Já ouviu falar em “trad wives”, as chamadas “esposas tradicionais”? É uma mulher que escolhe viver uma vida mais tradicional com papeis de gênero ultratradicionais. Para essas mulheres, independência financeira é coisa do passado.
A moda agora é de fato voltar ao passado. E a mulher fica em casa e cuida da casa e dos filhos, se eles existem. Mas por que o retorno aos papéis tradicionais de gênero virou tendência em pleno 2024?
Segundo especialistas, seria uma espécie de resposta à múltipla jornada de trabalho enfrentada pelas mulheres nos dias de hoje. Os avanços que a gente conquista como feministas, o avanço das mulheres, tem um quê de insustentável. A gente acumulou a tarefa de financeiramente sustentar uma casa e a esfera de cuidados.
Então, isso não é sustentável a médio prazo. Em algum lugar essa corda vai estourar. Isso gera vários resultados que a gente observa no mundo inteiro, de redução da probabilidade de uma mulher se casar, redução da probabilidade de uma mulher querer ter um filho, aumento das taxas de divórcio.
Então você tem uma série de questões familiares extremamente afetadas por essa chamada revolução de gênero estagnada, no sentido de que as mulheres abraçaram os papéis produtivos junto com os homens, elas passam a partilhar com os homens as responsabilidades financeiras pelo sustento domiciliar, enquanto que os homens não fazem o mesmo no sentido de abraçarem as tarefas domésticas. Para Vera Iaconelli, seria justamente essa a solução para a ainda incompleta equação da revolução de gênero: a divisão equânime do cuidado entre homens e mulheres. Sem isso, a gente tem uma barreira quase intransponível, que é o fato de que nós, mulheres, somos as únicas responsáveis pelo cuidado e as mais desprestigiadas por conta disso também.
Porque a gente sabe que o modelo conservador você pode até escolher, mas a gente já sabe onde ele falhou: na sujeição feminina, na violência, na falta de autonomia, no fato de que uma mulher pode sim se dedicar a ter filhos de um homem que a sustenta, mas é só até a hora que ele quiser. Num país como o Brasil, o mais comum é que as mulheres acumulem essas funções que deveriam ser de duas pessoas. Isso mesmo quando o pai está fisicamente presente em casa.
Mas também porque não faltam histórias de homens que abandonam o lar. As mulheres se responsabilizam sozinhas por ambas as coisas. Os homens estão desempregados, mas nem por isso eles fazem papeis domésticos.
Ou seja, a fantasia das “trad wives”, vendida especialmente pelas gringas nas redes sociais, está longe de ser realidade por aqui. Pra isso existir, é preciso que apenas um adulto do domicílio — no caso, os homens — seja de fato capaz de prover o sustento financeiro. E isso não é a realidade da grande maioria das mulheres no Brasil, né?
Apenas uma parcela muito pequena das mulheres, normalmente de alta escolaridade, que poderiam escolh er ter uma carreira virtuosa no mercado, e podem escolher se casar com homens mais ricos. Essas mulheres podem abraçar um movimento desse tipo, de dizer “embora eu tenha qualificação para ter o tipo de carreira que eu quiser escolher, eu prefiro a especialização doméstica. Enquanto isso, o ganha-pão de grande parte das brasileiras consiste em cuidar da casa e da família de outras mulheres que têm o privilégio de abrir mão não só do mercado de trabalho, mas também das tarefas domésticas.
Quando eu acordo, meu café da manhã já está pronto, porque a Catinha, que ajuda a gente aqui em casa, já deixa tudo pronto. São as chamadas “esposas-troféu”, outra tendência que tem aparecido nas redes sociais. Então essas mulheres [empregadas domésticas] normalmente fazem todo o trabalho doméstico da família delas e todo o trabalho doméstico de outras famílias, o que permite com que mulheres que normalmente reivindicam esses movimentos de maior especialização na verdade nem tarefa doméstica fazem, porque as tarefas domésticas que elas fazem são apenas de supervisão do trabalho de outra mulher, geralmente pobre e negra, que vai fazer o trabalho doméstico mais pesado.
Enquanto isso, as patroas passam o dia produzindo conteúdo para ostentar e defender um estilo de vida sem trabalho. Hoje eu vou provar que uma esposa-troféu tem muita coisa para fazer, sim. Não trabalhar ocupa muito tempo.
E antes que alguém venha comentar aqui que “nem todo homem…”, não estamos dizendo que nenhum homem é capaz de assumir responsabilidades ou dividir as tarefas com as mulheres. A gente tem, sim, uma nova masculinidade surgindo a partir do novo pai, do novo cuidador. Há homens que estão curtindo a ideia não de se tornar mulher nem de tomar “red pill”, mas de se tornarem homens melhores mesmo numa relação mais igual, e eles estão curtindo isso, porque eles conseguem ter relações menos ressentidas com as companheiras deles.
Então a gente tem coisas a nosso favor, sim. Porém, em geral, esse tipo de comportamento se restringe às camadas mais abastadas e escolarizadas da sociedade brasileira e dos países mais desenvolvidos, que têm uma política de bem-estar social mais robusta. Para a grande maioria da população, a solução depende principalmente de vontade política.
Ou seja, é um processo muito mais longo que a gente tem que trilhar para que isso aconteça.