Por anos, os linguistas acreditaram que todas as línguas faladas no planeta possuem as mesmas categorias básicas para expressar ideias e objetos. Isso porque todos nós humanos vivemos no mesmo mundo e temos experiências semelhantes. Não importa onde nascemos — todos precisamos contar quantidades, lembrar do passado, planejar o futuro ou usar pontos geográficos para nos localizarmos.
Mas um novo livro – proposto por um linguista americano que foi criado junto com indigenas brasileiros — tem uma visão bastante diferente. Ele diz que quando analisamos os idiomas mais de perto, descobrimos que muitos conceitos básicos não são universais - e que falantes de línguas diferentes veem e pensam o mundo de forma diferente. Eu sou Daniel Gallas, da BBC News Brasil aqui em Londres, e conversei com o autor Caleb Everett sobre o seu livro e as ideias que ele expressa.
Muito da pesquisa para o livro foi feito na Amazônia brasileira. Antes de falarmos sobre a pesquisa, é interessante falar um pouco sobre a vida de Everett — que tem muita influência na sua obra. Ele veio ao Brasil quando ainda era criança.
Seus pais eram missionários que foram para Rondônia com a missão de traduzir a bíblia para o idioma pirahã — uma língua que hoje em dia só é falada por cerca de 300 pessoas. O pai dele, Daniel Everett, acabou se encantando com o idioma dos indígenas. Ele abandonou a religião, virou ateu e fez um doutorado em linguística.
O jovem Caleb teve uma infância incomum. Ele cresceu indo a escolas públicas em Porto Velho e em São Paulo — mas também passando muito tempo entre os pirahã. As memórias de estar na selva são geralmente muito boas.
Eu olho para trás agora e penso que nunca faria isso com meu filho (risos), quando penso nos riscos que corremos. Todos nós contraímos malária. É fácil olhar para trás com carinho quando todos sobreviveram.
Eu tenho boas lembranças de estar na aldeia nadando no rio com meus amigos indígenas, de caçar ou pescar com minhas irmãs, mas também alguns dos aspectos negativos, como a exploração dos indígenas por comerciantes locais. Desde cedo, Caleb aprendeu a falar pirahã, que é uma língua bastante peculiar. Foi nessa época que o pai de Caleb fez uma descoberta na Amazônia que segue sendo polêmica até hoje no mundo da linguística.
Segundo Daniel Everett, a língua pirahã não possui recursividade — que é quando se insere uma frase dentro de outra. Um exemplo seria a frase: “Sérgio chutou o menino que chutou a bola”. No idioma pirahã, só seria possível dizer: “Sérgio chutou o menino” e “O menino chutou a bola”.
Para quem não é do campo da linguística, isso pode parecer trivial — mas o fato de existir uma língua sem recursividade coloca em xeque um dos modelos acadêmicos mais famosos — o da gramática universal do linguista americano Noam Chomsky. Caleb Everett cresceu vendo seu pai ser ferozmente criticado por diversos linguistas. Noam Chomsky chegou a chamar Daniel de charlatão.
Mas o debate também o inspirou a pesquisar outras línguas no mundo que mostrassem que o jeito que nós humanos pensamos é muito diferente — justamente porque desenvolvemos tantas línguas diferentes. Você talvez já tenha ouvido falar a história de que os esquimós têm mais de cinquenta palavras para neve. A ideia por traz disso é que neve é algo tão importante para a cultura deles, que uma palavra só não daria conta de descrever todos os tipos de neves no seu cotidiano.
Pois se você já ouviu essa história. . .
os linguistas explicam que — na verdade — ela é mentira. Segundo eles, os esquimós têm poucas palavras para neve. Mas Caleb Everett explica que mesmo que essa história seja mentira — a ideia por trás dela não deixa de ser verdade.
Ou seja, que a forma como vemos o mundo molda a nossa língua — e a nossa língua molda o nosso pensamento. A ideia central por trás dessa mentira não é imprecisa, que é a de que as pessoas vivem em ambientes muito diferentes. Não é de surpreender que alguns grupos amazônicos não tenham palavras para neve.
Há algumas evidências agora de que alguns destes termos que existem no ambiente podem ter impacto na forma como as pessoas pensam sobre algumas destas coisas externas. Um dos exemplos mais radicais que Caleb encontrou em línguas amazônicas é que muitos indígenas sequer percebem o tempo como nós ocidentais. Vamos pensar em uma frase típica da nossa língua: “Na segunda-feira passada, eu dei uma corrida de meia hora, como costumo fazer todas as semanas”.
É fácil perceber que muitas culturas não possuem os mesmos pontos de referência que nós, como no caso de “segunda-feira”, “meia hora”, “semanas”. Mas o problema da língua e do pensamento é ainda mais profundo. O idioma Karitiana, que é falado por algumas dezenas de pessoas na Amazônia brasileira, nem sequer possui tempos verbais como os do português.
É impossível para eles falarem em “eu corri” — no passado — ou “eu costumo fazer” — no presente. Para outras línguas também na Amazônia, como pirahã e Munduruku, seria difícil sequer explicar o que são 30 minutos — já que essas línguas pensam as quantidades de formas diferentes que nós. Nesses dois idiomas, não existem palavras para números muito grandes.
Você pode imaginar que esses povos têm uma relação muito diferente com o tempo do que nós — na nossa sociedade. Pare para pensar em quantas vezes por dia você olha o seu relógio. E quanto a sua relação com o tempo é moldada pelo ato de programar atividades de acordo com as horas do dia.
Esse sistema de horas que funciona com base no número 60 foi estabelecido há milhares de anos na Mesopotâmia — e é quase “natural” para a maioria de nós. Mas agora imagine como funcionam essas sociedades indígenas que não possuem relógios, nem palavras para horas e minutos. Elas sequer enxergam o tempo em intervalos discretos — como nós.
Caleb explica que isso faz com que a relação dessas sociedades com o tempo seja profundamente diferente da nossa — e tudo isso é perceptível na língua. Experiências básicas mostraram que quando as pessoas falam sobre o futuro em algumas dessas línguas, elas apontam para trás, e quando falam sobre o passado, apontam para a frente, enquanto os falantes de inglês fazem o inverso. Tendemos a pensar que estamos caminhando em direção ao futuro, enquanto para muitas dessas culturas é o contrário.
E se você pensar bem, faz sentido. Porque você pode ver o passado. Você vê o que comeu no café da manhã.
Você sabe o que aconteceu ontem. Mas o futuro é meio desconhecido para nós, então esse tipo de metáfora básica de visão e ver o passado, não ver o futuro, é a base de como as pessoas pensam sobre o tempo. A diversidade de línguas no planeta é um exemplo também da diversidade de formas de pensar o mundo.
Hoje existem cerca de 7,400 línguas vivas. Um dos motivos que fizeram o linguista querer estudar muitas dessas línguas mais raras ou até em extinção é porque, segundo ele, muito do que conhecemos sobre as línguas humanas é baseado apenas em poucos idiomas muito falados — como inglês ou mesmo o português. Na perspectiva da história humana, se pensarmos em escalas de tempo maiores, os humanos deixaram a África há cerca de 100 mil anos aproximadamente — em ondas diferentes.
Eles caminharam por todo o mundo e chegaram a diversos lugares, incluindo o sul da América do Sul, há 20 mil anos. Durante esse tempo, desenvolvemos formas muito diferentes de pensar. Quando usamos as pessoas dos países ocidentais para generalizar como os humanos pensam, estamos olhando apenas para uma vertente específica de humanos que se desenvolveu em uma determinada parte do mundo durante apenas alguns mil anos de toda essa história de 100 mil anos.
É uma parte muito pequena da história de uma perspectiva histórica. De uma perspectiva histórica e antropológica, isso é apenas uma parte do quadro. E às vezes é uma parte não representativa.
Temos que buscar uma amostragem menos tendenciosa de como os humanos falam e pensam. Mas um dos problemas do mundo moderno é que muitas dessas línguas estão morrendo — porque está cada vez mais difícil para algumas comunidades viverem sem conseguirem se comunicar com o resto do mundo. E um jovem de uma cultura com uma língua de poucos falantes tem maiores chances econômicas de prosperar se ele aprender uma língua como português, espanhol ou inglês.
Isso está matando muitos idiomas. Os linguistas têm uma certa pressa de aprender e documentar muitas dessas línguas antes que elas desapareçam. Afinal elas nos permitem expandir a forma como a humanidade compreende o mundo ao nosso redor.
Eu vou ficando por aqui. Gostou do nosso vídeo? Deixe um comentário e até a próxima!