Marilena Chauí: O mito da não-violência brasileira

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CERP-SC Centro de Estudos em Reparação psíquica SC
Aula Magna do curso "Como lidar com os efeitos psicossociais da violência?", organizado pelo CERP-SC...
Video Transcript:
a palavra violência vem do latim vis força e ela significa um tudo que age usando a força para ir contra a natureza de algum ser a violência é desnaturar dois todo ato de força contra espontaneidade a vontade e a liberdade de alguém A violência é coagir constranger torturar brutalizar terceiro todo o ato de violação da natureza de alguém ou de alguma coisa valorizada positivamente por uma sociedade ela é a violência é o ato de violar de profanar quatro todo o ato de transgressão por positiva todo ato de transgressão contra aquelas coisas e ações que alguém
ou uma sociedade define como justas e como um direito a violência é espoliar ou a injustiça deliberada quinto como consequência A violência é um ato de brutalidade cício e Abuso físico ou psíquico contra alguém e caracteriza relações intersubjetivas e sociais definidas pela opressão e pela intimidação pelo medo e pelo terror A violência é a presença da ferocidade nas relações com o outro enquanto outro ou seja simplesmente porque ele é outro A violência é o oposto da coragem e da valentia porque ela é o exercício da Crueldade se é isto A violência é evidente que ela
se opõe à ética porque ela trata seres Racionais e sensíveis dotados de linguagem e de Liberdade como se fossem coisas Isto é irracionais insensíveis mudos e inertes passivos na medida em que a ética é inseparável da figura do sujeito racional voluntário livre responsável tratá-lo como se fosse desprovido de razão vontade liberdade e responsabilidade é tratá-lo não como um humano e sim como uma coisa fazendo-lhe violência nos cinco sentidos que nós demos a essa essa palavra da mesma maneira é evidente que a violência se opõe à política democrática uma vez que essa se define pela figura
do sujeito político como sujeito de direitos que age pela criação e Conservação de direitos contra a dominação dos privilégios e impede o exercício do Poder pela força pela opressão pela intimidação pelo medo e pelo terror portanto a violência é aquilo que impede a ética e a política democrática ora há no Brasil um mito poderoso a gente encontra isso que eu vou dizer aqui a gente encontra em cada esquina em cada bairro em cada cidade em cada praia em cada bar em cada supermercado em cada vendinha da esquina tempo inteiro qualquer brasileiro o tempo inteiro dirá
isto para você há no Brasil um mito Poderoso o da não violência brasileira Isto é a imagem de um povo Generoso Alegre sensual solidário que desconhece o racismo o sexismo o machismo que respeita as diferenças étnicas religiosas e políticas não discrimina as pessoas por suas escolhas sexuais etc Por que é que eu emprego a palavra mito e não por exemplo a palavra ideologia para me referir à maneira como a não violência é imaginada no Brasil eu emprego a palavra mito dando os seguintes sentidos primeiro como indica a palavra grega mitos O mito é uma narrativa
sobre a origem de um povo de uma sociedade e essa narrativa é reiterada em inúmeras narrativas derivadas que repetem a matriz da primeira narrativa a qual entretanto já é uma variante de uma narrativa anterior cuja origem se perdeu em suma O mito é a narrativa da origem sem que exista uma narrativa originária dois o mito opera com antinomias tensões e contradições que não podem ser resolvidas sem uma profunda transformação da sociedade no seu todo e por isso elas são transferidas para uma solução imaginária que torna suportável e justificável a realidade ou seja o mito Nega
e justifica a realidade que é negada por ele a realidade tá aí na tua cara e você tem um monte de dispositivos que permitem a você imaginariamente negar Essa realidade que está diante de você isso é um mito n terceiro o mito se cristaliza em crenças que são interiorizadas num grau tal que não são percebidas como crenças e sentidas não só como uma explicação da realidade mas como sendo a própria realidade em suma o mito substitui a realidade pela crença na realidade na rada por ele e torna invisível a realidade existente quatro o mito resulta
de ações sociais e produz como resultado outras ações sociais que o confirmam Isto é um mito produz valores ideias comportamentos práticas que o reafirmam ininterruptamente ele não é portanto um simples conjunto de ideias um mito é uma forma de ação e por último o mito Tem uma função apaziguadora e repetidora ele assegura para a sociedade a sua autoconservação sobre as transformações históricas Isso significa que um mito é um suporte de ideologias ele as fabrica para que possa simultaneamente enfrentar as mudanças históricas e negá-las Pois cada forma ideológica produzida está encarregada de manter a matriz mítica
inicial em suma Aia é apenas a expressão temporal de um mito fundador que a sociedade narra para si mesma sem cessar eu estou tomando portanto a palavra mito no sentido antropológico de solução imaginária para tensões conflitos e contradições que não encontram caminhos para serem resolvidos no plano simbólico e no plano real e estou tomando no sentido psicanalítico da repetição a repetição do fantasma né a produção fantasmática e a sua repetição ininterrupta neurose da mais pura qualidade né Falo em mito fundador porque a maneira de toda a fundação o mito propõe um vínculo entre o passado
como origem Isto é um passado que não cessa de existir que não permite o trabalho da própria história um passado que se conserva como peren presente nesse sentido o mito fundador na sua acepção psicanalítica é o impulso a repetição como impossibilidade de simbolização e sobretudo como um bloqueio a passagem ao real um mito fundador é aquele que não cessa de encontrar novos meios de exprimir-se novas linguagens Novos Valores e ideias de tal modo que quanto mais parece ser outra coisa tanto mais é a repetição de si mesmo no nosso caso o mito fundador é exatamente
o mito da não violência que é essencial à sociedade brasileira e cuja elaboração remonta ao período da descoberta e conquista da América e do Brasil em suma o grande mito que sustenta a imaginação social brasileira é o da não violência a nossa autoimagem de um povo que foi escolhido por Deus né vivemos por natureza Escolhidos por Deus por natureza e qualquer um diz para você qualquer um olha ol não sei onde tem terremoto não sei onde tem vulcão não sei onde tem tsunami não sei onde tem Nevasca não sei aqui não aqui é uma primavera
perene porque nós somos um dom de Deus Brasil é um dom de Deus aos brasileiros então começa aqui a natureza brasileira já não é violenta não tem violência já no nível da natureza então é óbvio que nós estamos destinados a não sermos psicologicamente e socialmente violentos a nossa natureza não o tem esse é o primeiro elemento do mito fundador que começa na hora que na hora que o Cristóvão Colombo escreve a primeira carta pra rainha e na hora que o Pedro vai Pedro Vas de Caminha escreve a primeira carta pro rei né essa terra que
é uma primavera permanente de um clima sempre temperado em que se plantando tudo dá né Essa é a carta do Pero vais né então natureza bem fazer protetora que nos faz pessoas não violentas nós não temos motivo para sermos violentos Porque nós não temos que combater as forças da natureza né isso nos dá a autoimagem de um povo ordeiro e Pacífico a bandeira nacional diz Ordem e Progresso somos nós então um povo ordeiro e Pacífico Alegre cordial acolhedor mestiço incapaz de discriminação ética religiosa social ou sexual acolhedor para os estrangeiros e Os migrantes generoso com
os orgulhoso das Diferenças regionais e evidentemente destinado a um grande futuro qualquer um qualquer lugar diz isso para você o tempo inteiro eu não sei se quando vocês foram pra escola vocês ainda aprendiam isso eu na escola que eu fui era isso que eu aprendia eu recitava no dia 7 de Setembro e no dia 15 de novembro eu recitava oav Bilac eu aprendi a recitar oav Bilac Tô vendo que muitos nem sabem quem é olav Bilac né então olav Bilac o poema que eu recitava no dia 7 de setembro no dia 15 de Novembro todo
ano no grupo escolar era o seguinte começava assim Ama com fé e orgulho a terra em que nasceste criança jamais verás um país como este Olha que mar que céu que Floresta a natureza que perpetuamente infesta é um ceio de mãe a transbordar carinhos eu recitava isso todo 7 de Setembro todo 15 de [Aplausos] Novembro Então eu fui formada no mito fundador eu não sei que forma eles T na escola para vocês como é que ele aparece eu acho que ele aparece com a ideia da da sensualidade da cabrocha do do do da ginga no
futebol né Nós temos é uma coisa maravilhosa porque nós somos sensuais temos uma Ginga isso só que nós pertencemos a uma civilização que considera que o corpo é inferior à alma que é espiritual e Imortal e a alma não é sensual é o corpo que é então nós temos uma desgraceira de um corpo que é puro pecado ou seja é uma tristeza né gente nós somos nós estamos mergulhados desde o primeiro dia que a gente nasce nessas contradições nessas naquilo que naquilo que o o flobert quando quando flober pela primeira vez analisou a sociedade burguesa
ele escreveu um dicionário chamado dicionário das ideias feitas em que tudo quanto era mediocridade estupidez ignorância tontice ele rejeitou ele Ele registrou na forma de um dicionário eu tenho vontade de escrever um assim a partir do do nosso mito fundador o que nós temos de ideia feita e que é só bobagem é isso então essa essa autoimagem que nós temos é a nossa pureza não violenta agora vem o problema vamos ver qual é o problema muitos indagar como o mito da não violência brasileira pode persistir sob o impacto da violência real cotidiana conhecida de todos
e que nos últimos tempos É também ampliada por sua divulgação e difusão pelos meios de comunicação de massa ora É justamente no modo de Interpretação da violência que o mito encontra meios para se conservar o mito da não violência permanece porque graças a ele admite-se a existência de fato da violência e ao mesmo tempo São fabricadas explicações para denegá-lo no instante mesmo em que ela é admitida a a principal eu vou examinar os vários mecanismos para fazer isso mas evidentemente o principal instrumento para afirmar que existe violência e negar que ela é constitutiva da sociedade
brasileira é alojar a violência num determinado ponto ela é alojada na criminalidade Então como ela se reduz ao campo da criminalidade ela fica Invisível em todo o restante né bom então como explicar que a exibição cotidiana pelos meios de comunicação de massa da violência país possa deixar intocado o mito da não violência e ainda suscitar o clamor do retorno à ética para responder nós precisamos examinar os mecanismos ideológicos de conservação dessa mitologia o primeiro primeiro mecanismo é o da exclusão afirma-se que a nação brasileira é não violenta e que se houver violência ela é praticada
por gente que não faz parte da Nação mesmo que tenha nascido no Brasil e viva no Brasil o mecanismo da exclusão produz a diferença entre um nós brasileiros não violentos e um eles não brasileiros violentos eles não fazem parte do nós o segundo mecanismo é o da distinção metafísica distingue-se entre o essencial e o acidental Isto é por Essência os brasileiros não são violentos portanto a violência é acidental ela é um acontecimento efêmero passageiro ela é uma epidemia ela é um surto né surto de violência epidemia de violência é uma coisa acidental passageira que se
localiza na superfície de um tempo e de um espaço precisos ela é definida como superável e deixa intacta a nossa essência não violenta o terceiro mecanismo é jurídico a violência fica circunscrita ao campo da ência e da criminalidade o crime sendo definido como ataque à propriedade privada furto roubo latrocínio esse mecanismo permite por um lado determinar Quem são os agentes violentos em 99% dos casos são os pobres e permite legitimar a ação esta sim violenta da polícia contra a população pobre os negros as crianças de rua os favelados ação policial Pode às vezes ser considerada
violenta ela recebe o nome de chacina ou massacre quando de uma só vez e sem motivo o número de assassinados é muito elevado no restante das vezes porém o assassinato policial é considerado normal e natural uma vez que se trata de proteger o nós contra o eles o quarto mecanismo é sociológico atribui-se a epidemia de violência a um momento definido no tempo aquele no qual se realiza a transição para a modernidade das populações que migraram do campo para a cidade das regiões mais pobres norte nordeste para as mais ricas e das cidades pequenas para cidades
maiores a migra todas essas migrações causariam o fenômeno temporário da anomia no qual a perda das formas antigas de sociabilidade ainda não foram substituí por novas fazendo com que Os migrantes normais das vezes pobres tendam a praticar atos isolados de violência que desaparecerão quando estiver completada a sua transição para a modernidade aqui não só a violência atribuída aos migrantes aos pobres aos desadaptados como ela ainda é consagrada como algo episódico e temporário e finalmente o último mecanismo é o da inversão do Real graças à produção de máscaras que permitem dissimular comportamentos ideias e valores violentos
como se fossem não violentos assim por exemplo o machismo é colocado como proteção natural a natural fragilidade feminina proteção que inclui a ideia de que as mulheres precisam ser protegidas delas próprias Pois afinal como todo mundo sabe o estupro é um ato feminino de provocação e sedução quem é que não sabia que mulheres é que fazem o estupro o paternalismo branco é visto como proteção para auxiliar a natural inferioridade dos negros a repressão contra os homossexuais é considerada uma proteção natural aos valores sagrados da família que agora também afetam a saúde e a vida do
gênero humano inteiro ameaçado pela aides trazida por esses degenerados a destruição do meio ambiente é orgulhosamente vista como sinal de progresso e civilização Em resumo eu poderia continuar mostrando as máscaras que invertem e transformam a violência em expressões de não violência a violência não é percebida ali mesmo onde ela se origina ali mesmo onde ela se define como violência propriamente dita Isto é como toda a prática e toda ideia que reduz um sujeito à condição de coisa que viole interior exteriormente o ser de alguém que perpetue relações sociais de profunda desigualdade Econômica social e cultural
mais do que isso a sociedade não percebe que as próprias explicações que ela oferece são violentas porque ela está cega ao lugar efetivo da produção Ou seja a estrutura da sociedade brasileira dessa maneira as desigualdades econômicas sociais e culturais as exclusões econômicas políticas e sociais a corrupção como forma de funcionamento das instituições o racismo o sexismo a intolerância religiosa sexual e polí Isto é a sociedade brasileira não é percebida como estruturalmente violenta e a violência aparece por isso como um fato esporádico de superfície em outras palavras a mitologia e os procedimentos ideológicos fazem com que
a violência que organiza e estrutura as relações sociais brasileiras não sejam percebidas eu passo então meu m
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