[Música] Caso esteja lendo esta carta, significa que não estou mais viva. Mas não se preocupe, porque o final vai ser feliz. Tudo começou há 45 anos, quando eu nasci.
Fui uma criança prematura de 6 meses e os médicos não me deram muita chance de vida; mesmo assim, sobrevivi. Meus pais me chamaram de Julieta. Cresci em uma casa humilde; não havia luxo, nós tínhamos apenas o básico, mas sempre fui grata por nunca termos passado fome.
Minha mãe fazia o possível e o impossível para manter tudo em ordem. Com o tempo, vi algumas pessoas partirem da minha vida. Perdi meus avós e a morte do meu pai foi a que mais me marcou; ele foi cedo demais.
Minha mãe costurava e lavava a roupa para nos alimentar e manter o mínimo de conforto. Sou eternamente grata a ela pelo sacrifício e dedicação; ela sempre foi uma fortaleza, criando-se sozinha após a morte do meu pai. Quando cheguei à fase adulta, finalmente pude retribuir.
Comecei a trabalhar, ajudando nas despesas de casa; nunca me faltou vontade de contribuir. Trabalhei como cozinheira, faxineira, diarista, babá, onde houvesse emprego eu estava lá. Não importava o serviço, eu nunca negava trabalho.
A vida não era fácil, mas sempre tive orgulho de ter mantido a cabeça erguida. Foi em uma dessas casas de família onde trabalhei como doméstica que conheci Danilo. A casa era de uma família rica, muito séria, que prezava por trabalho bem feito; eles respeitavam os empregados e pagavam em dia, o que me fazia gostar de trabalhar lá.
Eu me esforçava para não apontar, mas não era só o trabalho que me mantinha motivada naquele lugar. Danilo era o jardineiro da casa, um homem que me chamou a atenção desde o primeiro dia. Ele era educado, sempre com um sorriso no rosto e tinha um jeito galante, ardor que me fez perder o chão.
Era impossível não se apaixonar por ele. Nós começamos a conversar mais durante as horas de intervalo; aos poucos, fomos nos aproximando até que o inevitável aconteceu. Estávamos na.
. . Danilo era carismático e parecia genuíno, e eu me deixei levar pela ilusão de que ele sentia o mesmo por mim.
“Você tem um jeito diferente, sabia? ” — ele disse um dia, com aquele sorriso que me deixava sem graça. “Diferente?
” — como perguntei, tentando esconder o quanto aquelas palavras me afetavam. “Sei lá, você é especial, Julieta. Não conheci ninguém assim.
” E eu, boba que era, acreditava em cada palavra que saía da boca dele. Na minha cabeça, estava vivendo uma história de amor digna dos romances que via nos filmes. Nós decidimos não contar sobre o namoro aos patrões; a gente sabia que, se descobrissem, poderiam não gostar da ideia de dois funcionários se envolvendo.
Danilo sempre foi discreto e eu também fazia o possível para manter tudo em segredo. Trabalhávamos bem juntos: ele no jardim e eu dentro da casa. Tudo parecia estar indo perfeitamente bem, mas às vezes a perfeição é apenas uma fachada.
Um dia, eu estava exausta, não me sentia muito bem e a carga de trabalho estava maior que o normal. Os patrões haviam viajado e a casa precisava de uma boa faxina. Danilo, percebendo meu cansaço, ofereceu ajuda.
“Deixa que eu faço isso por você hoje, amor,” — você acabada, ele disse, pegando as chaves de alguns dos quartos. “Não precisa, Danilo, eu consigo,” — tentei recusar, mas minha voz não tinha muita firmeza; estava realmente esgotada. “Vai descansar um pouco, Julieta, eu cuido do resto.
Pode confiar. ” Eu nunca duvidei de Danilo; a confiança que eu tinha nele era cega e, naquele momento, o cansaço falou mais alto. Acabei cedendo e fui me deitar por um tempo.
Quando acordei, algo estava errado. Danilo não estava em lugar nenhum. A princípio, não pensei muito sobre isso; achei que ele tinha terminado o trabalho e ido embora, mas havia algo estranho na forma como a casa parecia silenciosa demais.
Chamei por ele, mas não obtive resposta. Andei pela casa, fui até o jardim, nada. Danilo simplesmente tinha sumido.
Meu coração começou a acelerar, mas eu tentei manter a calma. Talvez ele tivesse que sair rapidamente por algum motivo, ou talvez fosse apenas coisa da minha cabeça, mas algo dentro de mim já sabia que havia algo errado. No final do dia, quando os patrões voltaram de viagem, o pior aconteceu.
A senhora da casa, Dona Beatriz, me chamou com uma expressão severa no rosto. “Julieta, preciso falar com você,” — ela disse, com uma voz fria. Meu estômago revirou.
Fui até ela, tentando manter a calma. “Sim, Dona Beatriz? ” “Algumas joias sumiram, joias de família.
Você sabe de algo sobre isso? ” Naquele momento, tudo desabou. O choque tomou conta de mim.
Eu imediatamente pensei em Danilo, no fato de que ele havia desaparecido e nas chaves que eu havia dado a ele. Meu corpo tremeu. “Eu.
. . eu não sei o que dizer,” — eu nunca gaguejei sem conseguir formar uma frase completa.
As palavras dela eram duras e cheias de desconfiança. “Você foi a última a entrar nos quartos, Julieta. Isso nunca aconteceu antes.
Tenho que acreditar que você não tenha nada a ver com isso, mas preciso que me diga se viu ou notou algo estranho. ” Eu queria gritar que não tinha feito nada, que Danilo tinha me enganado, mas a vergonha era maior do que eu podia suportar. Fui usada; ele tinha roubado as joias e desaparecido.
E eu, que me apaixonei por ele, que confiei cegamente, estava agora no meio desse pesadelo. Não consegui conter as lágrimas. “Foi o Danilo,” — sussurrei, quase sem acreditar nas palavras que saíam da minha boca.
Dona Beatriz franziu o senho. “O jardineiro? ” “Sim, eu confiei nele.
Dei a ele as chaves e ele. . .
ele me enganou. ” O mundo ao meu redor parecia desmoronar enquanto eu falava. Meus patrões averiguaram o que eu disse.
Eles tentaram entrar em contato com Danilo, mas ele havia desaparecido. Foi como se ele tivesse evaporado da face da Terra. A polícia foi chamada e eu tive que dar meu depoimento.
Fui sincera sobre tudo, desde o nosso relacionamento até o que aconteceu naquele dia. Fiquei grata por meus patrões não me denunciarem à polícia por, de certa forma, ter facilitado o roubo; eles sabiam que eu era inocente, que fui manipulada, mas mesmo assim fui demitida. Não podiam correr o risco de manter alguém ligado a um escândalo dentro de casa e, no fundo, eu até compreendia.
Voltei para casa desolada; as ruas pareciam mais cinzentas, o ar mais pesado. Cada passo que eu dava de volta ao meu lar me parecia um peso que eu carregava nas costas. Como é que eu deixei isso acontecer?
Fui tão cega. Quando cheguei, minha mãe estava na cozinha, como sempre, cozinhando com um cuidado que só ela tinha. "Mãe, preciso te contar uma coisa", comeceí, a voz trêmula.
Ela me olhou de imediato, com aqueles olhos que sabiam que algo estava errado, mesmo antes de eu dizer qualquer coisa. "O que aconteceu, filha? " ela perguntou, enxugando as mãos no avental e se aproximando.
Contei tudo do início ao fim: Danilo, o roubo, a demissão. . .
Tudo. Enquanto eu falava, as lágrimas escorriam sem controle. Minha mãe, com a paciência e a força de sempre, me abraçou.
"Vai ficar tudo bem, Julieta. Eu seguro as pontas por enquanto", ela disse, a voz firme, tentando me dar o conforto que eu precisava. Mas eu sabia que ela não poderia carregar esse peso sozinha por muito tempo.
Minha mãe já não era mais nova e seu corpo sentia o desgaste dos anos de trabalho duro. Ela estava fazendo mais do que o corpo aguentava, e eu não podia de jeito nenhum deixar tudo em suas costas. "Mãe, você não pode fazer isso sozinha.
Eu vou conseguir outro emprego logo. " Ela sorriu de leve, mas seus olhos mostravam cansaço. "Eu já passei por tantas coisas, filha.
Vamos passar por mais essa, não se preocupe. " Ainda assim, eu me preocupava e muito. Nos dias seguintes, comecei a procurar emprego desesperadamente.
Mandava meu currículo para todo canto, batia de porta em porta, mas nada parecia acontecer. Não que não houvesse empregos; havia. O que por algaz parecia cada vez mais fraco.
Eu me via enjoada. Tonteira parecia me engolir. Esses malestares começaram a me preocupar de verdade.
No fundo, eu sabia o que poderia estar acontecendo, mas não queria acreditar. Cada vez que pensava na possibilidade, meu coração acelerava de medo. Tentei ignorar até que os sintomas ficaram insuportáveis e precisei enfrentar a verdade.
Um dia, ao voltar de uma tentativa frustrada de conseguir emprego, sentei-me à mesa com minha mãe. "Mãe, eu preciso falar uma coisa", disse, baixando o olhar. "O que foi, filha?
Você está pálida. " Respirei fundo, tentando reunir a coragem para dizer em voz alta o que eu temia. "Acho que estou grávida do Danilo.
" O silêncio que se seguiu parecia pesar mais do que eu podia suportar. Minha mãe ficou estática por um momento, gerindo a informação. Então, ela segurou minha mão firme como sempre.
"Vamos dar um jeito, Julieta. Não importa o que aconteça; vamos dar um jeito. " Eu chorei muito, chorei pelo medo, pela incerteza e pelo desespero de não saber como cuidar de uma criança — ou melhor, de um bebê que seria meu — sem ter nada em mãos.
Minha mãe tentou me consolar, mas eu sabia que o futuro seria difícil, muito difícil. Ter um filho sem pai, sem emprego, era pedir para passar necessidade. Os meses foram passando e eu seguia sem conseguir emprego fixo.
Enquanto isso, meu corpo mudava e eu não podia ignorar mais a realidade da gravidez. Não tínhamos dinheiro para exames e o sistema de saúde estava sobrecarregado; as filas eram intermináveis. Então, eu simplesmente não fazia pré-natal.
Tinha medo, claro, mas não havia escolha. Eu só rezava para que tudo desse certo. Então, um dia, tive notícias do Danilo.
Um antigo colega de trabalho me disse que ele havia sido preso tentando vender as joias roubadas. Aquela notícia foi como um soco no estômago, mas ao mesmo tempo, era um alívio: ele não podia mais me fazer mal. Danilo, o pai do bebê que eu carregava, estava fora da minha vida para sempre, e eu sabia que não queria ter mais contato com ele.
Nunca mais. O tempo passou e, quando chegou o momento do parto, fui pega de surpresa. Não sabia o que esperar, afinal nunca fizeram ultrassom ou algo do tipo.
Estava sozinha na hora, apenas com minha mãe, que fez o que pôde para me ajudar. Quando finalmente dei à luz, não tive um, mas dois bebês gêmeos: um menino e uma menina. Olhei para eles, ainda ofegante de tanto esforço, e o amor que senti naquele momento me arrebatou de uma forma que nunca pensei ser possível.
"Lucas, Isadora", sussurrei em meio às lágrimas de alegria e dor. Minha mãe sorriu, cansada, mas feliz. "São lindos, filha.
" Naquele instante, eu soube: tudo fez sentido. O que eu senti era algo que talvez só uma mãe consiga entender. Minha vida, a partir daquele momento, não era mais minha; era deles.
Eu faria de tudo, qualquer coisa, para que Lucas e Isadora fossem felizes. Aqueles dois pequenos seres frágeis, indefesos, agora eram o meu mundo. Os dias que se seguiram não foram fáceis.
Entre os cuidados com os bebês, eu e minha mãe fazíamos um verdadeiro malabarismo para garantir que nada faltasse. Revivíamos as noites mal dormidas, as fraldas, as mamadeiras. .
. Eu tentava trabalhar sempre que podia, mas era difícil. Mesmo assim, nunca deixei faltar nada para eles.
Anos passaram e meus filhos eram crianças lindas e saudáveis. Isadora sempre foi muito comunicativa, cheia de energia e curiosidade. Já Lucas era mais calado, um pouco mais introspectivo, mas ele tinha um problema na fala, que logo percebemos ser resultado de uma má formação na boca.
Isso me preocupava bastante, mas ainda não tínhamos recursos para resolver a questão. Lucas era. .
. Um menino forte. Eu sabia que ele superaria isso de alguma forma, mas era algo que sempre estava na minha mente.
Eu estava trabalhando em uma grande lavoura; o trabalho era simples, mas o pagamento era bom. Passava algum tipo de produto químico nas plantas. O serviço era pesado às vezes, mas eu estava grata por ter uma fonte de renda estável; era o que nos mantinha de pé.
Tudo parecia estar indo bem até o dia em que tudo desmoronou. Certo dia, pessoas do governo chegaram na lavoura. Eram muitos, com carros oficiais, e estavam visivelmente nervosos.
Apreenderam equipamentos, fecharam a produção e até destruíram as plantas que cuidávamos com tanto esforço. Fiquei chocada; eu nunca imaginaria que algo assim poderia acontecer. Para minha surpresa, o produto que usávamos era ilegal e, pior, perigoso para a saúde.
Nunca imaginei que estava me colocando em risco e colocando outros também. Naquele dia, mais uma vez fiquei desempregada. Voltei para casa desolada; já era a segunda vez que me encontrava sem trabalho, por razões que estavam fora do meu controle.
Sentei-me à mesa com minha mãe e suspirei: “De novo, mãe, o que eu vou fazer? Não posso ficar sem emprego, você sabe disso. ” Ela segurou minha mão e sorriu daquele jeito acolhedor que só ela tinha: “Você sempre dá um jeito, filha, eu confio em você.
” Por mais que ela quisesse me confortar, o desespero era inevitável. Eu precisava continuar lutando, não só por mim, mas pelos meus filhos. Comecei a procurar trabalho novamente e, felizmente, logo encontrei um emprego como doméstica.
Dessa vez, fui contratada para cuidar de um homem chamado Samuel. Fiquei surpresa ao descobrir que ele não era tão mais velho que eu; estava acamado devido a um AVC que teve ainda muito jovem e precisava de ajuda para praticamente todas as tarefas diárias. Sua filha única, que me contratou, mal aparecia por lá; sempre estava viajando e eu sentia que ela não se importava muito com ele.
Samuel, por outro lado, era educado e cordial, mas havia algo em seu olhar que me incomodava profundamente, uma tristeza profunda, quase resignada. Nos primeiros dias, ele passava a maior parte do tempo olhando para o teto em silêncio; era como se o mundo ao seu redor tivesse perdido toda a cor. “Samuel, quer que eu abra as janelas?
O dia está bonito lá fora,” perguntei um dia, tentando trazer um pouco de vida para aquele quarto sombrio. Ele olhou para mim e sorriu de leve, mas negou com a cabeça. “Não faz diferença; o que está lá fora não me interessa mais.
” Aquela resposta me apertou o peito. Eu não podia imaginar o que era estar preso a uma cama, vendo a vida passar sem poder fazer muito. Eu tentava conversar com ele sempre que podia, enquanto limpava o quarto ou lhe servia as refeições.
Aos poucos, ele começou a se abrir comigo: “Já fui um homem muito ocupado, sabe? Trabalhei o dia inteiro; mal vi a minha filha. Minha esposa sempre me dizia para dar mais atenção à família, mas eu achava que estava fazendo o certo ao garantir o sustento de todos.
No fim, minha ausência pesou mais que o dinheiro; agora aqui estou, colhendo o que plantei. Minha filha mal vem me ver, mas não a culpo; fui ausente também. ” Eu escutava com atenção, sentindo o peso de suas palavras.
Samuel era um homem marcado pelo arrependimento; sua vida tinha sido dedicada ao trabalho e agora ele vivia com as consequências de suas escolhas. Ele me perguntou sobre a minha vida também e, aos poucos, comecei a compartilhar um pouco da minha história com ele. “Tenho dois filhos, Lucas e Isadora.
Eles são tudo para mim. Lucas tem um probleminha de fala, mas estamos tentando resolver. São crianças boas, obedientes.
” Samuel ouviu atentamente; pela primeira vez, vi um brilho diferente em seus olhos. “Você deveria trazê-los aqui um dia, Julieta. Tem uma piscina lá fora; eles podem se divertir um pouco.
Eu adoraria conhecê-los. ” Fiquei surpresa com o convite, mas aceitei de bom grado. Dias depois levei Lucas e Isadora para conhecerem Samuel e aproveitarem um dia diferente.
A piscina era enorme, algo que meus filhos nunca tinham visto; eles ficaram maravilhados e, assim que eu permiti, pularam na água e começaram a brincar, rindo e se divertindo como se não houvesse amanhã. Samuel os observava da janela, um sorriso leve nos lábios. “São crianças muito educadas, Julieta; você fez um bom trabalho.
” Eu sorri, sentindo um orgulho silencioso ao ver meus filhos felizes, mesmo diante de todas as dificuldades que enfrentávamos. “Obrigada, Samuel, eles são minha vida. ” Enquanto as crianças brincavam, Samuel e eu conversávamos mais.
Ele me contou mais sobre sua falecida esposa, sobre como ela era o pilar da casa e como ele nunca soube valorizar o tempo que tinha com ela. Falou também sobre sua filha, sempre com uma tristeza no olhar, mas sem ressentimento: “Não dá para voltar atrás, não é? Mas pelo menos eu posso dizer que reconheço meus erros.
” Levei Lucas e Isadora para a casa de Samuel mais algumas vezes. Ele adorava a companhia deles e isso parecia iluminar seus dias. Aos poucos, a relação entre nós foi se tornando mais forte; Samuel passou a fazer parte das nossas vidas e, de certa forma, nós também passamos a fazer parte da vida dele.
As crianças se tornaram tão próximas de Samuel que começaram a chamá-lo de “tio”. Era bonito de ver como ele, antes tão fechado e triste, se afeiçoou a Lucas e Isadora. O brilho nos olhos dele quando eles corriam pela casa era algo que eu jamais esperaria; parecia que a vida voltava a pulsar naquele lugar sempre que eles apareciam.
Certo dia, enquanto eu arrumava o quarto de Samuel, ele me chamou: “Julieta, venha cá,” ele disse com um tom de voz um pouco mais sério que o habitual. Eu me aproximei da cama, já imaginando que seria algo importante. Minhas surpresas: ele estendeu a mão com um cartão de crédito.
— Samuel? O que é isso? — perguntei, confusa, sem entender o que ele queria.
— É o meu cartão de crédito. Quero que você use para pagar a cirurgia de Lucas. Senti minhas pernas tremerem e precisei me segurar na cadeira ao lado.
Eu jamais imaginei que ele fosse oferecer algo assim. Aquilo exigia uma confiança que eu nunca pensei que alguém poderia depositar em mim, ainda mais sendo um patrão. — Samuel, eu não posso aceitar isso, é muito dinheiro e eu nunca conseguiria retribuir.
Ele me interrompeu com um gesto tranquilo, seu olhar sério, mas ao mesmo tempo cheio de ternura. — Julieta, você e seus filhos trouxeram alegria para esta casa. Eu fico triste quando eles vão embora.
Quero retribuir de alguma forma, e Lucas precisa dessa cirurgia. Não é um favor, é uma forma de agradecer. Fiquei ali, sem palavras.
Era um ato de generosidade que eu jamais poderia imaginar. Olhei para o cartão por alguns segundos antes de finalmente aceitar, mesmo com o coração apertado. — Eu prometo, Samuel.
Eu não vou quebrar sua confiança. Usarei apenas o necessário para a cirurgia de Lucas. E assim fiz.
Usei o cartão exatamente para cobrir os custos médicos, sem exageros. Quando tudo foi resolvido, devolvi o cartão para Samuel, e ele sorriu como se aquilo fosse apenas uma gentileza comum, algo que qualquer um faria. Lucas fez a cirurgia e logo ele já estava falando normalmente.
Foi um alívio enorme, algo que mudou completamente nossa vida. Ver meu filho finalmente conseguindo se comunicar sem dificuldades me encheu de gratidão. Mas eu ainda sentia que nunca poderia agradecer Samuel o suficiente.
Comecei a levar Lucas e Isadora com mais frequência para visitar Samuel. Eles passavam horas conversando com ele enquanto eu trabalhava. Ele ficava em sua cadeira de rodas, rindo das histórias das crianças, e minha mãe também começou a ir para lá, ajudando a cuidar dos pequenos enquanto eu me dedicava às tarefas da casa.
Certo dia, enquanto eu limpava a cozinha, a cozinheira, que já trabalhava há muitos anos na casa, começou a puxar conversa comigo. Ela era uma mulher mais velha, sempre muito reservada, mas naquele dia parecia disposta a compartilhar algo importante. — Sabe, Julieta, Samuel nunca fez nenhum tratamento ou fisioterapia desde o AVC — ela disse, enquanto cortava alguns legumes.
Fiquei surpresa com a revelação. Sempre pensei que ele estivesse fazendo o que fosse possível para melhorar, mas a cozinheira continuou: — Ele era muito carrancudo, nunca acreditava que poderia melhorar e, sinceramente, nem queria tentar. Ficava sempre naquela cama, olhando para o teto, achando que sua vida tinha acabado.
Mas eu percebi que ele mudou depois que você e as crianças chegaram. Essas palavras ficaram martelando na minha cabeça o resto do dia. Samuel parecia, de fato, uma pessoa diferente desde que Lucas e Isadora começaram a frequentar a casa.
A tristeza ainda estava lá, mas ele parecia ter redescoberto o motivo para sorrir. Foi então que uma ideia começou a se formar na minha mente. A melhor forma de retribuir a ajuda que ele deu para o meu filho seria insistir para que ele tentasse recuperar seus movimentos.
Samuel era um homem jovem ainda, e eu sabia que com esforço ele poderia voltar a andar. No início, ele rejeitou a ideia completamente. — Julieta, não adianta.
Meu corpo não responde mais. Fisioterapia não vai me trazer de volta — ele dizia sempre que eu tocava no assunto. Mas eu não desisti.
Sabia que ele tinha uma chance e que talvez ele só precisasse de um empurrãozinho. — Samuel, eu sei que é difícil, mas você tem tanto ainda pela frente. Olha como você gosta de conversar com as crianças!
E se pudesse brincar com elas no jardim? — eu tentava argumentar. Ele me olhava com uma expressão de cansaço, mas algo em seus olhos parecia considerar a ideia, mesmo que por um breve momento.
Continuei insistindo, sabendo que ele poderia até me demitir por estar ultrapassando os limites, mas estava disposta a correr o risco, fazia isso pelo bem dele. Até que um dia, para minha surpresa, ele finalmente cedeu. — Tá bom, Julieta, você venceu.
Vamos tentar a tal fisioterapia. E assim começou o longo e doloroso processo. Samuel fazia sessões de fisioterapia em casa e eu sempre levava as crianças.
Nesses dias, elas distraíam Samuel da dor, contavam histórias, brincavam ao redor da cadeira de rodas, e ele parecia se esquecer, por alguns momentos, do quão difícil era o esforço de cada movimento. Meses se passaram e, um dia, ao chegar para o trabalho, encontrei Samuel caminhando pela casa com a ajuda de uma bengala. Ele estava sorrindo feito uma criança, como se tivesse redescoberto o prazer de viver.
— Olha só, Julieta, eu consegui! — ele exclamou, com uma alegria que há muito tempo eu não via. Fiquei parada olhando aquela cena, com os olhos marejados.
Todo o esforço, toda a insistência, tudo tinha valido a pena. Samuel estava de pé, andando e, mais do que isso, estava feliz. Conforme o tempo passava, Samuel evoluiu ainda mais.
A fisioterapia o transformou de um homem que mal conseguia se mover para alguém totalmente independente. Chegou a um ponto em que nem a bengala ele precisava mais. Ele parecia outra pessoa, revitalizado, com a energia para viver de novo.
E, mais do que isso, ele estava mais feliz. Samuel agora conseguia brincar com as crianças, algo que ele nunca imaginou ser possível. De novo, ele jogava videogame, futebol com Lucas, rindo como se fosse uma criança também.
Muitas vezes, sentava-se no quintal com Isadora e a ajudava a andar de bicicleta, incentivando-a a se equilibrar. Ver a alegria no rosto das crianças ao interagir com Samuel me trazia uma paz imensa, parecia que a vida finalmente havia nos dado uma trégua. Mas, por mais que tudo parecesse estar indo bem ao meu redor, eu comecei a sentir um cansaço inexplicável.
Era um cansaço diferente, que durava semanas e não passava. Não importava. O quanto eu descansasse no início, tentei ignorar, acreditando que era apenas o estresse acumulado de tantos anos de trabalho e responsabilidades, mas, aos poucos, ficou claro que havia algo errado.
Decidi ir ao médico, mas não contei a ninguém; achei que seria algo simples, talvez uma anemia ou algo que pudesse ser resolvido rapidamente. No entanto, o diagnóstico foi muito pior do que eu poderia imaginar. O médico me olhou com um olhar sério, daqueles que a gente sabe que vem acompanhado de más notícias: "Você está com câncer nos pulmões, Julieta", ele disse, enquanto eu tentava processar as palavras.
O mundo pareceu parar por um momento; tudo ao meu redor ficou em silêncio. O médico continuou explicando que a doença provavelmente estava relacionada aos anos em que trabalhei na lavoura, usando produtos químicos que agora descobri serem ilegais e prejudiciais à saúde. Voltei para casa com o coração pesado.
Guardei esse segredo por alguns dias, tentando encontrar a força para contar a minha mãe. Quando finalmente falei, ela chorou como eu nunca tinha visto antes. Nós sempre fomos fortes juntas, mas aquela notícia parecia um golpe que não conseguíamos suportar.
"Filha, você vai ficar bem. Nós vamos superar isso juntas", ela disse, secando as lágrimas, mas a tristeza no olhar dela era evidente. Contei também a Samuel.
Ele ficou abalado, mas, como sempre, me ofereceu seu total apoio. Ele foi a pessoa mais forte naquele momento, segurando minha mão e me dizendo que não me deixaria sozinha nessa batalha. Além disso, me ajudou a entrar na justiça contra a empresa onde trabalhei, acreditando que eles tinham que ser responsabilizados pelo que fizeram.
Assim como fez com Lucas, Samuel pagou por todo o meu tratamento. Eu não sabia como agradecer por tanta generosidade, mas ele sempre dizia que fazia isso por amor à nossa família, porque, de certa forma, nos tornamos uma família. Por mais que eu tentasse esconder a situação dos meus filhos, eles acabaram percebendo.
Lucas e Isadora, embora fossem crianças, notaram minha fraqueza, as idas frequentes ao médico e a forma como meu corpo foi ficando mais frágil. Samuel, vendo quanto a situação em casa estava difícil, com apenas minha mãe e meus filhos, fez uma proposta que, de início, me deixou hesitante: "Julieta, por que você e as crianças não vêm morar comigo? Aqui você terá melhores condições e eu poderei cuidar de você com mais facilidade", ele sugeriu, com a voz calma e cheia de carinho.
No começo, recusei; não queria ser um peso, nem invadir mais do que já havia invadido a vida dele. Mas, conforme o tempo passava, percebi que estava cada vez mais difícil para minha mãe e para mim manter as coisas funcionando sozinhas. Acabei aceitando; não era o que eu queria, mas era o que eu precisava.
Assim, nos mudamos para a casa de Samuel. Aquilo mudou nossas vidas. A presença constante dele e o apoio que ele nos deu fizeram toda a diferença.
Os anos passaram e, durante esse tempo, Lucas e Isadora começaram a chamar Samuel de pai. A primeira vez que Lucas o chamou assim, lembro-me de ver Samuel chorar; ele ficou emocionado como nunca antes. "Pai", ele perguntou, com os olhos cheios de lágrimas.
"Sim, você é o nosso pai", respondeu Lucas, sorrindo. Foi um momento tão puro e sincero que eu soube que estávamos onde deveríamos estar. Pouco tempo depois, Samuel me fez uma proposta ainda mais incrível: ele queria registrar Lucas e Isadora como seus filhos.
Eu não hesitei em aceitar; sabia que ele os amava como se fossem seus, e, para ser sincera, eu não sabia quanto tempo mais teria com eles. Minha mãe também se tornou uma figura importante na vida de Samuel; eles desenvolveram uma relação especial, como se fossem mãe e filho. Por mais que tudo isso parecesse improvável, estávamos felizes, e isso era o que mais importava.
C anos se passaram. Eu sabia que minha saúde não estava melhorando, mas, por outro lado, via meus filhos crescendo fortes e felizes, com Samuel ao lado deles. Não tínhamos um relacionamento amoroso, mas o que havia entre nós era um tipo de amor ainda mais puro, um amor baseado no respeito, no carinho e na gratidão.
Agora, as coisas tinham se invertido; antes, eu ajudava Samuel a se alimentar, dando sopa em sua boca quando ele não conseguia usar as mãos. Agora, era ele que fazia isso por mim; eu estava fraca demais para segurar a colher, e ele, com paciência e cuidado, fazia questão de me alimentar com o mesmo carinho que eu havia demonstrado por ele. "Você é forte, Julieta, mais do que imagina", ele me dizia enquanto me alimentava, o olhar cheio de ternura.
Samuel era um homem de bom coração, e por mais que eu quisesse ter conhecido ele antes, sabia que tudo aconteceu como deveria. Meu único arrependimento era não ter mais tempo. Mas, ao olhar para Lucas e Isadora, eu sabia que minha vida continuaria neles.
Enquanto dava meu último suspiro, sorri. Eu estava em paz, sabia que meus filhos estavam bem, que Samuel continuaria cuidando deles e que, de alguma forma, eu sempre estaria presente na vida deles. "Isso não é um adeus, é apenas um até logo".
Hoje faz um ano da morte de Julieta, dia em que ela foi mais da minha vida, mais triste até que o dia em que tive o AVC. A sensação de vazio foi algo que eu nunca imaginei sentir de forma tão profunda. Lucas e Isadora agora eram meus filhos, e eu faço de tudo para que sejam felizes.
Desde que me tornei oficialmente o pai deles, tenho dedicado minha vida a garantir o melhor para eles. Matriculei-os na melhor escola, propus tudo que estava ao meu alcance, mas, acima de tudo, sempre procurei ensinar valores, educação e o respeito que Julieta tanto prezava. A mãe de Julieta tem sido um grande suporte nessa jornada; ela é uma mulher forte, assim como a filha foi.
Juntos, formamos uma pequena família que se apoia mutuamente, e isso tem sido fundamental para superar o luto. O que mais me acalma é saber que Julieta partiu dormindo, sem dor, e, estranhamente, com um sorriso no rosto. Para uma mulher guerreira como ela, acho que partir dessa forma, em paz, era o mínimo que ela merecia, depois de tudo o que enfrentou.
Havia algo de reconfortante naquela última imagem dela, mesmo que o vazio que ela deixou continue grande. Antes de partir, Julieta deixou algo especial para nós: 10 cartas guardadas com sua mãe. Ela pediu que, a cada ano, no dia de sua partida, uma dessas cartas fosse entregue.
A ideia de receber essas palavras da Julieta, ano após ano, tem sido um alívio e uma forma de sentir que, de alguma maneira, ela ainda está conosco. Naquele primeiro ano, recebi minha carta e, ao abri-la, não consegui conter as lágrimas. "Caso esteja lendo essa carta, significa que não estou mais viva.
Mas não se preocupe, porque o final vai ser feliz. Eu tive dois grandes filhos que são meu amor eterno, e você Samuel, foi o Anjo mandado por Deus para cuidar deles. Mesmo que eu tenha partido, sei que eles estão bem porque estão com você.
Também quero que você seja feliz, Samuel. Você já amou uma vez e poderá amar de novo. Seja feliz, você merece.
" Eu estava chorando; as palavras de Julieta me atravessaram como um raio. Ela, mesmo em sua ausência, estava presente, guiando-nos, confortando. Quando olhei para Lucas e Isadora, eles também estavam em lágrimas.
As cartas deles tinham palavras da mãe, além de conselhos para o futuro sobre como serem pessoas boas, honestas e seguirem seus sonhos sem medo. Assim, ano após ano, no aniversário da morte de Julieta, a mãe dela nos entregava uma nova carta. Cada carta nos fazia sentir próximos dela novamente, como se ela estivesse presente, cuidando de nós à sua maneira.
Nos primeiros anos, era quase insuportável. Abrir aquelas cartas era um misto de alegria e tristeza, mas com o passar do tempo, começamos a aceitar, a perceber que aquelas palavras nos davam força para continuar. Lucas e Isadora cresceram; hoje, já são adultos.
Cada um seguiu seu caminho e se casou. Vê-los felizes, construindo suas próprias vidas, é a maior prova de que tudo o que fizemos deu certo. A mãe de Julieta agora está prestes a se tornar bisavó, algo que ela sempre quis.
Ela sempre disse que queria viver o suficiente para ver a família crescer, e agora, finalmente, esse momento está chegando. Eu também encontrei um novo amor. Julieta tinha razão na sua carta: eu poderia amar de novo, e com o tempo, isso aconteceu.
Foi difícil, no começo, deixar alguém entrar na minha vida, mas percebi que não era sobre substituir Julieta, mas sim sobre continuar a viver, como ela teria querido. Nossa nova família cresceu, e no último ano, nos reunimos todos em casa para abrir a décima e última carta de Julieta. Era um momento carregado de emoção, não apenas porque seria a última mensagem que ela nos deixou, mas porque sabíamos que, de alguma forma, era o encerramento de um ciclo que havia nos acompanhado por tanto tempo.
Quando abrimos a carta, tanto a minha quanto a de Isadora e Lucas diziam a mesma coisa: "Eu sempre vou amar vocês.