Queridos [Música] irmãos, hoje a liturgia nos apresenta esse texto do Evangelho de São Marcos, no capítulo 12, que é um texto muito sugestivo, sobretudo porque, com ele, se encerra no Evangelho de São Marcos o ministério público do Senhor. Portanto, não pode ser um texto qualquer; não pode ser um texto pouco expressivo. Deve haver lições mais profundas que o evangelista nos quer comunicar através desse relato.
O texto está dividido em duas partes. Na primeira parte, Jesus faz uma advertência contra os escribas. Quem eram os escribas?
Os escribas eram os doutores da lei. O termo grego utilizado por São Marcos é "grammateus", que significa simplesmente "letrados". Eram letrados na Torá e, portanto, sabiam comentar a Torá.
Em geral, eram sacerdotes e levitas de Israel, e Jesus os acusa. Ele diz: "Cuidado com os escribas! Eles fazem questão de andar com amplas túnicas e de serem cumprimentados nas praças.
" Jesus enumera quatro pontos em que eles são criticados: primeiro, andar com amplas túnicas, ou seja, eram vistosos, exibidos e vaidosos; segundo, serem cumprimentados nas praças; gostavam da estima pública e desfrutavam da atenção social; gostavam dos primeiros assentos na sinagoga. Ou seja, assim como no capítulo 23 de São Mateus, os escribas são acusados de ocuparem a cadeira de Moisés; aqui, eles são criticados porque querem ocupar o primeiro lugar nas sinagogas, ou seja, sempre ensinarem a todos; e, por fim, do lugar de honra nos banquetes, sempre queriam ser o centro das atenções. Então Jesus agrava a acusação, dizendo: "Mas devoram as casas das viúvas, enquanto exibem-se com longas orações.
" O que significa isso? Como assim eles devoram as casas das viúvas? Há muitas hipóteses.
Alguns diziam que os escribas eram notários também no seu tempo. As viúvas em Israel sempre foram consideradas, juntamente com os órfãos, como a parte mais vulnerável, e, portanto, qualquer injustiça cometida contra órfãos e viúvas era entendida como injustiça no sentido máximo, às viúvas de um modo especial, porque elas realmente, depois da morte do [Música], ficavam numa situação de penúria. A herança do marido não passava para a viúva.
Se o marido tivesse um filho homem, passava para o primeiro filho homem; se não tivesse filho homem, passava para a filha mais velha; se não tivesse filha mais velha, passava para os irmãos do [Música] marido. Ou seja, quando o marido morria, elas ficavam sem nada. Elas ficavam completamente desguarnecidas.
Então, como é que os escribas devoravam as casas das viúvas? Possivelmente fiscalizando essa passagem de propriedade, eles acabavam cometendo extorsão, de alguma maneira, pegando algo para si. Na segunda parte, que começa agora no versículo 41, é como se São Marcos desdobrasse o texto anterior numa espécie de parábola viva, parábola histórica.
Sentado em frente ao tesouro do templo, Jesus observava como a multidão colocava ali o dinheiro. No templo de Jerusalém, havia uma série de pátios que eram excludentes. No primeiro pátio, o pátio mais externo, podiam entrar os pagãos e as mulheres; era o chamado pátio dos pagãos.
Depois, no pátio mais interior, apenas os homens israelitas; depois, apenas os sacerdotes; e, por fim, só o sumo sacerdote podia entrar uma vez por ano no Santo dos Santos. Nesse primeiro compartimento do templo, no pátio dos pagãos, havia, segundo o testemunho de um judeu que também era sacerdote, chamado Flávio Josefo, 13 pequenos cofres que eram como uma corneta de chifre de cabra, um desses animais, o que eles chamam de shofar. O shofar é um chifre.
Então, haviam 13 desses chifres que desembocavam em cofres interiores, aos quais apenas os sacerdotes tinham acesso. Ora, o que acontecia? Cada um desses chifres, cada uma dessas trombetas, cada uma dessas cornetas, tinha uma destinação.
Então, uma era para madeira, outra era para comprar incenso, outra era para comprar aves, outra era para comprar perfumes, e assim por diante. E havia seis delas que eram para ofertas voluntárias, sendo que uma delas era para as ofertas não apenas voluntárias, mas ofertas de qualquer tipo, sem nenhum tipo de destinação. Ora, em todas as demais, o ofertante entregava a oferta para o sacerdote e o sacerdote colocava a oferta no chifre.
Apenas nesta última, a pessoa mesma diretamente colocava a sua oferta. Jesus diz que o texto estava sentado em frente ao tesouro do templo. O tesouro, então, era essa sala onde esses pequenos trombetas desembocavam, e o tesouro do templo era, de fato, um lugar com riquezas.
Vejam que no Livro dos Macabeus se diz que o que havia no tesouro do templo era incalculável; tão grande era a sua riqueza. Jesus estava em frente ao tesouro do templo observando como a multidão colocava ali o dinheiro. Muitos ricos colocavam bastante, então nós podemos imaginar o barulho daquelas moedas caindo nos chifres e rolando, por assim dizer, até o cofre.
É interessante que no Evangelho de São Mateus Jesus diz: "Quando deres uma oferta, não toques a trombeta diante de ti. " Ele pode estar fazendo uma referência exatamente a esses chifres que davam acesso ao cofre. Chegou então uma viúva pobre e colocou ali duas moedinhas de pouco valor.
Essas duas moedinhas de pouco valor são dois leptos, no texto grego, um quadrante. São Marcos utiliza uma moeda [Música] romana para quantificar o tão pouco valor da oferta da pobre viúva. O que comprava um quadrante?
Um quadrante comprava um pão nos tempos de Jesus, ou seja, a refeição que uma pessoa pobre poderia fazer durante um dia, a refeição de um dia. Então, ela chega com aquelas duas moedinhas. Jesus chamou os discípulos e disse: "Em verdade vos digo: esta viúva pobre colocou mais do que todos os outros no tesouro.
Todos eles deram do que tinham de sobra; ao passo que ela, de sua pobreza, deu tudo o que tinha para viver. " Aqui, os intérpretes se dividem. Os intérpretes mais tradicionais sugerem que Jesus está louvando a generosidade daquela pobre viúva porque ela está ofertando.
Não [Música] apenas aquilo que não lhe sobrava, mas ela estava ofertando tudo: as duas moedas, a primeira e a segunda, não guardando nada para si. Os intérpretes mais modernos entendem que Jesus está fazendo uma crítica, como olhando para aquele sistema inteiro e dizendo: "Esse sistema que foi feito para proteger as viúvas e os órfãos, na verdade, está matando as viúvas e os órfãos, está tirando deles. " É muito interessante essa segunda interpretação, porque ela tem muito a ver com diversas passagens de São Marcos.
Por exemplo, no capítulo 7 de São Marcos, Jesus acusa os escribas; ele diz: "De fato, Moisés disse: Honra teu pai e tua mãe; segundo vós, porém, se alguém disser a seu pai e sua mãe: 'O sustento que eu poderia vos dar é corbã', isto é, oferta, não deixais fazer nada para seu pai ou sua mãe. Assim, anula a palavra de Deus por causa de vossa tradição que transmiti. " Ou seja, Jesus está criticando os escribas justamente por abusos nas ofertas.
Eles justificam que um filho não ajude seus pais. No capítulo 11 de São Marcos, quando Jesus entra no templo, ele expulsa os vendilhões, os cambistas, e diz: "Não está escrito que a minha casa será chamada casa de oração para todos os povos? Vós, porém, fizestes dela um antro de ladrões.
" Um pouco depois, na própria sequência do texto que nós lemos hoje, no capítulo 13, no versículo primeiro, São Marcos diz: "Enquanto Jesus estava saindo do templo, um dos discípulos lhe falou: 'Mestre, olha que pedras! '" Jesus respondeu: "Estás vendo essas grandes construções? Não ficará pedra sobre pedra; tudo será destruído.
" Ou seja, no livro de São Marcos, Jesus está o tempo todo criticando o Templo de Jerusalém, criticando justamente essa conduta abusiva complementada pelo sacerdócio do seu tempo de extorquir as pessoas. E seria muito estranho que aqui ele simplesmente elogiasse essa viúva. Ora, qual das duas interpretações tem razão?
Eu acho que as duas, mas em sentido um pouco diferente, pois Jesus, na verdade, está vendo todo o culto de Israel simbolizado naquele templo magnífico que Herodes tinha construído, que era a imagem da união entre o trono e o altar, e está denunciando, sim, a hipocrisia religiosa. Hipocrisia aqui não quer saber da salvação das almas de ninguém. Hoje, nós poderíamos enxergar essa denúncia de Cristo a tantas igrejas que se comportam mais como câmaras do que propriamente como igrejas.
É uma crítica dura, é uma crítica pesada. E Jesus, concentrando-se, olha a viúva, vê como que [Aplausos] escatológico aquele templo vai acabar. Essa religiosidade, que está focada no mercado, que transforma a religião num comércio, ela vai acabar.
O culto do antigo Israel está simbolizado nessa pobre viúva, que já não tem mais nada para dar. Paradoxalmente, porém, esta viúva é uma imagem do próprio Cristo, e, por isso, ela pode ser louvada. Diferentemente dos sacerdotes do Templo de Jerusalém, que matavam por assediar as viúvas, devorando as suas casas, Jesus, o sacerdote do Novo Testamento, vai entregar tudo; ele vai dar tudo pela nossa salvação.
É muito interessante que essa mulher dá um quadrante, isto é, dois leptos, que se referem a uma quantidade mínima para viver, um pão. E Jesus vai se entregar por nós, dando a sua vida. Ele diz no final: "Todos eles deram do que tinham de sobra, ao passo que, da sua pobreza, deu tudo que tinha para viver.
" Em outras palavras, ela deu a sua vida; ela está morrendo para sustentar esse templo. Paradoxalmente, ela se torna uma imagem do próprio Cristo. Assim como a viúva de Sarepta, da primeira leitura, que espera a morte, está lá com um pouquinho só de farinha, um pouquinho só de água, essa viúva está dando tudo o que ela tem para viver.
E Jesus se identifica com as duas. É ele que dá sua vida por nós, é ele que se entrega em sacrifício por nós, é ele que vai dar sua carne como pão, vai dar seu sangue como vinho. E mais: nós vemos na segunda leitura que Cristo não entrou num santuário feito por mão humana, imagem do verdadeiro, mas no próprio céu, e não foi para se oferecer assim muitas vezes.
Ele se entregou, ele fez o sacrifício de si mesmo, diz o autor da carta aos Hebreus, para tirar os pecados da multidão e aparecerá uma segunda vez, fora do pecado, para salvar aqueles que o esperam. Queridos irmãos, a lição que nós podemos tirar dessa viúva é a de que precisamos desinstalar do nosso coração todo tipo de mecanismo que nos faça querer sempre tirar proveito em nosso favor. A lógica do nosso Novo Testamento é a lógica da oferta, é a lógica da entrega, é a lógica de quem dá a vida, de quem sacrifica por Cristo, de quem sacrifica pelos outros, de que o exemplo do Senhor faz com que a sua existência seja sempre uma dádiva de amor.
Que o Senhor nos torne a todos nós dadivosos. Então, ainda que nós tenhamos muito pouco, porque, afinal, no final das contas, a nossa vida é pouca coisa, a Escritura diz que é um sopro, que ela se desfaz, que ela é como um hálito, um vapor que [Música] evanece. Que nós saibamos dá-la, dia após dia, em sacrifícios de nós mesmos, unidos ao sacrifício de Cristo.
E, então, nós poderemos experimentar um pouco do céu, esquecendo-nos de nós mesmos e lembrando-nos apenas de Deus.