[Música] Meu nome é Alzira Fernandes Queiroz, tenho 80 anos e cuido destas violetas roxas que enfeitam o parapeito da janela de minha casa em São Tomé das Letras, aqui nas montanhas de Minas Gerais. Sempre admirei como estas flores delicadas conseguem florescer entre as pedras, resistindo ao tempo e à intemperes, guardando uma força que não se revela ao primeiro olhar, assim como tantas mulheres que conheci durante minha longa existência nesta cidade de ruas de pedra e histórias enterradas. Enquanto rego minhas violetas neste dia de outono, observo este antigo livro de receitas com capa de couro gasto,
que pertenceu à minha avó Donana, a mais respeitada curandeira que estas montanhas já conheceram. Suas páginas amareladas guardam conhecimentos sobre ervas que podem tanto curar quanto matar, dependendo das mãos que as manipulam e da intenção por trás de cada preparo. Uma página em particular está marcada com uma fita desbotada, preparações para o coração. Esta manhã, senti um chamado para finalmente compartilhar um segredo que carreguei sozinha por 65 anos. Um fardo que moldou cada decisão da minha vida desde os 15 anos de idade. As violetas que cultivo com tanto cuidado escondem em suas raízes a verdade
sobre uma decisão tomada em 1958, quando compreendi que algumas correntes só podem ser quebradas por meios que ninguém nos ensina nos bancos da escola ou nos púlpitos das igrejas. Naquela época, a vida em São Tomé das Letras seguia o ritmo lento das cidades do interior mineiro, onde o tempo parecia escorrer como mel grosso entre as fendas das pedras que dão nome à nossa cidade. Era um tempo em que as meninas tinham que baixar os olhos quando homens passavam, em que conversas cessavam quando determinados assuntos surgiam, em que as portas fechadas escondiam verdades que ninguém ousava
questionar, muito menos uma adolescente sem pai e com uma irmã pequena para proteger. Mamãe sempre dizia que tivemos sorte quando Tadeu Correa, funcionário respeitado da prefeitura, interessou-se por ela. Uma simples lavadeira com duas filhas para criar. Um homem de posição, viúvo, sem filhos, 42 anos de idade e maneiras polidas que impressionavam a todos na cidade. Seu terno bem passado aos domingos na igreja, seu cumprimento respeitoso ao padre e à senhoras, suas contribuições generosas nas quermeces, tudo isso construía a imagem de um cidadão exemplar que nos salvaria da pobreza. Ninguém via o que acontecia quando as
portas se fechavam, quando os passos dele ecoavam pelo corredor em direção ao quarto que eu dividia com Cecília, minha irmã de apenas 8 anos. Ninguém ouvia os suspiros entrecortados, as ameaças sussurradas, o peso de seu corpo sobre o colchão de palha, o rangido das tábuas doalho, quando ele finalmente se retirava. Não havia a quem contar, não havia para onde fugir, não havia quem acreditasse. Na escola aprendi sobre reis e rainhas de terras distantes, sobre rios e montanhas, sobre números e poesia. Mas ninguém jamais me ensinou o que fazer quando o monstro não é uma criatura
imaginária, mas alguém que todos respeitam e admiram. Alguém que sua própria mãe defende com unhas e dentes, cega pelo que acredita ser amor. Ninguém me ensinou que algumas batalhas precisam ser lutadas nas sombras, com armas que não deixam marcas visíveis. Foi quando encontrei o livro de receitas de minha avó, guardado em uma velha arca de madeira que mamãe mantinha no sótam. Donana havia me ensinado sobre plantas desde pequena, antes de partir deste mundo quando eu tinha 12 anos. Suas mãos enrugadas mostravam a diferença entre a hortelã que acalma o estômago e a hortelã selvagem que,
em grandes doses causa perturbações no coração. Entre as ervas parachás que revigoram e aquelas que, combinadas de certas formas, podem fazer o corpo adormecer para sempre. Neste momento, enquanto compartilho esta história que mantive guardada por tantas décadas, gostaria muito de saber de que lugar você está me ouvindo. Deixe nos comentários o nome da sua cidade, pois isso me traz um estranho conforto, como se finalmente pudesse distribuir o peso deste segredo entre almas desconhecidas, espalhadas por este vasto Brasil e até por outros países. Saber que não estou mais sozinha com estas memórias me dá forças para
continuar, para revelar como proteg Cecília da única maneira que encontrei. Você talvez se pergunte por escolhi agora aos 80 anos para romper este silêncio. Talvez seja porque as violetas, assim como os segredos, precisam ocasionalmente ser transferidas para vasos maiores, suas raízes expostas brevemente ao arem nova terra. Ou talvez porque quando o inverno da vida se aproxima, sentimos uma urgência de deixar para trás mais que apenas plantas bem cuidadas. Queremos deixar verdades, por mais dolorosas que sejam, para que outras não precisem descobrir sozinhas o que fazer. São Tomé das Letras, nos anos 1950, era um lugar
de mistérios e contradições, encravada entre montanhas que pareciam tocar o céu, com casas e ruas feitas da própria pedra que dá nome à cidade. Os moradores acreditavam que as pedras tinham propriedades místicas que absorviam tanto as preces quanto os segredos sussurrados. Era uma cidade pequena onde todos se conheciam, mas ninguém realmente sabia o que acontecia por trás das portas fechadas das casas de pedra, que pareciam eternamente antigas, como se tivessem crescido naturalmente da terra. Nossa casa ficava na parte baixa da cidade, próxima ao córrego, onde mamãe lavava roupas para as famílias mais abastadas. Era uma
construção simples, com dois quartos, uma sala que também servia como cozinha e um quintal onde cultivávamos ervas medicinais, tradição passada por gerações na família. O cheiro de alecrim, arruda, manjericão e hortelã misturava-se ao aroma da lenha queimando no fogão, criando uma fragrância que até hoje associu a minha infância, tanto aos momentos de paz quanto aos de terror indescritível. Mamãe Matilde era uma mulher bonita, apesar da vida difícil, com cabelos negros sempre presos em um coque baixo e mãos ásperas de tanto esfregar roupas na pedra do córrego. Depois que papai morreu de febre amarela, ela parecia
carregar o mundo nos ombros, trabalhando de sol a sol para sustentar a mim e Cecília. Seus olhos, antes risonhos, conforme mostram as poucas fotografias que temos, adquiriram uma tristeza permanente que só pareceu diminuir quando Tadeu entrou em nossas vidas, prometendo segurança e respeito. Cecília, minha irmã, era pura luz, com apenas 8 anos e uma habilidade natural para a música que encantava a todos. Seus dedos pequenos tiravam melodias do velho violão que papai deixou, mesmo sem nunca ter tido uma única aula. Seu riso cristalino ecoava pela casa como um contraponto a cisudez que se instalou após
a morte de papai. Protegê-la era meu instinto mais básico, desde que assegurei pela primeira vez quando bebê e prometi que nada de mal lhe aconteceria enquanto eu vivesse. Vovó Donana havia sido minha primeira professora antes mesmo da escola formal. Enquanto caminhávamos pelas encostas coletando plantas, ela me ensinava os nomes, as propriedades, os perigos e os benefícios de cada folha, raiz e flor. Suas mãos enrugadas moviam-se com precisão ao preparar infusões, cataplasmas e tinturas que curavam desde febres até malefícios que nenhum médico de cidade grande conseguiria entender, como ela dizia. Sua partida deixou um vazio que
só foi preenchido quando reencontrei seu livro de receitas anos depois. Tadeu chegou como uma resposta às orações desesperadas de mamãe, ou pelo menos foi isso que ela acreditou até o fim. Alto, de postura ereta e cabelos grisalhos bem aparados, ele se apresentava sempre impecável, com ternos bem passados e sapatos lustrosos que contrastavam com a simplicidade da nossa vida. Como funcionário responsável pelo registro de imóveis na prefeitura, gozava de prestígio e respeito que se estendiam à igreja, onde ocupava lugar de destaque nos bancos da frente, sempre generoso nas contribuições. Nossos vizinhos comentavam sobre a sorte de
mamãe em conseguir um novo marido tão respeitável, principalmente sendo uma viúva com duas filhas pequenas. As mulheres invejavam sua nova posição. Os homens cumprimentavam Tadeu com deferência. O padre elogiava sua generosidade. E nós éramos vistas como a prova viva de que Deus não abandona os que têm fé. Ninguém parecia notar quando seus olhos se demoravam em mim durante as refeições, ou como sua mão pousava acidentalmente em lugares que me faziam sentir suja. Minha rotina naquela época era rigorosamente organizada por Tadeu, que acreditava firmemente que a ociosidade é oficina do diabo. acordava antes do amanhecer para
ajudar mamãe com o café, ia para a escola pela manhã, retornava para auxiliar-nos afazeres domésticos e cuidar das plantas medicinais que vendíamos para complementar a renda, e dedicava as noites a cuidar de Cecília, enquanto mamãe terminava de passar as roupas que lavara durante o dia. Não havia espaço para brincadeiras ou devaneios em nossa casa. A escola era meu único refúgio, o único lugar onde podia temporariamente esquecer o que acontecia em casa. Adorava aprender, devorava livros e sonhava com a possibilidade de um dia estudar para ser professora ou até mesmo farmacêutica, aproveitando o conhecimento sobre plantas
que herdei de vovó Donana. A professora Hilda notava meu interesse e, às vezes, me emprestava livros de sua coleção pessoal, maravilhada com minha sede de conhecimento, sem jamais suspeitar que eu buscava no estudo uma fuga desesperada da realidade que me aguardava em casa. Foi justamente a professora Hilda quem primeiro notou as mudanças em meu comportamento após os primeiros incidentes com Tadeu. Perguntou-me com genuína preocupação se estava tudo bem em casa, se havia algo que eu gostaria de contar. Por um breve momento, considerei revelar tudo, abrir as comportas que mantinham meu terror contido. Mas então lembrei
de como todos admiravam Tadeu, de como mamãe finalmente sorria novamente, de como nossa situação financeira melhorara. As palavras congelaram em minha garganta e apenas murmurei que estava cansada por causa dos afazeres domésticos. Se você já sentiu que precisava proteger alguém mais frágil a qualquer custo, que teria feito qualquer coisa para impedir que o mal tocasse alguém que você ama, deixe seu like neste vídeo. Essa conexão silenciosa entre pessoas que carregaram fardos pesados demais para sua idade me conforta, me faz sentir que não estive tão sozinha quanto pensei durante todos estes anos. Continue comigo nesta história
difícil, pois há lições que só podemos aprender nas profundezas da noite mais escura e verdades que precisam ser trazidas à luz, mesmo depois de tantas décadas enterradas. A primeira a primeira vez que Tadeu entrou no meu quarto à noite foi três meses após se casar com mamãe. Ela havia saído para entregar roupas lavadas na casa do juiz, que morava do outro lado da cidade. Uma encomenda urgente que não podia esperar até a manhã seguinte. A chuva caía forte lá fora, transformando as ruas de pedra em pequenos riachos barrentos. Cecília já dormia profundamente quando ouvi o
açoalho ranger sob os passos pesados que se aproximavam, diferentes do caminhar apressado e leve de mamãe. Fingi dormir, mantendo os olhos fechados e a respiração regular, enquanto sentia o peso dele afundar o colchão ao sentar-se na beira da cama. Seus dedos afastaram uma mecha do meu cabelo, percorrendo depois o contorno do meu rosto em uma carcia que nada tinha de paternal. Sussurrou que sabia que eu estava acordada, que não adiantava fingir, que ele apenas queria verificar se eu já estava me tornando uma mocinha de verdade, se já estava florescendo como as violetas do jardim. Durante
semanas, suas visitas limitaram-se a toques aparentemente inocentes aos olhos de quem não conseguia perceber a intenção por trás deles. Sempre ocorriam quando mamãe estava ausente ou profundamente adormecida após um dia exaustivo de trabalho. Sua habilidade em parecer inofensivo aos olhos alheios transformava qualquer tentativa minha de alertar sobre seu comportamento em uma aparente ingratidão de uma adolescente mimada. incapaz de reconhecer a bênção de ter um padrasto tão dedicado. Tentei contar a mamãe certa vez, enquanto ela separava as roupas para lavar no córrego. Disse que Tadeu me olhava de um jeito que me deixava desconfortável, que entrava
no quarto à noite para me verificar, mesmo quando não estava doente. Ela largou as roupas bruscamente, suas mãos trêmulas, agarrando meus ombros com força surpreendente. divertiu-me a nunca mais inventar mentiras sobre aquele homem que nos salvara da miséria, que me dava comida, roupas e a possibilidade de continuar estudando quando tantas meninas da minha idade já trabalhavam nas lavouras. O padre Denilson, figura imponente com sua batina preta e voz grave que ressoava pela igreja de pedra, pregava frequentemente sobre a obediência devida pelos filhos aos pais. Em uma de suas homilias, citando passagens bíblicas com autoridade incontestável,
discorreu longamente sobre como as mulheres deveriam ser submissas e respeitosas, aceitando com resignação cristã os desígnios divinos e as provações terrenas. Minhas mãos apertaram o terço com tanta força durante aquele sermão que as contas deixaram marcas vermelhas nas palmas que duraram horas. Na escola, durante um raro momento em que consegui ficar a sós com a professora Hilda, tentei mais uma vez pedir ajuda sem realmente conseguir nomear o que estava acontecendo. Falei sobre pessoas que faziam coisas erradas escondidas, sobre adultos que machucavam crianças, sobre segredos pesados demais para carregar sozinha. Ela me olhou com uma mistura
de confusão e desconforto, eventualmente sugerindo que eu deveria ser mais específica se quisesse sua ajuda. Mas algo em seu olhar me dizia que não estava realmente preparada para ouvir a verdade. As noites tornaram-se um tormento, cada rangido da casa de madeira anunciando potencialmente sua aproximação. Desenvolvi o hábito de dormir encolhida contra a parede, com Cecília protegida entre mim e a parede, como se meu corpo magro de adolescente pudesse servir de escudo. Comecei a ter pesadelos constantes, a perder peso, a sobressaltar-me com qualquer toque inesperado. Meus colegas na escola perguntavam porque estava sempre com olheiras, porque
havia me tornado tão quieta, tão assustada, tão diferente da menina vivaz que conheceram antes. Mamãe notou as mudanças em meu comportamento, mas as interpretou como os típicos aborrecimentos da adolescência, fase que ela própria mal tivera oportunidade de vivenciar, casando-se com meu pai aos 15 anos. Tadeu, por outro lado, sabia exatamente a causa do meu sofrimento e parecia extrair um prazer perverso ao comentar durante o jantar, como eu parecia cansada, oferecendo-se para preparar um chá calmante para me ajudar a dormir, sugerindo que talvez devesse verificar se eu não estava com febre durante a noite. Foi durante
aquele período obscuro que compreendia uma verdade dolorosa. O mundo não estava estruturado para proteger meninas como eu. As instituições que deveriam servir como refúgio, a família, a igreja, a escola, eram exatamente os lugares onde o silêncio era mais fortemente imposto. Com apenas 15 anos, percebi que alguns monstros usam gravatas e são chamados de senhor com respeito, que alguns predadores são protegidos por sistemas inteiros criados para ignorar as vozes dos vulneráveis em nome da ordem e das aparências. Passei a observar Tadeu com atenção renovada. estudando seus hábitos, seus horários, suas preferências. Notei como ele planejava meticulosamente
cada ação, como mantinha uma fachada impecável para o mundo exterior enquanto revelava sua verdadeira natureza apenas quando tinha certeza absoluta da impunidade. Comecei a perceber que suas atenções, inicialmente concentradas em mim, ocasionalmente se desviavam para Cecília. Um olhar demorado durante o banho, um comentário sobre como estava crescendo bonita, uma insistência em beijá-la boa noite quando mamãe não estava presente. Numa tarde chuvosa de domingo, enquanto mamãe e Tadeu visitavam um compadre doente no outro lado da cidade, encontrei Cecília, encolhida no canto do galpão de lenha, abraçando os próprios joelhos, o rosto marcado por lágrimas secas. Ajoelhei-me
ao seu lado, afastando delicadamente os cabelos que cobriam seu rosto. Quando nossos olhares se encontraram, não precisei fazer a pergunta que queimava em minha garganta. O que ele fez com você, Cecília? Pois a resposta estava escrita no terror silencioso de seus olhos, no tremor de seus lábios, no modo como se encolheu ainda mais ao ouvir passos distantes. Naquele momento, algo dentro de mim mudou para sempre, solidificando-se em uma determinação fria e implacável, como o ferro forjado nas profundezas da Terra. Naquela noite, após Naquela noite, após colocar Cecília para dormir com uma xícara de chá de
camomila forte o suficiente para garantir que não acordasse com pesadelos, sentei-me na beirada da cama, observando seu rosto angelical, agora pacífico no sono profundo. Prometi em silêncio que ninguém mais tocaria nela, que aquela inocência não seria novamente violada, que ela teria a chance de crescer sem as sombras que agora manchavam minha própria alma. O peso dessa promessa assentou-se em meus ombros como as pedras que davam nome à nossa cidade, antigas, imutáveis, permanentes. Na madrugada, enquanto todos dormiam, levantei-me silenciosamente e tomei uma decisão que mudaria para sempre as nossas vidas. Peguei uma pequena trouxa com algumas
roupas, todo o dinheiro que havia conseguido economizar, vendendo ervas medicinais, algumas moedas insuficientes para uma verdadeira fuga. E acordei, Cecília, gentilmente. Expliquei em sussurros que iríamos partir, encontrar outro lugar para viver, longe daquela casa, longe dele. Seus olhos assustados fixaram-se nos meus enquanto ela agarrava sua boneca de pano. A única lembrança que tínhamos do tempo antes de Tadeu. Saímos pela porta dos fundos, o orvalho molhando nossos sapatos enquanto cruzávamos o quintal em direção à estrada que levava para fora da cidade. A lua cheia iluminava nosso caminho, criando sombras alongadas que pareciam nos seguir como fantasmas
silenciosos. Não tínhamos um plano concreto, apenas a determinação desesperada de colocar distância entre nós e aquela casa, entre Cecília e as mãos que a haviam maculado. Talvez pudéssemos chegar à cidade grande. Talvez eu conseguisse trabalho como empregada em alguma casa de família. Talvez houvesse um lugar onde duas irmãs sozinhas pudessem sobreviver. Não chegamos nem ao fim da estrada de terra que levava à rodovia principal. Um grupo de tropeiros que voltava para a cidade nos encontrou. reconhecendo imediatamente as filhas da lavadeira Matilde. Perguntaram o que fazíamos sozinhas à hora da madrugada, para onde pensávamos que estávamos
indo. Balbuciei uma história sobre uma tia doente em Cachambu, que precisava de nossa ajuda, mas os homens trocaram olhares desconfiados antes de insistirem que nos levariam de volta para casa, que não era seguro para duas meninas andarem sozinhas pela estrada, que nossos pais deveriam estar desesperados de preocupação. Voltamos para casa no lombo de burros emprestados, escoltadas como prisioneiras fugitivas. Cecília chorando silenciosamente agarrada à minha cintura, enquanto eu mantinha o rosto impassível, engolindo as lágrimas que ameaçavam revelar nosso verdadeiro desespero. Tadeu e mamãe aguardavam na varanda, alertados por vizinhos sobre a movimentação em comum. O alívio
no rosto de mamãe contrastava com a fúria contida nos olhos de Tadeu, uma tempestade silenciosa que prometia punição assim que estivéssemos a sós. Os castigos foram severos e calculados. Para a mamãe, Tadeu explicou que precisávamos aprender sobre responsabilidade e obediência, que não poderíamos mais sair sozinhas, nem mesmo para a escola, que talvez eu devesse deixar os estudos completamente para concentrar-me nos afazeres domésticos. Para nós, quando mamãe não podia ouvir, ele detalhou exatamente o que aconteceria se tentássemos novamente partir ou contar a alguém sobre as coisas especiais que ocorriam na nossa casa. Seus sussurros carregavam descrições
vívidas de orfanatos terríveis, onde separariam irmãs para sempre, de reformatórios, onde meninas desobedientes eram tratadas como criminosas. Naquela noite, trancada no quarto com Cecília, após uma sessão particularmente brutal com o cinto de Tadeu, compreendi que não havia escapatória convencional para nossa situação. As instituições, as pessoas, as leis. Nada disso estava estruturado para proteger duas meninas contra um homem respeitado, um cidadão exemplar, um contribuinte da igreja. Enquanto embebia um pano em água fria para aliviar as marcas nas costas de minha irmã, uma ideia começou a formar-se nas profundezas da minha mente, nebulosa a princípio, depois cada
vez mais nítida, cada vez mais inevitável. Na manhã seguinte, enquanto todos ainda dormiam, subia ao sótam, onde mamãe guardava os pertences de vovó Donana. A poeira dançava nos raios de sol que penetravam pelas frestas do telhado, enquanto eu abria a velha arca de madeira, afastando roupas guardadas e utensílios que ninguém mais usava. No fundo, encontrei o que procurava, o livro de receitas de minha avó, encadernado em couro escuro e fechado com uma tira do mesmo material. Suas páginas amareladas conham muito mais que simples receitas culinárias. guardavam o conhecimento ancestral de gerações de mulheres que haviam
aprendido a sobreviver em um mundo que raramente lhes oferecia proteção. Foliei as páginas com reverência, relembrando os ensinamentos de vovó sobre cada planta, cada raiz, cada casca. Entre receitas de xaropes para tosse e unguentos para machucados, encontrei o que inconscientemente procurava, a sessão sobre plantas que afetam o coração. Donana sempre advertia sobre os perigos de certas ervas, como a digitales extraída da dedaleira, que em dos precisas tratava problemas cardíacos, mas em quantidades ligeiramente maiores causava arritmias fatais, sem deixar vestígios aparentes, além dos sintomas de uma insuficiência cardíaca natural. Você já se perguntou até onde iria
para proteger alguém que ama quando todos os caminhos convencionais estão bloqueados? Quando as portas das instituições que deveriam proteger estão fechadas? Quando as vozes adultas sufocam seus gritos de socorro? Quando o mundo parece conspirar para preservar justamente aqueles que destróem inocências. Gostaria que compartilhasse sua reflexão nos comentários, pois mesmo após todos estes anos, ainda me pergunto se outras pessoas teriam encontrado saídas que minha mente jovem e desesperada não conseguiu vislumbrar naquele só tão empoeirado. menina que eu fora até aquele momento, a estudante dedicada que sonhava com livros e conhecimento, a irmã mais velha que contava
histórias para espantar os medos noturnos, a filha obediente, que ajudava-nos a fazer e sem reclamar, morreu naquela manhã no sótam. Em seu lugar nasceu alguém com um único propósito, uma única missão que consumiria cada pensamento e cada ação das semanas seguintes. Libertar Cecília permanentemente da sombra que pairava sobre nosso lar, da ameaça que se materializava a cada noite em passos pesados pelo corredor. O plano formou-se em minha mente com uma clareza assustadora, como se cada página do livro de vovó Donana tivesse sido escrita especificamente para este momento, para esta necessidade, para esta menina de 15
anos, que já não tinha mais nada a perder, além da irmã que jurou proteger. Nos dias que se seguiram, dediquei-me Nos dias que se seguiram, dediquei-me completamente ao estudo do livro de receitas de vovó Donana. Memorizei cada detalhe sobre as plantas que afetavam o coração, especialmente a dedaleira que crescia na parte mais úmida do nosso quintal, plantada por minha avó anos antes como remédio potente para problemas cardíacos. Aprendi que a diferença entre cura e morte estava na dosagem cuidadosamente calculada, na concentração da infusão, na frequência da administração. Os conhecimentos que antes serviam para salvar vidas
agora se transformavam nas armas que eu não possuía. Durante as manhãs, enquanto cuidava do jardim de ervas sob o olhar distante de mamãe, colhia discretamente as folhas da dedaleira, escolhendo apenas as mais potentes, segundo as instruções do livro. À noite, quando todos dormiam, subia silenciosamente ao sótam, com uma lamparina quase sem luz, preparando cuidadosamente a primeira infusão no pequeno fogareiro que havia pertencido à vovó. O líquido verde escuro que resultava desse processo parecia inofensivo, quase belo na sua simplicidade, guardando seu poder letal sob a aparência de um inocente chá medicinal. O plano que formulei exigia
paciência, virtude que aprendi observando as ervas crescerem no jardim de vovó Donana. Não poderia simplesmente envenenar Tadeu de uma só vez. Isso levantaria suspeitas, investigações, perguntas que não estava preparada para responder. A digitalina, em doses pequenas, administrada regularmente ao longo de semanas, simularia o desenvolvimento gradual de problemas cardíacos, culminando eventualmente em uma morte natural que ninguém questionaria, especialmente considerando que Tadeu já se aproximava dos 50 anos e ocasionalmente reclamava de indisposições. Oportunidade perfeita surgiu quando descobri que Tadeu tinha o hábito de tomar uma xícara de café forte todas as manhãs antes de ir para a
prefeitura. O gosto amargo do café mascararia perfeitamente o sabor da infusão. E sendo eu a responsável por preparar o desjejum da família, poderia controlar exatamente a dose administrada. Naquela primeira manhã, com mãos surpreendentemente firmes para uma menina de 15 anos, adicionei três gotas da infusão ao café fumegante, observando o líquido escuro absorver completamente minha arma invisível. Quando Tadeu tomou o primeiro gole daquele café, algo mudou dentro de mim. Um calafrio percorreu minha espinha, não de medo ou remorço, mas de uma estranha sensação de poder que nunca havia experimentado antes. Por trás da aparente submissão, do
olhar baixo e da voz suave que ele esperava de mim, ocultava-se agora uma executora silenciosa, administrando justiça que nenhum tribunal ofereceria. Suas palavras de agradecimento pelo café especialmente saboroso soaram como uma cruel ironia que quase me fez sorrir pela primeira vez em meses. Durante a semana seguinte, aumentei gradualmente a dosagem, observando atentamente os primeiros sinais de que o veneno estava surtindo efeito. Tadeu começou a reclamar de fadiga ocasional, de palpitações inexplicáveis após subir as escadas, de uma pressão incômoda no peito que vinha e ia sem aviso. Mamãe! sempre solícita, sugeriu que consultasse o médico da
cidade, preocupação que ele dispensou com um gesto impaciente, atribuindo os sintomas ao excesso de trabalho e ao calor fora de época que castigava São Tomé das Letras naquele início de verão. No démo dia de minha execução silenciosa, enquanto reorganizava o quarto que Tadeu usava como escritório em busca de um documento que ele solicitara, encontrei por acaso, uma caixa trancada escondida sob uma tábua solta do açoalho. A chave, descobri após breve busca estava escondida dentro de um livro de contabilidade raramente consultado. Dentro da caixa, além de algum dinheiro e documentos diversos, encontrei algo que congelou meu
sangue, um diário encadernado em couro vermelho, cujas páginas conham relatos detalhados de suas experiências com enadas anteriores em outra cidade, muito antes de conhecer mamãe. As páginas daquele diário, escritas em uma caligrafia meticulosa, que combinava perfeitamente com a personalidade controladora de Tadeu, revelaram um padrão de predação que se estendia por anos. Descobri que não éramos as primeiras, que houvera outras famílias, outras meninas, outras mães viúvas ou abandonadas que ele buscara deliberadamente por sua vulnerabilidade. Sua mudança para São Tomé das Letras não fora coincidência, mas fuga calculada quando suspeitaram de seus atos na cidade anterior. O
horror daquela descoberta transformou minha determinação vacilante em certeza absoluta de que estava fazendo a única coisa possível. para proteger não apenas Cecília, mas potenciais futuras vítimas. Aquele diário horrível que queimei página por página naquela mesma noite, em um ritual silencioso de purificação, eliminou qualquer vestígio de dúvida ou culpa que pudesse ter restado em meu coração. Não era mais apenas sobre proteger minha irmã. tornara-se uma questão de justiça para todas aquelas cujos nomes estavam inscritos naquelas páginas profanas, cujas infâncias haviam sido roubadas por mãos, que agora, finalmente, começavam a tremer com os primeiros sinais da morte,
que silenciosamente se instalava em cada batida de seu coração envenenado. O veneno na xícara de café diária não era apenas minha arma, mas também minha sentença contra um sistema que falhara em proteger todas aquelas meninas. À medida que as semanas passavam, os sintomas de Tadeu tornavam-se mais evidentes e frequentes. A caminhada até a prefeitura, antes realizada com passos firmes e postura ereta, agora incluía paradas para recuperar o fôlego. Seu rosto, anteriormente corado pela saúde aparente, adquiriu uma palidez preocupante que nem mesmo mamãe podia ignorar. As dores no peito, inicialmente esporádicas, agora o acordavam durante a
noite, fazendo-o sentar-se na cama ofegante, o suor frio escorrendo pela testa enquanto pressionava a mão contra o externo, como se tentasse conter algo que se debatia dentro dele. A preocupação crescente de mamãe finalmente o convenceu a consultar o Dr. Silveira, único médico disponível em São Tomé das Letras. Era um senhor idoso e milp que atendia em um consultório improvisado nos fundos de sua casa, equipado com instrumentos antiquados e conhecimentos médicos que não haviam se atualizado nas últimas décadas. Suas mãos trêmulas examinaram o peito de Tadeu. Seus ouvidos parcialmente surdos tentaram escutar as irregularidades cardíacas através
de um estetoscópio desgastado pelo tempo. O diagnóstico foi vago, como eu esperava. Problemas cardíacos. possivelmente congênitos, agravados pela idade e pelo estresse. Durante esse período, vivia em constante estado de alerta, temendo ser descoberta. Cada olhar dirigido a mim parecia conter uma acusação silenciosa. Cada sussurro entre vizinhos soava como uma denúncia iminente. As noites transcorriam em vigília inquieta, assolada por pesadelos vívidos, onde era arrastada pelas ruas de pedra, apontada por dedos acusadores, abandonada por mamãe e separada para sempre de Cecília. acordava encharcada de suor frio, verificando compulsivamente se o livro de receitas de vovó continuava bem
escondido sob a tábua solta no quarto que compartilhava com minha irmã. Paradoxalmente, enquanto Tadeu definhava fisicamente, sua crueldade parecia intensificar-se, como se pressentisse que seu tempo estava se esgotando e precisasse deixar marcas permanentes em suas vítimas. Seus toques tornaram-se mais agressivos, suas ameaças mais explícitas, sua vigilância mais sufocante. Aquela deterioração moral paralela à física apenas reforçou minha convicção de que estava executando não um assassinato, mas uma sentença justa contra um monstro que o mundo se recusava a reconhecer e punir. A cada gota de veneno que adicionava ao seu café matinal repetia mentalmente os nomes das
meninas listadas naquele diário que agora existia. apenas como cinzas no fundo do quintal. O farmacêutico seu Joaquim, homem alto e magro, com olhos penetrantes que pareciam enxergar além das aparências, começou a lançar olhares curiosos em minha direção quando visitava sua pequena farmácia para comprar ingredientes comuns que complementariam minha fórmula letal. Numa tarde particularmente quente, enquanto pesava cuidadosamente folhas de hortelã que solicitei, comentou casualmente sobre as propriedades da dedaleira que crescia no fundo de meu quintal, planta que ele reconhecera ao passar pela cerca de nossa casa. Seu olhar sustentou o meu por alguns segundos a mais
que o necessário, comunicando silenciosamente algo que não pude decifrar completamente. Era suspeita, compreensão ou cúmplice silêncio. Cecília, em sua inocência parcialmente preservada, notou as mudanças no comportamento de Tadeu, mas as interpretou como uma bênção inexplicável. contou-me num sussurro aliviado durante uma tarde em que lavávamos roupas no tanque do quintal, que ele já não entrava em nosso quarto à noite, que já não a chamava para sentar em seu colo durante as refeições, que parecia evitá-la como se temesse alguma contaminação invisível. A alegria cautelosa em sua voz, ao compartilhar essas observações, alimentou minha determinação nos momentos em
que o peso moral de minhas ações ameaçava me paralisar. Aquele pequeno renascimento, na expressão de minha irmã, valia qualquer preço que o destino ou a justiça dos homens exigisse de mim. Os sonhos, que antes eram povoados por cenários de perseguição e punição, transformaram-se gradualmente em conversas noturnas com vovó Donana. Em certa ocasião, particularmente vívida, ela apareceu sentada na beirada de minha cama, seu rosto enrugado, gentilmente iluminado pela luz da lua que entrava pela janela. Não me julgou pelas escolhas que fiz, apenas a sentiu com compreensão, explicando que certas ervas crescem para curar e outras para
proteger. Que conhecimento é como uma faca que pode tanto cortar o pão quanto ferir um agressor. Que mulheres sempre precisaram conhecer segredos que homens não compreenderiam. Acordei daquele sonho com lágrimas nos olhos, sentindo uma paz que havia muito não experimentava. A rotina de administrar o veneno tornou-se mecânica, quase como um ritual religioso executado com precisão sacerdotal. Conhecia exatamente quantas gotas adicionar para acelerar o processo sem levantar suspeitas, como ajustar a concentração para intensificar determinados sintomas enquanto suprimia outros mais reveladores. Desenvolvi uma habilidade assustadora em observar sinais clínicos, em prever como o organismo de Tadeu reagiria
a cada nova dose, em calcular quanto tempo restava até que seu coração finalmente desistisse da luta desigual. contra o veneno que silenciosamente o corroía. Esta capacidade de dissimulação, esta frieza calculista em alguém tão jovem, às vezes me assustava mais que o próprio ato que estava cometendo. Numa manhã particularmente fria, quando a névoa baixa envolvia as ruas de pedra como um manto fantasmagórico, Tadeu pediu para conversar comigo a sós no quintal dos fundos. Seu rosto, agora permanentemente pálido e marcado por olheiras profundas. tinha uma expressão estranhamente calma, quase resignada. com voz fraca, mas firme, confidenciou que
sabia que estava morrendo, que sentia a vida escapando-lhe um pouco mais a cada dia. Então, olhando diretamente em meus olhos, com uma lucidez perturbadora, perguntou se eu estava feliz vendo-o definhar, se estava satisfeita com o que havia feito. Meu coração congelou por um instante, pensando que havia descoberto meu segredo, mas suas palavras seguintes revelaram que se referia a algo completamente diferente. acreditava que eu o havia amaldiçoado com algum ritual aprendido com minha avó, não, que o envenenava metodicamente a cada manhã. Esta história precisa ser compartilhada para que outras pessoas possam compreender os caminhos tortuosos que
somos forçados a trilhar quando todas as portas convencionais estão fechadas. Se você conhece alguém que talvez esteja enfrentando uma situação impossível, sem saídas visíveis, compartilhe este vídeo. Às vezes, saber que não estamos sozinhos em nossas lutas desesperadas pode ser a diferença entre sucumbir ao desespero e encontrar forças para seguir em frente, mesmo quando o caminho parece impensavelmente difícil e as escolhas disponíveis parecem todas erradas de algum O fim chegou numa noite de domingo durante o jantar, quase dois meses após eu iniciar o envenenamento gradual. Estávamos todos à mesa, mamãe, Cecília, eu e Tadeu, que mal
conseguia comer devido às dores constantes no peito. A refeição transcorria em silêncio opressivo, interrompido apenas pelo tilintar dos talheres contra os pratos e ocasionais goles d'água. Tadeu havia acabado de levar à boca um pedaço de carne quando seu rosto contorceu-se numa expressão de dor aguda. O garfo caiu com estrépito enquanto ele agarrava o peito com ambas as mãos, os olhos arregalados numa expressão de pânico animal. Mamãe levantou-se num sobressalto, derrubando o copo de água que se estilhaçou no chão, como o presságio sonoro do que estava por vir. Cecília encolheu-se na cadeira, os olhos arregalados fixos
na figura cambaleante de nosso padrasto. Permaneci sentada, observando com uma calma surpreendente até para mim mesma, enquanto Tadeu escorregava da cadeira para o chão, tentando inutilmente agarrar-se à toalha da mesa, levando consigo pratos e talheres num estrondo caótico, que pareceu desproporcionalmente alto no silêncio daquela noite. Os minutos seguintes desenrolaram-se como uma cena ensaiada, cada ator cumprindo perfeitamente seu papel no drama final. Mamãe gritava por socorro, sacudindo o corpo cada vez mais inerte de Tadeu. Cecília chorava silenciosamente num canto, mais assustada pela reação da mãe que pela visão do padrasto morrendo. Vizinhos acorreram alarmados pelos gritos,
homens tentando inutilmente reanimá-lo com tapas no rosto e massagens desajeitadas no peito. Mulheres consolando mamãe que agora soluçava descontroladamente agarrada às pernas do marido. Alguém correu para chamar o Dr. Silveira, que chegou ofegante 15 minutos depois, mas era tarde demais. O médico ajoelhou-se ao lado do corpo, verificou a ausência de pulso, ouviu o peito silencioso com seu velho estetoscópio e, finalmente, confirmou o óbito com um suspiro pesado que carregava o peso das inúmeras mortes que já testemunha em sua longa carreira. diagnosticou o que todos já esperavam: insuficiência cardíaca fulminante, destino cruel, mais comum para homens
daquela idade, especialmente considerando os sintomas que Tadeu vinha apresentando nas últimas semanas. O velório foi realizado na sala de nossa casa. Tradição ainda mantida nas pequenas cidades do interior naquela época. O caixão de madeira escura fornecida pela única funerária local ocupava o centro do cômodo, rodeado por arranjos de flores silvestres e velas que projetavam sombras dançantes nas paredes. Moradores de toda São Tomé das Letras desfilaram pela sala ao longo do dia e da noite, oferecendo condolências padronizadas, comentando em sussurros sobre a fatalidade do destino, sobre como Tadeu parecia saudável até bem pouco tempo atrás, sobre
a tristeza de deixar uma viúva tão jovem. Enquanto as pessoas se aglomeravam ao redor de mamãe, oferecendo palavras de consolo que soavam vazias e repetitivas, mantive-me afastada, sentada num canto escuro da sala, observando o rosto sereno de Tadeu no caixão. A morte havia apagado qualquer vestígio da crueldade que seus olhos costumavam revelar, substituindo-a por uma placidez artificial que parecia zombar de mim. Perguntei-me naquele momento se alguém além de mim conseguia ver, além daquela máscara pacífica, se alguém mais suspeitava da monstruosidade que havia habitado aquele corpo, agora inerte, agora inofensivo. O enterro ocorreu na manhã seguinte,
no pequeno cemitério encravado na Encosta Rochosa que dominava a cidade. O padre Denilson conduziu as orações finais, elogiando Tadeu como um homem exemplar, um marido dedicado, um padrasto amoroso, palavras que escorriam como veneno em meus ouvidos. Observei o caixão ser baixado lentamente à sepultura enquanto mamãe soluçava apoiada nos ombros do coveiro Zé Pedro. Cecília segurava minha mão com força, sua expressão indecisível, uma mistura de medo, confusão e, embora me doesse admitir, um visível alívio que espelhava meus próprios sentimentos. Naquela noite, após o funeral, quando finalmente ficamos sozinhas no quarto que compartilhávamos, Cecília aproximou-se de mim
na escuridão. Sussurrou baixinho, quase inaudivelmente, que sabia o que eu havia feito, que me observara colhendo as folhas de dedaleira, preparando o extrato no sótam, adicionando gotas ao café matinal de Tadeu. Seu tom não carregava acusação ou horror, apenas uma compreensão profunda e madura demais para seus 10 anos de idade. Antes que pudesse responder, ela abraçou-me com força surpreendente, murmurando um único e sincero "Origada contra meu ombro". Palavras que simultaneamente me absolveram e me condenaram para sempre. As semanas que se seguiram foram marcadas por um estranho período de adaptação. Mamãe, abatida pelo luto, passava horas
sentada na cadeira de balanço da varanda, olhar perdido no horizonte, respondendo apenas quando diretamente questionada. A administração da casa recaiu inteiramente sobre meus ombros. cuidar das refeições, da limpeza, das roupas, das plantas medicinais que continuávamos a vender. Assumi também a responsabilidade pelos estudos de Cecília, ajudando-a com lições que eu mesma mal havia aprendido, determinada que ela teria oportunidades que agora pareciam impossíveis para mim. Gradualmente, uma nova rotina estabeleceu-se em nossa casa. Mamãe lentamente emergiu de seu estupor, voltando a lavar roupas para as famílias abastadas da cidade. Cecília retornou à escola, onde seu talento para música
finalmente recebeu o reconhecimento merecido, com a professora sugerindo aulas especiais para desenvolver suas habilidades naturais. Eu, por minha vez, retomei os estudos interrompidos, agora com uma determinação renovada de transformar o conhecimento de ervas medicinais herdado de vovó donana. em algo positivo, em cura em vez de destruição, em vida em vez de morte. Certa tarde, cerca de três meses após o funeral, ao retornar da escola, encontrei o farmacêutico seu Joaquim, esperando-me na varanda de nossa casa. Seu olhar penetrante fixou-se no meu enquanto explicava que viera oferecer-me um trabalho como assistente em sua farmácia, impressionado que estava
com meu conhecimento de plantas medicinais. Enquanto conversávamos sobre os detalhes do arranjo proposto, percebi um brilho em seus olhos que comunicava muito mais do que suas palavras educadas transmitiam. No momento em que nos despedimos, ele apertou minha mão com força significativa, murmurando que certas plantas, como a dedaleira, precisavam ser manuseadas com extremo cuidado, pois a linha entre remédio e veneno era tênue demais para olhos desatentos. Os anos que se seguiram à morte de Tadeu foram de reconstrução cuidadosa, como replantar um jardim devastado por uma tempestade. A ausência dele não foi lamentada, apenas constatada, como se
nota a passagem de uma estação especialmente severa, com alívio disfarçado e esperança cautelosa pelo que viria a seguir. Nossa casa, antes sufocada por sua presença opressiva, pareceu gradualmente expandir-se, tornando-se mais luminosa, permitindo que risos ocasionais ecoassem pelos cômodos, que antes testemunharam apenas sussurros e lágrimas abafadas contra travesseiros. Mamãe nunca se recuperou completamente, não porque sentisse verdadeira saudade de Tadeu, mas porque a culpa de não ter percebido, ou talvez ter escolhido não perceber o que acontecia sob seu próprio teto, a consumia silenciosamente. Nos anos seguintes, raramente mencionava seu nome, referindo-se a ele apenas como seu padrasto,
ou, mais frequentemente evitando qualquer referência direta. Seu cabelo escuro embranqueceu prematuramente e rugas profundas instalaram-se ao redor de seus olhos e boca, como se o tempo cobrasse juros pelo período em que fechara os olhos para a nossa realidade. Cecília floresceu de maneiras que enchiam meu coração de uma alegria agri doce. Seu talento musical, antes abafado pelo medo constante, explodiu em beleza incontida. A professora convenceu um músico aposentado de Belo Horizonte que viera para São Tomé das Letras, em busca de tranquilidade, a dar-lhe aulas particulares de piano. Suas pequenas mãos, que antes tremiam ao menor som
de passos no corredor, agora dançavam sobre as teclas com confiança e expressividade, que arrancavam lágrimas dos ouvintes mais sensíveis durante as apresentações escolares. O trabalho na farmácia de seu Joaquim tornou-se meu refúgio e caminho para redenção. Inicialmente, limitava-me a organizar prateleiras e atender clientes com pedidos simples, mas logo ele percebeu meu conhecimento profundo sobre ervas medicinais e começou a confiar-me tarefas mais complexas. Aos 18 anos já preparava tinturas, pomadas e infusões, seguindo tanto as receitas tradicionais da farmacologia quanto os conhecimentos herdados de vovó Donana, agora aplicados exclusivamente para aliviar sofrimentos, nunca mais para causá-los. A
comunidade que antes via nossa família, com uma mistura de pena e respeito distante, passou a nos enxergar sob nova luz. Mamãe continuou com seu trabalho de lavadeira, mas agora com uma clientela expandida e respeitosa. Eu me tornei conhecida como a moça das ervas, devido ao crescente renome de meus remédios naturais. Cecília, com seu talento extraordinário e personalidade cativante, era recebida com sorrisos genuínos por onde passava. As pessoas pareciam ter esquecido completamente que um dia fomos à família do Tadeu. Uma bênção disfarçada que facilitou nossa reinserção social. Os pesadelos, no entanto, persistiram por anos. acordava frequentemente
banhada em suor frio, imagens vívidas de Tadeu levantando-se do caixão para revelar meu segredo, ou autoridades batendo a porta para me levar embora em algemas, enquanto Cecília gritava meu nome, esticando os braços em súplica inútil. Na pior dessas visões noturnas, não era Tadeu quem morria naquela mesa de jantar, mas Cecília ou mamãe, vítimas de algum erro terrível na dosagem do veneno que eu preparara. Essas noites me deixavam exausta e temerosa, reforçando minha decisão de jamais voltar a usar meu conhecimento para ferir, não importa quão justificável parecesse. Com o passar dos anos, construí uma reputação sólida
como curandeira conhecedora das propriedades de plantas locais. Pessoas de cidades vizinhas começaram a procurar-me para problemas que médicos convencionais não conseguiam resolver. Dores crônicas que não respondiam a medicamentos, insônia persistente, melancolia profunda que nenhuma palavra de conforto aliviava. Para cada aflição, buscava no conhecimento herdado e ampliado a solução mais gentil, mais natural, mais alinhada com a sabedoria ancestral que corria em minhas veias. A ironia de usar as mesmas mãos que um dia administraram morte para agora distribuir cura não me escapava. O relacionamento com Cecília evoluiu para algo que transcendia a simples irmandade. Éramos confidentes, cúmplices,
guardiãs do segredo que nos unia mais firmemente que o próprio sangue. Nunca mais falamos abertamente sobre o que eu fizera, mas a consciência compartilhada pairava entre nós como um entendimento silencioso. Quando, aos 17 anos, recebeu uma bolsa de estudos para o Conservatório de Música em Belo Horizonte, apoiei sua partida com uma mistura de orgulho e tristeza. Ao abraçá-la na estação de trem, sussurrei que agora ela estava verdadeiramente livre, que voasse tão alto quanto seu talento permitisse, que vivesse a vida plena que quase lhe fora roubada. Quanto a mim, nunca consegui formar laços românticos duradouros. Os
poucos homens que demonstraram interesse ao longo dos anos acabavam afastados por barreiras invisíveis que erguia instintivamente. O toque masculino, mesmo quando oferecido com genuína ternura, reavivava memórias que preferia manter enterradas nas camadas mais profundas da consciência. As poucas tentativas de intimidade terminavam invariavelmente com recuos abruptos, explicações incoerentes e, eventualmente, resignação à solidão como companheira mais confiável que qualquer pretendente em potencial. A cicatriz emocional deixada por Tadeu revelou-se mais permanente que qualquer marca física. Você deve estar se perguntando como convivi com a magnitude daquilo que fiz. Como cada manhã, consegui olhar no espelho e reconhecer a
pessoa que me devolvia o olhar. Como reconciliei a menina que sonhava ser professora com a jovem que se tornou juíza, juuri e executora. A verdade é que nunca houve reconciliação completa, apenas uma acomodação gradual entre as diferentes versões de mim mesma. Aprendi a viver com o peso dessa decisão, como se aprende a viver com uma deficiência física permanente, adaptando-se, compensando, seguindo em frente, apesar das limitações impostas pelas consequências de um momento que não pode ser. Os anos transformaram-se em décadas e vi São Tomé das Letras mudar gradualmente ao meu redor. As ruas de pedra, antes
percorridas apenas por carroças e cavalos, começaram a receber automóveis que subiam penosamente às ladeiras íngres. A eletricidade chegou, substituindo os lampiões a quererosene que iluminavam as noites de minha juventude. A antiga igreja recebeu um sino novo, cujo som reverberava diferentemente entre as construções de pedra. A cidade que antes vivia da agricultura e pequeno comércio descobriu sua vocação turística, atraindo visitantes fascinados pelo misticismo atribuído às formações rochosas e às histórias de curas milagrosas. Cecília construiu uma carreira brilhante como pianista, inicialmente no Brasil e posteriormente na Europa. Suas cartas vinham de Paris, Viena, Londres, descrevendo teatros majestosos
onde se apresentava, pessoas importantes que a aplaudiam, a vida glamorosa que nunca teríamos imaginado possível para a menina assustada de São Tomé das Letras. Visitava-nos uma vez por ano, trazendo presentes exóticos e histórias ainda mais extraordinárias. Em cada visita, enquanto mamãe dormia, sentávamos na varanda sob o céu estrelado e conversávamos em sussurros sobre aquela noite distante que mudara nossas vidas. Mamãe faleceu quando eu tinha 42 anos, mesma idade que Tadeu tinha quando entrou em nossas vidas. Foi uma morte tranquila durante o sono, sem sofrimento aparente, como se finalmente pudesse soltar o fardo que carregara por
tanto tempo. Ao arrumar seus pertences, encontrei escondido no fundo de uma gaveta um diário que ela mantivera nos últimos anos. As páginas revelaram algo que me abalou profundamente. Ela sempre soubera, ou ao menos suspeitara do que Tadeu fazia conosco. Seu silêncio não fora apenas cegueira, mas também covardia e dependência financeira. Essa descoberta reabriu feridas que acreditava cicatrizadas, forçando-me a reavaliar não apenas o passado, mas também minha própria responsabilidade nas escolhas feitas. A raiva inicial contra a mamãe logo deu lugar a uma compreensão mais complexa das armadilhas em que mulheres como ela se viam enredadas, sem
educação, sem recursos, sem apoio social, incapazes de imaginar uma vida independente, educadas para tolerar e servir. O perdão veio gradualmente, não como um momento epifânico, mas como um processo lento de aceitação das fragilidades humanas, incluindo as minhas próprias. A farmácia de seu Joaquim tornou-se minha após sua morte, transformando-se gradualmente em um centro de medicina natural que atraía pessoas de toda a região. Expandi o cultivo de ervas medicinais, dedicando o quintal inteiro à produção de plantas cada vez mais diversificadas. Documentei cuidadosamente o conhecimento tradicional em cadernos que pretendia um dia transformar em livro, preservando saberes que
a medicina moderna frequentemente ignorava. Desenvolvi fórmulas próprias para problemas comuns, combinando o legado de vovó Donana com descobertas científicas mais recentes. Em uma tarde chuvosa de 1983, quando já passava dos 50 anos, recebi uma visita inesperada que abalou a estabilidade que havia construído tão cuidadosamente. Uma mulher de meia idade, com olhos que carregavam um sofrimento familiar, bateu à minha porta, perguntando pela moça das ervas. apresentou-se como Helena, vinda de Baependi, cidade onde Tadeu viveira, antes de mudar-se para São Tomé das Letras. À medida que nossa conversa avançava, percebi com o horror crescente que ela também
fora vítima dele anos antes. Outra enada, outra menina, cujo nome provavelmente constava naquele diário que eu reduzira as cinzas. Helena não viera em busca de cura para alguma doença física, mas para confirmar rumores que ouvira sobre a misteriosa morte de seu padrasto. Por décadas, carregara o peso de não ter conseguido proteger a irmã mais nova dos abusos, de ter fugido sozinha ao completar 18 anos, de ter sido consumida pela culpa que a impedira de construir relacionamentos saudáveis. buscava algum tipo de encerramento, alguma certeza de que o monstro de sua infância realmente não poderia mais ferir
ninguém, e talvez secretamente a absolvição por não ter conseguido detê-lo como eu fizera. Durante horas, sentadas à mesa da cozinha com xícaras de chá de camomila entre nós, compartilhamos histórias dolorosamente semelhantes. Não confessei diretamente meus atos, mas algo em meu olhar, na firmeza de certas afirmações, na precisão com que descrevia os sintomas finais de Tadeu, comunicou a Helena o que palavras não podiam expressar abertamente. quando finalmente partiu, abraçou-me com força surpreendente, murmurando um obrigada carregado do mesmo significado que o de Cecília tantos anos antes. Gratidão não pelo que eu dissera, mas pelo que fizera. Aquele
encontro inesperado trouxe uma nova dimensão à minha compreensão do que ocorrera. O que antes via como uma decisão isolada, nascida de circunstâncias extremas e desesperadas, revelou-se parte de um padrão maior de predação sistemática que provavelmente teria continuado, indefinidamente não fosse minha intervenção. As histórias de Helena confirmaram que Tadeu mudara-se para São Tomé das letras, fugindo de suspeitas crescentes, e que teria provavelmente seguido para outra cidade, encontrado outra viúva vulnerável, continuado seu ciclo de abusos, não fosse sua morte prematura. O peso do que fiz tornou-se simultaneamente mais leve e mais significativo. Nos anos que se seguiram,
outras mulheres ocasionalmente apareciam à minha porta. Algumas trazidas por Helena, outras guiadas apenas pelos rumores que circulavam em sussurros. Vinham de diferentes cidades, diferentes épocas da vida de Tadeu. Mas suas histórias ecoavam-se com variações mínimas do mesmo horror fundamental. Para cada uma oferecia chá reconfortante, ouvidos atentos e, sem jamais admitir explicitamente o que fizera, a certeza de que o homem que as atormentara estava realmente morto e enterrado, incapaz de atormentar seus sonhos com ameaças de retorno. Formou-se assim uma irmandade silenciosa de sobreviventes unidas por cicatrizes invisíveis causadas pelo mesmo algóz. Você que me ouve agora,
talvez esteja julgando minhas ações, questionando-se se a justiça pelas próprias mãos pode realmente ser chamada de justiça. Entendo essas dúvidas. Elas me acompanharam por décadas, visitando-me nas noites inses, nas reflexões solitárias, nos momentos de introspecção forçada. Não busco absolvição ou aprovação, apenas compreensão das circunstâncias impossíveis que moldaram uma decisão tomada por uma adolescente desesperada, num tempo e lugar onde o silêncio era a única resposta oferecida às vozes vulneráveis que ousavam se levantar contra seus opress. Hoje, aos 80 anos, vivo entre minhas violetas e ervas medicinais, observando o mundo transformar-se com uma velocidade que minha geração
jamais poderia ter imaginado. São Tomé das Letras tornou-se um destino turístico conhecido por seu misticismo, suas formações rochosas peculiares e suas histórias de curas milagrosas. Visitantes de todo o país sobem às ladeiras de pedra, compram cristais e amuletos, fotografam as ruas pitorestas, sem jamais suspeitar dos segredos que estas pedras antigas testemunharam, das histórias não contadas que permeiam cada construção centenária. O quintal, onde cultivava a dedaleira agora abriga dezenas de espécies medicinais diferentes, organizadas cuidadosamente, conforme suas propriedades e necessidades de solo e luz. Este jardim tornou-se meu legado vivo, um testemunho do conhecimento acumulado ao longo
de décadas dedicadas à cura e ao alívio do sofrimento. Jovens interessados em medicina natural ocasionalmente vem aprender comigo, anotando cuidadosamente receitas e técnicas que remetem a tempos anteriores aos antibióticos e analgésicos sintéticos. Transmito tudo que sei, exceto um conhecimento específico que jurei nunca mais ensinar a ninguém. Cecília aposentou-se após uma carreira internacional brilhante e retornou recentemente a São Tomé das Letras, comprando uma casa próxima à minha. Seu rosto, agora marcado por linhas de expressão que não diminuem sua beleza, ainda se ilumina quando toca o piano que trouxe da Europa. Aos 73 anos, dá aulas para
crianças talentosas da região, transmitindo não apenas técnica musical, mas também a resiliência que permitiu a uma menina de uma pequena cidade mineira conquistar palcos internacionais após superar traumas que teriam destruído espíritos menos determinados. Há uma década, quando completei 70 anos, finalmente publiquei o livro que documentava o conhecimento sobre ervas medicinais, acumulado por três gerações de mulheres em minha família. Nas entrelinhas das descrições técnicas e receitas cuidadosamente detalhadas, escondió pessoal em metáforas que apenas leitores muito atentos conseguiriam decifrar. sobre plantas que protegem, ervas que libertam, a sabedoria feminina que encontra caminhos quando todas as portas parecem
fechadas. O túmulo de Tadeu no cemitério local tornou-se apenas mais uma lápide desgastada pelo tempo, visitada somente quando trabalhadores municipais limpam o local antes do dia de finados. Seu nome raramente é mencionado na cidade e quando surge em alguma conversa entre os moradores mais antigos, é apenas como referência temporal antes do seu Tadeu falecer ou depois que a viúva do Tadeu voltou a lavar roupas. O homem que um dia aterrorizou nossas vidas foi reduzido a uma nota de rodapé na história da cidade, enquanto as vidas que ele tentou destruir floresceram apesar de suas ações. O
farmacêutico seu Joaquim, meu mentor e protetor silencioso, faleceu há mais de 30 anos, levando para o túmulo o conhecimento exato do que acontecera naquela casa de pedra. Em seus últimos dias, quando o visitei no hospital em Belo Horizonte, segurou minha mão com força surpreendente para alguém tão debilitado e confessou algo que me deixou momentaneamente sem fôlego. Sempre soubera exatamente o que eu fizera, reconhecendo os sintomas do envenenamento por digitalina desde o início. Escolhera a não denunciar, porque em suas palavras algumas pestes precisam ser eliminadas antes que contaminem todo o jardim. As outras vítimas de Tadeu
que conheci ao longo dos anos formaram uma rede informal de suporte mútuo que transcende distâncias geográficas e diferenças sociais. Mulheres que compartilham cicatrizes invisíveis, unidas por experiências que a maioria das pessoas não conseguiria compreender. Trocamos cartas, telefonamos ocasionalmente, encontramos-nos em pequenas reuniões que parecem para observadores externos, apenas encontros de senhoras idosas, compartilhando receitas e fofocas inofensivas. Neste círculo protegido, podemos finalmente nomear o inominável, expressar a raiva e o luto que a sociedade nunca nos permitiu manifestar abertamente. Nunca enfrentei consequências legais pelos meus atos, protegida pelo conhecimento limitado da época sobre toxicologia, pela reputação intocável que
construí cuidadosamente e pelas circunstâncias específicas que tornaram a morte de Tadeu aparentemente natural. O único julgamento que enfrentei foi o da minha própria consciência, tribunal implacável que nunca permite prescrição de crimes, que revisa incessantemente as evidências, que questiona repetidamente a necessidade e a justiça das ações tomadas. Nesse tribunal interno, oscilo entre condenação e absolvição, entre arrependimento e convicção, entre o peso da culpa e a certeza de que fiz o que precisava ser feito. A sociedade mudou dramaticamente desde 1958, criando sistemas de proteção e leis que não existiam quando eu era adolescente. Acompanho essas transformações com
esperança cautelosa, questionando-me se meninas como eu e Cecília teriam hoje caminhos diferentes, recursos legítimos, adultos dispostos a acreditar e intervir. Cada notícia sobre delegacias especializadas, linhas diretas de denúncia, abrigos para vítimas, representa para mim não apenas um avanço social, mas também a validação tardia de que o horror que vivenciamos era real, era inaceitável e que a sociedade finalmente começa a admitir sua responsabilidade coletiva. Você que assistiu a este vídeo até o fim, agora carrega um fragmento do meu segredo mais profundo, uma confissão que permaneceu enterrada por 65 anos. Se você também guarda histórias que nunca
pôde contar, saiba que não está sozinho neste silêncio forçado, nesta memória que pesa como pedra. Talvez seu silêncio seja necessário, talvez seja opressivo, talvez seja um escudo que um dia poderá ser baixado quando o momento for seguro. Não posso julgar suas escolhas, assim como não peço seu julgamento sobre as minhas. Apenas ofereço o reconhecimento de que algumas decisões são impossivelmente difíceis, especialmente quando tomadas no escuro, sem orientação, sem apoio, sem alternativas visíveis. Se gostou dessa história, por favor, inscreva-se neste canal e deixe seu like no vídeo. Compartilhe com pessoas que você acredita que possam encontrar
nestas palavras algum conforto, alguma compreensão, talvez até mesmo coragem para buscar ajuda se estiverem enfrentando situações impossíveis. Enquanto continuo a cuidar de minhas violetas neste entardecer de minha vida, encontro paz ao saber que estas flores delicadas que crescem entre pedras simbolizam a resiliência que permitiu a uma menina assustada não apenas sobreviver, mas eventualmente florescer, apesar das pedras e sombras que se interpuseram em seu caminho. Como diziam os antigos em São Tomé das letras, algumas vidas são como as plantas mais resistentes. Podem ser forçadas a crescer nas fendas das rochas, mas ainda assim encontram seu caminho
em direção à luz. Me despeço com um abraço apertado. [Música]