literatura brasileira no colégio, um pecado se levarmos em conta que o livro é um dos melhores exemplares do Realismo no nosso país. A redescoberta de Júlia Lopes de Almeida, só veio mesmo na última década com vários artigos publicados a respeito de sua vida e obra com a reedição da "A Falência", um acerto de contas necessário para nossa história.
// [Gabriele]: Ela é uma autora que merece muito essa republicação das obras, porque ela traz romances muito bem construídos, personagens bem construídos. Então, ela era uma uma autora que conseguia essa liberdade de discutir entre um grupo de homens que dominavam o mercado literário. // Além disso, é importante ficarmos atentos que temos em nossas mãos uma visão feminina rara e singular sobre um momento importante da história brasileira, em uma época que as mulheres não tinham voz e estavam destinadas a uma vida doméstica, voltada para a criação dos filhos e serem servis aos maridos, escrever personagens que pensam em mudar essa situação, é um ato revolucionário.
A escritora fala um pouco sobre suas ideias e opiniões a respeito quando, dá voz a Catarina, uma das personagens do livro. // [Gabriele]: - E se a gente pensar em uma mulher que vive sozinha, que usa roupas mais modernas e que usava batom vermelho e que se diz não querer casar em 1901, é uma coisa muito impactante. Porque a mulher naquele momento, ela tinha essa ideia do tradicional como a Camila, foi educada para ser uma boa mulher, sabe costurar, uma boa esposa, uma "boa mulher" bem entre aspas aí no sentido.
Mas então, eu acho que essa personagem, a Armando Rino, ela traz justamente esse embate entre o moderno e o tradicional que para mim é o elemento essencial nessa obra da Júlia de Almeida. // [Narrador]: "Catarina, fazendo estalar uma côdea de pão entre os dedos magros, perguntou sorrindo, com ar de curiosidade maldosa: - O senhor é contra a emancipação da mulher, está claro. - Minha senhora, eu sou da opinião de que a mulher nasceu para mãe de família.
Crie os seus filhos, seja fiel ao seu marido, dirija bem a sua casa e terá cumprido a sua missão. Este sempre foi o meu juízo, e não me dei mal com ele, não quis casar com mulher sabichona. É nas mediocres que se encontram as esposas.
" Outros pontos abordados no livro com relação às mulheres que podem ser discutidos hoje em dia é o julgamento social do adultério, muito maior que no caso dos homens. E também a liberdade sobre os seus próprios corpos sempre de alguma forma constrangida com relação ao sexo e aos relacionamentos amorosos. A gente também pode comparar a independência feminina.
Ainda hoje, muitas mulheres não conseguem tanto sair de casa para trabalhar quanto tem o mesmo acesso a cargos e remuneração igual ou superior aos homens. Por fim, a questão do racismo e do trabalho escravo naturalizados de modo geral na sociedade de 1901, ainda podem, infelizmente, serem encontrados nos dias de hoje em vários casos que são notícias comuns nas redes sociais e televisão. Uma das casas editoriais mais famosas do Brasil dessa época, era a editora Leite Ribeiro, que ficava no Rio de Janeiro.
O espaço que também era uma livraria, abrigava eventos culturais no início do século passado, muitos deles organizados por Júlia Lopes de Almeida. Isso fez desse espaço um ponto importante para a discussão de ideias, entre elas: o feminismo e a independência da mulher. A Leite Ribeiro publicou, além da própria Júlia Lopes de Almeida, também outras escritoras, como: Abel Juruá, pseudônimo de Iracema Guimarães Vilela; Crisant Teme, que na verdade era Cecília Lopes de Vasconcelos e Augusta Franco.
Uma última dica legal para você que gostou do livro e quer conhecer mais sobre a autora é o site da Biblioteca Brasiliana Guita e José Miglin, da USP. Ali dá para encontrar vários outros livros completos da autora de graça. Por hoje é isso pessoal, espero que tenham gostado.
Não esqueça de curtir e compartilhar esse vídeo com aquele colega que também tá estudando ou pode se interessar por esse assunto. Até o próximo vídeo, beijo!