Montagem: o específico cinematográfico

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No sexto capítulo da nossa série sobre linguagem cinematográfica, trataremos da montagem, contextual...
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O cinema nem sempre foi considerado uma forma de arte. É preciso lembrar que a imagem em movimento não era tão inovadora assim. Outros aparelhos anteriores já eram capazes de emular o movimento, e os primeiros registros do cinematógrafo não apresentavam ainda uma grande inovação de linguagem.
Jean-Claude Carrière, aponta no livro A linguagem secreta do cinema, que “o cinema fez uso pródigo de tudo o que veio antes dele. Quando ganhou fala em 1930, requisitou o serviço de escritores; com o sucesso da cor, arregimentou pintores; recorreu a músicos e arquitetos. Cada um contribuiu com a sua visão, com a sua forma de expressão”.
Podemos pensar também em como toda a técnica de perspectiva utilizada no Renascimento foi apropriada pela fotografia e posteriormente reapropriada pelo Cinema em sua composição visual. Enquadramentos, utilização criativa do foco, técnicas de iluminação ou de criação de um roteiro, tudo isso foi construído por longos anos antes da chegada do cinematógrafo. Mas um aspecto de linguagem é exclusivo do cinema.
E foi apoiado nele que por anos teóricos e artistas defendiam que o cinema era sim uma expressão artística, não por reunir todas as formas de arte que vieram antes dele, mas por possuir algo que o tornava único. Por possuir a montagem. É graças a essa perspectiva que tivemos nos primeiros anos do cinema mais escritos sobre a montagem do que de outros aspectos de linguagem.
Mas o que é a montagem? A montagem nasce da junção de dois planos. Um plano é a unidade mínima de uma determinada ação.
Ao juntarmos vários planos, temos uma cena. Ao juntarmos várias cenas, temos uma sequência. Os primeiros filmes da história do cinema eram compostos por um único plano.
A câmera começava a filmar a ação, ela transcorria ao longo do tempo e finalizava com o corte do fim. Aos poucos, alguns filmes começaram utilizar mais de um plano, mas eles eram quase autônomos. Toda a ação acontecia dentro de um único plano, e na sequência um novo plano autônomo apresentava a ação seguinte.
Esses planos eram apenas justapostos. Porém, a partir de 1910, os cineastas perceberam que com a montagem seria possível explorar diferentes relações entre planos sucessivos, fossem elas formais ou semânticas. Para David Bordwell e Kristin Thompson, no livro A arte do cinema: uma introdução, a partir da montagem o cineasta poderia controlar as relações gráficas entre os planos, as relações rítmicas, as relações espaciais e as relações temporais.
As relações gráficas entre os planos podem ser uma deixa para que um corte mantenha uma correspondência gráfica entre as imagens ou apresente uma descontinuidade. Veja essa cena de Aliens. Após o plano de Ripley dormindo, o montador Ray Lovejoy insere uma transição suave para um plano da Terra.
A continuidade gráfica entre os dois planos é mantida tanto pela posição do rosto de Ripley e do planeta quanto por suas formas e cores que são semelhantes. E o efeito de fade, uma transição suave entre as duas imagens, reforça essa continuidade, ao permitir que vejamos, mesmo que por pouco tempo, a transformação de uma imagem na outra, uma breve coexistência desse rosto e desse planeta em quadro. Em tempos modernos Chaplin utiliza esse recurso logo na cena de abertura, ao cortar de um plano de um rebanho de ovelhas, para uma multidão de trabalhadores saindo do metrô.
Assim como em Aliens, a transição suave ajuda o espectador a estabelecer essa relação gráfica entre os planos. Assim como a câmera alta, que vê tanto as ovelhas quanto as pessoas de cima, o movimento nos dois planos, que acontece na mesma direção. Tudo está alinhado para que, com apenas um corte, Chaplin crie uma metáfora sobre como aqueles trabalhadores são tão domesticados e alienados quanto as ovelhas, que caminham em direção ao matadouro.
O cineasta pode também manipular a duração dos planos, aumentando ou diminuindo o número de cortes, escolhendo qual o ritmo adequado a sua narrativa. Mas não é apenas a duração dos planos que vai ditar o ritmo de um filme. O movimento de câmera, a ação na mise-en-scène, o som, tudo isso contribui para acharmos um filme mais acelerado ou mais lento.
Veja essas duas cenas que possuem a mesma duração: Fica bem claro que não é apenas o número de cortes que estabelece o ritmo das cenas. No caso de Nostalgia, é muito importante para Tarkovsky a apreciação do passar do tempo. A contemplação da imagem, seus mínimos movimentos.
Já para Michael Bay, seu interesse em uma cena de luta em Transformers é causar no espectador o impacto de seu ritmo acelerado. Não necessariamente devemos apreciar a composição visual de cada plano. As imagens estão a serviço do ritmo, e por isso tem movimentos rápidos e são a todo momento interrompidas pelo corte.
E quando o diretor acha relevante, ele dilata o tempo, criando uma tensão e possibilitando com a câmera lenta uma maior apreciação da composição visual. Quanto as relações espaciais, a montagem é capaz de unir planos de lugares completamente distintos, e ainda nos fazer crer que existe uma proximidade entre eles. Veja o plano e contra-plano desse diálogo.
Os personagens parecem estar conversando um com o outro, em um mesmo espaço, certo? Errado. Os dois personagens sequer fazem parte do mesmo filme.
Mas ao colocar um plano seguido do outro, a montagem cria essa relação, principalmente pelo posicionamento dos personagens em relação à câmera e à regra dos 180º, que falaremos em breve. O importante é saber que a linguagem está a serviço do cineasta. Maya Deren, por exemplo, explorava as relações espaciais que a montagem permitia estabelecer para criar espaços geograficamente impossíveis, em que o corpo do bailarino transita entre diferentes locações.
Ao completar um movimento de sua dança, ele é transportado pela montagem. E mesmo com a mudança brusca de espaço, a continuação de seu movimento permite que esse corte apresente uma relação gráfica de continuidade. O tempo também é manipulado no cinema.
Grande parte dos filmes são compostos por inúmeras elipses temporais, fazendo com que a duração de uma ação seja menor na tela do que seria na diegese, no universo interno do filme. Essas elipses podem ser aplicadas de formas criativas, como nessa cena de Um Lugar Chamado Notting Hill, em que o diretor Roger Michell concilia a cenografia a um plano-sequência para demonstrar a passagem do tempo. Além da mudança das estações, e consequentemente as alterações no cenário, na luz e na colorização, outros detalhes na mise-en-scène demonstram essa situação de mudança.
Seja pelo casal apaixonado que depois rompe o relacionamento, ou pela mulher grávida que aparece no início do plano e é a última personagem em quadro, já segurando seu bebê no colo. Mas o mais comum, são elipses realizadas no corte. Veja esse caso da viagem de Tom Hagen para Los Angeles, em O Poderoso Chefão.
Do plano do avião pousando, em apenas alguns segundos e poucos planos de transição, o montador já nos leva para Tom em seu destino. A elipse do corte omite todo o tempo de deslocamento do personagem, nos poupando de cenas pouco relevantes para o enredo. E a montagem também é capaz de fazer o oposto, expandindo o tempo da ação.
Veja como o curta-metragem A Escada, unindo as relações espaciais e temporais, constrói sua narrativa a partir da montagem. Sabemos já de início o tamanho e formato da escadaria que o personagem subirá. Quando o cineasta começa a repetir planos diversos do personagem subindo a escada, sem nunca chegar ao topo, instaura-se o aspecto surrealista do enredo, uma vez que o próprio personagem está refém da montagem, que o aprisiona naquele espaço e naquele tempo.
Esse é apenas um exemplo de como os elementos de linguagem não apenas estão a serviço do filme como eles próprios podem integrar o filme em sua narrativa e em seu enredo. Os recursos estão à disposição do cineasta, e cabe a ele escolher como vai articular cada um desses elementos.
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