Uma multidão se reunia na praça São Pedro, cheia de expectativa. Era o segundo dia do conclave na Capela Sistina que ia decidir quem seria o novo papa – o líder espiritual dos um bilhão e 300 milhões de católicos do mundo. Na quinta rodada de votações dos cardeais, finalmente saiu a fumaça branca pela qual todos aguardavam, e o famoso anúncio em latim: habemus papam.
Mas o escolhido estava fora das listas de apostas que rodavam pelo mundo, ou seja, estava longe de ser um favorito ao cargo: Jorge Mario Bergoglio, um argentino filho de imigrantes italianos, fazia história ao se tornar o primeiro papa latino-americano. Eu sou Camilla Veras Mota, da BBC News Brasil, e este é mais um capítulo da nossa série especial 21 notícias que marcaram o século 21. Hoje vou contar a história de um papa diferente de tudo o que o mundo havia visto até então e da mudança de tom que Francisco deu à Igreja Católica.
Parte dos críticos diz que as mudanças são insuficientes para uma instituição tão importante. Outra parte rejeita completamente a direção que a Igreja tomou com o novo papa. A gente vai falar de tudo isso, mas antes vamos ao fato inesperado que permitiu a chegada de Francisco ao posto que ocupa hoje: Era para ser um discurso comum do papa Bento 16 naquele 11 de fevereiro de 2013.
Mas, enquanto ouvia o papa falar em latim, a jornalista italiana Giovanna Chirri sentiu as pernas bambas. Ela, que entende latim, foi a primeira a compreender que Bento 16 estava renunciando ao papado, depois de oito anos no posto. A notícia pegou o mundo inteiro de surpresa.
A última vez em que isso tinha acontecido foi em 1415, seis séculos atrás, quando o então papa Gregório 12 abandonou o posto. Não que Bento 16 estivesse doente ou perto do final da vida. Enquanto gravamos este vídeo, Joseph Ratzinger, aos 95 anos e com o título de papa emérito, “está bem de espírito e claro que relativamente frágil fisicamente, mas lúcido”, nas palavras de seu secretário pessoal, o arcebispo Georg Ganswein.
O que talvez não fosse suficiente, já em 2013, para enfrentar o grau de disputas internas e escândalos envolvendo o Vaticano. Em maio de 2012, as autoridades do pequeno Estado haviam prendido o mordomo de Bento 16, Paolo Gabriele, acusado de vazar documentos no caso que ficou conhecido como Vatileaks. Gabriele, que ficou três meses preso, buscava denunciar supostos esquemas de corrupção, desvio de dinheiro e favorecimento indevido dentro da Cúria, e o episódio mostrou exemplo do tipo de problema que cercava o papa.
E nenhum problema foi – ou é – maior do que os escândalos de abusos sexuais praticados por padres católicos e acobertados, durante séculos, por figuras do alto escalão da igreja. Mas isso detalhamos logo mais. Por enquanto, vale lembrar, naquele início de 2013, as palavras do porta-voz do Vaticano, Federico Lombardi, ao justificar a renúncia de Bento 16: “A Igreja precisa de alguém com mais energia física e espiritual que pudesse superar problemas e desafios em um mundo moderno e em constante mudanças”.
É aí que entra em cena o papa Francisco. Bergoglio é o primeiro padre jesuíta a ocupar o trono de São Pedro e o primeiro não europeu no cargo desde o sírio Gregório Terceiro, no século 8º. O nome Francisco foi adotado – pela primeira vez por um papa, aliás – como homenagem a São Francisco de Assis, um santo associado ao compromisso com os mais pobres.
Esse nome era o primeiro indício de que começava uma nova era no Vaticano. Se a escolha de Bergoglio surpreendeu os apostadores em 2013, suas declarações, atitudes e a condução da Igreja no início do papado causaram espanto semelhante entre aqueles que imaginavam uma repetição do conservadorismo de Bento 16. Francisco logo se mostrou um papa mais sensível a temas modernos, mais próximo de causas sociais e disposto a tocar em questões polêmicas para a tradição e os costumes católicos.
Sua primeira viagem como papa foi para a ilha italiana de Lampedusa, que na época estava lidando com um crescente fluxo de migrantes vindos de partes do mundo atingidas por conflitos armados ou pobreza extrema, principalmente na África e Oriente Médio. Na ilha, ele disse: "Nós perdemos um sentido de responsabilidade fraterna", numa crítica ao que chamou de "indiferença" do mundo com migrantes e refugiados. O papa acrescentou que “esquecemos como chorar” pelo drama das pessoas que morrem tentando alcançar as praias europeias.
Alguns anos depois, no meio de mais uma crise migratória na Europa e de um crescente sentimento anti-imigração no continente, Francisco lavaria os pés de migrantes muçulmanos numa Terça-feira Santa. A defesa dos imigrantes e a crítica a muros entre países têm sido constantes ao longo de seu papado. De volta a 2013, o Brasil foi o destino da primeira viagem internacional de Francisco.
Rezou uma missa no santuário de Nossa Senhora Aparecida, no interior de São Paulo, e participou, no Rio de Janeiro, da Jornada Mundial da Juventude, evento da Igreja Católica para jovens do mundo todo, realizado pela primeira vez no país. Mais de 3 milhões de fiéis acamparam na praia de Copacabana para ver Francisco, e as cenas das multidões celebrando o papa rodaram o mundo. Foi a terceira visita de um papa ao Brasil, que já havia recebido João Paulo Segundo e Bento 16.
No voo de volta para Roma, o papa falou com jornalistas por mais de uma hora. Tocou num assunto delicado e polêmico que abordaria com relativa frequência nos anos seguintes: a relação da Igreja com os homossexuais. Sua fala sinalizou uma abertura inédita: disse que homossexuais deveriam ser integrados à sociedade, não deixados no ostracismo.
Abre aspas: "Se alguém é gay e busca o Senhor e tem boa vontade, quem sou eu para julgar? " Em junho de 2016, em nova entrevista coletiva dentro de seu avião, ele disse que homossexuais não deveriam ser discriminados, mas sim "respeitados e acompanhados pastoralmente". E mais: segundo ele, a Igreja deveria pedir desculpas àqueles que havia marginalizado.
Ele disse o seguinte: "Eu acho que a Igreja não só deveria pedir desculpas a uma pessoa gay que ela ofendeu, mas deve também pedir desculpas aos pobres, às mulheres que foram exploradas, às crianças que foram exploradas pelo trabalho. Deve pedir desculpas por ter abençoado tantos armamentos. " Mas isso não significa que Francisco tenha se tornado um ícone gay ou que tenha adotado uma postura totalmente progressista em relação ao tema, especialmente quando envolvia o interior da Igreja.
Em dezembro de 2018, o papa chamou a homossexualidade de "modismo" e de "uma questão muito séria" entre padres. E conclamou os representantes da Igreja a respeitarem o celibato. Mas, de modo geral, tem tido uma postura mais acolhedora à questão – o que culminou com uma declaração histórica, em outubro de 2020, sobre a união de homossexuais e a constituição de uma família com pessoas do mesmo sexo.
Abre aspas: "Pessoas homossexuais têm o direito de estar numa família. Eles são filhos de Deus e têm direito a uma família", disse ele num documentário. Mas… e na prática?
Alguns anos antes, em 2016, o papa já tinha divulgado um dos documentos mais importantes determinando os rumos da Igreja Católica – e instando a instituição a abraçar as realidades da vida moderna. No livro Amoris Laetitia, ou Alegria do Amor, o papa pedia aos padres do mundo inteiro que aceitassem gays e lésbicas, divorciados católicos e outras pessoas em situação não tradicionalmente reconhecidas pela Santa Sé. O acolhimento se estendeu também a pessoas que voltaram a se casar.
A eles, o papa disse que não só não deveriam se sentir excomungados, “como que também podem viver e evoluir como membros ativos da Igreja”. Francisco disse no documento que a igreja não deve continuar a fazer julgamentos e “atirar pedras” contra aqueles que não conseguem viver de acordo com ideais de casamento e vida familiar do Evangelho. E pediu que padres tivessem uma visão mais ampla e mais misericórdia na hora de decidir quem receberia o sacramento da Igreja.
Mas apesar de todas as sinalizações anteriores, não houve uma reforma radical no que diz respeito à homossexualidade na visão da Igreja: o mesmo documento reiterou a doutrina tradicional diante do casamento como algo entre um homem e uma mulher. Esse homossexual católico disse na época à BBC que esperava mais de Francisco. Enquanto isso, outras crises batiam à porta.
Acusações e suspeitas de abuso sexual por padres e bispos católicos contra crianças continuaram a se avolumar. Da Austrália ao Brasil, passando por Estados Unidos, Argentina e toda a Europa, foram centenas de milhares de denúncias ao longo de décadas. E essas denúncias começavam a ter desdobramentos legais e sociais.
Na França, um inquérito concluído em outubro de 2021 apontou que mais de 216 mil crianças foram abusadas por mais de 3 mil clérigos no país desde os anos 1950. Em Nova Jersey, nos Estados Unidos, a Igreja concordou em pagar 87 milhões de dólares em indenizações para vítimas de abusos. Na Alemanha, um relatório publicado por juristas no início deste ano acusou o papa emérito Bento 16 de ter mantido em seus postos padres acusados de molestar crianças.
Isso no período em que Joseph Ratzinger ainda era arcebispo de Munique, entre 1977 e 1982. Bento 16 negou ter conhecimento dos casos, embora uma minuta apresentada pelo relatório mostre que ele estava em uma reunião em que o assunto foi discutido. Sob Francisco, ainda em 2013, foi anunciada a abertura de um comitê para combater os abusos sexuais envolvendo integrantes da Igreja.
Em 2014, o pontífice se encontrou com um grupo de defesa dos direitos das crianças e fez sua primeira declaração contundente sobre o tema, pedindo perdão em nome da Igreja. Em fevereiro de 2019, Francisco convocou bispos do mundo todo para uma conferência sobre abuso sexual em Roma. Falando ao final do encontro, chamou clérigos que cometem abusos de "ferramentas de Satã" e prometeu sempre lidar com qualquer caso futuro com "a maior seriedade".
Em dezembro daquele ano, o papa vetou que casos de abusos pudessem ser acobertados pelo chamado "segredo pontifício" – uma proteção dada à Igreja para tratar de temas considerados sensíveis. Já em fevereiro de 2020, Francisco determinou a formação de uma força-tarefa no Vaticano para apoiar o combate ao abuso sexual infantil. O Vaticano iniciou, em outubro daquele ano, um processo inédito: o julgamento de dois padres acusados de envolvimento com abuso infantil.
Gabriele Martinelli, de 28 anos, foi acusado de abusar de um menino entre 2007 e 2012, e Enrico Radice era acusado de encobrir o crime. Mas muitas vítimas ainda se dizem céticas quanto ao efeito prático de tudo isso, e que muitos casos ainda seguem sem punição. Em fevereiro de 2022, a BBC publicou uma reportagem contando a história de um jovem que disse ter sido “escravo sexual” do padre de sua paróquia, na Itália, durante 16 anos.
Embora o padre tenha admitido parcialmente os abusos e concordado em indenizar o garoto, nunca foi julgado. A Itália é um dos países que nunca realizaram investigações independentes sobre escândalos do tipo. E na política, qual tem sido o papel do papa?
Em suas declarações públicas, em geral Francisco adotou posições em favor dos mais pobres ou vítimas de injustiças. E também se meteu em polêmicas. A mais recente delas foi uma entrevista ao jornal italiano Corriere della Sera, quando condenou a brutalidade da guerra da Ucrânia, mas afirmou que a presença da Otan “latindo” às portas da Rússia acabou “facilitando” a invasão russa.
Durante uma visita à Bolívia em 2015, o papa fez duros ataques ao capitalismo. Declarações como essas, além de sua postura ativa em defesa de migrantes e refugiados e sua preocupação com o meio ambiente, fizeram de Francisco alvo de militantes conservadores. Inclusive no Brasil, uma das principais nações católicas do mundo.
Depois da chegada de Jair Bolsonaro à Presidência, em janeiro de 2019, o Palácio do Planalto passou a ver o papa como um adversário do governo, por considerar que a Igreja Católica tinha conexões históricas com o PT. O principal motivo de discórdia foi o Sínodo da Amazônia, evento convocado por Francisco para o final daquele ano, no Vaticano, para debater o trabalho da Igreja na região – na época afetada por uma grande onda de queimadas. Em outubro, na abertura do Sínodo, o tom dado pelo papa foi de defesa dos povos indígenas, com críticas ao que chamou de "ideologias" que pautam uma mentalidade colonizadora.
Dias depois, um evento conservador em São Paulo, o CPAC Brasil – um braço da americana Conferência Conservadora de Ação Política –, teve ataques ao Vaticano por parte de Dom Bertrand de Orleans e Bragança, descendente da família imperial brasileira. Tensões semelhantes ocorreram nos Estados Unidos, tanto com o governo quanto com a comunidade conservadora apoiadora do agora ex-presidente Donald Trump. Durante a campanha presidencial americana de 2016, Francisco criticou a proposta de Trump de construção de um muro na fronteira com o México.
Trump respondeu: Outras farpas foram trocadas entre os dois líderes ao longo dos anos, com Francisco criticando a política americana de separar crianças de seus pais imigrantes. As divergências não impediram, porém, que em 2017 o papa recebesse Trump e sua esposa, Melania, no Vaticano, em visita oficial. Francisco tirou a Igreja Católica do campo mais conservador em que se encontrava com Bento 16 e a colocou num rumo mais progressista e próximo de causas sociais.
Tal caminho foi bem recebido por uma parte da comunidade católica mundo afora, mas tanto no Vaticano como fora dele há muitos que discordam. Conservadores criticam as posições de Francisco no que diz respeito à imigração, por exemplo. Mas sobretudo acusam o papa de diluir sua fé, principalmente nas brechas abertas por Francisco em temas tradicionais – como a permissão para que católicos divorciados recebessem a comunhão.
Francisco já acusou seus opositores de tentarem “apunhalá-lo pelas costas”, dizendo que existem pessoas que não querem fazer o bem, mas sim ver a Igreja Católica “rachar”. Essas disputas provavelmente continuarão por muito tempo, inclusive quando chegar ao fim a era de Francisco no trono de São Pedro. O papa argentino, porém, já deixou sua marca.
Após sua passagem pelo comando da Santa Sé, talvez a Igreja nunca mais seja a mesma. Por hoje eu fico por aqui, e você pode acompanhar todos os vídeos da série 21 notícias que marcaram o século 21 na playlist do nosso canal de YouTube. Obrigada, e até a próxima.