Olá, meu nome é Helena Pereira da Silva, tenho 78 anos e vou contar para vocês a história que transformou completamente minha vida. Antes de continuar, peço a gentileza de deixar o seu like nesse vídeo e se inscrever no canal. E me conta nos comentários de onde você está assistindo. Adoro saber que minha história está chegando em lugares diferentes. Era 1972. Eu tinha 25 anos e acreditava ter construído a família perfeita. Morávamos em uma cidade pequena no interior de Minas Gerais, daquelas onde todos se conhecem. Meu marido, Antônio, trabalhava como contador na única agência bancária da
cidade. Nos casamos muito jovens, eu com 17 anos e ele com 22. Naquela época era assim que funcionava. Moça direita não ficava solteira por muito tempo. Tínhamos dois filhos pequenos, o Roberto de 6 anos e a Luía de quatro. Eu era o que chamavam de dona de casa exemplar. Acordava cedinho às 5 da manhã, preparava o café, arrumava as crianças para a escolinha, cuidava da casa, lavava, passava, cozinhava. Minha vida girava em torno do bem-estar da minha família. Naquela época era o que esperavam de uma boa esposa. Lembro como se fosse hoje. Era uma quarta-feira
de julho. Fazia um frio cortante naquele inverno de 1972. Antônio saiu para trabalhar, como todos os dias, com sua pasta de couro marrom que eu havia dado de presente no nosso aniversário de casamento. Beijou minha testa, como sempre fazia, e disse que talvez voltasse tarde porque tinha muito serviço para colocar em dia. Aquela não era a primeira vez que ele dava essa desculpa. Nas últimas semanas, isso tinha se tornado frequente. Três vezes por semana, ele chegava depois das 20 ois, dizendo estar cansado demais até para jantar. Naquele dia, Roberto estava com febre desde a noite
anterior. Já passava das 21 a febre não cedia. Decidi ligar para o banco, pensando que talvez Antônio pudesse passar na farmácia no caminho de volta para casa. A telefonista do banco, dona Carminha, atendeu mesmo o banco já estando fechado. Ela costumava ficar até mais tarde, organizando as ligações do dia seguinte. Helena, querida, o Antônio saiu daqui às 18 horas, como sempre. Ele não chegou em casa ainda? Aquelas palavras me atingiram como um tapa. Minhas mãos tremiam ao segurar o telefone preto de disco que ficava na mesinha do corredor. Agradecia a dona Carminha. Desliguei o telefone
e sentei na cadeira mais próxima, sentindo minhas pernas fraquejarem. Não era a primeira vez que tinha suspeitas. Os sinais estavam todos lá. Camisas com perfume diferente, chegadas tardias, desinteresse pela família. E havia também os comentários sutis das vizinhas, os olhares de pena na igreja aos domingos. Numa cidade pequena, você é sempre a última a saber o que todo mundo já comenta pelas suas costas. Coloquei os meninos para dormir e fiquei esperando na sala. Quando Antônio chegou, passava da meia-noite. Entrou sorrindo com aquele cheiro de perfume feminino que não era o meu. Confrontei-o com o que
descobri. Primeiro ele negou, depois ficou bravo, me acusando de não confiar nele, mas quando mencionei a ligação para o banco, ele mudou de tática. É só uma amizade, Helena. Você não entenderia. Você é apenas uma dona de casa, não sabe como é o mundo lá fora. Naquela noite, chorei até não ter mais lágrimas. Antônio dormiu no sofá e no dia seguinte agiu como se nada tivesse acontecido. Mas algo dentro de mim havia se quebrado para sempre. Uma semana depois, eu estava varrendo a varanda quando Jurema, nossa vizinha, se aproximou do portão. Ela sempre foi gentil
comigo, diferente das outras mulheres da rua, que apenas comentavam pelas costas: "Helena, me desculpe me meter onde não sou chamada, mas não aguento mais ver o que está acontecendo. Todo mundo na cidade já sabe que o Antônio está com a professora nova da escola central. A moça é de fora, veio da capital. Dizem que ele já até alugou um apartamento para ela perto da rodoviária. Foi como se o chão sumisse sob meus pés. Uma coisa era suspeitar, outra era ter a confirmação. E não era apenas um caso passageiro. Ele tinha montado outra casa, outra vida
paralela à nossa. Naquela tarde fiz algo que nunca havia feito antes. Peguei o pouco dinheiro que tinha economizado escondido. Sempre guardava algumas moedas do dinheiro das compras. Deixei as crianças com minha mãe e peguei o ônibus até a rodoviária. Não foi difícil encontrar o tal apartamento. Bastou perguntar ao dono da vendinha da esquina. E lá estava ele, entrando no prédio com uma moça jovem, bonita, usando roupas modernas que eu só via nas revistas. Ela devia ter uns 22 anos, cabelos cortados na altura dos ombros, usava calças compridas. Algo que Antônio nunca me permitiu usar, dizendo
não ser roupa de mulher direita. Não me aproximei, não fiz escândalo como muitas fariam. Voltei para casa e passei a noite inteira pensando no que fazer com minha vida despedaçada. Naquela época, uma mulher separada era vista como fracassada. Divórcio nem existia legalmente no Brasil. Como eu sustentaria meus filhos? O que as pessoas iriam dizer? Como encararia os olhares na igreja, no mercado, na rua? Mas algo dentro de mim havia mudado. Aquelas palavras dele, você é apenas uma dona de casa, não saíam da minha cabeça. Era isso que ele pensava de mim? Era assim que me
via? como alguém sem valor, sem capacidade de entender o mundo. Foi naquela noite, chorando sozinha na cozinha depois que todos dormiam, que tomei a decisão que mudaria para sempre o rumo da minha história. Eu provaria para ele, para a cidade e principalmente para mim mesma, que eu era muito mais do que apenas uma dona de casa. No dia seguinte, enquanto preparava o café da manhã, olhei para Antônio com uma calma que nem eu mesma sabia que possuía e disse: "Sei de tudo sobre a professora nova. E sabe de uma coisa? Você tem razão. Eu não
entendo o mundo lá fora, mas isso vai mudar, Antônio. Isso vai mudar." Ele empalideceu, mas não disse nada. Provavelmente pensou que eram apenas palavras vazias de uma mulher magoada. Mal sabia ele que aquele dia marcava o início da minha transformação. Talvez vocês estejam pensando que eu fui correndo tirar satisfação com aquela professora ou que peguei minhas coisas e abandonei meu marido naquele mesmo dia. Mas não foi assim que aconteceu. Em 1972, uma mulher da minha idade, com dois filhos pequenos e sem profissão, tinha poucas opções. E eu sempre fui do tipo que planeja antes de
agir. Na manhã seguinte à aquela descoberta, depois que Antônio saiu para trabalhar e as crianças foram para a escola, me olhei no espelho da penteadeira. Meus olhos estavam inchados de tanto chorar. Meu cabelo, sempre preso em um coque comportado, parecia sem vida. Usava o mesmo vestido florido de mangas três qu4art que havia costurado três anos antes. De repente, percebi que não me reconhecia mais naquela imagem. Helena disse para mim mesma, você tem apenas 25 anos e já parece uma senhora de 50. Foi quando me lembrei da dona Matilde, uma senhora que dava aulas particulares de
reforço para crianças do primário na casa dela. Eu a admirava desde sempre. Era viúva, morava sozinha e era respeitada por todos. Algo raro para uma mulher independente naquela época. Uma vez por mês, ela ia à capital fazer cursos, trazia livros novos. Seus olhos brilhavam quando falava de educação. Vesti meu único vestido bom, aquele que guardava para a missa de domingo. Penteei o cabelo e fui até a casa dela. Meu coração batia tão forte que parecia querer sair pela boca quando batia a sua porta. Helena, que surpresa agradável, ela disse, me convidando para entrar. Aconteceu alguma
coisa com o Roberto? Ele está indo bem nas lições. Não, dona Matilde. Vim falar sobre mim. Quero estudar. Quero me tornar professora. Ela me olhou com aqueles olhos sábios, me ofereceu um café e ouviu minha história. Não contei sobre a traição. Disse apenas que precisava construir um futuro independente. Ela não fez perguntas, apenas assentiu. Sabe, Helena, nunca é tarde para estudar. Você terminou o ginásio, não foi? Sim, mas já faz tanto tempo, 8 anos. Nem sei se lembro de alguma coisa. Eu te ajudo. Você pode começar estudando para o supletivo do colegial. Se for dedicada,
em um ano estará pronta para prestar o vestibular para o curso normal. Me explicou que havia uma escola normalidade vizinha, a 40 km da nossa. Era possível ir e voltar de ônibus no mesmo dia. O curso durava três anos. Mas, dona Matilde, como vou explicar isso para o Antônio? E as crianças? E o dinheiro para as passagens? Uma coisa de cada vez, Helena. Primeiro, vamos ver se você realmente quer isso. Vou te emprestar alguns livros. Estude uma hora por dia quando as crianças estiverem dormindo. Daqui a um mês conversamos novamente. Saí da casa dela com
três livros pesados e uma sensação estranha no peito. Era medo misturado com algo que não sentia há muito tempo. Esperança. Durante um mês, estudei escondida depois que todos dormiam. Reaprender matemática, português, história. Tudo parecia difícil no começo. Meus olhos ardiam de sono, mas algo dentro de mim me empurrava para continuar. Escondia os livros embaixo do colchão durante o dia. Antônio nem notou minha nova rotina. Continuava chegando tarde, cada vez mais distante. Às vezes passava o fim de semana inteiro fora, dizendo que ia pescar com os amigos. Eu fingi acreditar. Cada mentira dele era um combustível
para meus estudos. Um dia, minha filha Luía me encontrou estudando. Mamãe, por que você está lendo esse livro grande? É história para crianças? Não, filhinha. Mamãe está estudando para ser professora como a tia da sua escola. Seus olhinhos brilharam. Verdade. Você vai ensinar outras crianças? Se Deus quiser. Um dia. Posso contar para o papai? Meu coração gelou. Ainda não, querida. É uma surpresa. Nosso segredinho pode ser. Ela sorriu e prometeu guardar segredo. Naquela noite, enquanto a colocava para dormir, ela sussurrou: "Mamãe, você vai ser a melhor professora do mundo." Aquelas palavras me deram força para
continuar. Quando voltei a conversar com dona Matilde, um mês depois, ela me testou com algumas perguntas. Fiquei surpresa ao perceber que me lembrava de mais coisas do que imaginava. Ela sorriu satisfeita. Helena, você tem potencial. Vou te ajudar a estudar para o supletivo. As provas serão daqui a 7 meses. E quanto vou precisar pagar pelas aulas? Nada, mas com uma condição. Quando você se formar professora, deverá fazer o mesmo por outra mulher que precisar de ajuda. Aquilo me emocionou profundamente. Prometi que honraria aquele compromisso. Nas semanas seguintes, criei uma rotina. Três vezes por semana, dizia
a Antônio que ia ajudar na igreja com o grupo de costura beneficente. Na verdade, ia para a casa de dona Matilde estudar. Ele nem questionava. Estava tão ocupado com sua vida paralela que mal notava meus movimentos. O dinheiro para as passagens futuras e material escolar eu conseguia economizando do dinheiro das compras e vendendo bolos e doces que fazia escondida para algumas vizinhas de confiança. Guardava cada centavo em uma lata de fermento vazia que escondia dentro da caixa de sabão em pó. O tempo foi passando e com ele minha confiança crescia. Percebi que tinha facilidade com
matemática, algo que me surpreendeu. Português era mais difícil, principalmente as regras de gramática, mas eu me esforçava o dobro nesses assuntos. Certa noite, seis meses depois de começar a estudar, Antônio chegou mais cedo em casa e me pegou com os livros na mesa da cozinha. Fechei-os rapidamente, mas não há tempo. O que é isso, Helena? Que livros são esses? São são livros que estou usando para ajudar o Roberto com as lições. Menti, sentindo o rosto queimar. Ele pegou um dos livros: Matemática Avançada para um menino de 7 anos. Meu coração disparou. Era hora de contar
a verdade, ou pelo menos parte dela. Estou estudando para o supletivo do colegial Antônio. Quero terminar meus estudos. Ele riu. Um riso de deboche que me cortou como uma faca. Para quê? Para ser mais culta quando servir o café para as visitas? Respirei fundo para ter um diploma, para poder trabalhar se um dia precisar. Seu rosto mudou. Não era mais deboche, era raiva. Trabalhar. Uma mulher minha não precisa trabalhar. Isso é conversa da Matilde, não é? Aquela velha metida que pensa que é intelectual. Não é conversa de ninguém, é minha decisão. Ele bateu na mesa,
fazendo os livros pularem. Você é minha esposa. Sua obrigação é cuidar da casa e dos filhos. Vi uma veia pulsar em sua testa, sinal de que estava realmente furioso. Em outros tempos, eu teria recuado, pedido desculpas, prometido desistir da ideia, mas algo tinha mudado em mim naqueles meses. Vou continuar estudando, Antônio. Posso ser sua esposa e ainda assim ter um diploma. Ele respirou fundo, como se tentasse controlar. Então, seu tom mudou para algo que tentava parecer razoável. Helena, você não entende como o mundo funciona. Ninguém vai contratar uma mulher casada e sem experiência. Você vai
gastar tempo e dinheiro à toa. Se for à toa, o tempo e o dinheiro são meus para gastar. Nunca tinha falado com ele assim. Nós dois ficamos surpresos. Ele me encarou por um longo momento, depois pegou os livros e os jogou no lixo. Isso acaba aqui. Amanhã mesmo vou falar com a Matilde para ela parar de colocar essas ideias na sua cabeça. Saiu batendo a porta. Depois que tive certeza que ele tinha ido embora, resgatei os livros do lixo, limpei-os e os escondi melhor. Naquela mesma noite, dona Matilde recebeu a visita furiosa de Antônio. No
dia seguinte, ela me contou. Ele gritou, ameaçou, disse que ia me denunciar ao padre, ao prefeito, a não sei mais quem. Ela riu. Como se eu me importasse. Tenho 65 anos, Helena. Já vi homens como seu marido virem e irem. Continuaremos suas lições. Só precisamos ser mais discretas. E assim foi. Passei a estudar na casa de dona Augusta, uma amiga de dona Matilde, que morava do outro lado da cidade. Era mais longe, mais complicado de chegar sem ser vista, mas eu estava determinada. Dois meses depois, fiz as provas do supletivo na cidade vizinha. disse a
Antônio que ia visitar minha tia doente. Ele, como sempre, mal prestou atenção. Talvez até tenha ficado feliz por ter a casa livre para trazer a amante. O dia que recebi os resultados foi um dos mais felizes da minha vida. Tinha passado com notas altas em todas as matérias. Não contei a ninguém além de dona Matilde e dona Augusta. Guardei o certificado dentro da Bíblia, o único lugar onde sabia que Antônio jamais olharia. Estava com o colegial completo agora. Era só o começo, mas já me sentia diferente. Olhava para o futuro com outros olhos. O próximo
passo seria o vestibular para o curso normal, que aconteceria dali a quatro meses. Naquela noite, olhando para meus filhos dormindo, prometi a mim mesma que não importava o que acontecesse, eu não desistiria. Não estava mais fazendo aquilo apenas para provar algo ao Antônio ou para ter independência financeira. estava fazendo por mim, pela Helena, que tinha sonhos aos 17 anos e que os havia enterrado para ser apenas a mulher do Antônio. Aquela Helena estava despertando novamente e nada, nem ninguém a faria voltar a dormir. Preparar-me para o vestibular da escola normal foi como subir uma montanha
carregando duas crianças nas costas. Cada página estudada, cada exercício feito era uma pequena vitória contra o tempo escasso e o cansaço. Acordava às 4 da manhã para estudar antes que a casa despertasse. Aproveitava o tempo que as crianças estavam na escola para resolver exercícios. Às vezes adormecia sobre os livros e acordava sobressaltada, com marcas de papel no rosto. Em casa, o clima ficava cada vez mais tenso. Antônio já não escondia suas saídas. Chegava tarde com cheiro de perfume feminino, às vezes nem voltava para dormir. Quando questionado, me olhava com aquele ar de superioridade e dizia:
"Uma mulher que se preza não questiona o marido, Helena. Você devia se ocupar mais com a casa e menos com livros. Cada palavra dele era como gasolina no fogo da minha determinação. O vestibular seria em dezembro de 1972. Faltavam apenas semanas. Estudava como nunca, decorando fórmulas enquanto lavava roupas, recitando regras gramaticais enquanto cozinhava. Nas vésperas do exame, uma notícia abalou nossa pequena cidade. A professora com quem Antônio tinha um caso estava grávida. Fiquei sabendo pela Jurema, que veio correndo me contar. É para você saber antes que ouça por aí, Helena, todo mundo já comenta. Naquele
momento, senti um vazio no estômago, não pelo relacionamento deles, ao qual já estava anestesiada, mas pelo que aquilo significaria para meus filhos. Eles teriam um meio irmão ou meio irmã, fruto de uma traição. Confrontei Antônio naquela mesma noite. Ele não negou. Pela primeira vez viu um traço de vergonha em seus olhos. O que você espera que eu faça, Helena? abandone uma criança que ainda vai nascer?" "Não", respondi com uma calma que nem eu mesma esperava. Espero que você assuma suas responsabilidades, mas não pense que isso muda meus planos. Amanhã vou fazer o vestibular para a
escola normal. Ele me olhou atônito. "E, ainda com essa ideia na cabeça, Helena, por Deus, agora menos que nunca, o que as pessoas vão pensar?" A mulher do Antônio estudando para ser professora enquanto ele tem um filho com outra. Você quer ser motivo de chacota? O que as pessoas vão pensar? Repeti suas palavras lentamente. É só isso que te preocupa, não é? A aparência, o que vão dizer? Não o fato de ter destruído nossa família. Ele deu de ombros. É a vida, Helena. Homem é homem. Acontece aquela frase, homem é homem acontece. Ecuou na minha
cabeça a noite toda. Era a justificativa universal para todo tipo de traição, abandono e desrespeito que mulheres como eu sofriam caladas, como se fosse parte da natureza, como a chuva ou o sol, algo contra o qual era inútil lutar. No dia seguinte, vesti meu vestido azul marinho, o mais formal que tinha. Penteei o cabelo com capricho, passei um batom discreto. Disse aos vizinhos que ia à cidade vizinha fazer compras para o Natal, mas na verdade estava indo prestar o vestibular. Deixei as crianças com minha mãe. O prédio da escola normal era imponente, um casarão antigo
com escadarias de mármore. Entrei com as pernas trêmulas, me sentindo pequena e fora de lugar. As outras candidatas eram, em sua maioria, moças solteiras de 18 ou 19 anos. Havia apenas duas outras mulheres mais velhas como eu. Sentei na carteira designada e esperei. Quando o fiscal distribuiu as provas, olhei para aquele papel e pensei em todas as noites de estudo, todas as humilhações, todas as lágrimas. Não podia desperdiçar aquela chance. A prova durou 4 horas. Respondi cada questão com cuidado, lembrando dos conselhos de dona Matilde. Não tenha pressa, leia duas vezes antes de responder. Quando
entreguei minha prova, senti um misto de exaustão e alívio. Voltei para casa, sabendo que havia feito o melhor possível. Agora era esperar. Os resultados sairiam em janeiro, pouco depois do ano novo. Durante aquele mês de espera, a vida em casa ficou ainda mais difícil. Com a gravidez de sua amante, Antônio estava cada vez mais ausente. Quando vinha para casa, era mal humorado e distante. As crianças perguntavam porque o pai não brincava mais com elas, por não as levava mais para pescar aos domingos como antes. Na semana do Natal, estávamos preparando a ceia quando Antônio chegou
inesperadamente no meio da tarde. vinha com uma expressão que nunca tinha visto antes, uma mistura de vergonha e determinação. "Precisamos conversar, Helena." Mandei as crianças para o quintal e me sentei à mesa da cozinha. "Joana está no sétimo mês", ele disse, referindo-se à professora. Não é justo fazer a criança nascer sem um pai presente. Estou pensando em bem em me mudar para a casa dela. Mesmo esperando por algo assim, a notícia caiu como um raio. Uma coisa era suportar a traição, outra era o abandono completo. E os seus filhos aqui, eles não precisam de um
pai presente? Ele baixou os olhos. Vou visitá-los nos fins de semana e mandarei dinheiro, é claro. Dinheiro? Repeti amargamente. É assim que você planeja ser pai, com dinheiro enviado de longe? É o melhor que posso fazer, Helena. Joana precisa de mim agora. Senti a raiva ferver dentro de mim. E eu e os seus filhos. Não precisamos de você há anos, Antônio. Você só estava aqui de corpo, nunca de alma. pelo menos agora está sendo honesto. Ele pareceu aliviado com minha reação. Provavelmente esperava lágrimas, súplicas, mas aquela Helena já não existia mais. "Vou embora depois do
ano novo", ele disse, levantando-se. "Pode ficar com a casa. É o mínimo que posso fazer." "Não estou pedindo favores, Antônio. Estou exigindo o que é direito meu e dos meus filhos". Ele assentiu e saiu. Fiquei ali sentada à mesa da cozinha, olhando para o presépio que tinha montado com as crianças. A imagem da Sagrada Família parecia agora uma ironia cruel. Naquela noite, depois que todos dormiram, chorei em silêncio. Não pela perda do marido. Esse luto eu já tinha feito há muito tempo, mas pelo fim definitivo daquela família que sonhei construir. Por mais que tentasse ser
forte, o medo do futuro me assombrava. Como criaria dois filhos sozinha? Como enfrentaria os olhares e comentários maldosos numa cidade pequena, onde mulheres separadas eram consideradas párias? O Natal passou como um borrão. Tentei manter as aparências por causa das crianças, mas elas percebiam que algo estava errado. Na noite de Ano Novo, Antônio não apareceu. Disse que tinha ido visitar um tio doente em outra cidade. Mais uma mentira que engoli em silêncio. Na primeira semana de janeiro de 1973, recebi dois comunicados que mudariam minha vida. O primeiro foi uma carta da escola normal. informando que eu
havia sido aprovada no vestibular. O segundo foi o anúncio oficial de Antônio. Ele sairia de casa no final daquela semana. Quando recebi a carta de aprovação, corri para a casa de dona Matilde. Mostrei-lhe o papel, minhas mãos tremendo de emoção. Eu sabia, Helena, eu sabia que você conseguiria. E agora, dona Matilde? Como vou fazer para estudar, cuidar dos meus filhos e da casa tudo sozinha? Ela segurou minhas mãos entre as suas. Um dia de cada vez, minha filha, um dia de cada vez. Naquela noite, contei às crianças que havia sido aprovada para me tornar professora.
Também disse, com o coração apertado, que o pai iria morar em outra casa por um tempo. "Por que, mamãe?", perguntou Luía com os olhos cheios de lágrimas. Porque às vezes os adultos precisam de espaço, filha, mas ele ainda é pai de vocês e virá visitá-los. Roberto, mais velho e mais perceptivo, me abraçou forte. Não chora, mamãe. Eu vou cuidar de você e da Luía. Aquelas palavras de um menino de apenas 7 anos me partiram o coração. Era eu quem deveria estar cuidando deles, não o contrário. Dois dias depois, Antônio arrumou suas malas e saiu sem
olhar para trás. Minhas mãos tremiam quando tranquei a porta atrás dele. Pela primeira vez em minha vida adulta, eu estava verdadeiramente sozinha. As aulas na escola normal começariam em março. Tinha dois meses para organizar minha vida. A primeira providência foi procurar trabalho. Com apenas o certificado do supletivo, minhas opções eram limitadas. Consegui um emprego como auxiliar na mercearia do seu Juvenal, trabalhando meio período enquanto as crianças estavam na escola. O salário era mínimo. Mal dava para completar o que Antônio mandava para as despesas da casa. Mas era um começo, meu primeiro passo na direção da
independência. As semanas seguintes foram de adaptação. Acordava cinco irs, preparava o almoço, deixava pronta a comida para a janta, arrumava as crianças para a escola, ia trabalhar na mercearia até meio-dia, voltava para casa, fazia o serviço doméstico, ajudava os filhos com a lição e à noite, quando eles dormiam, estudava. Aos finais de semana, lavava roupa, fazia faxina pesada, costurava para complementar a renda e, nos poucos momentos livres, tentava dar atenção aos meus filhos que sentiam a falta do pai. Antônio aparecia esporadicamente, trazia presentes caros, brincava com as crianças por algumas horas e ia embora, deixando
um vazio que eu tinha que preencher com abraços extras e histórias antes de dormir. No início de março, quando as aulas começaram, a rotina ficou ainda mais apertada. Três vezes por semana, pegava o ônibus das 17 horas para a cidade vizinha, assistia as aulas até às 22 e voltava no último ônibus. Nesses dias deixava as crianças com minha mãe. Chegava em casa quase à meia-noite, exausta, mas com uma sensação de realização que nunca tinha experimentado. Na escola normal, a maioria das alunas tinha idade para ser minha filha. A princípio, me olhavam com curiosidade ou com
descendência. Algumas professoras também pareciam duvidar da minha capacidade, mas logo perceberam que eu não estava ali para brincar. Estudava com uma determinação que assustava. Notas máximas, trabalhos impecáveis, participação exemplar em sala de aula. Não me permitia falhar, não podia falhar. Aquela era minha única chance de construir um futuro diferente para mim e para meus filhos. Aos poucos, conquistei o respeito dos professores e dos colegas. Algumas moças mais jovens começaram a me procurar para pedir ajuda com os estudos. Uma delas, Marta, tornou-se minha amiga. Tinha apenas 18 anos, mas uma maturidade rara para sua idade. Helena,
ela me disse um dia: "Você é minha inspiração. Quando crescer, quero ser forte como você". Sorri sem saber como responder. Eu nunca tinha me visto como forte, apenas como alguém tentando sobreviver da melhor maneira possível. O primeiro ano do curso foi o mais difícil. Houve dias em que pensei em desistir, dias em que o cansaço era tanto que adormecia sobre os livros. Dias em que as lágrimas vinham sem permissão quando ouvia meus filhos perguntando quando o pai voltaria para casa. Mas por cada momento de fraqueza, havia momentos de descoberta e alegria. A emoção de entender
um conceito novo, o orgulho de receber um elogio de um professor, a satisfação de ver meus conhecimentos crescendo a cada semana. E assim, entre lágrimas e sorrisos, entre noites de estudo e dias de trabalho, eu seguia em frente. Não era mais apenas pela vingança ou pela necessidade, era por mim, pela mulher que eu descobria ser a cada dia. Uma mulher que aos poucos aprendia a traçar seu próprio caminho no mundo. O segundo ano do curso normal chegou mais rápido do que eu esperava. Era 1974 e aos poucos nossa rotina foi se estabelecendo. Roberto agora com
8 anos e Luía com seis pareciam ter se adaptado à nova realidade. O pai aparecia esporadicamente, trazia presentes caros, passava algumas horas com eles e ia embora. No início, doía vê-los esperando ansiosos na janela toda sexta-feira, muitas vezes em vão. Mas com o tempo até essa expectativa foi diminuindo. Meu emprego na mercearia do seu Juvenal havia evoluído. Agora eu cuidava da contabilidade do estabelecimento, o que me permitia ganhar um pouco mais. Nas manhãs de sábado, dava aulas particulares para crianças com dificuldade escolar, seguindo os passos de dona Matilde. O dinheiro ainda era curto, mas estávamos
sobrevivendo. Na escola normal, eu já não era mais vista como uma curiosidade. As colegas mais jovens me procuravam para pedir conselhos, tanto sobre os estudos quanto sobre a vida. Os professores me tratavam com respeito, alguns até me incentivavam a continuar os estudos depois de formada. Você tem potencial para uma faculdade, Helena", dizia a professora de didática. Uma faculdade, algo que parecia um sonho distante demais para a menina pobre que fui um dia. Mas agora, depois de tudo que conquistei, começava a parecer possível. Foi em maio daquele ano que o inesperado aconteceu. Estava na sala de
aula apresentando um trabalho sobre métodos de alfabetização, quando vi um rosto familiar entrando discretamente e sentando-se no fundo da sala. Meu coração disparou. Minhas mãos começaram a tremer. Era Antônio. O que ele estava fazendo ali? Por que viera me procurar na escola? Mil perguntas surgiram na minha mente, mas mantive a compostura e terminei minha apresentação. O professor elogiou meu trabalho, os colegas aplaudiram, mas eu mal ouvia. Meus olhos voltavam-se invariavelmente para aquela figura no fundo da sala. Quando a aula terminou, ele se aproximou. Parecia mais velho. Tinha olheiras profundas, o cabelo começando a rarear. vestia
aquele terno cinza que eu mesma tinha ajudado a escolher anos antes. "Você estava ótima lá na frente", ele disse com um sorriso tímido que não combinava com o Antônio que eu conhecia. "Sempre soube que você era inteligente." "O que você está fazendo aqui, Antônio?", perguntei diretamente enquanto guardava meus livros na bolsa. Precisava falar com você, é importante. Concordei em conversar com ele na lanchonete da escola. Sentamos em uma mesa afastada, longe dos olhares curiosos dos meus colegas. "Como estão as crianças?", ele perguntou depois de um silêncio constrangedor. "Estão bem?" Roberto ganhou o concurso de redação
da escola. Luía está aprendendo a tocar flauta, coisas que você saberia se aparecesse mais. Ele baixou os olhos. "Eu sei, Helena, tenho sido um péssimo pai. O que você quer, Antônio?" Não acho que veio até aqui para falar sobre as crianças. Ele respirou fundo. Joana me deixou. Precisei de alguns segundos para processar a informação. E o bebê? Nasceu há dois meses. Um menino Miguel. Ela pegou o bebê e voltou para a casa dos pais em São Paulo. Disse que não aguenta mais a vida no interior, que se arrependeu de ter deixado a carreira na capital
para me seguir. Não pude evitar um sorriso irônico. Então ela descobriu quem você realmente é. Ele pareceu ferido com minhas palavras, mas não retrucou. apenas assentiu como se concordasse. "Fui transferido do banco", continuou ele. "Vou para a agência de Ribeirão Preto. É uma promoção, na verdade. E o que eu tenho a ver com isso? Queria saber se você e as crianças gostariam de vir comigo. Podemos recomeçar, Helena, numa cidade grande, ninguém sabe nossa história. Posso alugar uma casa boa? Você pode terminar seus estudos lá?" Olhei para ele incrédula. Depois de tudo que havia feito, depois
de ter destruído nossa família, abandonado os filhos, me humilhado inúmeras vezes, ele esperava que eu simplesmente voltasse para ele como se nada tivesse acontecido. Você está falando sério, Antônio? Acha mesmo que podemos simplesmente recomeçar? E o que acontece quando aparecer outra professora jovem e bonita em Ribeirão Preto? Vamos ter que recomeçar de novo? Eu mudei, Helena. Aprendi minha lição. Não, Antônio, você não mudou, só está sozinho e com medo. E sabe o que é irônico? Há um ano, eu teria aceitado sua proposta. Teria largado tudo e ido com você, só para manter a família unida,
para dar um pai presente aos meus filhos. Mas agora, agora eu sei que mereço mais. Ele parecia genuinamente surpreso com minha resposta. em sua mente, provavelmente imaginava que eu estaria ansiosa para voltar para ele, para ter de volta a segurança que o marido proporcionava. O que aconteceu com você, Helena? Você está diferente. Aconteceu que eu descobri quem sou, Antônio. Descobri que posso criar meus filhos sozinha, que posso estudar, trabalhar, ter meus próprios sonhos. que não preciso de um homem que me trata como um objeto descartável, que me troca pela primeira moça bonita que aparece. Mas
e as crianças? Elas precisam de um pai. Elas precisam de um pai que as respeite e respeite a mãe delas, que seja um exemplo de caráter, não alguém que abandona a família quando surge uma nova emoção. Ele ficou em silêncio, mexendo no açucareiro, evitando meu olhar. Pela primeira vez, vi Antônio sem aquela postura arrogante, sem aquele ar de superioridade. Parecia pequeno, frágil. Eu ainda te amo, Helena", ele disse finalmente em voz baixa. Aquelas palavras que um dia teriam feito meu coração disparar, agora soavam vazias. Não senti raiva, nem alegria, nem tristeza, apenas uma indiferença tranquila.
Não, Antônio, você não me ama, nunca amou. O que você sente é medo de ficar sozinho. É diferente. Terminei meu café, peguei minha bolsa e me levantei. Vou perder o ônibus se não for agora. As crianças vão gostar de te ver este fim de semana, se você quiser aparecer. Ele assentiu, sem forças para argumentar. Deixei-o ali, sentado sozinho na lanchonete e caminhei para o ponto de ônibus. Uma sensação estranha tomou conta de mim. Não era exatamente felicidade nem vitória. Era como se um peso enorme tivesse saído dos meus ombros, como se finalmente tivesse fechado um
capítulo doloroso da minha vida. No ônibus, olhando a paisagem noturna pela janela, refleti sobre como tudo havia mudado em tão pouco tempo. Um ano e meio antes, eu era uma dona de casa insegura, que se definia apenas como a mulher do Antônio, a mãe dos filhos dele. Agora eu era Helena. estudante, trabalhadora, mãe e uma mulher que descobria sua própria força. Antônio apareceu na nossa casa no sábado seguinte, como eu havia sugerido, trouxe presentes para as crianças, passou o dia com elas, levou-as para pescar no rio como fazia antigamente. À noite, quando os coloquei para
dormir, Roberto me perguntou: "Mamãe, o papai vai voltar a morar com a gente agora?" Não, filho. Seu pai vai se mudar para outra cidade por causa do trabalho dele e nós vamos junto. Hesitei por um momento. Não, querido. Vamos ficar aqui. Vocês vão continuar na mesma escola com os mesmos amigos. Eu vou terminar meu curso para ser professora, mas o papai vai vir visitar sempre que puder. Ele ficou em silêncio, absorvendo a informação. Depois, para minha surpresa, disse: "Eu prefiro assim, mamãe. Quando o papai morava aqui, você chorava muito. Agora você sorri mais." Aquela observação
vinda de uma criança de 8 anos me emocionou profundamente. Meus filhos percebiam muito mais do que eu imaginava. Antônio se mudou para Ribeirão Preto na semana seguinte, prometeu visitar uma vez por mês e mandar dinheiro regularmente para as despesas das crianças. No início, cumpriu a promessa. Depois, as visitas foram ficando mais espaçadas. Eventualmente soubemos por conhecidos que ele havia se casado novamente, uma moça de boa família, filha de um fazendeiro da região. A vida seguiu seu curso. Meus dias eram preenchidos com trabalho, estudo e cuidados com os filhos. Não havia tempo para sentir solidão ou
autopiedade. Cada pequena conquista era celebrada. Uma nota boa na escola, uma promoção no trabalho, a primeira vez que consegui economizar para comprar um vestido novo. No final de 1974, quando o ano letivo estava terminando, recebi uma proposta que mudaria novamente o curso da minha vida. A diretora da escola onde meus filhos estudavam me chamou para uma conversa. Helena, estamos precisando de uma professora auxiliar para o próximo ano. Sei que você ainda não se formou, mas sua reputação na escola normal é excelente. Os professores falam muito bem de você. Gostaria de considerar a posição? O salário
não é muito, mas permitiria que você deixasse a mercearia e se dedicasse mais aos estudos. Mal podia acreditar no que estava ouvindo. Era uma oportunidade de ouro, trabalhar em uma escola mesmo antes de me formar. O salário, embora modesto, era superior ao que ganhava na mercearia e com as aulas particulares juntos. E o melhor, teria os mesmos horários que meus filhos. poderia ir e voltar com eles, acompanhar de perto sua educação. "Mas eu ainda tenho um ano e meio de curso pela frente", argumentei. "Não seria a primeira vez que contratamos alguém que ainda está estudando?"
A diretora respondeu com um sorriso: "Você já demonstrou ter o talento e a dedicação necessários. O diploma virá com o tempo. O que eu preciso é de alguém com sua determinação e inteligência." Aceitei a proposta imediatamente. A sensação de estar finalmente entrando no caminho que havia escolhido para mim era indescritível. Quando contei a novidade para dona Matilde, ela me abraçou com lágrimas nos olhos. Viu só, Helena, eu te disse que você conseguiria. Este é apenas o começo. Naquela noite, sentada na varanda da minha casa, olhando as estrelas no céu claro do interior, permiti-me sonhar com
o futuro. Um futuro que, pela primeira vez, parecia brilhante e cheio de possibilidades. Um futuro que eu mesma estava construindo com minhas próprias mãos, com minha própria força. A menina tímida, que um dia sonhou com um príncipe encantado, havia se transformado em uma mulher que descobriu que podia ser a heroína da própria história. E essa descoberta, esse poder que ninguém jamais poderia tirar de mim, valia mais do que qualquer conto de fadas. Janeiro de 1975 chegou com o calor intenso típico do verão brasileiro. Iniciei meu trabalho como professora auxiliar na escola municipal Monteiro Lobato, a
mesma onde meus filhos estudavam. Minha função era apoiar a professora titular da segunda série, ajudando os alunos com mais dificuldade, corrigindo tarefas e, ocasionalmente, substituindo-a quando necessário. No primeiro dia, entrei na sala de aula tremendo. 20 pares de olhos curiosos me encaravam. Alguns pertenciam a filhos de pessoas que me conheciam desde sempre, como a mulher do Antônio que foi abandonada. Será que me respeitariam? Será que veriam em mim uma professora ou apenas uma mulher separada tentando se virar? A professora Margarida, uma senhora de seus 50 anos que lecionava há mais de duas décadas, me apresentou
a turma. Esta é a professora Helena. Ela vai nos ajudar este ano e tenho certeza de que vocês vão adorá-la tanto quanto eu. Aquele simples gesto de me chamar de professora, mesmo antes de eu ter o diploma, fez meu coração disparar de emoção. Era a primeira vez que alguém me apresentava pelo que eu estava me tornando, não pelo que havia deixado para trás. As primeiras semanas foram um turbilhão de aprendizado. Observava atentamente como Margarida conduzia a turma, como lidava com as diferenças entre os alunos, como transformava conceitos complexos em brincadeiras compreensíveis. À noite em casa,
além de estudar para meu próprio curso, preparava materiais para ajudar os alunos com dificuldade. Roberto e Luía pareciam orgulhosos de me ver na escola. Minha mãe é professora", dizia Luía às amiguinhas inflando o peito. Esse orgulho infantil valia mais que qualquer reconhecimento profissional. No final de março, aconteceu algo que me testaria como nunca antes. A professora Margarida adoeceu subitamente, uma pneumonia severa que a afastaria por pelo menos um mês. A diretora me chamou em sua sala com uma expressão preocupada. Helena, sei que você ainda não se formou. Mas preciso que assuma a turma integralmente enquanto
a Margarida se recupera. Confio no seu potencial. Você aceita o desafio? Meu primeiro impulso foi dizer não. Não me sentia preparada para tamanha responsabilidade. E se eu falhasse? E se os pais reclamassem? E se as crianças não me respeitassem como respeitavam Margarida? Mas então lembrei de todas as vezes que ouvi que não seria capaz. quando decidi estudar, quando enfrentei Antônio, quando entrei na escola normal, se tivesse dado ouvidos ao medo, não estaria ali naquele momento. Aceito, diretora. Farei o melhor que puder. Os primeiros dias foram os mais difíceis. Algumas crianças testavam minha autoridade. Dois meninos,
filhos de fazendeiros da região, eram particularmente desafiadores. Um deles, João Pedro, chegou a dizer em voz alta: "Meu pai disse que você não é professora de verdade." Respirei fundo, engoli o insulto e respondi com calma: "Seu pai está certo, João Pedro. Ainda não tenho o diploma. Estou estudando para isso. Mas sabe quem também não tinha diploma quando começou a ensinar? Nosso patrono Monteiro Lobato. Ele era advogado e se tornou um dos maiores educadores do Brasil através de seus livros. Às vezes, o que faz um professor não é um papel na parede, mas o desejo de
ajudar os outros a aprender. A turma ficou em silêncio. João Pedro baixou os olhos constrangido. A partir daquele dia, as provocações diminuíram. Trabalhava dobrado, preparava aulas, corrigia tarefas, estudava para meu próprio curso, cuidava dos meus filhos e da casa. Muitas noites dormia apenas quatro ou cinco horas, mas cada pequena vitória renovava minhas forças. um aluno que finalmente entendia uma lição difícil, um sorriso de aprovação da diretora, um bilhete carinhoso de uma mãe agradecendo pelo progresso do filho. Quando Margarida retornou, um mês e meio depois encontrou uma turma disciplinada e avançada no conteúdo. Para minha surpresa,
ela pediu à diretora que mantivesse o arranjo em que dividíamos a turma. Helena tem um dom", disse ela. Seria um desperdício relegá-la apenas a tarefas assistenciais. Em julho daquele ano, chegou o momento do estágio obrigatório do curso normal. Normalmente seria necessário buscar uma escola diferente para realizá-lo, mas a diretora conseguiu uma autorização especial para que eu cumprisse as horas no próprio local onde já trabalhava. Era uma bênção. Não precisaria me deslocar. poderia conciliar melhor os horários. O segundo semestre de 1975 foi de consolidação. Na escola já era tratada como uma professora efetiva, mesmo ainda sendo
oficialmente uma auxiliar. No curso normal, meus professores começavam a falar sobre as possibilidades após a formatura. Você deveria considerar uma faculdade, Helena", insistia a professora de psicologia da educação. "Com seu potencial, poderia fazer muito mais, uma faculdade." A ideia me assustava e me seduzia ao mesmo tempo. Era um sonho quase impossível para uma mulher separada, com dois filhos, moradora de uma cidade pequena do interior. Mas se eu havia chegado até ali, superando todos os obstáculos, por que não continuar sonhando? Em outubro, recebi uma notícia que mudou novamente o curso da minha história. A escola municipal
Miranda Azevedo, a maior da cidade vizinha, estava abrindo concurso para professores efetivos. Era uma instituição renomada, com melhores salários e condições de trabalho. A inscrição exigia apenas o certificado de conclusão do segundo ano do curso normal que eu já possuía. Hesitei em me inscrever. significaria viajar todos os dias para trabalhar, reorganizar toda a nossa rotina. E havia o medo. E se eu não fosse aprovada, será que estava preparada para competir com professores mais experientes, muitos já formados há anos? Foi minha filha Luía, então com 7 anos, quem me deu o empurrão que eu precisava. Encontrou-me
olhando pensativa para o formulário de inscrição, sentada à mesa da cozinha. "Vai, mamãe!", Ela disse simplesmente, você sempre fala que a gente deve tentar, mesmo com medo. Aquela sabedoria infantil me tocou profundamente. Eu realmente dizia isso aos meus filhos. Como poderia ensinar-les a ter coragem se eu mesma recuava diante dos desafios? Inscrevi-me no concurso. Estudei como nunca nas semanas seguintes, aproveitando cada minuto livre. As provas aconteceriam em novembro. uma escrita de conhecimentos específicos, uma de didática e uma aula prática para uma banca examinadora. No dia da primeira prova, acordei antes do amanhecer. Peguei o primeiro
ônibus para a cidade vizinha, com o estômago embrulhado de nervosismo. O local estava cheio de candidatos, a maioria mais jovem que eu, recém formados, cheios de energia e confiança. Sentei-me na carteira designada, respirei fundo e me concentrei nas questões. Para minha surpresa, a prova parecia mais fácil do que eu esperava. Os anos de estudo intenso, as noites debruçadas sobre os livros, as aulas práticas, tudo havia me preparado melhor do que eu imaginava. Saí com a sensação de que havia me saído bem. A prova de didática, uma semana depois, seguiu o mesmo padrão. As perguntas sobre
métodos de ensino, psicologia infantil, planejamento de aulas, temas com os quais eu já lidava diariamente, fluíram naturalmente. A prática diária somada ao estudo teórico, estava dando seus frutos. A aula prática, a etapa final, seria o maior desafio. Recebi o tema com uma semana de antecedência, o ensino de frações para o quarto ano do primário. Passei dias preparando o material, ensaiando em casa para meus filhos, refinando cada explicação. No grande dia, entrei na sala onde quatro avaliadores me esperavam. Montei meu material didático, cartolinas coloridas, blocos de madeira que havia pintado, uma caixa de bombons para exemplificar
divisões e comecei. Os 15 minutos designados passaram como um relâmpago. Quando terminei, suava frio, mas tinha a certeza de que havia dado o melhor de mim. Os resultados sairiam apenas em janeiro do ano seguinte. Voltei à minha rotina tentando não pensar muito no assunto. O final do ano letivo estava chegando. Havia muito trabalho a fazer. Na escola, organizamos uma pequena festa de Natal. As crianças apresentaram peças teatrais, cantaram canções natalinas, os pais compareceram orgulhosos. Entre eles, para minha surpresa, estava Antônio. Havia meses que não o víamos. estava mais magro, com o cabelo rareando ainda mais,
mas bem vestido, como sempre. Depois da apresentação, ele se aproximou. Os meninos estavam ótimos", disse com um sorriso constrangido. "Roberto tem muito talento para a atuação." "V, sim, ele ensaiou bastante", respondi educadamente. Não sentia mais raiva ou mágoa, apenas uma estranha indiferença. Era como se Antônio fosse um personagem de uma história que eu havia lido há muito tempo. Soube que você fez o concurso para Miranda Azevedo", ele comentou enquanto caminhávamos para fora do auditório. "Boa sorte. Espero que consiga." "Obrigada", respondi genuinamente surpresa com o comentário. Ele hesitou, como se quisesse dizer mais alguma coisa, mas
apenas se despediu e foi embora. Mais tarde, Luía me contou que ele havia perguntado se ela e o irmão gostariam de passar as férias de janeiro com ele em Ribeirão Preto. "Eu disse que só vou se o Roberto também for", ela explicou. Roberto, sempre protetor, recusou o convite. "Não quero deixar a mamãe sozinha", ele disse. Meu coração se apertou com aquela declaração. Às vezes me perguntava se não estava sobrecarregando meus filhos com responsabilidades além da idade. "Podem ir, meus amores", disse a eles naquela noite. "Mamãe vai ficar bem. Vocês merecem se divertir nas férias." Após
muita conversa, concordaram em passar duas semanas de janeiro com o pai. Organizei suas malas, preparei listas de recomendações, sufoquei o medo de vê-los partir. Era a primeira vez que ficaríamos separados por tanto tempo. No dia em que Antônio veio buscá-los, me segurei para não chorar. Abracei-os como se fosse para sempre. Respirei fundo o cheirinho do cabelo de cada um. Guardei na memória seus sorrisos animados com a viagem. ficariam fora até o dia 20 de janeiro, dois dias antes da divulgação do resultado do concurso. Aquelas duas semanas sem meus filhos foram estranhas. A casa parecia grande
demais, silenciosa demais. Aproveitei para fazer uma limpeza profunda, reorganizar armários, preparar material para o próximo ano letivo. Mas as noites eram solitárias. Percebi que em meio a toda a correria dos últimos anos, nunca havia realmente parado para confrontar a solidão. Os resultados do concurso seriam divulgados em 22 de janeiro. Na véspera, mal consegui dormir. Rolava na cama imaginando mil cenários diferentes. E se eu tivesse ido muito mal? E se ficasse em último lugar? Como encararia meus colegas, meus alunos? Na manhã seguinte, Roberto e Luía já haviam retornado de viagem, cheios de histórias para contar sobre
o tempo com o pai. Tentei me concentrar neles, mas minha mente estava no resultado. Ao meio-dia, não aguentei mais. Pedi à vizinha para ficar com as crianças e peguei o ônibus para a cidade vizinha. O edital com os resultados estava afixado no quadro de avisos da prefeitura. Uma pequena multidão se aglomerava diante dele. Fiquei atrás com medo de olhar. Uma moça ao meu lado comentou com a amiga: "Fiquei em décimo lugar. Você viu quem ficou em primeiro? Uma tal de Helena Pereira da Silva nunca ouvi falar. Meu coração parou. Primeiro lugar, eu abri caminho entre
as pessoas e lá estava meu nome, no topo da lista. Primeiro lugar entre 80 candidatos. Tive que ler três vezes para acreditar. Voltei para casa flutuando. Mal podia esperar para contar aos meus filhos, a dona Matilde, a diretora da escola onde trabalhava. Aquela conquista não era apenas minha, era de todos que haviam acreditado em mim, quando nem eu mesma acreditava. Ao descer do ônibus, vi Roberto e Luía esperando no ponto, acompanhados da vizinha. Seus rostos ansiosos se iluminaram quando sorri e fiz sinal de positivo. Correram em minha direção e me abraçaram forte, os três pulando
juntos na calçada como crianças. Naquele momento, olhando para meus filhos sorridentes, para a rua tranquila onde morávamos, para o céu azul do interior que testemunha a minha jornada, soube que havia chegado ao destino. Não era o final da história, longe disso. Era apenas o reconhecimento de que o caminho que eu escolhera para mim estava certo, de que todas as lágrimas, todas as noites sem dormir, todos os momentos de dúvida e medo haviam valido a pena. A menina tímida de 17 anos, que acreditava precisar de um homem para ter valor, havia se transformado em uma mulher
forte, independente, capaz de traçar seu próprio caminho. Uma mulher que seus filhos podiam admirar, uma mulher que talvez pudesse inspirar outras a encontrarem sua própria força. E isso, meus queridos, não tem preço. Bom, meus queridos, se vocês gostaram da minha história, não se esqueçam de curtir o vídeo, comentar e se inscrever no canal para mais vídeos como este. Até a próxima. M.