Eh! Boa tarde a todos! Sejam muito bem-vindos para mais um Caravelas Podcast. Hoje, eu tenho o prazer de receber o Professor Joel Gracioso e nós vamos conversar sobre a decadência do pensamento filosófico. Antes de iniciarmos a conversa, vamos aqui a nossos patrocinadores: a nossa Escola da Verdade Histórica. Vamos reabrir em outubro e tem o curso de idiomas Bade em inglês. Nosso método de estudo é o método ler. Nós lançamos um livro semana passada, "O Tríplice Pilar", e a promoção vai até hoje, né? Então, não perca a oportunidade de comprar com desconto! Também lançamos a
Editora Caravelas com dois títulos sobre a Revolução Francesa. Muito bom, professor! Obrigado por aceitar nosso convite. Conte um pouco da sua história. Então, eu sou formado em Filosofia pela Universidade de São Paulo. Entrei em 1990 lá, então já faz um tempinho. Fiz a graduação lá, depois tive a oportunidade de fazer mestrado e doutorado. Tanto o mestrado quanto o doutorado, eu fiz no pensamento de Santo Agostinho. E agora, enfim, estou fazendo um pós-doutorado pela Universidade do Porto, focado no pensamento de São Boaventura. Mas eu também sempre tive, no primeiro momento, uma formação muito tomista. Por vários
motivos, eu sou medievalista. Ou seja, no fundo, o contexto que eu acabo pesquisando, investigando, é muito essa questão mais da metafísica, da antropologia no medievo, principalmente Agostinho e Tomás, passando agora por Boaventura e correlacionando um pouco com o pensamento contemporâneo, principalmente no contexto da filosofia da religião. Então, eu também estudei Teologia, tenho formação teológica. No caso da Teologia, eu trabalho mais com Teologia Fundamental e Teologia Patrística, e, enfim, a Teologia Escolástica também é minha área de pesquisa e investigação. Eu trabalho no Seminário Maria Mata da Eclésia do Brasil, ligado ao Instituto Pontifício Regina Apostolorum, e
também sou professor da Academia Atlântico, da Faculdade de Mar Atlântico, nessa área de Filosofia, tanto antiga quanto medieval etc. Então, para mim, é uma alegria poder estar aqui e compartilhar um pouco isso que eu venho estudando. A Filosofia e a Teologia, para mim, são duas áreas muito preciosas. Infelizmente, às vezes, em muitos lugares, em muitas situações, o modo como se estuda ou se ensina Filosofia e Teologia acaba muitas vezes fazendo com que as pessoas tenham uma certa compreensão um pouco confusa e equivocada do que seja a Filosofia e a Teologia. Tanto que existe aquela sensação
que todo mundo brinca: quando você fala que faz Filosofia, meu pai, tadinho, é muito simples, sabia escrever o nome, praticamente ficava olhando pra minha cara, tipo: "Meu filho, como é que você vai viver? Como é que você vai pagar suas contas?" A ideia de que a Filosofia é uma coisa profundamente inútil. Tem duas vertentes muito interessantes: você fala que vai fazer Filosofia e que é muito religioso, olha para você e fala: "Cuidado, vai virar ou louco ou ateu, um dos dois." E, enfim, tem a coisa da inutilidade mesmo, a ideia de que a Filosofia é
aquilo pelo qual tudo continua tal e qual. Então, tem essa coisa da inutilidade, e tem essa coisa da loucura, da negação da própria realidade. Evidente que isso não é por acaso. Ou seja, se as pessoas têm essa sensação, essa visão, talvez muitas vezes os professores de Filosofia passam uma certa imagem com sua postura, com seu pensamento, com seu modo de trabalhar a própria Filosofia. Então, de fato, eu tive uma formação bem interessante nesse sentido, apesar de estudar em um ambiente que não era, enfim, religioso, católico, uma universidade pública. Mas o momento que eu vivi lá
era muito o estilo da USP, no sentido de aprender a ler textos. Você tinha ali os textos que eram considerados clássicos do mundo antigo, medieval, moderno e contemporâneo. E, nesse ponto, eu acho que foi muito interessante. O que eu realmente aprendi que me ajudou muito foi aprender a ler textos de Filosofia de uma maneira extremamente rigorosa, analisando os conceitos, as estruturas argumentativas. Lógico que pode haver todo um debate: "Ah, mas Filosofia é só isso? Filosofia é só aprender a ler textos de maneira rigorosa?" Enfim, ter como referência a história da Filosofia. Eu não acho que
a Filosofia seja só isso, mas eu entendo que a cultura filosófica e essa técnica filosófica são muito importantes. Elas ajudam muito. Acho que já é uma outra discussão. Então, nesse ponto, o nível era bom. Naquela década, estava bem interessante. Os professores entravam na aula e diziam: "Vamos estudar a metafísica de Aristóteles!" Tá bom, vamos estudar a metafísica de Aristóteles. Vamos ler o "Discurso do Método" de Descartes, vamos ler "A Fenomenologia do Espírito" de Hegel ou "A Crítica da Razão Pura" de Kant. O professor entrava e ia lendo, analisando e explicando os conceitos e os argumentos
a partir do próprio texto, muitas vezes indicando alguns comentadores e, às vezes, ele mesmo discordava do comentador. Nesse ponto, eu achava muito interessante. E também tinha um segundo elemento, porque é aquela história: Marcelo, é possível às vezes fazer Filosofia dessa forma? Eu entendo que sim. Por exemplo, se eu estou lendo um texto de Platão, a "República", lógico que eu posso apenas ler o texto, explicar a estrutura, a lógica interna, os conceitos, o argumento. E ponto, mas eu também posso filosofar a partir do que Platão está dizendo, né? Eu também posso, a partir da estrutura do
pensamento dele e junto com ele, ir pensando aqueles problemas. Então, eu acredito que depende muito do modo. Então, o momento que eu peguei me parece que era um pouco diferente do que se tem hoje em dia, né? Hoje, muitos professores já devem ter aposentado daquela época, né? Deve ter dado uma boa maioria, já muitos até morreram, já, né? Tem algum de destaque que você gostaria, senhor, gostaria de ressaltar? Olha, Professor Franklin Leopoldo e Silva, né? Eu aprendi muito com ele, não só na questão de leitura de textos, né, mas na postura humana, na maneira como
ele, de fato, desenvolvia as aulas, né? Foi meu orientador no doutorado, então ele, de fato, é uma pessoa de quem eu aprendi muito, né? Como também o professor André L. de A. na área de lógica, por exemplo, né? E outros que tinham lá. Enfim, o professor, por exemplo, Renato Janir Ribeiro, que foi um período, né? Acho que ministro da Educação, uma coisa assim. Ele foi meu professor. Enfim, em aula, ele não entrava em questões muito ideológicas. Ele simplesmente explicava lá o "Leviatã", de Hobbes, analisava o texto. Enfim, então era interessante essa postura; era uma postura
muito semelhante de todos os professores. Até a professora Mariana Chi, por exemplo, foi uma professora com a qual eu tive aula. Na aula, ela não entrava em questões; ela se ocupava da área dela, lá, na época moderna. Ela trabalhava o moderno, né? Principalmente Espinosa, etc., mas trabalhava outros autores também e ela explicava o texto, discutia o texto, explicava o texto. Então, o contexto que eu peguei acadêmico foi bem esse, né? Lógico, o aluno que quisesse participar de outras coisas tinha lá questões um pouco mais políticas, etc., mas eu não sei se eu peguei um período
ali também, que, né, em 1990, o pessoal, sei lá, estava um pouco disperso. Não sei, a sensação que eu tinha era essa, mas eu era mais questão de estudo mesmo, né? De fazer pesquisa, de ensinar a ler os textos, o que ele chamava de leitura estrutural de texto. Então, não tinha tanto esse enfoque, né? Não era tão lógico. Universidade pública sempre vai ter um fator político, no sentido de greve, né? De briga, de aumento, não sei do que. Então, às vezes, pegava-se os períodos e falava: "Meu Deus do céu, semestre, nós vamos perder o semestre,
não é possível!" Então, sempre tinha essas fusões salariais. Muito bom. Então, vamos aqui para o nosso tema. Depois da morte de São Tomás, o pensamento entrou numa forte decadência, né? Principalmente com o nominalismo. E quais são os erros que podemos dizer sobre Guilherme de Ockham? Então, o nominalismo é, de fato, e geralmente, quando se fala de nominalismo, o pessoal associa muito com um dos grandes problemas, ou das grandes questões, que vai ser muito discutida na Idade Média, que é o problema dos universais. Então, se associa muito a questão do nominalismo com essa questão, que, na
verdade, não é inventada na Idade Média, né? Não é o período medieval que simplesmente inventa isso. É uma questão que já vem de antes, né? Ou seja, você vai ver que, de uma certa maneira, essa problemática está em Platão, está em Aristóteles, está ali em outros autores, né? O que colaborou para que a Idade Média se discutisse muito isso foi porque um autor chamado Severino Boécio, que é um autor ali do contexto do final do mundo antigo, né? Século V, início do VI. Boécio, de fato, se coloca para traduzir. Ele tem toda aquela preocupação. Como
um bom romano, ele via que a maioria das pessoas naquele momento não sabiam mais grego e o latim estava predominando, e vem essa preocupação: "Como é que vou preservar essa cultura, um monte de coisa em grego, e as pessoas só sabem latim?" Então, é como se ele se colocasse um certo projeto: "Olha, eu vou traduzir todas as obras de Platão e de Aristóteles." Evidente que ele não fez isso, não conseguiu, né? Mas ele traduziu algumas coisas. Traduziu um texto muito famoso, que foi a "Introdução" de Porfírio. Só que ele não se contentou em traduzir, né?
Porfírio colocava lá algumas questões, principalmente em relação a universais, se eles existiam separados do sensível, se eram corpóreos ou incorpóreos e por aí vai. E resolveu responder, né? E aí, a partir dessa tradução e do modo como ele lida com isso, isso entra no meio medieval. Então, assim, toda a gramática filosófica e teológica do mundo medieval deve muito às traduções de Boécio e tem uma certa influência do modo como ele faz isso. E de fato, aí, no mundo medieval, essas questões vão explodir, né? Ou seja, praticamente quase todo mundo vai discutir isso. O que é
um universal? Para simplificar um pouco, ou seja, para não ficar uma coisa muito massiva, porque, de fato, é um assunto um pouco espinhoso, e eu vou evitar entrar muito em questões técnicas, né? Pressupondo que quem está acompanhando não necessariamente seja pesquisador em filosofia e muito menos medieval. Então, são coisas mais restritas, né? Mas eu acho que uma forma de entender é o seguinte: tem aquelas três posturas, né? Você vai ter uma que alguns chamam de realismo exagerado, né? O hiperrealismo, que é a ideia de que o universal, quando a gente fala de universal, falando do
gênero ou da espécie, né? Então, sei lá, tem animalidade ou tem a humanidade. Então, estou falando de um gênero, estou falando de uma espécie. A discussão é: esse universal existe? Então, alguns diriam: sim, ele existe e existe como se fosse uma... Coisa totalmente separada das realidades sensíveis, né? Então, aquela coisa meio platônica, né? Então tá, aqui existe e pronto. Então a animalidade é uma coisa que existe totalmente separada da realidade sensível. O extremo disso é justamente o que alguns chamaram de tendência ou vertente nominalista, que, no fundo, foi, no meu entendimento, uma tentativa de simplificar
um pouco, porque você vai ter dentro disso, às vezes, alguns que são mais de uma lógica terminista ou conceptualista. E aí vai, né? Ou seja, é detalhes refinamentos, por exemplo, de um Abelardo e de um Ockham, né? Que têm semelhanças, mas que não pensam exatamente igual em tudo, né? Então, pro nominalista, o Universal é como se fosse um mero nome, né? Então, uma palavra, ou seja, aí quando eu falo, eu tenho ali um monte de coisas individuais e aí eu pego um elemento que me parece mais ou menos comum pra fazer algum tipo de generalização.
E aí eu lanço esse nome. Então, animalidade é um nome, né? Que, no fundo, tenta correlacionar com algo em comum das coisas, mas não existe, né? Essa coisa de que esse nome tá expressando algum tipo de essência, por exemplo, etc. E aí o meio termo seria o que alguns chamariam de Realismo moderado, né? Que aí seria uma vertente de pensamento mais próxima de Aristóteles e que São Tomás vem, né? E, enfim, reorganiza ali, no caso desse Realismo moderado, que o Universal evidentemente não é um mero nome, não é uma mera palavra, não é uma voz
solta, né? Plato's votes, como diz exato, exato. Mas também não é uma substância, uma coisa que simplesmente é totalmente separada do sensível. Então, o Universal existe, mas ele existe na coisa, né? Ele existe na coisa sensível e é por isso que, pra eu chegar até o Universal, eu parto do particular, né? Ou seja, eu tenho as realidades individuais e, aí, dessas realidades individuais, eu faço um processo de abstração, né? Pra tentar chegar até esse Universal que, evidente, tem relação com a essência, enfim, com a forma, essas coisas. Então, o nominalismo, voltando, né? Então, o que
que é o nominalismo? Pra muitos, nominalismo é isso: uma vertente de pensamento focando ali a questão da lógica com a metafísica, que vai entender que o Universal não existe em si mesmo e nem nas coisas. Ou seja, na realidade, só existem coisas individuais. Eu só tenho o singular, eu só tenho a coisa individual, né? E, evidente, que isso tem implicações, mas me parece que tem um segundo ponto, Marcelo, que às vezes não é tão ressaltado e que me parece importante, pois não pode falar que é o seguinte: você tem um certo caldo cultural e uma
pressuposição muito, muito forte por trás do nominalismo, que é a separação da fé e da razão, da questão da filosofia e da teologia. Então, quando a gente pega, por exemplo, o pensamento dos Scotus, né? Que foi franciscano, defendia a questão da Imaculada, enfim, mas tinha lá o modo dele de pensar a realidade, Scotus que, né, surge ali no final do século XII, mas vai desenvolver um pouco só mais pensamento no começo do XIV, né? E ele já, de uma certa forma, já fazia uma certa crítica ao pensamento de São Tomás e um pouco essa separação
de fato de filosofia e teologia, né? Porém, Guilherme de Ockham, que vem depois, que também era franciscano, anda um pouco mais radical, digamos assim, tanto que ele não só vai criticar o Tomás, ele vai criticar o Scotus, que ele vai dizer que o Scotus pegou leve. O Scotus criticou, mas criticou como deveria, né? Tanto que Ockham vem e separa mesmo, fala: "não, filosofia é filosofia, teologia é teologia", ou seja, razão é razão, ciência é ciência, fé é fé. Então, essa separação me parece que tá bem por trás, né? Ou seja, nós temos aqui a ciência
e a razão, e é possível ter ciência do que é singular, que é o que existe na realidade. A fé, ela é uma adesão baseada simplesmente naquilo que a revelação diz e a teologia, no máximo, vai ser um tipo de sapiência prática, né? Ou seja, vou meditar as escrituras pra ver dali como tirar algum tipo de estilo de vida, de conduta, de como me relacionar com Deus, etc. Só que isso tem implicações, dentre elas, por exemplo, se eu separo de fato fé e razão, filosofia e teologia, além da fé correr risco de se transformar num
conjunto de crendices, de superstições, né? De até aberrações, porque, né, tudo é possível. Então, né, há um limite ali: se tem sentido, se tem lógica, se tem coerência, se tem não sei o quê. A própria questão da realidade também ela se torna arbitrária, né? Por ser 2 + 2 = 4 porque Deus quis e se matar é errado porque Deus quis, porque se Deus quisesse matar, seria certo e 2 + 2 ser C. Então fica uma coisa um pouco, né, que é aquela coisa de você salientar muito a questão da vontade, né? O voluntarismo é
o problema do voluntarismo, né? Que também vai estar muito presente ali nesse contexto do final do século XI, início do XII, seja em Escoto ou na questão, me parece, do Ockham, a coisa mais intensa, né? E aí, de fato, não que a questão da vontade divina não exista ou seja importante, não é isso. Me parece que o grande problema é quando você desvincula a vontade de Deus, como se ela fosse uma vontade arbitrária, ela não tem relação nenhuma com o intelecto divino, né? Então, é a ideia de que é o querer de Deus arbitrário que
estabelece algo. Mas se esse querer, né, fosse diferente, então também seria tudo diferente. Ou seja, não há racionalidade, não há inteligibilidade em Deus. Se que sim a... A vontade de Deus é absoluta, mas ela não é arbitrária. Ou seja, a vontade de Deus não pode ser separada, né, do intelecto divino, da sabedoria divina. Tanto que é só pensar um pouco. Ou seja, quando alguém pergunta, mas é, é, é mais com a questão da onipotência, né, porque, junto com a questão da vontade, vai associar a questão da onipotência. Mas é só para pensar um pouco, é
porque se alguém pergunta, né, mas aquela brincadeirinha que o pessoal até de Goa faz, né, Deus poderia uma mesa pesse carregar? Bom, essa pergunta pressupõe uma separação, né? Ou seja, realmente, se eu pensar onipotência divina isolada, fica uma coisa muito estranha, né? Agora, Deus tudo pode, sim, tudo que não contradiz a natureza dele, né? É só pensar um pouco: Deus poderia criar um outro Deus? É óbvio que não, porque o que é criado não pode ser Deus. Então, isso não é questão de "ah, mas então isso mostra que há um limite em Deus". Não, em
si mesmo Deus não tem um limite; não é algo externo que limita a Deus, né? Mas, de certa maneira, o seu agir não é arbitrário. Ou seja, Deus age a partir da sua natureza. Por isso que também as coisas são a partir da sua natureza, a partir da sua essência. Deus não poderia ser diferente nesse sentido; ou seja, ele é fiel a ele próprio, ele é fiel à natureza dele. E eu preciso, quando pensar a realidade divina, eu não posso simplesmente isolar um certo tipo de predicado ou atributo, né, como se não tivesse correlações com
os outros. E aí eu vou acabar ferindo, digamos, a simplicidade absoluta de Deus. Então, acho que o grande problema do nominalismo, né, é que ele vai salientando demais a questão do singular e do particular em detrimento do universal. E muitas consequências vêm depois, me parece que têm relação com isso. E, ao mesmo tempo, essa coisa de que fé e razão não precisam dialogar, elas não precisam caminhar juntas, né, filosofia e teologia, e depois vem essa coisa da ciência da religião, né? Então, vira uma coisa, parece que, para um lado, você vai supostamente caminhando para um
certo tipo de objetividade, né? É como se eu quisesse objetividade, tivesse que calcar só na razão, e o restante ficasse tudo no âmbito da subjetividade. Então, no primeiro momento, parece que a coisa é meio assim. Só que chega um momento que a separação provocou outros problemas; quer dizer, nem a objetividade sobrou, né, na medida em que você separa isso. Então, eu acho que compreender o nominalismo no seu todo, levando em consideração esses aspectos aqui que eu estou chamando a atenção, eu acho que é fundamental para entender muitos elementos que vêm depois. E a navalha de
Oca? Então, a navalha de Oca é aquela, a gente brinca, né, a gente fala que tem a navalha de Oca porque tem a barba do Platão, né? Então, a navalha de Oca, que é justamente essa ideia, né, de não multiplicar as coisas e os termos, né, sem necessidade. Então, é aquela coisa do minimalismo mesmo, né? Ou seja, vamos tentar sempre resolver as questões de uma maneira calcada no singular, na realidade, e não sem necessidade de ficar multiplicando os termos e as coisas. Então, você vê que, justamente, a expressão, né, dessa ideia, ou seja, eu vou,
sem necessidade nenhuma, segundo ele, multiplicando universais e formas como se existissem por si mesmas, como se de fato, calcado na realidade individual, isso não fosse suficiente para eu entender determinadas coisas. Então, ele me parece que é justamente uma tentativa de mostrar que, para fazer ciência, para entender determinadas coisas do próprio mundo, basta eu realmente ver a realidade enquanto realidades singulares, entendeu? Lógico que isso fica uma coisa muito estranha, né? Porque, ao mesmo tempo, é como se o mundo fosse constituído de coisas totalmente desconexas, né? Ou seja, tá bom, eu tenho o individual, eu tenho o
particular, mas e o conjunto? Então, parece que o todo nunca é só o singular, e quando eu penso na questão do universal, é uma palavra que eu uso para tentar fazer alguma generalização que não tem fundamento na própria realidade. Por isso que é frágil. Muito bom! Infelizmente, o nominalismo teve desdobramentos, né? O empirismo também, não é isso, professor? Mas antes do empirismo, vamos comentar um pouco sobre o Renascimento. É o período renascentista, ou seja, na própria final da Idade Média, né? Ou seja, no século XV, né? A gente já vai vendo desdobramentos disso, né? Ou
seja, uma valorização de fato cada vez mais não só do individual, mas como ocorre essa separação de fé e razão. Realmente, a religião vai indo por um determinado caminho, por uma esfera, e vai se valorizando cada vez mais essa coisa de uma ciência, né, de um processo de conhecimento focado mais na questão da razão. Geralmente, quando a gente fala de Renascimento, todo mundo, as escolas, principalmente, só se coloca isso, né? Ah, o Renascimento Italiano, principalmente, era simplesmente uma retomada da cultura greco-romana. Não é bem assim, né? Ou seja, é uma retomada, tudo bem, tem vários
autores lá que vão pegar muita coisa do mundo grego e do mundo romano, porém tem um detalhe às vezes que eu acho que o pessoal não salienta e que seria importante: não é uma questão só de retomar a cultura greco-romana, é retomá-la no seu contexto pagão. Ou seja, todo tipo de leitura, todo tipo de análise que o cristianismo, que a Igreja fez no mundo medieval, praticamente é desprezado pela maioria dos autores, e aí… Então, realmente isso foi feito, né? Ah, mas sim, ou seja, os cristãos no mundo medieval se diziam: somos anões no ombro de
gigantes. Né? Por um lado, evidentemente, eles estão valorizando a tradição e a ideia de continuidade. Então, essa coisa de mentalidade revolucionária de ruptura, realmente, no contexto medieval, não tem muito sentido, né? Ou seja, ninguém vem do nada, né? Nós recebemos um legado e, portanto, também nos preocupamos em pensar: qual é o legado que damos e deixamos agora? Receber um legado não quer dizer que você tem que aceitar tudo; tudo não quer dizer que tudo está correto, né? Então, é o trabalho, do meu entendimento, que muitos autores cristãos fizeram, né? Ou seja, vamos pegar aqui os
autores gregos, vamos pegar os autores romanos, vamos pegar essa cultura, etc. Tem coisa que nos parece aqui que são verdadeiras, são boas, que bom! Tem coisa que não, e, portanto, isso daqui a gente vai tirar. Então, foi feito um trabalho de análise crítica, assim, discernimento, eu diria, só que no entendimento de muitos autores renascentistas, né? E até hoje, muita gente continua repetindo essas coisas: tudo era uma questão de poder, né? Então, a igreja, no fundo, sempre é culpada; a igreja é exato, e ela aquilo que ela excluiu, tirou, porque era o que era o bom.
Exato, era o bom. E, no fundo, ela tirou por interesses escusos, né? Ou seja, e não é porque eram problemas e coisas confusas, contraditórias ou errôneas, é porque feria os interesses da sempre. Assim, essa é uma coisa que você fala: bom, mas, no fundo, a gente precisa entender isso. Quer dizer, o período renascentista, ele procura, de fato, retomar essa questão do mundo greco-romano, mas no seu puro paganismo, sim. Ou seja, tirando esse elemento cristão que muitas vezes foi colocado. Portanto, é óbvio que aí vem toda a questão do humanismo, né? Seja o elemento antropocêntrico, o
elemento humano que já estava muito forte na cultura grega e na cultura romana, ele volta, né? Volta com força, né? E aí eu acho importante, porque me parece que tem um elemento aqui que às vezes gera um pouco de confusão. Porque, às vezes, o pessoal fala: a Idade Média era teocêntrica e o Renascimento era antropocêntrico. Eu não acho errado dizer isso, porém, eu acho que tem que tomar cuidado com uma coisa. Porque, quando dizem às vezes que a Idade Média era teocêntrica, os pensadores medievais, isso pode gerar uma compreensão equivocada, como se, por exemplo, São
Tomás, ao falar de Deus, partisse do próprio Deus, né? Como se ele partisse da realidade divina como se não partisse do efeito para chegar até a causa. Então, assim, é teocêntrica no sentido de que Deus é o mais importante, porque é absoluto por motivos óbvios. Se Ele é absoluto, se Ele é o fundamento do ser, do agir, do conhecer, então é óbvio, né, que para eu poder entender a realidade, entender as coisas, eu preciso valorizar Deus e chegar até Deus, que é a partir dele que eu vou ter a compreensão. Mas isso não quer dizer,
repito, que o medieval pressupôs que se parte diretamente de Deus, né? Ou seja, Deus é o primeiro na ordem do ser e, por isso, ele é o centro, não é? Mas ele não é o primeiro na ordem do conhecer. Isso é fundamental a gente poder compreender o que é esse teocentrismo. Da mesma forma, a questão do antropocentrismo, no primeiro momento, é interessante, não? Depois, mas eu digo, no primeiro, não leva necessariamente à negação de Deus, né? Porque muitas falam: "Ah, mas era antropocêntrico". Mas eles não eram ateus. Sim, mas ninguém tá dizendo que eram ateus,
ou seja, muitos admitiam a questão do divino, do sagrado, enfim, tinham lá um certo tipo de crença e de fé, né? Então, da mesma forma, a questão do antropocentrismo não é uma questão de que, ah então, era só o humano e era tudo bom! No primeiro momento, não. Agora, os desdobramentos, é uma outra discussão, né? Se eu ficar olhando ali só no primeiro momento, mas é nítido que o ser humano passa a ser a grande referência. Então, muitos até tentam justificar, dizendo, né, que na Idade Média, por que que eu faço essa observação? Porque muitos
dizem que na Idade Média o ser humano era tão desprezado, tão achincalhado, que naturalmente teria que surgir um momento histórico que ele fosse valorizado. Valorizado. Bom, isso é uma loucura! Isso é um absurdo, não tem sentido. Ou seja, não é que o humano não era valorizado; ele era valorizado, tá? Dentro da ordem, ou seja, ele tem, sim, o seu valor, né? Ele não valia a mesma coisa que uma pedra, que uma planta, que um cachorro, coisa que, hoje em dia, parece que tem gente que tem uma certa dificuldade de reconhecer isso, né? Não teria, né?
Só que é a ideia de que eu só entendo o humano a partir do divino. Esse é o ponto. Então, qual é a preocupação central? Qual é a referência central? Então, não é questão de que os problemas humanos ou as questões humanas não tinham valor nenhum, tinham, mas não tinham valor absoluto. Era isso, esse que era o X da questão. Me parece que aí que tem uma mudança radical, ou seja, as questões humanas, os problemas humanos, a realidade humana, o próprio ser humano, de fato, vai ocupando o centro, né? Do ponto de vista do pensamento,
da reflexão. Então, é lógico que pensar as questões humanas ou os problemas humanos, isso não é um problema, né? Porque muitas pessoas questionam isso, né? Muito já falou isso para mim: "Ah, mas quando vocês criticam o Renascimento, é como se você tivesse um ranço com essa coisa do humanismo no sentido da valorização do ser humano." Não, não é isso. O ponto não é esse. Ou seja, você respeitar a dignidade... Humana, você valorizar o ser humano, você se preocupar com questões humanas, isso é uma coisa. O Renascimento não foi só isso; essa é a grande questão,
e às vezes o pessoal não percebe outro lado, né? Se fosse só isso, estava bom, mas não foi só isso. Ou seja, não foi uma questão só de colocar em relevo os problemas humanos ou as questões humanas; foi a questão de colocar o homem no centro mesmo. Ou seja, a partir disso, é a ideia de que vamos entender a Idade, vamos pensar a vida, vamos compreender um monte de coisa a partir dessa realidade humana. Então, esse humanismo é um humanismo que vai beber profundamente no contexto greco-romano, sem os elementos cristãos, muitas vezes. Está o paganismo
ali, muito presente, né? Tanto que questões de ocultismo, de magia, de esoterismo e de panteísmo vão estar presentes. Acabam um monte de coisas que você entendeu, que são elementos subjacentes também a essas tradições, né, que tinham enfraquecido por causa do trabalho no contexto medieval. Então, acho que o Renascimento, nesse aspecto, ele vai se tornando um grande problema, né? Porque ele, de fato, vai acabar absolutizando aquilo que é relativo, né? E aí parece que Deus não é mais o absoluto. Deus, de fato, não é aquele fundamento, aquele princípio a partir do qual as coisas existem e,
portanto, a partir do qual nós entendemos por que as coisas são como são, né? E aí parece que é sempre o olhar humano, é o olhar humano, é o pronunciamento humano, é o posicionamento humano que determina o que as coisas são, o que elas valem, né? Então, o grande problema desse antropocentrismo, seja na religião, seja na filosofia, seja na economia, na política, é que, de fato, vai se estabelecendo como referência e como fundamento o humano. Só que é evidente que isso é perigoso, né? Porque como eu coloco como fundamento absoluto o que não é absoluto?
Por mais que a tradição cristã se fale da dignidade humana, porque a imagem e semelhança de Deus, mas não nesse nível, né? Não nesse aspecto. Então, me parece que o desdobramento de tudo isso mostra realmente que havia ali problemas. Correto, após o Renascimento, nós tivemos o período da chamada revolução científica, Descartes, empirismo. Gostaria que o professor falasse um pouco sobre isso. É a grande questão, ou seja, nesse processo todo de valorização do humano, me parece natural, né, que no século XVII, depois, no XVIII, começasse primeiro uma postura muito, não só questionadora, mas agressiva em relação
à tradição, né? Ou seja, a ideia de que tudo que recebemos, principalmente da Idade Média, foram problemas, superstições, crendices, incertezas, né? E nós queremos, agora, de fato, resgatar esse humano, né, que foi tão vilipendiado, etc. Bom, se você começa a resgatar o humano, o que é próprio do humano é justamente a questão da razão, a questão da racionalidade. Tanto que você pode ver que vai surgir o quê? Toda a questão do racionalismo, né? O racionalismo vai... E às vezes o pessoal, né, um pequeno nexo aqui, depois eu volto, né? É muito comum colocar uma oposição
absoluta entre racionalismo e empirismo. Eu, particularmente, não faço isso. Eu acho que o que existe é o grande racionalismo e, na realidade, o empirista também era racionalista, só que ele era um racionalista que não era cartesiano. Esse que é o x da questão. Então, no fundo, o que você tem, no primeiro momento, é essa valorização da razão. Vamos para uma questão aqui de compreensão: qual é a visão de razão dessa turma para a visão de razão de São Tomás? Qual a diferença? Esse ponto é fundamental porque muitas mudanças aconteceram, né? O Fúton Chin, por exemplo,
no livro dele "Deus e a inteligência na filosofia moderna", ele mostra isso com muita clareza, né? E a tese dele é bem simples: ele diz, olha, mudou o conceito de Deus, mudou o conceito de religião porque mudou-se o conceito de inteligência, né? Ou seja, é uma outra coisa, né? Então, no fundo, quando se fala... Não vou entrar em um refinamento no sentido de inteligência e razão, né, e intelecto; senão ia começar a ter que entrar em um monte de coisinhas aqui. Mas é a ideia de que, olha, você tem o ser humano que tem, né,
o seu corpo e a sua alma, e existem as potências da alma, as capacidades da alma, né? Alma que vivifica o corpo, que dá forma, identidade desse corpo, enfim, etc. Então, quando se fala em inteligência, o intelecto, você está falando justamente de uma potência, de uma capacidade de compreensão, de entendimento, no sentido de conseguir captar e compreender não só que a coisa existe, mas o que ela é e por que ela é do jeito que é. Essa é a grande questão. Tanto que o próprio "intellegere", em latim, né, essa coisa de ler por dentro, é
o conseguir penetrar, é o conseguir vislumbrar, contemplar a coisa no seu íntimo, né? E aquela coisa da essência. Então, quando eu penso na inteligência, eu estou pensando numa capacidade de entendimento, de compreensão, né? Por isso que, nesse aspecto, né, como se inteligência e razão fossem diferentes, porque a razão pressupõe todo um processo discursivo de articulação de correlações, enquanto que a inteligência é a capacidade contemplativa de ver a verdade da coisa, né? E, por isso, que alguns autores vão dizer, olha, ali no Medievo, né, e a inteligência e razão não são exatamente a mesma coisa; estão
correlacionadas. Desde Santo Agostinho já havia essa discussão. Mas enfim, então, quando nós pensamos, eu diria assim, no contexto clássico mesmo, com todas as diferenças que possa ter entre Aristóteles, Santo Agostinho, Santo Tomás, Boaventura, etc., há essa ideia de... Que a inteligência é uma capacidade contemplativa, é uma capacidade de captar, de ver, de vislumbrar o que a coisa é e porque ela é do jeito que é. Ou seja, só natureza, sua essência. Quando nós vamos para o mundo moderno, a razão moderna, né, ou a própria concepção de inteligência, ela está muito mais focada na questão da
ação, na questão do produzir, né? Não é tanto o fato de que você ali vai contemplar uma essência e entender o que a coisa é. É a ideia de uma razão que vislumbra algo, que entende algo para intervir, né? É a ideia de que eu vou buscar conhecer o modo de funcionamento da natureza; por exemplo, vamos entender como é que a natureza funciona para poder intervir e fazer com que ela trabalhe para nós, né? Então, quer dizer, não sou eu, não é a minha inteligência que vai se adequar à realidade para poder compreender e atingir
a verdade, mas é a ideia de que eu vou olhar, vou ter ali certo conhecimento daquilo enquanto funcionamento, enquanto estruturação, para poder intervir. Então veja que é uma razão não tanto apenas especulativa, contemplativa, mas é uma razão no sentido técnico, né? Ou como diriam os frankfurtianos, né, a razão instrumental. Então você vai desenvolvendo uma concepção bem distinta. Ou seja, se por um lado antes existia uma íntima relação entre inteligência e ser, aqui não, né? Ou seja, é uma razão mais lógico-matemática, empírica, formal. Ou seja, eu não tenho mais essa coisa de que "ah, eu tenho
a minha inteligência e a inteligência tem um movimento nela natural que seria intencional". Ou seja, a intencionalidade seria esse movimento natural da inteligência de buscar o ser; ela busca o ser para entendê-lo. Então, é uma potência da alma que me leva a buscar o ser e, na medida em que encontra o ser, capta ou desperta nela os próprios princípios do ser para entendê-lo. O mundo moderno não tem isso. É uma outra concepção. Ou seja, a inteligência é uma capacidade de entender as coisas a partir de um contexto. Ou seja, tem ali um problema, eu levanto
uma hipótese, né? E aí eu vou fazer determinado teste e o que corroborar, segue, né? Então é muito mais uma capacidade de analisar problemas e questões e tentar resolver dentro de um certo método, cujo modelo, em primeiro momento, é a matemática, né? Então você nitidamente isso; ou seja, quando se pensa em razão, os antigos tinham essa ideia de que havia uma abertura da razão à totalidade do ser. A nossa razão, naturalmente, ou inteligência, tinha uma abertura à totalidade do ser. O mundo moderno já não. Eu tenho isso daqui, né? Portanto, quando se pensa em razão,
eu estou pensando numa capacidade de analisar as coisas, né, e de desmontar e montar. É isso. Por isso que no mundo contemporâneo o desdobramento disso é que a razão, inteligência, vai ser entendida como capacidade adaptativa. Então, o que é ser inteligente? Ou é capacidade de resolver problema, ou é capacidade de se adaptar e sobreviver. É isso. Não é capacidade de entendimento, não é capacidade de contemplar a verdade, não. Então isso daí, de fato, vai gerar muitas questões. Ou seja, essa postura de um Descartes e de outros vai ter desdobramentos, né? Mas enfim, de fato, não
é o mesmo conceito. Você não tem uma abertura à totalidade do ser, você não tem o movimento natural de buscar o ser e de captar os próprios princípios do ser, não tem nada disso, né? Ou seja, é uma... o que ele chamaria... ele chama até de bom senso, né? Ele usa essa expressão. Ele, na abertura do Discurso do Método, diz que o bom senso foi a coisa melhor distribuída, né? E o que é o bom senso para ele? É a luz natural da razão. Ou seja, é a capacidade de captar, analisar, desmontar a partir de
clareza e distinção, depois fazer dessa análise um processo de reconstrução de síntese do método cartesiano, exato, entendeu? Então, é uma razão técnica, é uma razão analítica, é uma razão instrumental. Ou seja, não é uma razão que esteja vinculada a uma metafísica do ser, não tem isso, né? Então, é uma outra concepção. Ou seja, ali já é nítido, começa a surgir uma razão no sentido tecnológico, né, de um entendimento muito mais produtivo, né, e de valorização muito mais de um agir do que, de fato, de um especular para contemplar uma verdade. E aí, nesse contexto, voltando,
né, nós vamos ter então o racionalismo e o empirismo. Só que eu não contrapunha, não iria contra. Como disse aqui, o racionalismo é empirismo? Eu diria que existe o racionalismo e, dentro do racionalismo, você tem uma vertente empirista. Então, os empiristas também são racionalistas! Só que você tem a vertente mais intelectualista também, né? Mas, de uma certa forma, aqui é uma hipervalorização da razão. Isso não quer dizer que empiristas e intelectualistas, apesar de serem racionalistas, pensavam igual, não é isso, entendeu? Ou seja, é só comparar o pensamento de um Descartes com o pensamento de um
Locke ou com o pensamento de um Hume, ou seja, pegar qualquer vertente. Então, focando, por exemplo, no Descartes, você vê no Discurso do Método, nas Meditações Metafísicas. Esse ponto é importante, Marcelo, porque para mim aqui é que a virada foi forte, hum, né? Porque todo aquele antropocentrismo, aquela hipervalorização e absolutização do homem, né, vai chegar ao seu ápice nesse contexto cartesiano. Então, não é só a questão. Muitos dizem, né, mas no fundo a ciência moderna trouxe uma nova ciência. Me parece que o ponto central não é esse, né? Nem sei se trouxe realmente, ou seja,
tem porque tem muita coisa que você já vê no mundo antigo e no... Mundo medieval ou que ocorre de fato é que você não vai mais do ser para o pensamento. Não é do ser para a consciência, inverte: é do pensamento para o ser, é da consciência para o ser. E tanto que muitos dizem: "mas no mundo moderno, no século 17, também tem metafísica". Sim, é verdade, mas você não tem mais uma metafísica do ser; você tem uma metafísica da subjetividade. Então, esse detalhe é importante, né? Tem até um amigo meu, um professor que brinca:
"a sensação que eu tenho é que o Descartes colocou a gente dentro de uma caixinha". Nós ficamos ali dentro da caixinha do eu, do pensamento, e nunca mais saímos. Nós não conseguimos sair dali, ou seja, um monte de gente tentou: entendeu, o Kant tentou, o Hegel tentou, não sei quem tentou, né? A fenomenologia, etc. Mas parece que ninguém conseguiu. Ou seja, nós estamos presos até hoje nisso. Porque, de fato, quando você diz que você existe porque pensa, ou seja, então o pensamento é o fundamento, a metafísica da subjetividade. E o sujeito, para Descartes, é o
pensamento, né? Então ele que diz: "olha, a tradição só nos deixou dúvidas, a tradição só nos deixou incertezas, então nós precisamos fazer uma reconstrução do edifício do saber". Ele deixa bem claro, e aí usa lá toda a questão da dúvida metódica hiperbólica, que não é a dúvida espontânea. Não é nada disso, é uma dúvida metódica, é provocada. Então ele vai procurar apresentar várias razões, motivos, né? Por que eu duvido da existência do mundo exterior, por que eu duvido dos meus sentidos, por que eu duvido do meu corpo e até da matemática e de tantas coisas.
Lógico que aí tem coisas que talvez seja mais fácil para ele ter encontrado motivos e argumentos. Ali, quando ele chega nas verdades matemáticas, a coisa começa a ficar mais complicada. É aí que vem o argumento do Deus enganador, do gênio maligno, etc., que todo mundo conhece. Mas é um argumento, sim, mas é um argumento artificial. É isso mesmo, nesse ponto eu não posso acusá-lo, porque ele já tinha avisado, digamos assim, né? Porque o que interessa para ele é generalizar a dúvida, né? É que, por quê? Porque ele quer atingir a primeira certeza. É aquele famoso
ponto arquimediano, né? Se eu, Arquimedes, dizia: se tivesse um ponto, conseguiria mexer o mundo, mover o mundo. Decerto, para atingir uma primeira certeza. Olha que interessante: ele não diz "eu preciso atingir uma primeira verdade", ele diz "eu preciso atingir uma certeza". E qual foi a primeira certeza? O cógito, né? Ou seja, se de fato duvidar é uma modalidade de pensamento, né? Se eu realmente duvido, eu não consigo duvidar que eu estou duvidando. Ou seja, mesmo que eu esteja duvidando de tudo, se eu duvido que duvido, não seria possível. Então eu tenho que admitir que eu
existo, mas eu existo enquanto pensamento. Eu sou uma res cogitans, uma coisa pensante, né? E aí, enquanto coisa pensante que pensa, eu existo. Então, quer dizer, da própria dúvida, sei lá, do ato de duvidar surge a primeira certeza, segundo ele. Mas para mim, o grande ponto aí que eu acho que às vezes não é tão salientado, para mim a grande questão é essa inversão, né? Ou seja, você coloca como primado o pensamento, eu, a consciência, e faz uma metafísica a partir disso. Tanto que ele faz: "tá bom, você adquiriu a primeira certeza, só que você
caiu no solipsismo. Você está fechado, está fechado no eu, no pensamento". Ele, óbvio, falou: "o que eu posso fazer nesse contexto? Bom, se só existe o eu pensante, se essa é a única primeira certeza, no eu, que eu tenho ideias entendidas como representação mental, então eu vou examinar esse eu, vou tentar encontrar dentro dele alguma coisa que ele não pode ser causa, que carece de ideias". Bom, então eu preciso examinar todas as ideias. Não vou examinar a ideia de infinito e de perfeito, por exemplo. Bom, eu tenho a ideia de infinito, mas eu sou finito,
então eu não posso ser causa dessa ideia em mim. Eu tenho a ideia de perfeito, mas eu sou imperfeito, então eu não posso ser causa dessa ideia em mim. Logo, Deus existe! Deus existe enquanto causa da ideia de perfeito e de infinito. Aí só perco o solipsismo, porque ele tem que adquirir uma segunda certeza para poder continuar a reconstrução do edifício do saber. Então veja que é uma hipervalorização, realmente, do pensamento, da razão, entendendo o sujeito dessa maneira. E veja como que você faz, então, a realidade e o ser depender totalmente desse processo, né? E
não tem como isso não desembocar, por mais que muitos digam: "ah, mas Descartes não era relativista, não sei o quê". Não era mesmo, mas colaborou, né? Porque com ele é sacralizada toda a separação de fé e razão, e a subjetividade vai ganhar muito peso. Quando você vai para a tradição empirista, entendeu, é uma hipervalorização também da razão, mas evidentemente não dessa forma. O que é a experiência, né? Então é aquela coisa do humano. A razão está ali, mas veja que não é aquela razão que precisa das informações da experiência. Não é uma hipervalorização da experiência.
E aqui é o outro cuidado que nós devemos ter, porque muita coisa me parece que os modernos conseguiram vencer, entre aspas, porque eles souberam fazer propaganda, marketing, entendeu? Uma das grandes propagandas é essa: o mundo moderno, a ciência moderna valorizou a questão da experiência, é criar os laboratórios, progresso da técnica. É bem assim, né? Ou seja, só ler Aristóteles e outros, você vai ver que a questão da experiência já era valorizada, né? Ou seja, todo o conhecimento humano começa pela experiência. Não há nada. Na mente que não tenha passado pelos sentidos, a mente humana é
uma tábula. Aí, todo mundo acha que é Decisô para... foi o Locke e não foi o Locke, foi o Aristóteles. Entendeu? Então, assim, aí você fala: "Mas aonde está a diferença?" A diferença me parece que é que, no mundo clássico, seja antigo ou medieval, se valorizava o conceito de empiria, de experiência, no seu todo, na sua totalidade, enquanto que a tradição empirista, né, inglesa ou francesa, ou sei lá o quê, vai reduzir isso. Ou seja, todo o processo de sensação e percepção é simplesmente vinculado a um determinado órgão ali e acabou. E tanto a razão
quanto a inteligência também, com a própria questão das ideias, vão ser compreendidas como um processo de associação, é mera associação de imagens, de coisas que vamos sentindo. Então, veja que você vai simplesmente reduzindo e absolutizando a questão da experiência e desvinculando, por exemplo, toda a questão. É lógico, muda também o conceito de razão e inteligência, né? E aí fica nesse plano. Então, o que nós temos é isso daqui: o que eu vejo, o que eu toco, e depois o processo de associação de ideias, de associar isso. Então, é como se a razão fosse isso, capacidade
de associar imagens, né? De produzir determinadas ideias a partir disso. Então, não é que eles... ah, não, mas com eles o método empírico, a questão da experiência, veio à tona. Não, não é verdade, né? Eles valorizaram uma experiência parcial e não uma experiência total. Então, eles não mudaram só o conceito de razão; o próprio conceito de experiência foi mudado. Isso muitas vezes não é percebido, né? Agora, quando você pega um autor como Hume, por exemplo, a coisa fica mais complexa, fica mais complicada, porque Hume, por um lado, evidentemente, está dentro da tradição empirista, né? E
aí, nesse contexto todo, você vai ter um grande racionalismo, diferente mais intelectualista, de um Descartes, né, o cartesianismo, mas também um Leibniz, um Espinosa. E aí, é um contexto. A tradição empirista, com Locke e outros, né, vai desenvolver esses elementos que eu disse. É lógico que vai ter diferenças entre eles, né? Mas o Hume é um autor importante. Por quê? Porque Hume não era só empirista, ele é cético nesse ponto. Ele foi coerente, no meu entendimento. Por quê? Porque ele levou os princípios do racionalismo empirista até as últimas consequências. Tipo, se é assim, então vamos
lá, né? Só que aí ele coloca em cheque a possibilidade da ciência. Essa que é a grande questão. Aquela questão absurda dele da causa e efeito, né? Isso... isso que eu ia... ah, então tá bom, colocar. Porque, no fundo, para Hume, você não tem, ou seja, não é possível um conhecimento totalmente objetivo. Essa é a grande questão. Ou seja, se, de fato, o que nós temos é todo um processo de percepções e sensações que são pessoais, subjetivas. O eu, por exemplo, ele não é uma substância, uma... uma questão da alma, né? É como se fosse
um conjunto, uma colcha de retalhos ali de imagens e percepções que vão se constituindo, você entendeu? E que, portanto, vai passando com o tempo e vai se formando, né? Agora, se é assim, ou seja, se o que existe é esse âmbito da pessoa, né, entendido ali como pensamento, como sujeito, essa valorização da consciência, como eu vou falar, da questão do conhecimento objetivo. Bom, para falar de conhecimento objetivo, eu teria que resgatar o princípio de causalidade. Eu teria que, então, defender o que a tradição sempre defendeu: o princípio de causalidade tem uma dimensão ontológica, ou seja,
ele está inscrito no próprio ser das coisas. Só que Hume vai defender um certo tipo de fenomenismo, com ele já começa a questão, né, de que, olha, o que que nós, no fundo, pelos sentidos, o que que nós captamos? O que eu toco, o que eu vejo, o que eu ouço? São fenômenos. As coisas se apresentam, se manifestam; eu capto ali o fenômeno A, o fenômeno B, né? E eu vejo simplesmente coisas, né? Uma mover a outra, uma chocar a outra. O que eu vejo é isso, entendeu? E aí, no fundo, o princípio de causalidade
acaba sendo muito mais uma coisa subjetiva e um hábito mental do que... eu não consigo captar pelos sentidos. Eu não vejo de maneira totalmente explícita, segundo ele. Eu tenho a bola A e a B, né? A vem e se choca com a B, e a B é movida. Beleza, o que eu vi foi isso, mas isso não me permite inferir que da A, ontologicamente falando, saiu algo que realmente vinculou-se com a B e a moveu. Ou seja, a relação de causa e efeito, no âmbito ontológico, eu não consigo captar pelos sentidos, né? E aí, portanto,
é muito mais uma crença, um hábito mental, porque eu fui me acostumando a ver isso, você entendeu? E tipo, toda vez que eu vi fumaça, eu olhei e vi fogo, né? Então, eu associo a fumaça com fogo, né? Então, é muito mais um hábito mental. Bom, isso é muito sério, isso é sério, isso aí vai levar a um irracionalismo, alguma coisa. Isso aí é uma negação da ciência também. Sim, é isso que eu tô dizendo. Você coloca em cheque várias coisas. Então, por isso que não é só o empirismo de Hume; é o ceticismo de
Hume que faz um barulho enorme, você entendeu? No final do século XVII e início do XVI, né? Ele chacoalha, porque muitos dizem: "Ah, mas ele vai colocar em cheque, por exemplo, as provas da existência de Deus." Sim, mas não é só isso. Ele não coloca só em cheque a metafísica; ele coloca em cheque a ciência em geral, porque não tem conhecimento objetivo. Essa é a questão. Tanto que... Que na sequência, vários autores, por exemplo Kant, né? Na sua Crítica da Razão Pura, na abertura, ele fala isso; ele fala que o que deve ao Rilke, que
ao ler as obras de Rilke, ele acordou, ele despertou, né, o seu sonho dogmático. Você entendeu? Agora, o que é interessante, esse é um ponto importante: o que é o sonho dogmático para Kant, né? É justamente essa... porque Kant também tinha lá o lado dele religioso, né? E ele era um homem de ciência. É interessante isso; Kant era um homem de ciência, ele estava extremamente envolvido com isso. Ao ler Rilke, ele falou: "E agora, o que eu faço?" Você entendeu? Ou seja, ah, parece que a coisa não é mais possível, né? Mas é evidente que
quando ele diz que Rilke o ajudou a acordar do sonho dogmático, me parece que Kant está dizendo o seguinte: "Olha, teve um momento em que para mim, ciência era conhecer a realidade tal como ela é, era conhecer, né, as coisas em si mesmas." E ele disse: "Putz, ao ler Rilke, eu acordei." Tipo, isso não é possível, eu não posso querer essa ideia de que existe uma realidade em si, ou essa coisa em si, a que eu tenho acesso, etc. Ele diz: "Não, isso não é possível." Bom, se não é assim, como então? E aí, me
parece que a filosofia crítica de Kant, ou criticismo kantiano, é uma tentativa, me parece, de enfrentar essa crítica, esse ceticismo de Rilke. É como se em alguns pontos ele concordasse com Rilke, mas ele não concorda totalmente; ou seja, ele quer salvar a ciência. Então, para salvar a ciência, ele concorda com algumas coisas de Rilke, ao mesmo tempo me parece que têm alguns elementos que vêm do inatismo de Descartes, que Descartes vai defender, entre ideias inatas, né? Ele também pega ali alguns elementos. Então, quer dizer, tem elementos que vêm do grande racionalismo, principalmente do Descartes, na
vertente mais intelectualista, mas tem coisa que vem do empirismo de Rilke. Mas ali tem o ceticismo, e a impressão que eu tenho é que Kant, quando olha isso, né, fala: "Opa, o que eu faço?" Não concordo totalmente nem com um nem com o outro, então eu vou tentar desenvolver um pensamento próprio, entendeu? E aí, de fato, se você pegar a filosofia kantiana, ela de fato vai tentar fazer isso, me parece. Ou seja, por um lado, você vê uma certa valorização dos sentidos, das informações que nós captamos, né? Então, Kant não nega, por exemplo, a existência
do mundo exterior. Ele em nenhum momento fala que o mundo exterior é uma invenção da nossa mente. O que ele diz é o seguinte: "Tá bom, existe esse mundo exterior." Né, mas o modo como nós conhecemos esse mundo exterior... por isso que ele mais uma também que eu acho que é a propaganda em marketing, né? Porque ele dizia que da mesma forma que Copérnico fez uma revolução copernicana, né, na astronomia, na cosmologia, é preciso fazer isso na gnosiosofia; ou seja, em vez de a gente ficar discutindo o que é o objeto, nós temos que, antes
de tudo, discutir quem é o sujeito do conhecimento e analisar as reais condições de possibilidade do conhecimento. E aí, no entendimento dele, na Crítica da Razão Pura, é o que ele tentou fazer, né? Primeiro na estética transcendental, depois na dialética transcendental, etc. E aonde ele procura, né, simplificando, fazer o seguinte: "Olha, as informações vêm pelos sentidos. Nós temos essa experiência sensível das coisas, colhemos informações, e esse mundo exterior não é nossa invenção." Então tá bom, as informações vêm, só que o modo como eu organizo e entendo isso é a partir do sujeito transcendental; ou seja,
de uma estrutura a priori, ou seja, de algo que já está em mim, que de uma certa forma recebe, organiza, estrutura e entende a partir dos elementos que já estão nessa estrutura. Então o... é muito professor, então ele tá caindo no relativismo. No primeiro momento, não, porque o sujeito transcendental é igual em todos. Então, o sujeito transcendental não é o indivíduo, não é a pessoa; é uma estrutura a priori que é universal, que é igual em você, que é igual em mim. Então é como se Kant estivesse dizendo: "Existe a maneira humana de conhecer as
coisas." Ou seja, eu não vou conhecer o númeno, né, essa realidade em si, que é como se ele estivesse dizendo: "Nem sei o que isso." Né, então não teria nem sentido, talvez, perguntar para Kant: "Mas você tá dizendo que tem uma coisa em si e a gente não tem acesso a essa coisa, mas como é que você fala de uma coisa em si se a gente não tem acesso?" Né, mas na realidade me parece que nem isso ele fala, né? É como se ele estivesse dizendo: "Olha, tem aí o mundo, tem isso daí que não
fomos nós que inventamos, e tem a maneira humana de entender isso." Quer dizer, se tivesse um outro ser racional, teria um outro modo de entendimento; o anjo, por exemplo, entenderia as coisas completamente diferentes do homem, poderia ser oposta ao homem. Isso mesmo, é isso mesmo, essa é a ideia. Uma coisa completamente... porque, no fundo, é aquela coisa assim, sei lá, cachorro não vê o mundo preto e branco; o ser humano vê o mundo a partir das suas capacidades naturais, dessa estrutura. Isso aí não deixa de ser subjetivista, né? Porque é uma construção, sim. Não é
aquela história, né? Marcelo, o que eu falo é pessoal, né? É evidente que uma coisa é você às vezes ficar preso ali na lógica interna do pensamento do autor no texto, né? Aí o pessoal fala: "Não, mas o cara foi até aqui." Sim, ele foi até aqui, mas abriu... Portas para um monte de coisa, entendeu? Aí vem um outro depois e resolve: "Você entendeu?" Fala: "Bom, o cara não abriu a porta, mas deixou destrancado, né? Então deixa eu abrir. Então, de fato, quer dizer que é um certo tipo de subjetivismo, que, na medida em que
ele diz que esse sujeito transcendental não é um indivíduo, não é uma pessoa, mas é uma estrutura a priori universal. Mas é universal restrita, né? Porque só pertence à espécie humana. E, portanto, aquilo é o jeito e a maneira humana de conhecer. O grande problema, né? Muitas vezes me perguntam isso na universidade, né? Pô, professor! Mas, acha assim: tá bom, seja um Descartes, seja um Kant ou um Hume, se teve alguma coisa positiva no pensamento despersonalizado no contexto moderno, talvez seja no sentido deles chamarem a atenção para o aspecto de que nós precisamos discutir o
que é a consciência, o que é a mente, e como que é a relação. Então, talvez fosse interessante nesse sentido, né? Eles chutaram um monte de coisas e chamaram a atenção, tanto que, de fato, o próprio pensamento cristão, por exemplo, nessa sequência, nesse contexto, teve que enfrentar um pouco mais isso também. Agora, é evidente que, quando eles chamam atenção para tudo isso, volta de novo o que eu falei: uma propaganda em marketing que é complicada, porque se você vai ler lá com calma, São Tomás, por exemplo, em muitos momentos, também discutiu um pouco isso, talvez
não com um monte de detalhezinhos que o mundo moderno contemporâneo, enfim, está requerendo. Mas Tomás não ficou focando só na questão do ser, do objeto, da coisa, como se ele não falasse do ser humano, né? E do aspecto da alma, do intelecto, da vontade. Ou seja, quando nós falamos da verdade, do processo do conhecimento, por exemplo, existe uma participação. Ou seja, a verdade não é, segundo São Tomás, como se fosse uma fotografia. Não é questão de fotografia da realidade, entendeu? Então, existe sim a realidade em si e as minhas potências naturais têm acesso a isso
e participam desse processo. E, quando Tomás vê algumas dificuldades, ele deixa isso claro. Ou seja, quando a coisa é clara, é clara; quando não é, não é. E ele vai chamando atenção para vários pontos. Então, muitas vezes, essa ideia de que somente os modernos fizeram isso e chamaram atenção para isso, é isso que eu não concordo. O Kant comentou alguma coisa de São Tomás? Não, ele não teve... O que ele fez, por exemplo, na Crítica da Razão Pura, ele fez uma crítica à questão dos argumentos. Então, tem lá a questão dos argumentos tradicionais em relação
à existência de Deus, mas a impressão que, por exemplo, quando ele fala do argumento ontológico, ele tá avisando muito mais o Descartes, por exemplo, do que os medievais. Ele não teve tanto conhecimento e acesso aos medievais, né? Por falta de interesse, ele achou que lá já era ultrapassado. Qual que é a sua visão sobre o que eu tenho? Por exemplo, o próprio Descartes também... É aquela história, né? Tem uma coisa que vai passar a ser muito forte a partir do século XVIII, né? Final do século XVIII. Essa valorização da história. Você não tem isso até
então, né? Ou seja, existia aquela ideia de que, bom, se eu sou filósofo, se estou fazendo filosofia, eu tenho que aprender a enfrentar a realidade e os problemas, e os desafios que estão se apresentando. Então, não tinha muito essa ideia de que: "Ah, eu preciso saber um pouco o que já disseram, o que outros disseram". Então, não tinha muito isso, né? Eu acho que eles acabavam tendo uma certa formação, né, basilar, né? Não que não conhecessem nada; sabiam alguma coisa. Mas, por exemplo, Descartes conhecia muito mais a Escolástica próxima dele, né? Ali do Renascimento etc.,
que é a Escolástica barroca, né? Do que, de fato, a Escolástica medieval. É nítido que ele não conheceu tanto. Então, ele, como estudou no Colégio Jesuíta lá em La Flèche, etc., conheceu essa Escolástica mais barroca, mas não tanto a Escolástica medieval. E eu acho que é a mesma coisa no contexto mais protestante, né? Então, provavelmente ouviu alguma coisa, mas não que tenha lido um monte de textos dos próprios medievais, inclusive do próprio São Tomás. Então, há uma preocupação, me parece, muito maior de debater e discutir com autores mais próximos dele, né? E não tanto... Nem
com um Platão, um Aristóteles ou com autores medievais, né? Principalmente se pensar ele no contexto reformado, pietista, né? Protestante. Ou até quando o pietismo influenciou o Kant? Ah, foi forte! Forte, né? Foi forte pelo seguinte: você vê que eu disse que ele era um homem de ciência. Por isso que eu acho que ele fez ali, tentou, com todo o esforço dele, encontrar uma síntese ali que... Tipo, ele não queria abrir mão do conhecimento, entendeu? E é aquela história: para não cair total no relativismo ou no subjetivismo total, ele dá uma flexibilizada. Então, para manter alguma
coisa de objetivo, me parece que ele dá uma flexibilizada. Só que, ao fazer isso, repito, é óbvio que abre o caminho para outras coisas. E você vê que o aspecto religioso é forte; ele mesmo admite isso, né? Que, no fundo, no fundo, também restringe a razão pura porque ele queria salvar Deus, a liberdade e a imortalidade da alma. Então, salvar Deus e a religião no aspecto ético. Ou seja, a religião e a ética, ele limita à razão teórica, à razão pura, mas, aí, ele salva isso pela razão prática. Então Deus, a liberdade e a alma
não são objetos de... Conhecimento: eu não posso conhecê-los, mas eu posso pensá-los. Eu posso pensá-los. E aí, a partir de postulados práticos, eu consigo resgatar. E aí ele tenta mostrar como de fato pensar a ética, sem essa imortalidade da alma, sem liberdade, é complicado, e pensar essas coisas sem Deus. Mas veja que tudo isso é postulado, não é objeto de conhecimento. Eu não posso dizer que "ah, eu conheço, eu demonstro racionalmente, eu postulo". Eu posso pensar e postular. Então, você vê que ele faz isso, me parece, não por questão de sacanagem. Não é isso, não
é porque ele... é aquela história: "por aqui não vai dar, vamos tentar por lá". E isso é importante para mim, e como é importante, eu tenho que tentar por uma outra via. Então, de fato, me parece que ele era não só um homem de ciência; ele realmente era profundamente religioso. Ele valorizava essa questão do pietismo; era bem forte, né? No exercer uma influência assim brutal no mundo que veio depois dele. Podia comentar um pouco sobre isso? Foi que eu falei: eu acho que tem... lógico, tem vários autores aí, né? A gente está aqui conversando, a
cabeça bem... um monte de coisa, porque é tanta coisa. E tem autores que a gente nem passou, né? Por exemplo, Pascal, no século 17, ali, por exemplo, vai se contrapor profundamente ao Descartes, né? Vai tentar, enfim, valorizar a questão da religião do jeito dele, toda aquela questão, enfim, da aproximação dele com jansenistas, etc. Mas acho que tem alguns marcadores assim que é nítido, né? Ou seja, o que o Descartes fez, o que o Hume fez, o que o Kant fez, isso é nítido, né? E aí você vai percebendo que há um paradoxo muito interessante no
mundo moderno, no meu entendimento. Porque, por um lado, começa exaltando profundamente a razão, seja no seu aspecto intelectualista ou empirista, não sei o quê. Mas essa exaltação do humano com a sua racionalidade, né? E é interessante como parece que exaltou demais; aí chega um momento que vai para o movimento contrário. Aí você cai num ceticismo bruto, né? Ou seja, de repente pode tudo, de repente não pode nada, não conhece mais nada, não tem capacidade para... é extremamente frágil. Então, quer dizer, por um lado, eu vou falando das capacidades, da força da razão, a tal ponto
de muitos, né? Ali no movimento iluminista, por exemplo, né? É: "Deus existe? Se a razão disser que ele existe, né? Se disser, acabou. Aí tem que ver se a razão consegue fazer esse tipo de negócio." Então, eu exalto demais a razão, e depois eu começo a falar dos limites. E aí você vê que o Kant é um grande exemplo disso. O Kant vem, né, nesse contexto todo, e portanto, vamos discutir as condições de possibilidade do conhecimento, só que ele não chega ao ponto do ceticismo. Enfim, ele cria, ele inventa uma outra filosofia, que é a
filosofia crítica, entendeu? Só que se você pegar, por exemplo, o Rousseau, né? E o romantismo do Rousseau, por exemplo, já é explícito. Apesar de ele estar no contexto iluminista que valoriza, né? Essa coisa... O próprio Kant, né? Precisamos sair da minoridade, ir para a maioridade, precisamos ousar pensar por si mesmo, etc., né? Tudo aquela história. E você vê um Rousseau, apesar desse contexto, né? Que também vai ter uma mentalidade revolucionária, etc. Ele já não valoriza tanto a inteligência, ele não valoriza tanto a razão. Ou seja, para Rousseau, né, a partir do esquema estabelecido por ele,
você tem a natureza e o ser humano. Infelizmente, foi se afastando dessa natureza, né? Ele foi, enfim, se desenvolvendo, né? Criando grupos, se associando aos poucos grupos, clãs, foi formando sociedade. Então, foi se afastando, e o ápice disso, o surgimento da propriedade privada. Isso acabou gerando outras necessidades, e nesse processo todo o ser humano foi se afastando desse estilo natural, dessa comunhão com a natureza. Porém, a natureza continua pulsando dentro do homem. Então, o Rousseau, quando ele escreve "O Emílio", né? A mesma questão do "Contrato Social" e outras obras, é nítido isso, né? Por isso
que ele vai... É óbvio que tudo isso pressupõe o naturalismo: todo mundo nasce bom, o ser humano é bom, negação do pecado original. Ele critica profundamente a questão do pecado original: isso não existe, né? O ser humano é bom, entendeu? O problema é que ele foi passando por um processo e foi se afastando da natureza. E o próprio ser humano, nesse processo, foi se corrompendo, seja na medida em que ele foi vivendo em grupos ali e estabelecendo muitas necessidades que não eram naturais, né? Mas ele diz: qual é a melhor forma de você reencontrar a
razão? Melhor é a natureza que pulsa dentro de você. Não é pelo intelecto, porque o intelecto quer organizar tudo, quer estruturar, compartimentar. Não, não, não. É pela emoção, é pelo sentimento. Ou seja, é muito mais por uma vivência interior, né? Muito mais por algum tipo de experiência interna de que eu vou aprendendo a voltar. Então, aí, para mim, tem uma outra virada forte, importante. Ou seja, sempre se ressaltou, de uma certa maneira, que a via do conhecimento era pelos sentidos, porque o intelecto, a razão, depende das informações dos sentidos e trabalha junto. Então, o mundo
clássico vai dizer que está junto, principalmente Aristóteles, São Tomás e outros, né? Intelecto e sentidos juntos. Então, é a via natural do conhecimento. Ou que eu disse essa separação, quer dizer aqueles que vão valorizar mais a razão e a inteligência separadas dos sentidos, como Descartes, ou aqueles que vão valorizar mais os sentidos e vão entender a razão como capacidade de associação, entendeu? Mas sempre foi por aí. O Rousseau vem... Diz, não? Talvez a melhor via do conhecimento sejam as emoções, os sentimentos, as vivências interiores, e não toda essa capacidade abstrativa, analítica, né? Sei lá, lógico-matemática
da razão, etc. E, de fato, isso marcou muita gente. Então, eu acho que ali em Rousseau, não é à toa que ele é considerado o pai da pedagogia contemporânea, né? Por causa do seu naturalismo, essa coisa do desenvolvimento da criança naturalmente, intervir o mínimo possível, só conforme for solicitado, né? Mas tem esse lado da pedagogia, mas eu acho que, além disso, tem um lado político também. Enfim, a maneira como ele concebe a própria questão da sociedade é em algumas coisas muito próximas, né, da questão do socialismo e do comunismo. Mas eu acho que esse elemento
gnoseológico, Marcelo, muitas vezes foi esquecido, e para mim, ali, Rousseau, nesse ponto, tem um papel fundamental. Ou seja, houve colaborações distintas, né? E o que eu tô querendo dizer com isso é que, se por um lado tiveram aqueles que às vezes exaltaram tanto a razão, isso acabou gerando muitas vezes um problema muito sério, não só de ceticismo em relação a ela, mas de entender que nós temos que encontrar uma outra via do conhecimento: a afetividade. Por tanto, ela é muito melhor do que a própria inteligência, né? Coisa que, por exemplo, muitas pessoas defendem hoje em
dia, muitos pensadores, psicólogos, etc., defendem esse tipo de coisa. Você entendeu? Então, acho que ali tem uma marca importante, né, que é o Kant, né? E enfim, nesse contexto do século XVII, eu acho que é mais isso, né? Lógico que aí vão ter depois desdobramentos no século XIX, por exemplo, né? Que também, no primeiro momento, ainda tá no contexto moderno, né? Às vezes, o pessoal acha que o pensamento do século XIX é contemporâneo. Não é bem assim, né? Ou seja, pelo menos até, sei lá, metade do século XIX, até 1860 e pouco, ainda você tem
ali um contexto moderno, uma filosofia moderna. Hegel, por exemplo, no meio do entendimento dentro do contexto moderno. Ou seja, a gente pode falar talvez de pensamento contemporâneo, mas pro final do século XIX, né? Final do século XIX, comecinho do XX. Aí, talvez, a gente já tenha… Outra pergunta curiosa: você tem um bandido preferido aí do pior filósofo ou não? Aquele que mais se distanciou de Santo Tomás? O que mais gerou efeitos negativos? Qual a sua visão sobre isso? Olha, "bandido preferido", eu entendo assim. O que vou falar agora eu sei que vou apanhar muito de
alguns amigos meus, né? Mas paciência. Enfim, o modo como eu vejo, né? E eu sei que tem muita gente que vai discordar de mim, mas eu não diria que eu tenho um bandido preferido, mas eu tenho três. Esses três que, para mim, eu acho que são justamente o Rousseau, o Kant e o Hegel. O Hegel, me parece, que ele leva as coisas ao ápice, né? É um autor difícil, é uma filosofia difícil, é bem abstrata, né? Não é um autor fácil de ser estudado, entendeu? Mas, mas por que o Hegel, professor? Tem dois pontos, vou
tentar ser simples, mas com Hegel nunca é muito simples. Nunca. É uma coisa assim que é um autor difícil, como eu disse, né? Que eu venho lendo, etc. Não sou especialista em Hegel, eu sou um leitor, né? E tive a oportunidade, enfim, de estudar com grandes hegelianos, então isso ajudou um pouco. Mas a ideia, eu acho que o grande "X" da questão aqui me parece que, se a gente for perceber no mundo moderno, tem uma preocupação muito grande com essa coisa do sujeito e objeto, né? Eu tenho a mente e eu tenho o mundo. E
realmente parece… Olha, isso aqui é um grande problema: como que tá essa relação, né? E o Hegel vem, me parece, num momento… É como se fosse meio filho do Kant, né? Ou seja, só que ele não concorda com isso. Ou seja, é como se… Olha, o próprio Kant, no modo como interpretou e analisou as coisas, ainda sujeito e objeto tá tudo separado, né? Ou seja, o Kant pega o princípio da causalidade, por exemplo, também coloca no sujeito transcendental a questão das categorias, né? Etc. Mas sujeito tá aqui, objeto tá aqui. Com Hegel, com a maneira
como ele interpreta a questão da dialética, aí eu acho que a coisa realmente sobe o tom, né? Porque, primeiro, dentro de uma vertente profundamente idealista, a questão do idealismo, ou seja, o fundamento é a ideia. Lógico que aqui ideia não é no sentido de uma representação mental, não é isso, né? Ideia é o ser na sua totalidade, né? E aí, nessa questão de que a ideia é o ser na sua totalidade, por um lado ele tá em continuidade com os outros lá que vamos do pensamento pro real, só que ele vai além, Marcelo. Eu não
vou do pensamento pro real. É a mesma coisa. Não é só porque na tradição o real é racional. Aqui é mais forte: é o racional que é real. Percebe? Ou seja, há uma postura muito mais intensa. Então, o real é racional, portanto a razão é a mesma coisa. Se ser e razão é a mesma coisa, porque o racional é que é real, e na origem eu tenho a ideia. A questão é que essa ideia que expressa ali o ser na sua totalidade, ela vai tomando consciência de si no tempo, é no tempo pelo movimento dialético.
Então, ele procura pegar todas as contradições possíveis que se manifestam, digamos assim, na existência, né? Seja individual ou geral, e mostrar que isso está junto. Ou seja, aqui me parece que você tem... Realmente, uma revolução muito séria, porque, por exemplo, toda a questão da lógica aristotélica, né, de outros autores, mesmo estóicos, de identidade, não contradição, foi tudo negado por ele, né? Acabou, porque a lógica é dialética; lógica não é mais isso, é uma lógica dialética. Eu tenho a tese, antítese e síntese; ou seja, eu tenho uma afirmação, eu tenho a negação da afirmação e tem
a negação da negação. Então, todo esse movimento que ocorre no tempo, na história, faz com que esse espírito absoluto, né, ou essa ideia, vai; ela está lá no princípio, mas ainda não tem consciência de si. Então, só tem consciência de si no tempo, no desenvolvimento histórico. E aí, primeiro ponto, é óbvio que ele vai chamar a atenção e vai frisar muito a relação entre consciência e história, né? Tanto que muitas vezes uma pessoa não tem nada de positivo. Olha, talvez, né? Eu acho que há uma coisa positiva aí, no sentido de mostrar que a consciência
humana, sim, tem uma certa relação com a história. O problema é como isso vai ser entendido e interpretado, né? Ou seja, que a consciência tem uma relação com a história negável; ou seja, não tem como, por exemplo, São Tomás, com toda a genialidade dele, não deixou de ser um homem do século XII. Tanto que tem coisas que ele não discutiu, tem coisas que ele não falou. Então, assim, isso é óbvio, né? Não tem como. Então, por isso que eu digo: há uma dimensão de relação de consciência e história que eu acho que não dá para
negar. E aí, o cara chamou atenção para isso, só que não ficou só nisso. A coisa foi muito além, né? Porque não é só questão de que há uma relação entre consciência e história, mas é como se a consciência só se dá na história. E, dependendo de como eu entendo isso, sim, eu posso cair num relativismo enorme. Hegel não caiu, enfim, mas, de novo, abriu porta; tanto que o que vem depois é bem bruto nesse sentido, entendeu? E tem um ponto, para mim, que é mais sério, além desse aspecto lógico de trocar uma lógica clássica
meramente por uma lógica dialética, né? Não estou falando aqui que a lógica clássica não tenha os seus desafios, não é isso, né? É só estudar lógica matemática. A lógica clássica é consistente, né? Tem muitos desafios ali. Então, mas isso é uma outra discussão, né? E outra coisa é a chamada lógica dialética de Hegel, tá? E por que eu vejo um problema? Porque, na origem de tudo, ele parte de um pressuposto, me parece, é como se ser e nada fossem a mesma coisa, né? Ou seja, lá no princípio, na origem, porque se todas as contradições estão
reunidas, e no desenvolvimento a coisa lá no final vai... Então tá, então eu não tenho simplesmente o ser, eu tenho ser e o nada. Mas como que o ser e o nada podem ser simplesmente a mesma coisa, estar juntos, né? Enfim, evidente que é hegeliano e o próprio Hegel tenta justificar e explicar isso, etc. Mas eu acho que os desdobramentos são muito complicados, porque é ser e nada, é eterno e temporal, é infinito e finito, fica muito... E aí parece que a coisa é tudo a mesma coisa. Então, por isso que muitos vão dizer: olha,
por mais que muitos hegelianos digam "não, mas não tem aqui nenhum tipo de panteísmo", eu acho muito difícil, né? Não reconhecer que ali haja pelo menos algum tipo de semente de panteísmo, mesmo que, sei lá, ele não use essa palavra ou não afirme explicitamente isso. Então, eu entendo que o Rilke fez um grande barulho, o fenomenismo do Kant eu acho que foi bem bruto, mas acho que o Hegel é... Hegel é o vencedor. O Hegel é o Hegel. E aí, o que vem depois é tenso, você entendeu? É bastante complexo, né? Por isso que, no
meu entendimento, acho que para nós compreendermos muita coisa que nós vemos hoje no contexto de pós-modernidade ou mesmo ali muita coisa do próprio século XX, eu acho que é imprescindível o estudo do pensamento de Kant e o pensamento de Hegel. Temos perguntas, Eduardo? Temos. Sim, professor. A primeira aqui é uma reflexão do Paulo Kogos, que está assistindo a gente. Ah, que bom! Ocidente em fúria! Vamos lá! É, meninos com uma máquina do tempo matam Marx, homens com uma máquina do tempo matam... Abracos ao Joel. E professor de Santo Agostinho, ele mandou um número aqui, mas
acho que deve ser de campanha, não pode? Esque... não tenho dúvida, Kogos, é isso mesmo! Eu não sabia que ele tinha sido seu aluno. Foi! Foi meu aluno, Kogos é uma figura! Foi lá no São Bento. Vamos lá para o próximo aqui, mais um superchat! Hugo Cunha: boa tarde. Gostaria de saber quando começou a relação entre filosofia e cabalá, os principais expoentes e os desdobramentos dessas ideias na realidade. Olha, eu não tenho, assim, cabalá. É lógico, tem a ver com a questão do Judaísmo, né? E é como se fosse a vertente meio esotérica do Judaísmo.
Então, com certeza, ou seja, nós estamos falando de uma realidade bem mais antiga, não é no contexto moderno, né? Seja, no mundo medieval, você vai ter ali já muita discussão. Mas, sendo bem sincero, eu não tenho tanto conhecimento desse assunto. Ed Júnior: mais um superchat aqui. Ah, obrigado! Olá! O que vocês acham da fenomenologia do Hegel? Ah, é que a gente não deu tempo de avançar, né? Quiser comentar dele, do Heidegger? É, na realidade, aproveitando então a pergunta... Dar uma... Então, aquela história. Nesse contexto todo, vai ter os desdobramentos, né? E aí, eu acho que...
Tem dois... Momentos infinitos. O primeiro momento é a própria questão do Marx. Você entendeu? Ou seja, se a gente pegar, depois do pensamento de Hegel, vai ter a famosa direita hegeliana e esquerda hegeliana, né? Do lado Ferb Marx de um lado e os outros, né? Alguns até tentando juntar Hegel com o catolicismo, por exemplo, com a questão do cristianismo. O Marx, por exemplo, é interessante isso nesse desdobramento, porque aí você sai de um idealismo, né, onde a questão da ideia do Espírito ali está na origem, é tão importante, mas você sai disso e vai pro
materialismo. Ou seja, você cai no materialismo dialético e o materialismo histórico. Só que a matéria agora é colocada no lugar; não é mais a ideia, não, o espírito, né? E é interessante porque, pelo materialismo histórico, ele quer mostrar justamente o quê? Que não é o pensamento que determina a realidade, né? É a realidade que determina o pensamento. Aí, quando o pessoal lê isso, fala: "Nossa, então Marx era metafísico." Não, querido, não é isso, né? Aí o que ele entende por realidade, que é materialismo histórico, portanto realidade histórica, ou seja, o contexto histórico social, político, econômico,
etc., é isso que determina o pensamento de alguém, principalmente a questão do trabalho, né? A questão econômica, a maneira como o ser humano se relaciona com a natureza, com o mundo, o modo de trabalho, de produção acaba determinando, né? Não só a vida em sociedade, mas o modo de pensar, né? E a grande questão é: se tem o materialismo histórico, o dialético vai mostrar também que essa própria história e os homens vão se movendo. Mas o que move a luta de classes? Então, quer dizer, ele pega lá, tem os opostos, tem as contradições, dialética aplicada,
né? Exato, só que no âmbito material e político, entendeu? Então, acho que aí a gente já vê um desdobramento, né? Correndo meio por fora, é interessante. Você pega um Augusto Comte, né, que também vai estar no contexto materialista, mas a impressão que eu tenho é que alguns grupos ainda ficavam presos a elementos anteriores, não tanto à questão apenas do Hegel, né? Mas àquela coisa de que vamos tentar encontrar aqui um outro caminho de valorização da ciência. Mas, querendo ou não, é um desdobramento do materialismo, entendeu? Só que é o materialismo cientificista. Então, é aquela dos
estágios do Augusto Comte, né? Ou seja, do Espírito positivo. Então tem a fase religiosa, depois metafísica, depois científica, né? Ou seja, na fase religiosa, tem ali as crenças, a maneira do ser humano ver o mundo ainda a partir disso. Na metafísica, já melhora um pouquinho, porque já está usando mais a razão, mas o ápice tudo é a ciência, principalmente a sociologia, né, como ele coloca. E disso vai dar origem, né? E aí você vê o ápice daqui do humanismo, é a religião do homem pelo homem, de novo a mesma coisa, né? Só que aí focado
mais numa estrutura na qual ele monta lá do chamado espírito positivo. Então, acho que tanto Augusto Comte quanto Marx, por que que eu tô citando? Para mostrar como que, seja por causa do Hegel ou outros autores, é natural que esse tipo de pensamento desembocasse no materialismo e também no ateísmo. Ou seja, na medida em que eu fecho as portas para a metafísica, a religião e a fé vão ficando no terreno do subjetivo, do sentimento. É muito difícil não cair no materialismo e no ateísmo, né? A grande questão é que nem todo mundo concordava com isso.
Então, sempre vai ter alguém que, né? Então, você pega o Brentano. Brentano já desconfiava e questionava muita coisa ali no século XIX e propunha claramente o retorno a Aristóteles, pelo menos em alguns pontos. E, junto com Aristóteles, ele acabava chamando atenção como que o conceito de intencionalidade era muito comum na Escolástica medieval, principalmente São Tomás. E, a partir disso, Brentano fez um trabalho interessante. E o Husserl foi aluno do Brentano, né? Que não vamos confundir com o Russell, né? O Russell é outra figura, com H, é o Russell, né? E aí, ele foi aluno do
Brentano, teve esse conhecimento todo e, como matemático também, como lógico, pega isso e fala: "Olha, realmente nós precisamos aqui discutir essas questões." Ou seja, não dá, né? Tanto que tem textos dele muito relacionados à questão do cartesianismo, né? Mas ele pega também toda uma discussão em relação ao fenomenismo, né? O problema que o Kant deixou, ou seja, a fenomenologia, o método fenomenológico estabelecido por Husserl, eu acho que é interessante no sentido de que ele retoma a discussão da relação entre sujeito e objeto. E aí ele propõe realmente um outro caminho. Só que, no caso do
Husserl, é difícil os textos, porque também é aquela coisa de que parece que tem algum momento ali que ele tem uma tendência mais realista e, de repente, depois tem uma virada e ele fica muito mais idealista, né? E, de fato, no final do século XIX, começo do século XX, teve muita discussão sobre isso, né? Se teve muito debate de realismo com idealismo, né? E tanto que, no meu entendimento, talvez tenha expressões e questões que são muito mais do final do século XIX, início do século XX, e o pessoal transfere pra Idade Média, transfere, às vezes,
uma terminologia e expressões que são muito mais da Neo Escolástica, do neotomismo e desse debate de realismo e idealismo do que de fato do próprio medieval. Ah, interessante, né? Então, às vezes, tem que tomar um pouquinho de cuidado, né? E, e aí, o uso, de fato, é no método fenomenológico, ele procura mostrar que nós precisamos pensar o sujeito e o objeto numa relação, né? Ou seja, no fundo, o sujeito não é uma substância. Coisa totalmente pronta e nem o objeto totalmente pronto se as duas coisas se dão na relação, né? E aí é lógico. Por
exemplo, quando eu falo "mundo" para a consciência, sempre a consciência de... né? E aí essa consciência sempre está voltada para algo, é consciência que seriam as essências. Só que o que ele entende por essência são as unidades de significação que constituem as próprias coisas. Então, não é essência no sentido tradicional aquilo que faz com que uma coisa seja. Não, não é isso. Então, precisamos retornar às próprias coisas, precisamos retornar às essências. Aí, quando alguém lê isso, fala: "Nossa! Então o senhor era profundamente aristotélico." E, né, não é bem assim. Porque, na sua fase, me parece,
maior, ele é muito mais idealista do que realista. Então, no entendimento dele, no fundo, o que a gente chama de mundo é muito mais o que a consciência que nós temos do mundo, o que nós entendemos por mundo, porque é um conjunto de fatos e de coisas, né? Então, o mundo não é simplesmente o conjunto de coisas, fatos, que simplesmente existem. O mundo é muito mais o significado e os sentidos. Então, as essências são essas significações que são estabelecidas pela consciência na própria relação com a realidade. Então, o método fenomenológico seria uma forma de fazer
o que ele chama de redução eidética, né? Você suspende, então, para entender como se dá o processo da própria formação da consciência, do estabelecimento dessas significações, desses sentidos. E aí o método, né, entendido dessa maneira, e a própria fenomenologia, vai ter uma força muito grande, uma presença muito grande no século XX, seja na França, né, em um Merleau-Ponty, em um Sartre, né? Ou na Alemanha, um Heidegger. Então, de fato, é o próprio Heidegger, no "Ser e Tempo", ele reconhece muitas coisas nesse sentido, né? Digamos, o seu certo débito com Uel com a fenomenologia, mas ao
mesmo tempo é como se o Heidegger dissesse: "Olha, Husserl criticou isso daqui, aquilo ali, né? Tentou resgatar determinadas coisas, mas eu entendo que ele não fez tudo que deveria ser feito, né?" Por quê? Porque, para Heidegger, como todo mundo sabe, o grande lema de Heidegger, né, é que ele vai fazer toda uma crítica à tradição ocidental, à filosofia ocidental, dizendo que houve um esquecimento do ser. O grande problema é que houve um esquecimento do ser. Ou seja, no fundo, no fundo, sempre se estudou o ente e não o ser, né? Ou seja, confundiu-se o ôntico,
que é o estudo do ente, com o ontológico, que é o estudo do ser. E, no entendimento dele, o que colaborou com isso é quando se mudou o conceito de verdade de Aletheia, né? E, no entendimento dele, se começou com Platão, por exemplo, no Mito da Caverna, quando Platão tem a ideia de que tem homens acorrentados dentro da caverna, portanto, presos no mundo sensível. Aí, eles conseguem sair de lá e vão para fora da caverna contemplar o inteligível, as ideias. E ele diz que, nesse tipo de pensamento, surgiu então a ideia de que, para você
ver direito, saindo da caverna, você tem que adequar o seu olhar a essa realidade nova, luminosa. Ele diz que essa ideia de adequar o olhar transformou, então, a Aletheia, que significava não esquecimento, né, e manifestação do ser. Começou a se entender, então, a verdade como adequação do intelecto à coisa. E aí ele diz, principalmente na tradição aristotélico-tomista, etc. e tal, que é aqui que está o problema. Então, nós precisamos, né, retomar isso e, ao retomar, o verdadeiro sentido da palavra verdade, que é a manifestação do ser, vamos revalorizar a questão da ontologia e não apenas
a questão do ente, né? E aí é onde ele desenvolve toda a analítica existencial ou a analítica da existência, né? E, no outro momento, em outros textos, ele vai focar mais numa crítica à racionalidade moderna, à questão da ciência, à questão da técnica. E é muito comum as pessoas me perguntarem: "Então, professor, teve dois Heideggers?" Não, eu acho que não. Eu acho que, no fundo, o pensamento heideggeriano, ele é desenvolvido por uma única motivação, um único ponto: é o problema do ser, é o que ele entende por esquecimento do ser, né? Só que ele faz
isso em dois momentos. Primeiro, ele faz isso analisando essa problemática do ente, do ser, do ôntico, do ontológico, que aí o grande conceito é o "Dasein", que é o homem. É o ser porque o homem é o único que tem essa consciência de realizar esse processo. Então, o núcleo, o conceito central é esse que ele vai discutir, né? E toda aquela coisa do ser humano como um ser-para-a-morte, conceito de uma existência não autêntica. Então, essa é uma primeira reflexão. Só que o ser não se manifesta só nessa questão desse contexto; ele se manifesta também na
natureza e na questão da linguagem. Então, por isso que Heidegger vai dizer: "Olha, nós precisamos fazer uma outra análise aqui", ou seja, entender que essa razão moderna, essa racionalidade moderna excessivamente tecnocrática, né, tecnológica, essa sociedade da técnica, ela pode ser interessante no sentido de resolver alguns problemas práticos, mas é outra, também, que ajudou a esquecer o ser, né, a piorar a situação. Ou seja, porque frisou muito o aspecto epistemológico, gnosiológico, questão do sujeito, de novo, do objeto, e o ser mesmo ficou à deriva, continuou, né? Então, no entendimento dele, é preciso fazer também uma análise
muito crítica dessa razão tecnocrática e é preciso o ser humano aprender a se aproximar da natureza, a ouvir a natureza. E talvez a melhor linguagem para isso não seja simplesmente uma linguagem conceitual. Aí ele entra na questão da linguagem dos poetas. Por isso que ele vai escrever muito sobre isso. A questão da poesia como uma forma de se aproximar mais dessa questão do ser. Bom, eu acho isso um grande problema, né? Eu, eu, eu... na primeira vez que eu estudei essas coisas, eu li tudo e falei: "Caramba, o cara tá dizendo que de Platão até
Nietzsche ninguém estudou o ser!" Não, isso é absurdo! Todo mundo só ficou no ente. Aí eu falei: "Meu Deus, mas é complicado isso, né?" E tem alguns pontos, alguns argumentos que ele apresenta que, de fato, ele estudou muito Descartes, né? Ele teve contato com esse mundo medieval; ele tem até um texto sobre o livro 10 das Confissões de Santo Agostinho, onde ele faz uma correlação do livro 10, a questão da memória, com a própria questão da fenomenologia do método, né? Então ele tinha, assim, uma cultura medieval, mas eu não sei até que ponto ele estudou
direito o pensamento de São Tomás, porque tem alguns argumentos que ele usa e coisas que ele coloca, pelo menos no meu entendimento, que não se aplicam, não se encaixam à metafísica tomista, principalmente a questão do actus essendi e a maneira como São Tomás entende a questão do acto do ser. Então, sinceramente, não sei até que ponto ele estudou e discordava ou estudou, entende? Mais perguntas, Eduardo? Por aí vai, né? Vamos lá! Temos aqui mais um superchat do Hugo também: Hugo Cunha de Melo. Obrigado! E o nada é nada. Por outro lado, o ser é. Portanto,
como posso entender que o ser criou tudo a partir do nada? Justamente entendendo que, quando a gente diz "ex nihilo" que Deus criou tudo a partir do nada, não quer dizer que o nada seja alguma coisa. Porque, realmente, no primeiro momento, fica uma coisa muito estranha, né? Deus criou tudo a partir do nada. Então, se eu pego isso à letra e não entendo, fica parecendo que Deus é uma coisa e o nada é outra coisa. Então, eu tenho duas coisas: Deus e o nada, Deus e o nada, né? E aí que foi o grande erro
do Sartre, né? É uma obra que ele escreveu, "O Ser e o Nada", e ali ele procura dar uma certa consistência ao nada. Não, o nada é nada, ou seja, o nada não tem positividade ontológica; ele é ausência de ser. Portanto, dizer que Deus criou tudo a partir do nada não é no sentido de que Deus se voltou para o nada, usou o nada como se o nada fosse algo, como se o nada fosse a matéria primordial, né? Dizer que Deus criou tudo a partir do nada quer dizer duas coisas. Primeiro, que na origem de
tudo e do ponto de vista da eternidade só existe Deus. Só existe um ser que é Deus, que é o princípio e o fim de tudo, que é absoluto e que é eterno, né? E, segundo, dizer que Ele criou tudo a partir do nada significa dizer que, além d'Ele e somente d'Ele existir, ele fez tudo sem a ajuda de ninguém. Ele não precisou da ajuda. Ou seja, por isso que Ele é criador. Ele é criador porque Ele doou o ser, Ele deu o ser, né? Ou seja, Ele chamou a existência uma coisa que nunca existiu
a partir do nada, no sentido de que Ele é onipotente e deu ser a essa coisa e chamou essa coisa à existência. Lógico que, para nós, humanos, quando a gente tenta imaginar, né, a gente fica tentando imaginar Deus. Tá lá, tá... primeiro, como é que eu imagino Deus? Já começa a encrenca, porque a gente vai pensar no formato humano, né? Então, aí começam as limitações do nosso entendimento, entendeu? Então, e é por isso que a gente fala essas coisas também por analogia, né? Porque senão fica difícil. Então, Deus sempre existiu e, ao criar, Ele chama
à existência no sentido de que Ele doa o ser. Então, Ele cria tudo a partir do nada no sentido de que só existia Deus no princípio; não tinha mais nada, e Ele fez isso sem a ajuda de ninguém. Por quê? Porque Ele era onipotente. Agora, óbvio que vão perguntar: "Professor, como Ele fez?" Olha, o como... eu não sei, aí realmente é difícil. Acho que nem a Bíblia consegue, porque, né? Tem toda a questão da linguagem metafórica ali, mas a gente fica tentando imaginar, né? Muitos alunos já disseram isso para mim: "Parece mágico, tirando coelho da
cartola." Mas é isso. Ou seja, não é que o nada é alguma coisa, né? Ou seja, nada é nada; o ser é ser. E aí tem uma segunda hipótese, né? Porque, quando gera essa dificuldade, aí o pessoal fala: "Então, Deus criou a partir d'Ele próprio, a partir d'Ele mesmo." Não! Isso é panteísmo, né? E aí não é criar; isso é gerar. Por isso que, do ponto de vista católico, quando se pensa o mistério da Santíssima Trindade, seja no Concílio de Nicéia ou em outros, o verbo muda, né? Ou seja, o Filho, que é o Cristo,
Ele é gerado; Ele não é criado. Ele é gerado pelo Pai. Por quê? Porque Ele simplesmente vem, né? E é produzido a partir da própria substância do Pai e é produzido desde todo sempre; por isso que Ele é eterno. Enfim, se Ele é eterno, é consubstancial, tem a mesma natureza, mas substância. Por isso que é: "Deus de Deus, Luz da Luz, Deus verdadeiro de Deus verdadeiro." E o Espírito Santo procede. Aí muda o verbo, justamente porque só tem um Filho, não pode ter dois. Então, pela Revelação, né? Então, o Espírito procede do Pai e do
Filho, ou do Pai pelo Filho. Enfim, aí começa a discussão do Filioque, né? Mas é uma forma de mostrar que Deus é um. A natureza divina é uma e essa natureza divina subsiste em três pessoas ou três relações subsistentes. Ah, então pai, filho e Espírito Santo são diferentes? Ou são iguais? São iguais, do ponto de vista da natureza, do ponto de vista da substância; eles são iguais porque têm a mesma natureza, por isso têm o mesmo poder, honra e glória, mas são distintos do ponto de vista da relação de origem. Né? Porque o pai é
princípio sem princípio, o filho é princípio com princípio, e o Espírito Santo também, né? E a relação de origem é diferente de paternidade, de filiação e de inspiração. Então, são coisas distintas. Então, eu não posso dizer que Deus cria. Ele não doou ser às criaturas a partir de si mesmo porque Ele é totalmente simples e não se divide, né? Por isso que São Boaventura, por exemplo, quando fala do Mistério da Santíssima Trindade, é bem interessante porque ele coloca, né, que Deus não é o sumo bem. Se Deus é o sumo bem, então Deus é difuso
de si, porque é próprio do bem difundir-se ou seja, comunicar-se. Se é próprio do bem se difundir e comunicar-se, e Deus é o sumo bem, Ele tem que se comunicar. Aí, alguém vai dizer: ah, então foi por isso que Ele criou. Então Deus criou por necessidade? Aí só uma aventura disso? Não. Deus criou por bondade, ou seja, Deus não criou por necessidade. Justamente por Ele ser o sumo bem, Ele comunicou aquilo que somente Ele tinha, que é o ser, né? Ele é o próprio ser. Então, Ele cria por bondade e faz essa comunicação, mas a
comunicação pela criação não é suficiente porque precisa existir uma comunicação no próprio íntimo de Deus. Então, é por isso que Deus é Pai, Filho e Espírito Santo, e Ele vive essa difusão de bem absoluto de maneira absoluta. Então, se houvesse uma difusão da bondade e a comunicação apenas na criação, isso é relativo. Então, tem que ter uma comunicação no âmbito absoluto. Logo, se Ele é o sumo bem, então eu tenho Pai, Filho e Espírito Santo, que vivem essa circunspecção, essa pericorese, essa penetração de um vai se comunicando ao outro, mostrando que Ele é o sumo
bem. E a criação é expressão relativa, não necessária, dessa comunicação porque Deus não era obrigado a fazer isso, porque já vivia isso no seu íntimo, né? Perfeito. Mais alguma questão? Professor, eu gostaria de fazer uma pergunta minha aqui. Mais uma. Professor, eh, primeiro: o senhor conhece o Fábio Sabino? Eu já ouvi falar. Mas então eu vou... Ele tem uma tese aqui, deixar claro que eu não concordo com a tese dele, aonde ele afirma que Ele é especialista em exegese e ele afirma que a Bíblia é um grande conto mitológico, né? Então, ele explica que a
criação, o Gênesis, por exemplo, veio de contos mitológicos. Ele faz comparação, né? E ele fala que 80% das coisas da Bíblia são contos, né? E ele está indo em muitos podcasts e tal. E o que o senhor acha disso? Professor, eu acho que tem confusão, né? Eu acho que uma coisa é você reconhecer, por exemplo, que o Antigo Testamento, lógico, vai ter ali toda a questão da cultura judaica, do contexto judaico, produzido, né, pelas comunidades judaicas, pelos autores judaicos. O Novo Testamento, evidentemente, com contexto já um pouco diferente, são as comunidades cristãs, questão dos apóstolos.
Então, isso é o primeiro ponto. Tanto no Antigo Testamento quanto no Novo Testamento vai ter a questão dos gêneros literários. Acho que isso é uma outra coisa, ou seja, cada livro da Bíblia tem gêneros, né? Gênero epistolar ou a questão do midra, né, no Antigo Testamento. Então, acho que isso é legítimo discutir os gêneros literários, gênero agá, né? Eh, isso vai estar presente, sim, principalmente, me parece, às vezes, mais no Antigo Testamento do que no próprio Novo Testamento. Mas eu acho que, pelo que ele parece, você está perguntando se a história, que se realmente existiu
Moisés. É nesse sentido, existiu, eh, José do Egito. Nesse sentido, isso não. Então, eu vou chegar nisso daí. Por isso que eu disse: eu acho que é uma confusão. Acho que às vezes uma coisa é a gente reconhecer e admitir que tem gêneros literários, você entendeu? E que muitas vezes tem arranjos ali, mas isso não quer dizer necessariamente que não tenha relação histórica nenhuma. São coisas distintas. Então, a impressão que eu tenho é que, ó, já que o povo de Israel, quando compôs o Pentateuco, por exemplo, ou só o Gênesis, foi profundamente influenciado por povos
da Mesopotâmia, etc., e tal, relacionando, não sei com quem, então pegaram narrativas daqui e também acabaram usando. O que eu quero dizer é o seguinte: pode ser. Às vezes eu acho que dá para perceber realmente que teve essa influência, teve esse uso, mas me parece que isso não me autoriza a inferir que, porque teve uma influência, teve uma relação ou teve um certo uso, então tudo aquilo ali é simplesmente uma narrativa construída, né? É um mito no sentido, eh, eh, de uma história inventada sem relação nenhuma com a história e com a realidade. Aí eu
acho que já vai além. A própria questão do mito já é um problema, né? Aí nós teremos que discutir o que é mito, porque, por exemplo, se você pega na história da filosofia, na história do pensamento, tem, por um lado, a ideia de que o mito é uma coisa falsa, é uma coisa ficcional, é uma coisa irreal, né? E até no sentido de uma coisa negativa, etc. Só que a gente sabe que tem a outra vertente, que é a ideia de entender o mito como uma estrutura simbólica, né? E, portanto, parecido como se fosse uma
metáfora, uma alegoria. Então, por exemplo, é interessante... Nesse sentido, porque, por um lado, ele critica o Homero e critica a questão do mito, dizendo que tem imoralidade, que tem não sei o que, etc., que não expressa a verdade, mas, ao mesmo tempo, é interessante como ele ressignifica o conceito de mito, porque ele usa vários mitos. Mas veja que, para ele, me parece que há um sentido de mito aqui que ele critica e, ao mesmo tempo, ele transforma o mito numa alegoria, ou seja, numa figura de linguagem, né? Então, a gente teria que analisar. Quer dizer,
quando se fala, por exemplo, né, eu mexer num pontinho que é bem polêmico, a gente sabe que, às vezes, em alguns âmbitos na igreja, quebra o pau. Gente chega e fala assim: "Olha, o mito de Adão e Eva, realmente, se você entender por mito uma coisa irreal, fantasiosa, errônea, que deve ser desmascarada, óbvio que, para quem acredita na Bíblia, Adão e Eva não é mito". Peraí, nesse sentido, não. Agora, se eu falar em mito de Adão e Eva no sentido de que existe ali uma narrativa metafórica e simbólica, mas que expressa uma verdade e que
tem vínculo com a realidade, ou seja, Adão, sei lá, representando o primeiro homem, Eva, a primeira mulher, portanto, o casal que foi feito por Deus, que realmente viveu num paraíso naquele contexto, entendeu? Veja, a coisa muda. Eu não estou negando um fundamento real, eu não estou negando uma historicidade; o que eu só estou dizendo é: olha, tem aqui algo histórico, tem algo real, mas o modo, a linguagem. Mas eu acho que pelo sim, ele nega a coisa real. Mesmo na verdade, assim, ele, por ser especialista em exegese, né, ele faz muita interpretação do texto. E
aí, por exemplo, ele dá um exemplo da serpente. Então, qual o que ele quer provar no que ele fala? Então, ele fala assim: "A serpente falou com Eva, né?" Aí, ele diz, "mas isso daí é um mito, porque senão a serpente falaria até hoje." Por exemplo, ele dá esse exemplo, entendeu? Aí, ele mistura isso e também mistura quando ele fala da mitologia; ele fala que a religião hebraica veio do politeísmo. E aí, ele fala assim: "Ah, vou dar um exemplo aqui no Gênesis. O escritor de Gênesis não fala sol e nem lua, porque eram dois
deuses adorados no politeísmo." Entendeu? Então, essa é a tese dele, né? Sim, primeiro que as coisas não continuam até hoje. Se a serpente falou com Eva, por que a serpente não fala até hoje? Mas isso que eu estou dizendo, eu acho que tem duas confusões aí. Isso que estou falando, ele teria que esclarecer melhor o que entende por mito, né? Porque, por exemplo, quando ele diz que a serpente é um mito, se for no sentido metafórico, sim. Você mesmo, será que algum católico acredita que uma cobrinha ficava falando? Meu Deus, será que realmente é no
sentido que ali eu tenho uma serpente, no sentido de uma jararaca, por exemplo, que estava falando? Você pega os padres da igreja, todos vão interpretar que ali representa o demônio, representa o mal. Então, veja que já é uma leitura alegórica, né? Então, quer dizer, não tem como. É isso que estou falando. Da mesma forma, é mito porque, por exemplo, na região da Mesopotâmia, alguns povos tinham, sim, narrativas míticas relacionadas à questão da serpente. Mas eu acho que ele está cruzando as coisas, entendeu? Ou seja, uma coisa é a gente discutir, repito, o que é o
símbolo, a questão da simbologia e da estrutura simbólica da realidade, ou da figura de linguagem. Será que ele sabe essa diferença de mito? Acho que nem deve saber, entendeu? E outra coisa, essa coisa de que o mito é uma coisa irreal, é uma fantasia, e ele está usando isso para tudo, né? Aí, está falando que... O que eu acho estranho é uma pessoa dizer que é um exegeta, né, da Escritura, e não ter essas... Porque até quem é modernista, por exemplo, e bem progressista, ele vai mais para esse outro lado; ele vai dizer que é
mito no sentido de simbolismo, de significações, de sentidos, né, e não nesse sentido, aí, de, enfim. Mas teve uma outra coisa que você colocou aí que eu esqueci agora que era sobre o Gênesis, né, que ele fala assim: "Olha, do povo de Israel que vem do politeísmo." Isso, isso é outra confusão. Porque uma coisa é fato: o monoteísmo judaico teve um processo. Então, no primeiro momento, não é que o monoteísmo veio do politeísmo; é que, no primeiro momento, a tradição judaica existe: Javé é o único, o nosso Deus, e existem outros. Então, havia, no primeiro
momento, a ideia de que eu tenho o Deus de Israel e existem os outros deuses. Num segundo momento, isso muda; não tem mais o Deus de Israel, os outros deuses; só tem o Deus de Israel. Ou seja, só existe um Deus, um Criador; os outros não são deuses, são ídolos, né? Então, você tem esses dois momentos no processo, digamos, de estabelecimento da fé monoteísta no contexto judaico. Me parece que aí é uma outra confusão. Tem mais alguma pergunta? Temos mais um último superchat aqui, eh, o Renato Luciano, professor Joel, por que a modernidade não é
capaz de ter um novo Dante, Homero, etc.? Boa pergunta. Olha, você não... Eu vou dar minha opinião, né? Mas não que seja uma evidência. Eu acho que passa principalmente pela educação, né? Eu acho que a gente não consegue, muitas vezes, ter um novo Dante, um novo Homero, porque, se a gente pega a educação clássica, né? Lógico que educação clássica católica e cristã não é exatamente a mesma coisa, então faço questão de frisar. Isso, ou seja, uma coisa é a educação clássica no contexto grego-romano, né? E outra coisa é a educação clássica cristã católica, principalmente ali
no contexto da patrística e do mundo medieval. O problema é que a gente entrou num processo formativo; repito: mudou o conceito de inteligência, mudou a proposta educacional, né? Ou seja, hoje a educação, praticamente, tem duas vertentes: ou você é uma vertente mais progressista, né? Então a ideia da educação como um ato político de formar militantes, etc., aquela coisa do Paulo Freire; ou a visão mais pragmática, né? Vamos formar e educar para o mercado de trabalho, né? Para, sei lá, uma suposta prosperidade, ganhar dinheiro. Isso. Então você tem essas duas grandes linhas; lógico, tem uma exceção
ou outra, mas o que predomina é isso na grande maioria das escolas, entendeu? É fortíssimo isso daqui. Então, não tem como você formar um "D", não tem como, nesse contexto, nesse tipo de mentalidade. Lógico que essa proposta pedagógica, esse modelo educacional parte de pressupostos antropológicos, ou seja, de uma certa concepção do que é o ser humano, do que é o homem, né? E aí realmente a coisa fica feia. Então, no meu entendimento, enquanto a gente não voltar a refletir e a perguntar quem somos nós, o que é o homem, né? E questionar esses pressupostos antropológicos
me parece frágil e complicado, vai continuar a mesma coisa. Porque, para mudar o elemento pedagógico, a questão metodológica, ou seja, a proposta educacional, para mudar, você tem que mudar antes a concepção que você tem de ser humano, o que eu entendo por ser humano, né? E, principalmente, não pensar a educação como transmissão de ideologia, né? Então, acho que o grande problema é esse, né? Ou seja, hoje em dia, nós não queremos ajudar a criança, o adolescente, a se transformar num adulto, num ser humano maduro, capaz de assumir a própria vida, de cumprir a sua missão,
de colaborar com Deus. Não, né? A gente quer ou quer formar um militante ou quer formar uma mão de obra ou alguém que produza e ganhe dinheiro. Então, quer dizer, fica muito difícil, porque aí você reduz o ser humano a duas coisas. Então, eu não estou dizendo aqui o aspecto político, cidadania, não sei o que. Isso tem a sua importância, só que não é nem isso que é feito, é outra coisa. E também essa coisa do trabalho, não sei o que. Tá bom, isso também é importante, mas eu não posso reduzir. Ou seja, eu tenho
que ajudar a formar o ser humano. Que homem eu quero formar? Qual é a referência, né? Ou seja, e aí eu quero formar um ser humano aonde eu estimulo muito mais o que ele tem de inferior do que o que tem de superior. Quer dizer, eu não educo seu intelecto, eu não educo a sua vontade, né? E aí eu desvinculo também intelecto e vontade da memória e da imaginação. Então, com uma fragmentação fortíssima, né? E, no fundo, repito, eu não quero, apesar de se falar muito, né? Ah, vamos fazer uma educação para a liberdade, para
a autonomia. Isso, para mim, é tudo e é mentira. Porque a verdadeira autonomia, a verdadeira liberdade é você ajudar o ser humano a assumir a própria existência, sendo fiel à sua natureza, vivendo realmente como homem, sendo um bom homem, dando a sua contribuição na sociedade, atingindo essa maturidade. Agora, para isso, eu tenho que realmente ajudar essa pessoa a desenvolver as suas potencialidades naturais. E me parece que a maioria não está preocupada com isso; ou seja, está preocupada com outras coisas. Então, realmente, o Dante, o Homero vão ficar esperando; não, não vai aparecer tão cedo, não
é? Se aparecer, vai ser num cantinho, não sei de onde, da exceção da exceção, pode ter certeza. Porque teve a oportunidade, enfim, de ter algo diferente, né? Uma formação diferente. Tá bom, então agradeço a pergunta de todos que nos acompanharam, especialmente ao professor Joel. E muito obrigado, professor! Eu que agradeço, Marcelo. Obrigado pelo convite, né? Espero que tenha ajudado aí o pessoal. E, lógico, o que eu procurei fazer aqui foi apenas algumas considerações, enfim, chamar a atenção para alguns pontos dentro da interpretação, enfim, da leitura que eu faço desses autores, né? Mas, muito obrigado pelo
convite, né? Quem quiser me acompanhar nas redes sociais é só procurar meu canal no YouTube ou no Instagram, né? Joel Gracioso. Enfim, para quem tiver interesse, semana que vem tem um primeiro colóquio online sobre Santo Agostinho. É gratuito, né? E lá na minha página do Instagram tem um link na minha bio; só precisa fazer a inscrição, repito, é gratuito, mas tem que fazer a inscrição para receber o link, né? Então, coloco sobre Santo Agostinho segunda, terça e quarta à noite. Se alguém tiver interesse, fica à vontade, tá certo? Muito obrigado, professor!