Feliz Natal, pai! Disse uma mendiga ao milionário enquanto lhe entregava uma foto. Ao olhar para a imagem, o milionário ficou chocado. A sala estava silenciosa, com o som constante das máquinas, cujo ritmo parecia acompanhar a respiração fraca de Ana. O ar tinha um cheiro de desinfetante misturado ao leve perfume das flores murchas que alguém tinha deixado no criado-mudo ao lado da cama. Maria Clara, de apenas 10 anos, estava sentada numa dura, com os pés balançando no ar porque não alcançavam o chão. O rosto dela estava escondido por trás dos cabelos castanhos, mas dava para
ver que ela estava segurando o choro. Ana, sua mãe, era uma mulher jovem, mas naquele momento parecia tão frágil quanto o vidro. A doença tinha tirado o brilho dos olhos dela, mas não o amor que ela sentia pela filha. Mesmo com as forças quase no fim, Ana tentou sorrir; ela sabia que cada segundo com Maria Clara era precioso. — Vem cá, meu amor! — Ana chamou, com a voz baixa, como se o próprio ato de falar exigisse um esforço enorme. Maria Clara levantou devagar os olhos, cheios de lágrimas, e foi até a cama. Ela subiu
no colchão com cuidado, tentando não se apoiar demais para não machucar a mãe. Ana estendeu a mão e segurou a dela com uma delicadeza que parecia dizer tudo: "Eu estou aqui para você". — Mesmo assim, mãe — Maria Clara começou, mas a voz falhou. Ela queria dizer algo, qualquer coisa, mas o nó na garganta era forte demais. Ana deu um suspiro, e o som parecia mais pesado do que o normal. Com a outra mão, ela puxou um pequeno terço azul debaixo do travesseiro. Era simples, mas tinha um brilho especial nas contas, como se guardasse histórias
de gerações. Ana olhou para o objeto por alguns segundos antes de falar: — Maria Clara, quero que você fique com ele. Ele sempre me deu força. Agora é sua vez. Maria Clara pegou o terço com cuidado, como se fosse a coisa mais importante do mundo. Ela não sabia exatamente por quê, mas aquele gesto parecia maior do que qualquer presente que já tinha ganhado. O olhar da mãe, o tom da voz dela, era como se Ana estivesse confiando a Maria Clara um segredo poderoso. — Você é muito corajosa, sabia? — Ana continuou, enquanto passava os dedos
nos cabelos da filha. — Eu sei que o mundo lá fora pode ser difícil, mas nunca, nunca esqueça que você tem uma luz dentro de você, e isso ninguém pode apagar. Maria Clara fechou os olhos, segurando o terço com força. Ela queria acreditar nas palavras da mãe, mas tudo parecia tão confuso. Por que as coisas tinham que ser tão difíceis? Por que ela tinha que perder a pessoa mais importante da vida dela? De repente, Ana começou a tossir. Foi uma tosse seca e longa que deixou Maria Clara em pânico. Ela olhou ao redor, mas não
sabia o que fazer. Antes que ela pudesse chamar a enfermeira, Ana segurou-a pelo pulso. — Não precisa ter medo, minha pequena — Ana sussurrou, e uma lágrima escorreu pelo rosto dela. — Eu vou estar sempre com você. Sempre. As palavras ficaram gravadas na mente de Maria Clara, mas naquele momento, ela não conseguia entender o que isso significava. Ana fechou os olhos, parecendo exausta, mas ainda segurava a mão da filha. Maria Clara deitou ao lado dela, colocando a cabeça no ombro da mãe, como fazia quando era menor. Ficaram assim por um tempo, sem falar, apenas os
sons das máquinas preenchiam o silêncio da sala. Para Maria Clara, parecia que o tempo tinha parado. Ela queria que aquele momento durasse para sempre, queria guardar o cheiro da mãe, o toque da mão dela, o som da respiração, mas a realidade era dura e a despedida estava mais próxima do que Maria Clara queria aceitar. Quando a enfermeira entrou para verificar os sinais vitais de Ana, a mulher olhou para Maria Clara com um misto de pena e preocupação. — Você precisa descansar, querida — a enfermeira disse. Mas Maria Clara balançou a cabeça. — Eu não quero
sair daqui! Quero ficar com a minha mãe! Ana abriu os olhos mais uma vez e olhou para Maria Clara. Apesar de todo o cansaço, havia algo de forte naquele olhar. — Tudo bem — Ana disse à enfermeira num tom tão baixo que parecia um sopro. — Deixa ela ficar. Maria Clara passou a noite ali, segurando o terço e sentindo o calor da mãe. Mesmo que o mundo dela estivesse desabando, ela tentou se agarrar àquela sensação de segurança. Mas no fundo, algo já dizia a ela que sua vida estava prestes a mudar para sempre, e no
dia seguinte, mudou. Maria Clara acordou com o toque suave da mão da enfermeira em seu ombro. Os primeiros raios de sol entravam pelas frestas da cortina, iluminando o quarto com uma luz fria e hesitante. Ela ainda estava deitada ao lado da mãe, sentindo o calor que restava daquele abraço, mas quando abriu os olhos e olhou para Ana, percebeu a imobilidade definitiva. O coração de Maria Clara afundou, e o mundo pareceu congelar. O som das máquinas, antes constante, agora estava mudo. A enfermeira puxou com delicadeza. — Querida, venha. Vamos dar um momento para ela descansar em
paz. Maria Clara não se mexeu de imediato. Seus dedos estavam agarrados ao terço azul, e ela sentiu o peso dele em sua palma. — Sempre com você — as palavras da mãe ecoaram como um sussurro. Finalmente, com um aceno hesitante, ela se levantou, embora sentisse como se estivesse deixando uma parte de si mesma naquela cama. O dia estava nublado quando Maria Clara entrou pela primeira vez na casa da avó Rita. O céu parecia refletir exatamente como ela se sentia por dentro: pesadela, sem cor, sem esperança. Sua mãozinha segurava a alça da única mala que tinha,
e dentro dela estavam algumas roupas, o terço azul e uma foto da mãe. Era tudo que tinha sobrado da sua antiga vida. Rita abriu a porta com uma expressão fechada. Ela era uma mulher alta, de rosto duro, e tinha uma postura tão rígida que parecia que estava sempre pronta para brigar com alguém. Assim que olhou para Maria Clara, soltou um suspiro alto, daqueles que deixam claro que você não é bem-vindo. "Tá bom, entra logo, não tenho o dia todo," disse Rita, com a voz impaciente, enquanto segurava a porta aberta. Maria Clara entrou devagar, olhando ao
redor. A casa era velha e escura, com móveis antigos e um cheiro estranho de mofo. Não tinha nada que lembrasse o lar onde vivia com a mãe, que sempre tinha um aroma doce de bolo ou flores. Era fria, assim como a dona da casa. "Sua mãe já foi, agora é você quem tem que aprender a se virar," Rita continuou, enquanto fechava a porta com força. "Eu não tenho paciência para a criança mimada, entendeu? Aqui, cada um faz a sua parte." Maria Clara apenas assentiu com a cabeça. Ela não tinha forças para responder e, mesmo que
tivesse, não sabia o que dizer. Desde o momento em que sua mãe havia partido, ela sentia como se uma parte dela tivesse sido arrancada. Era difícil até respirar. Rita levou-a até um quartinho no fundo da casa. Era pequeno e quase vazio, com uma cama velha que rangia só de olhar. No canto, havia uma janela com cortinas amarelas e rasgadas. Maria Clara colocou a mala no chão e ficou ali parada, sem saber o que fazer. "É aqui que você vai ficar. Não quero bagunça, não quero barulho, e trate de acordar cedo, porque amanhã tem muito trabalho
para você." "Trabalho?" Maria Clara perguntou baixinho, mas Rita já tinha saído do quarto, sem se preocupar em explicar. Naquela noite, Maria Clara se encolheu na cama e abraçou o terço azul. O colchão era duro e a manta tinha um cheiro estranho, mas o que mais incomodava era o vazio no peito. Ela fechou os olhos e tentou imaginar o rosto da mãe, o som da voz dela, o calor do abraço, mas a saudade era tão grande que virou um choro silencioso, o tipo de choro que você tenta esconder até de si mesmo. No dia seguinte, a
rotina na casa de Rita começou. Maria Clara foi acordada pelo som de pratos sendo empilhados com força na cozinha. "Anda logo, menina!" Rita gritou lá debaixo. "Não vou deixar você dormindo até tarde na minha casa!" Maria Clara se levantou e desceu as escadas. Assim que chegou na cozinha, Rita já estava com uma vassoura na mão. "Vai varrer a sala, depois lava os pratos e cuidado para não quebrar nada, senão vai se arrepender." Maria Clara obedeceu sem questionar. Ela nunca tinha feito esse tipo de coisa antes, mas não queria irritar a avó. Enquanto varria, seus olhos
encontraram uma foto antiga pendurada na parede. Era da mãe dela, ainda jovem. Na foto, Ana estava sorrindo com um vestido floral e segurando um buquê de flores. Maria Clara ficou parada, olhando para o sorriso da mãe, como se fosse uma pequena luz num mar de escuridão. "Não fica parada aí, menina!" Rita reclamou, tirando Maria Clara dos pensamentos. "Vai trabalhar!" Os dias passaram e cada um parecia mais difícil que o outro. Rita não demonstrava nenhum carinho, nem mesmo um gesto de gentileza para ela. Maria Clara era apenas um fardo, algo que ela tinha que carregar por
obrigação, e Maria Clara sentia isso. Ela sentia na forma como Rita falava, como olhava para ela, como fazia questão de dar as ordens mais duras. Mas havia momentos em que Maria Clara se refugiava em suas lembranças. No calar do dia, quando finalmente podia ficar sozinha no quartinho, pegava o terço azul e segurava contra o peito. Às vezes, sussurrava algumas palavras para a mãe, como se ela ainda pudesse ouvir. "Mãe, eu queria tanto que você estivesse aqui," ela dizia baixinho, enquanto uma lágrima escorria pelo rosto. Era uma tarde como qualquer outra na casa da avó Rita.
Maria Clara estava ajoelhada no chão do porão, empurrando uma vassoura de um lado para o outro, enquanto tentava controlar a irritação que sentia. O cheiro de mofo era forte e o lugar estava cheio de caixas velhas, teias de aranha e coisas que pareciam não ser mexidas há anos. "Não quero saber de preguiça aí embaixo!" gritou Rita da cozinha. O som da voz dela ecoava pelas paredes, cortando o silêncio. Maria Clara suspirou, mas continuou. Sabia que se parasse, Rita encontraria um motivo para reclamar ainda mais. Enquanto varria, a vassoura bateu em uma caixa de madeira. Ela
era grande, com ferragens enferrujadas, e estava escondida atrás de algumas cadeiras velhas empilhadas no canto. A tampa estava coberta por uma camada grossa de poeira. Maria Clara se aproximou, curiosa. Com um pano rasgado que encontrou jogado por ali, limpou a tampa. A madeira era escura, mas havia algo gravado nela: as iniciais "A.S." Será que isso era da mamãe? Maria Clara pensou, sentindo uma mistura de ansiedade e esperança. A ideia de encontrar algo que pudesse ter pertencido à mãe encheu-a de coragem. Ela puxou a tampa com força e as dobradiças soltaram um rangido alto, como se
reclamassem do tempo que passaram fechadas. Lá dentro havia uma porção de coisas: roupas dobradas, um diário de capa desgastada e, no fundo, um envelope grande e amarelado. Maria Clara pegou o envelope; o papel estava quase desmanchando de tão velho. Abriu com cuidado e o que encontrou dentro fez seu coração disparar. Era uma fotografia. Na imagem, sua mãe Ana estava grávida. O rosto dela tinha um sorriso tão verdadeiro, tão cheio de vida, que parecia irradiar calor mesmo depois de tantos anos. Ela vestia um vestido floral, como o da foto pendurada na parede da sala, mas dessa
vez não estava sozinha. Ao lado dela, havia um homem alto, com um braço em volta dos ombros dela. Ele tinha cabelos castanhos e um... Sorriso confiante, os dois pareciam felizes. Quem é ele? Maria Clara murmurou para si mesma; o coração dela batia rápido, como se já soubesse que aquele homem podia ser mais importante do que parecia. Ela virou a foto e viu algo escrito à mão no verso, em uma caligrafia que reconheceu como sendo da mãe: "Ana e Carlos, nosso futuro em uma só imagem." Carlos. Esse era o nome dele. Maria Clara repetiu o nome
em voz baixa, como se estivesse testando o som. Seria ele o pai que ela nunca conheceu? De repente, ela ouviu os passos pesados de Rita descendo as escadas. Maria Clara, no impulso rápido, enfiou a foto dentro do bolso do avental. Seu coração estava na garganta; se Rita visse a foto, certamente ia tirar e talvez até destruí-la. Maria Clara sabia que a avó nunca falava sobre a mãe dela, como se fosse um assunto proibido. — O que você está fazendo aí parada? — Rita perguntou assim que entrou no porão. — Já acabou de varrer? — Já,
já tô terminando! — respondeu Maria Clara, tentando disfarçar. Rita lançou um olhar desconfiado, mas não disse mais nada; pegou uma cadeira velha e subiu as escadas, resmungando sobre como ninguém ajudava de verdade. Assim que ficou sozinha de novo, Maria Clara tirou a foto do bolso. Ficou olhando para ela, estudando cada detalhe; era como se estivesse tentando gravar o rosto do homem para sempre na memória. Ela precisava saber mais: quem era Carlos? Por que a mãe nunca tinha falado dele? E, mais importante, ele sabia da existência dela? Mil perguntas começaram a surgir na cabeça de Maria
Clara, mas nenhuma tinha resposta. Quando terminou de varrer, Maria Clara voltou para o quartinho no fundo da casa, fechou a porta devagar, certificando-se de que Rita não estava por perto. Sentada na cama, ela tirou a foto novamente e a colocou ao lado do terço. Azul. Olhou para os dois objetos por um longo tempo, sentindo uma mistura estranha de tristeza e esperança. Era como se aquela imagem fosse uma pista, um pedaço perdido de um quebra-cabeça que ela nem sabia que estava tentando montar. — Será que ele é meu pai? — sussurrou para o vazio do quarto.
Ela pegou o diário que também estava na caixa, mas ao folheá-lo percebeu que as páginas estavam quase todas em branco. Era estranho, como se a mãe tivesse começado a escrever algo, mas nunca tivesse terminado. No entanto, no canto de uma das páginas havia algo rabiscado, quase apagado pelo tempo: um endereço. Maria Clara sentiu um arrepio; talvez aquilo pudesse levá-la a mais respostas, talvez até levá-la ao tal Carlos. A ideia de fugir da casa de Rita, de sair daquele lugar frio e sem amor, começou a tomar forma em sua cabeça. Ela guardou a foto e o
terço com cuidado, escondendo-os sob o travesseiro. Deitou na cama, mas o sono não vinha; ficava olhando para o teto, com o coração acelerado e a mente cheia de planos. Era como se uma faísca tivesse acendido dentro dela. Pela primeira vez em muito tempo, ela sentiu que talvez houvesse uma saída, uma chance de encontrar algo ou alguém que trouxesse de volta o calor que tinha desaparecido com a morte da mãe. Maria Clara estava exausta de tanto limpar, cozinhar e ouvir os gritos da avó Rita. Tudo nela parecia apertado: o coração, a garganta, até as lágrimas que
insistiam em sair quando ninguém estava olhando. A vida naquela casa já não era mais só difícil, já era insuportável. Cada dia parecia mais uma eternidade e ela tinha apenas 10 anos, mas naquele dia algo mudou. Enquanto lavava os pratos, suas mãos pequenas mergulhadas na água fria, Maria Clara começou a lembrar da fotografia que tinha encontrado no baú escondido no porão. Aquele homem ao lado de sua mãe, Carlos: quem ele era? A ideia de que ele pudesse ser seu pai parecia cada vez mais real. E se ele for bom? E se ele quiser me ajudar? A
possibilidade acendeu uma faísca dentro dela. Era isso: ela tinha que encontrá-lo. Naquela noite, no quarto gelado onde dormia em um colchão fino no chão, Maria Clara começou a planejar sua fuga. A mente dela, apesar da pouca idade, era esperta e ágil. Primeiro, ela precisava de coisas básicas para sobreviver: comida, roupas e algo para se proteger do frio. Ela sabia que não podia simplesmente sair correndo sem pensar; se fizesse isso, poderia acabar ainda pior do que já estava. Com o som da TV da sala abafando seus movimentos, Maria Clara pegou uma mochila velha que encontrou no
mesmo porão onde tinha achado a foto. Ela escondeu a mochila debaixo da cama. Nas noites seguintes, sempre que Rita não estava por perto, Maria Clara ia até a cozinha e colocava pequenos pedaços de pão na mochila; às vezes um biscoito ou uma maçã que estava começando a estragar. Ela sabia que era pouco, mas era o que tinha. Mas não era só a comida: Maria Clara precisava de um mapa. Ela lembrou que em uma gaveta da cozinha, Rita guardava um panfleto com o mapa da cidade que usava para achar os endereços dos clientes. Certa tarde, enquanto
Rita estava distraída no quintal com as galinhas, Maria Clara abriu a gaveta com cuidado, tentando não fazer barulho. Lá estava o panfleto; ela o dobrou rápido e guardou no bolso. Seu coração batia tão rápido que parecia que alguém ia ouvi-lo. Outra questão era o horário. Maria Clara sabia que não podia fugir durante o dia, quando os vizinhos poderiam vê-la e contar para a avó. A melhor hora seria à noite, quando Rita já estivesse dormindo; a velha tinha sono pesado depois de tomar os remédios de pressão, então esse seria o momento perfeito. No entanto, Maria Clara
sabia que o mundo lá fora seria duro. O frio da rua, as pessoas estranhas, a solidão. Tudo isso a assustava, mas o medo de continuar naquela casa era ainda maior. A cada tapa... a cada grito, a cada noite em que ela ia dormir com fome, porque Rita dizia que não merecia comer, Maria Clara ficava mais determinada. Nos dias que se seguiram, ela começou a montar um plano detalhado. Primeiro, ela fingiria que estava tudo bem; continuaria obedecendo as ordens da avó, limpando a casa e fazendo o que fosse necessário para não levantar suspeitas. Depois, esperaria a
noite perfeita, uma em que a vó estivesse mais cansada do que o normal. Enquanto isso, ela se preparava mentalmente, sentada em seu canto, enquanto descascava batatas para o jantar. Maria Clara se imaginava fora dali, andando pelas ruas, encontrando Carlos. Ouvia em sua mente a voz dele dizendo que tinha procurado por ela a vida toda. Fotografias daquela noite, enquanto estava deitada tentando dormir, Maria Clara ouviu Rita falando ao telefone com uma vizinha. Ela estava reclamando que teria que sair cedo no dia seguinte para comprar mantimentos. Aquilo era perfeito; se Rita saísse de casa bem cedo, Maria
Clara teria a chance de pegar as últimas coisas de que precisava sem ninguém por perto. Na manhã seguinte, antes da avó sair, Maria Clara fingiu estar com dor de cabeça e disse que precisava descansar. Rita não parecia se importar muito, apenas deixou a comida no fogão e saiu pela porta. Maria Clara, então, agiu rápido: colocou na mochila a foto de Carlos, o terço azul que sua mãe tinha deixado e mais algumas roupas que encontrou em um armário antigo. Era hora de se preparar para partir. Ela passou o resto do dia em silêncio, comendo pouco e
ouvindo os barulhos da rua pela janela do quartinho onde dormia. A ansiedade crescia, mas ela se mantinha firme. Quando a noite chegou, Maria Clara esperou até ouvir os altos de Rita. Então, respirando fundo, pegou a mochila e abriu a porta da casa com o maior cuidado possível. O coração dela parecia que ia explodir, mas ela sabia que não podia olhar para trás. Era o começo de uma jornada que Maria Clara ainda não sabia onde iria terminar, mas naquele momento ela tinha uma certeza: não ia mais viver como prisioneira. Quando soube que Maria Clara havia fugido
de casa, em vez de preocupação, Rita sentiu alívio. Para ela, era uma coisa menos com que se preocupar. A noite estava escura e o vento frio parecia atravessar a jaqueta fina de Maria Clara, como se ela nem estivesse usando nada. Ela caminhava pela calçada com a mochila pendurada nos ombros e o terço azul apertado na mão. As ruas estavam quase vazias e as poucas pessoas que passavam pareciam com pressa, sem nem olhar para ela. Maria Clara tentava parecer confiante, mas por dentro estava apavorada; cada som, cada sombra parecia esconder um perigo: o ronco distante de
um motor, o barulho de latas caindo no beco, até o próprio eco dos passos dela faziam o coração disparar. Depois de andar por horas, começou a sentir as pernas pesadas; o corpo pedia por descanso, mas não tinha ideia de onde poderia parar. Olhou ao redor e viu uma praça pequena com alguns bancos. Sentou-se ali, abraçando a mochila como se fosse um escudo contra o mundo. O frio era insuportável e ela esfregava as mãos, tentando esquentá-las. “Vai ficar tudo bem”, sussurrou para si mesma, mas a voz dela parecia fraca, sem muita certeza. Na manhã seguinte, o
sol ainda não tinha nascido quando Maria Clara acordou. O chão duro do banco tinha deixado suas costas doloridas e o estômago roncava. Pegou a maçã que havia trazido e deu uma mordida pequena, tentando economizar o máximo possível, mas era difícil; a fome era maior que o medo de acabar com a comida rápido demais. Enquanto mastigava, viu um homem alto se aproximar. Ele tinha roupas rasgadas e andava com um saco cheio de coisas nas costas. Maria Clara segurou a maçã com força, o coração batendo rápido. O homem olhou para ela e parou por um momento, como
se estivesse decidindo algo. “Ei, menina, sozinha por aqui?” perguntou ele, com a voz rouca. “Eu tô bem, só esperando minha mãe,” respondeu Maria Clara, tentando não demonstrar medo. O homem deu uma risada curta e balançou a cabeça. “Claro, claro. Cuida do que é seu. A rua não é moleza.” Ele continuou andando, e Maria Clara soltou a respiração, que nem percebeu que estava segurando. Naquele momento, entendeu que não podia confiar em ninguém, pelo menos não tão rápido. As ruas tinham suas próprias regras e ela ainda não as conhecia. Enquanto o dia avançava, Maria Clara tentou encontrar
algo para fazer. Pensou em pedir ajuda, mas cada vez que chegava perto de alguém, era ignorada. Um senhor passou por ela e Maria Clara tentou falar: “Moço, por favor, eu tô perdida, pode me ajudar?” Ele só deu um olhar rápido e apertou o passo, como se ela fosse invisível. Mais tarde, tentou falar com uma mulher que carregava sacolas de compras, mas recebeu um olhar de desprezo antes que a mulher dissesse: “Sai daqui, menina, não tenho nada para você.” Aquilo doía mais do que ela imaginava. Maria Clara não esperava ser tratada como uma princesa, mas a
indiferença das pessoas fazia parecer que ela não era ninguém. Sentada na beirada da calçada, começou a chorar. As lágrimas escorriam silenciosamente enquanto ela olhava para os carros passando; todos tinham um destino, um lugar para ir, menos ela. À noite, o frio voltou com força. Maria Clara encontrou um canto entre duas paredes de tijolos, perto de um mercado que já estava fechado. Sentou-se ali com a mochila no colo, tentando se proteger do vento. Mas o pior não era o frio, e sim o medo. Não sabia o que poderia acontecer, se alguém apareceria para machucá-la ou roubar
suas poucas coisas. Cada som parecia ser um alerta. “Vai dar tudo certo, vai dar tudo certo”, repetia para si mesma como um mantra, enquanto segurava o terço azul. Na madrugada, o silêncio a envolvia. Barulho de passos a despertou. Dois homens estavam conversando e rindo alto, e pareciam estar vindo na direção dela. Maria Clara congelou, segurou a mochila com mais firmeza e encolheu o máximo que podia, torcendo para que eles não a vissem. — O que temos aqui? — disse um dos homens. Ele usava um boné, suava e tinha um sorriso ameaçador. Olhando para Maria Clara
como se não quisesse problemas, disse: — Tô passando. — Eu não quero problemas — disse Maria Clara, tentando manter a voz firme, mas o medo era claro. — Passando na rua não é lugar para gente bonitinha como você. Vai acabar machucada por aí, ou pior — disse o primeiro homem, dando um passo na direção dela. Antes que eles pudessem fazer algo, o som de um assobio alto ecoou na rua. Os dois homens olharam para o lado e xingaram baixinho. — Tô de olho, moleques! — gritou alguém mais ao longe. Era um homem idoso que estava
sentado em uma cadeira de grau, com uma bengala na mão. Ele parecia estar prestando atenção em tudo. Os dois homens deram risada e se afastaram. — Sorte sua, garota, mas cuidado! — e desapareceram na escuridão. Maria Clara olhou para o senhor que ainda a observava. Ele não disse nada, só apontou para um lugar mais iluminado, como se estivesse dizendo para ela sair dali e procurar algo mais seguro. Ela sentiu com a cabeça, dizendo um "obrigada" que não sabia se ele tinha ouvido. Quando o sol começou a nascer, Maria Clara sentiu que tinha sobrevivido à sua
primeira grande noite nas ruas. Mas aquilo era só o começo; as dificuldades eram muitas e a solidão parecia crescer a cada passo que ela dava. Mesmo assim, dentro dela ainda existia uma faísca. Ela segurava o terço azul e sussurrava para si mesma: — Eu vou achar o Carlos! Eu vou conseguir! Maria Clara estava sentada em uma praça pequena, com a mochila no colo e o olhar perdido no chão. Já era o terceiro dia nas ruas, e a fome parecia apertar ainda mais do que o frio. O pão que ela havia trazido já tinha acabado, e
não havia mais maçãs. Enquanto tentava ignorar a dor no estômago, pensava no próximo passo. Não tinha ideia de onde procurar Carlos ou de como continuar. A cada hora que passava, parecia que suas forças diminuíam. Ela observava as pessoas passarem de um lado para o outro, apressadas, como se tivessem mundos inteiros para cuidar e ela não tivesse nada. Foi então que percebeu uma movimentação estranha: três crianças, um pouco mais velhas do que ela, estavam paradas perto de uma barraca de frutas. Elas cochichavam, olhando para o vendedor que estava distraído com um cliente. Maria Clara não queria
acreditar no que viu em seguida. Um dos meninos, que parecia ser o líder, correu até a barraca e pegou duas bananas enquanto o vendedor estava de costas. Foi tudo muito rápido. Ele voltou para o grupo com um sorriso satisfeito, e os outros começaram a rir. Maria Clara ficou chocada, mas, ao mesmo tempo, não conseguiu desviar o olhar. A cena deixava claro que aquelas crianças não eram tão diferentes dela; também estavam sobrevivendo como podiam. Antes que percebesse, os três estavam vindo em sua direção. Maria Clara tentou parecer ocupada arrumando sua mochila, mas era tarde demais. —
Ei, você tá sozinha? — perguntou o garoto que tinha roubado as bananas. Ele tinha cabelo bagunçado, roupas sujas e olhos vivos que pareciam observar tudo ao mesmo tempo. — Eu... eu tô bem, obrigada — respondeu Maria Clara, tentando disfarçar o nervosismo. — Não perguntei se você tá bem, perguntei se tá sozinha! — insistiu ele, cruzando os braços. — Pedro, deixa a menina em paz! — disse uma das outras crianças, uma garota de cabelos cacheados e olhar curioso. — Você tá assustando ela. Pedro deu de ombros e mordeu uma das bananas enquanto olhava para Maria Clara
com um sorriso provocador. — Relaxa, a gente não vai morder — disse ele. — Qual é o seu nome? Maria Clara hesitou, mas sabia que não tinha escolha. Eles não pareciam estar com más intenções e, no fundo, ela precisava de qualquer ajuda que pudesse encontrar. — Maria Clara — respondeu baixinho. — Eu sou o Pedro, aquela ali é a Joana e o grandão ali atrás é o Rafa. — Você não parece ser daqui. Fugiu de casa? — perguntou Pedro, indo direto ao ponto. Maria Clara olhou para Joana, que parecia mais amigável, e depois para Rafa,
que era realmente enorme para a idade. Ambos esperavam por uma resposta, mas não pareciam ameaçadores. — Sim — disse Maria Clara com a voz baixa. — Eu precisava sair de lá. Pedro riu e deu um passo para trás. — Bem-vinda ao clube, Maria Clara! Todo mundo aqui tá fugindo de alguma coisa. Quero uma banana? — perguntou Joana, oferecendo a segunda que Pedro tinha pego. Maria Clara hesitou, mas a fome venceu a vergonha. Pegou a fruta e deu uma mordida pequena, tentando não parecer desesperada, embora seu estômago agradecesse como se fosse um banquete. — Tá vendo?
Já tá melhor! — disse Pedro com um sorriso satisfeito. — A gente não é tão ruim assim. Enquanto comiam, Maria Clara começou a ouvir as histórias do trio. Pedro era o mais falante; ele contava como tinha saído de casa porque ninguém o entendia. Joana, por outro lado, parecia mais calma, e tinha um jeito protetor. Disse que fugiu porque não aguentava mais o padrasto, que era cruel e agressivo. Rafa mal falava, mas Joana explicou que ele estava ali porque era mais seguro do que o lugar de onde veio. — E você? — perguntou Pedro, olhando para
Maria Clara. — O que te trouxe pra essa vida? Ela ficou em silêncio por alguns segundos; não queria contar tudo, mas também não podia mentir. — Minha mãe morreu. Agora eu tô procurando alguém... meu pai — respondeu Maria Clara, encarando o chão. — Seu pai? Ele sabe que você existe? — perguntou Pedro, com curiosidade, enquanto Joana deu uma cotovelada nele. — Que tipo de pergunta é essa, Pedro? Deixa ela em paz! — disse Joana, revirando os olhos. — Tá bom, tá bom, só... Queria entender. Respondeu ele, rindo. Apesar do jeito provocador de Pedro, Maria Clara
começou a se sentir um pouco mais à vontade. Pela primeira vez em dias, havia alguém com quem conversar, alguém que sabia o que era estar perdido. Joana foi a que mais se aproximou dela, perguntando se precisava de ajuda ou se tinha algum lugar para dormir. Maria Clara contou sobre a foto e o endereço, e Joana ouviu com atenção. "Sabe, a gente conhece bastante dessa cidade. Talvez a gente possa te ajudar a achar esse lugar", disse Joana com um sorriso gentil. Maria Clara olhou para ela, surpresa. Não sabia se podia confiar, mas algo no jeito de
Joana parecia verdadeiro. "Sério? Você faria isso?" perguntou Maria Clara. "Claro, mas com uma condição", interrompeu Pedro. "Você fica com a gente. Não tem moleza na rua, e sozinho você não vai durar muito." Maria Clara pensou por um momento. A ideia de ficar com eles parecia assustadora, mas ao mesmo tempo era melhor do que enfrentar tudo sozinha. "Tá bom, eu fico", respondeu com um pequeno sorriso. Naquela noite, pela primeira vez desde que fugiu, Maria Clara não dormiu completamente sozinha. Eles se acomodaram embaixo de uma marquise, com caixas e pedaços de papelão para se proteger do frio.
Joana ficou ao lado dela, enquanto Pedro e Rafa revezavam para vigiar. Maria Clara ainda sentia medo, mas com eles, o mundo parecia um pouco menos hostil. O sol começava a se pôr, pintando o céu de tons alaranjados e dourados, enquanto Maria Clara caminhava ao lado de Joana e Pedro pelas ruas movimentadas. Rafa tinha ficado em um dos pontos que eles chamavam de "base", cuidando das poucas coisas que o grupo conseguia juntar. Eles estavam na parte mais movimentada da cidade, onde as pessoas pareciam estar sempre com pressa, carregando sacolas e falando ao celular. Para Maria Clara,
era um cenário intimidante. "Você vai mesmo pedir ajuda?" perguntou Pedro, parando ao lado de uma banca de jornal. Ele parecia cético. "Essas pessoas não ligam para ninguém, muito menos pra gente." "Eu preciso tentar", respondeu Maria Clara, segurando o terço azul com força. "Não posso ficar na rua para sempre." Joana olhou para ela com uma expressão encorajadora. "Tenta começar com alguém que pareça mais tranquilo. Não escolhe os apressados, eles nem vão te ouvir." Maria Clara respirou fundo e observou as pessoas que passavam. Seus olhos pararam em uma mulher com um vestido florido que empurrava um carrinho
de bebê. A mulher tinha um sorriso no rosto enquanto olhava para o bebê, e Maria Clara sentiu um pouco de esperança. Talvez aquela pessoa fosse gentil. Ela se aproximou devagar, com as mãos suando de nervosismo. "Com licença", disse Maria Clara, a voz saindo baixa e hesitante. A mulher olhou para ela, mas o sorriso desapareceu quase instantaneamente. "O que foi?" perguntou a mulher, com um tom distante, já segurando o carrinho com mais firmeza. "Eu... eu tô precisando de ajuda. Não tenho para onde ir e estou procurando meu pai", Maria Clara começou, mas antes que pudesse terminar,
a mulher balançou a cabeça. "Desculpa, mas não posso ajudar." Ela nem esperou uma resposta antes de sair, empurrando o carrinho apressada. Clara ficou parada, sentindo o rosto esquentar de vergonha. Ela olhou para Joana e Pedro, que estavam um pouco mais atrás. Pedro fez um gesto como quem dizia "eu avisei", enquanto Joana deu um sorriso de apoio. "Tenta de novo, nem todo mundo é assim", disse Joana. Maria Clara sentiu um nó na garganta. Ela precisava continuar tentando. Dessa vez, escolheu um homem mais velho que estava sentado em um banco, comendo um lanche. Ele parecia mais calmo,
sem pressa, e Maria Clara achou que talvez tivesse mais paciência para ouvir. "Oi, moço", começou, ela se aproximando com cuidado. O homem olhou para ela e franziu a testa. "O que foi, menina? Tá vendendo alguma coisa?" "Não, eu só queria... é que eu tô procurando meu pai e eu não sei como chegar no endereço que eu tenho. Será que o senhor poderia me ajudar?" perguntou Maria Clara, segurando a foto com Carlos na mão. O homem deu uma olhada rápida na foto e depois nela. "Não sou táxi, garota. Vai procurar a polícia ou sei lá, não
posso fazer nada por você." Ele se levantou, jogando o guardanapo no lixo, e saiu sem nem olhar para trás. Maria Clara ficou ali, segurando a foto, sem saber se sentia mais raiva ou tristeza. Era como se cada "não" pesasse um pouco mais nas costas dela, tornando a caminhada ainda mais difícil. Pedro, que tinha se encostado em um poste, riu de leve. "Eu disse, Maria Clara. Essas pessoas só pensam nelas mesmas. Ninguém vai ajudar de graça." "Para, Pedro", disse Joana, irritada. "Você não tá ajudando." "Não tô atrapalhando também", respondeu ele com um sorriso. Maria Clara olhou
para a foto e depois para Joana. Mesmo com o apoio da nova amiga, ela sentia que estava completamente sozinha nessa busca. "Só mais uma vez, eu vou tentar. Só mais uma vez", disse Maria Clara, mais para si mesma do que para os outros. Dessa vez, escolheu uma senhora que saía de uma padaria, carregando uma sacola cheia de pães. A mulher tinha cabelos grisalhos e um jeito cansado, mas ao mesmo tempo parecia ser do tipo que sabia ouvir. "Boa tarde, senhora", disse Maria Clara com a voz mais firme. "Por favor, eu preciso muito de ajuda. Minha
mãe morreu, e eu tô tentando encontrar meu pai. Ele tá nesse endereço, mas eu não sei como chegar lá." A mulher parou e olhou para Maria Clara com atenção. Ela não parecia apressada nem desconfiada, na verdade parecia mais surpresa. "Você tá sozinha?" perguntou a senhora, com a voz baixa. "Tô, mas eu só precisei encontrar ele. Eu prometo que não quero incomodar ninguém", respondeu Maria Clara, mostrando a foto de Carlos. A mulher ficou em silêncio por um momento, olhando para a foto. E depois, para Maria Clara, por um instante, parecia que ela ia dizer algo, mas
mudou de ideia. "Sinto muito, querida, não conheço esse lugar," e, com um sorriso triste, seguiu o seu caminho. Maria Clara não conseguiu mais segurar as lágrimas; sentou-se na calçada e começou a chorar. Joana correu para ela, enquanto Pedro ficou parado, sem saber o que fazer. "Ei, não fica assim," disse Joana, colocando a mão no ombro de Maria Clara. "Às vezes as coisas demoram, mas isso não significa que você não vai conseguir. Mas parece que ninguém se..." Maria Clara soluçou: "Eu só preciso de uma chance, só uma pessoa que me escute." Pedro suspirou e sentou-se ao
lado delas. "As ruas são assim, Maria Clara. Se você quer alguma coisa, tem que aprender a lutar por ela. Nem todo mundo é ruim, mas quase ninguém vai te ajudar de graça. Se a gente quer sobreviver, a gente aprende a depender de nós mesmos. E agora você tem a gente." Maria Clara enxugou os olhos e olhou para eles. Talvez Pedro tivesse razão. Talvez o caminho não fosse fácil, mas, com Joana e ele ao seu lado, pelo menos ela não estava mais sozinha. A chuva caía pesada, encharcando as ruas da cidade. Maria Clara andava ao lado
de Joana e Pedro, os três com os cabelos grudados no rosto e as roupas completamente molhadas. Rafa tinha se separado deles mais cedo, dizendo que ia tentar arrumar algum dinheiro perto da estação de trem, mas agora Maria Clara só conseguia pensar no frio que parecia cortar sua pele. Cada passo fazia seus sapatos encharcados soltarem um som molhado, e o vento fazia tudo parecer ainda pior. "Não dá para ficar assim, Maria Clara. A gente precisa achar um lugar seco," disse Joana, segurando a mão dela. "Onde não tem?" "Onde ir?" respondeu Pedro, irritado. Ele também estava tremendo,
mas tentava disfarçar. "A menos que a gente queira dormir embaixo de uma ponte de novo..." Joana olhou para ele com raiva. "Ficar na chuva vai ser pior. E se ela ficar doente? Ela já tá fraca." Pedro suspirou, mas sabia que Joana estava certa. Desde que Maria Clara tinha se juntado ao grupo, eles estavam tentando protegê-la o máximo que podiam, mas os recursos eram poucos e as ruas eram duras. Foi quando Joana apontou para uma placa iluminada no fim da rua, que tremulava no vento. Era um letreiro simples que dizia: "Abrigo Comunitário São Francisco." "Ali," disse
Joana, puxando Maria Clara pela mão. "A gente pode tentar lá." Pedro hesitou, parando na calçada. Ele sabia como esses lugares funcionavam. Nem sempre eram ruins, mas também não eram fáceis. Muitos tinham regras duras, e algumas pessoas nos abrigos não eram tão diferentes das que andavam pelas ruas. "Você sabe que esses lugares... Tôra, né? Não é só entrar e pronto. E quem disse que vão deixar a gente ficar?" perguntou Pedro. "Não custa tentar," retrucou Joana, determinada. Eles caminharam em direção à entrada, e Maria Clara sentiu uma mistura de alívio. A porta era grande e feita de
metal, com uma campainha enferrujada ao lado. Joana apertou o botão, e o som ecoou alto. Depois de alguns segundos, uma mulher abriu a porta. Ela era baixa, com cabelo preso em um coque apertado e um olhar sério, mas não parecia hostil. "Boa noite, o que vocês querem?" perguntou a mulher, examinando os três de cima a baixo. "Um lugar para passar a noite. Tá chovendo muito e a gente não tem para onde ir," explicou Joana. A mulher ficou em silêncio por um momento, depois deu um passo para o lado, segurando a porta aberta. "Entrem, mas não
façam bagunça, entenderam? E só temos lugar para dormir; nada de comida agora." Eles entraram, e o calor da sala foi um alívio imediato. O abrigo era simples, com paredes brancas e um piso de azulejos antigos. O cheiro era uma mistura de produto de limpeza e algo que Maria Clara não conseguia identificar. Algumas pessoas estavam sentadas em cadeiras de plástico, enroladas em cobertores, enquanto outras conversavam em voz baixa. "Vocês estão encharcados," disse a mulher, balançando a cabeça. "Tirem os sapatos e deixem ali no canto para secar. Vou ver se consigo cobertores para vocês." Maria Clara fez
o que ela pediu, tirando os sapatos molhados e colocando a mochila em cima de uma das cadeiras. Sentou-se ao lado, segurando o terço com força. A sensação de estar finalmente em um lugar seco e relativamente seguro era boa, mas ela ainda sentia o coração apertado. Estar ali não significava que seus problemas estavam resolvidos. A mulher voltou com três cobertores finos e os entregou para eles. "Meu nome é Dona Teresa. Sou voluntária aqui. Não temos muito espaço, mas vocês podem dormir no chão da sala grande, junto com os outros." "Obrigada, Dona Teresa," disse Joana, puxando o
cobertor para se aquecer. Maria Clara olhou ao redor. A sala estava cheia de pessoas; algumas pareciam amigáveis, outras evitavam contato visual. Ela não sabia o que esperar, mas se sentiu aliviada por ter Joana e Pedro ao seu lado. Mais tarde, enquanto todos se acomodavam no chão, Maria Clara viu Dona Teresa passando com uma sacola cheia de pacotes de biscoito. Era claro que não havia comida suficiente para todos, mas ela parecia determinada a ajudar como podia. "Aqui, querida. Não é muito, mas é alguma coisa," disse Dona Teresa, entregando um pacote de biscoitos para Maria Clara. "Obrigada,"
respondeu Maria Clara, surpresa com o gesto. Dona Teresa se abaixou um pouco, olhando diretamente para Maria Clara. "Você parece muito nova para estar aqui. O que aconteceu com você?" perguntou, com a voz mais suave agora. Maria Clara hesitou. Ela não queria contar tudo, mas sentiu que podia confiar um pouco em Dona Teresa. "Minha mãe morreu e eu tô tentando encontrar meu pai," explicou. Dona Teresa ficou em silêncio por um momento, depois deu um pequeno sorriso. "Espero que você..." O encontrei, mas enquanto isso, se precisar de ajuda, é só me chamar, tá bem? Maria Clara sentiu,
e Dona Teresa seguiu para atender outras pessoas. Pedro, que estava deitado ao lado dela, virou para olhar. "Essa aí é diferente", disse ele. "Não são todos que ajudam assim." Joana concordou, ajeitando o cobertor ao redor dos ombros. "Pelo menos aqui a gente tá seco, e ela parece legal." Maria Clara olhou para o terço na mão, sentindo uma pontada de esperança. Talvez aquele lugar não fosse a solução definitiva, mas pelo menos por uma noite, ela estava longe da chuva, do frio e do medo constante. O dia amanheceu com os raios de sol entrando pelas janelas do
abrigo comunitário, mas a tranquilidade durou pouco. Um homem de terno e uma mulher com uma prancheta debaixo do braço chegaram cedo, andando de forma apressada e com expressões sérias. Eles eram da Assistência Social, e todos no abrigo já sabiam o que isso significava: perguntas, ordens e, quase sempre, problemas. Maria Clara estava sentada em um canto ao lado de Joana e Pedro. Eles comiam os biscoitos que Dona Teresa havia dado na noite anterior, tentando ignorar a movimentação. Mas a mulher da prancheta notou o trio rapidamente. Ela parou e olhou para eles com uma sobrancelha arqueada. "Quem
são essas crianças?" perguntou a mulher com uma voz cortante que parecia atravessar o ar. Dona Teresa, que estava distribuindo café para os outros, se aproximou, tentando manter a calma. "São novos aqui. Chegaram ontem à noite, estavam na chuva, completamente encharcados." A mulher estreitou os olhos como se estivesse avaliando a situação. "Novos? Onde estão os responsáveis por elas?" Pedro bufou baixinho e sussurrou para Joana: "Lá vem problema." Joana deu um beliscão no braço dele, pedindo silêncio, enquanto Maria Clara olhava para a mulher, tentando se encolher atrás de Joana. "A gente não tem ninguém", respondeu Pedro, sem
esconder o tom desafiador. A mulher se aproximou mais, ajustando os óculos. "Isso é inaceitável. Crianças como vocês não podem simplesmente andar por aí sem supervisão. Vocês serão transferidos para um abrigo oficial imediatamente." Maria Clara sentiu um frio na espinha. "Transferidos? O que isso significava?" Antes que pudesse perguntar, dois funcionários do abrigo entraram e começaram a organizar as coisas. Tudo aconteceu rápido demais: em menos de uma hora, Maria Clara, Joana e Pedro estavam sendo levados em uma van cinza para um lugar completamente diferente. Quando chegaram, o prédio parecia mais uma escola antiga, com paredes de concreto
e portões altos. O lugar era cercado por grades e tinha câmeras de segurança nos cantos. A sensação era de prisão, e o rosto de Pedro mostrava exatamente o que todos estavam pensando. "Isso aqui não tem nada de abrigo, parece mais uma cadeia", murmurou ele. A mulher da prancheta os levou para uma sala pequena, com mesas alinhadas e cadeiras duras. Sentou-se na frente deles e começou a falar com a mesma voz fria de antes. "Meu nome é Marta. Sou a coordenadora aqui. As regras são simples: obedeçam, sigam as instruções e não criem problemas. Aqui nós temos
horários para tudo. Não toleramos indisciplina. Entendido?" Maria Clara sentiu timidamente, enquanto Joana dava um sorriso nervoso. Pedro, no entanto, cruzou os braços e encarou Marta. "E se a gente não gostar das regras?" perguntou, com um sorriso desafiador. Marta ajustou os óculos de novo, sem parecer nem um pouco impressionada. "Então você terá consequências, e se continuar com essa atitude, talvez precise aprender isso da forma difícil." Pedro ficou quieto, mas Maria Clara sabia que ele estava com aquilo. Não ia acabar bem. Os dias no abrigo eram sufocantes. Tudo tinha hora marcada: café da manhã, banho, tempo para
brincar, dormir. Não havia espaço para escolhas, e Maria Clara se sentia cada vez mais presa. Mas o pior não era a rotina, e sim o jeito como Marta tratava as crianças. Ela era rígida, exigente e parecia não ter paciência para nada. Um dia, enquanto estavam no refeitório, Pedro tentou pegar um pão extra. Marta apareceu do nada, como se estivesse esperando por isso, e agarrou o braço dele. "O que você pensa que está fazendo?" perguntou ela, com os olhos brilhando de raiva. "Só tô com fome", respondeu Pedro, tentando se soltar. "Aqui nós seguimos as regras. Você
não vai pegar nada que não foi autorizado." Ela puxou o pão da mão dele e disse: "Para a sala de isolamento agora!" "Sala de isolamento? Tá brincando? Eu não fiz nada!" gritou Pedro, mas ela não estava brincando. Dois funcionários apareceram e o levaram à força, enquanto ele se debatia. Joana tentou intervir, mas Marta levantou a mão, cortando qualquer tentativa. "Mais alguém quer quebrar as regras?" perguntou, olhando para as outras crianças. O silêncio foi a única resposta. Maria Clara sentiu um nó na garganta. Ela queria ajudar Pedro, mas não sabia como. Quando Joana se sentou ao
lado dela, ambas ficaram quietas, sentindo o peso da situação. Mais tarde, enquanto estavam no dormitório, Maria Clara sussurrou para Joana: "A gente precisa fazer alguma coisa, não dá para ficar aqui." Joana sentiu, mas parecia preocupada. "Eu sei, mas o que a gente pode fazer? Se eles pegarem a gente, vai ser pior." No dia seguinte, Pedro voltou da sala de isolamento. Estava mais calado do que o normal, mas havia um fogo nos olhos dele. Quando Marta passou perto, ele murmurou: "Eu vou sair daqui, não importa como." Maria Clara não sabia se ele estava falando sério, mas
no fundo, sentiu que ele tinha razão. Aquele lugar não era um lar, e eles precisavam encontrar uma saída antes que fosse tarde demais. Os dias no abrigo eram longos e pesados; cada passo parecia vigiado, cada palavra analisada. Maria Clara sentia que o ar ficava mais sufocante a cada dia, como se o prédio alto e cinza fosse feito para engolir as crianças que viviam ali. Mas então, uma nova pessoa apareceu. Era uma manhã qualquer quando uma mulher jovem... Entrou pela porta principal. Ela era diferente, tinha um sorriso sincero, cabelos presos em um rabo de cavalo desarrumado
e um jeito leve que contrastava com o tom rígido do lugar. Enquanto atravessava o corredor, algumas crianças pararam de fazer o que estavam fazendo só para olhar. Marta estava ao lado dela, como sempre, com os passos firmes e o olhar severo. — Essa é a Laí, nossa nova assistente social. Ela vai observar as rotinas e ajudar com alguns casos — disse Marta, sem qualquer entusiasmo. Laí sentiu, mas parecia estar prestando mais atenção ao redor do que em Marta. Seus olhos percorriam cada canto, cada criança, quando seu olhar encontrou Maria Clara. Ela sorriu; foi um sorriso
diferente, do tipo que dizia "eu te vejo, eu realmente vejo você". Maria Clara desviou o olhar, desconfiada. Afinal, era difícil confiar em qualquer pessoa ali, especialmente alguém que estava ao lado de Marta. Mais tarde, durante o recreio, Laí começou a se apresentar para algumas crianças. Ela sentou-se no chão com um grupo que brincava de desenhar com giz, riu com as piadas deles e, diferente de Marta, parecia genuinamente interessada em escutar. — O que ela tá fazendo aqui? — perguntou Pedro, observando de longe com os bros. — Parece legal — disse Joana, mas Pedro riu incrédulo.
— Legal? Ninguém que trabalha aqui é legal! Ela só tá tentando parecer boazinha pra gente confiar nela. Maria Clara ficou quieta; ela também não sabia o que pensar. Mesmo assim, não conseguia tirar aquele sorriso da cabeça. No dia seguinte, enquanto Maria Clara organizava os livros de uma prateleira no pequeno espaço que chamavam de biblioteca, Laí entrou. Ela estava sozinha, desta vez, sem Marta ou qualquer outra sombra pairando atrás dela. — Ei, Maria Clara, né? — disse Laí, sentando-se ao lado. Maria Clara olhou para ela com surpresa; não sabia como Laí sabia seu nome, mas assentiu
lentamente. — Eu sou a Laí. Acabei de chegar aqui, mas quero conhecer vocês melhor. Posso sentar aqui com você? Maria Clara hesitou, mas acabou assentindo de novo. Laí pegou um dos livros que estava no chão e começou a folheá-lo como se fosse uma conversa casual. Depois de um tempo, falou em um tom baixo: — Eu ouvi sobre você, sobre a sua história. Você tá procurando seu pai, não é? O coração de Maria Clara quase parou. Como Laí sabia disso? Ela tinha contado apenas para Joana e Pedro. — Qu-quem te contou? — perguntou, com um fio
de voz. — Dona Teresa, do abrigo comunitário. Ela falou de uma menina corajosa que tava tentando encontrar o pai. Achei que pudesse ser você — respondeu Laí, com um sorriso suave. Maria Clara apertou o terço na mão, sentindo uma mistura de medo e esperança. Seria seguro falar com Laí? — Não precisa se assustar. Eu só quero ajudar, mas para isso preciso saber mais. Pode me contar sobre ele? — perguntou Laí, inclinando-se para a frente, com os olhos fixos nos de Maria Clara. Depois de alguns segundos de silêncio, Maria Clara tirou a foto de Carlos do
bolso. Era um gesto hesitante, mas ela colocou a foto na frente de Laí. A mulher pegou com cuidado e estudou a imagem. — Ele parece alguém importante para você. Sabe onde ele está? — perguntou Laí. Maria Clara apontou para um pedaço de papel amassado com o endereço que estava no diário. Laí pegou o papel e o leu atentamente. — Vou te ajudar a descobrir se ele ainda mora lá, mas preciso que confie em mim, tudo bem? Maria Clara olhou para Laí por um longo momento. Havia algo no jeito dela, na paciência e na sinceridade, que
a fazia querer acreditar. Então finalmente ela sentiu: — Tá bem. Nos dias que se seguiram, Laí passou mais tempo com Maria Clara, Joana e Pedro. Ela fazia perguntas sobre suas vidas, mas nunca parecia forçar as respostas. Com Maria Clara, ela era ainda mais cuidadosa, sempre tentava mostrar que estava ali para ajudar, não para julgar. Uma tarde, enquanto Marta estava com outro grupo, Laí chamou Maria Clara para uma sala pequena e fechou a porta. — Consegui uma informação sobre o endereço — disse Laí, tirando um papel da bolsa. — Parece que esse lugar ainda existe, mas
eu não tenho certeza se ele ainda mora lá. — Como eu posso ter certeza? — perguntou Maria Clara, sentindo a esperança crescer. — Vai levar um pouco de tempo, mas eu posso continuar investigando. Enquanto isso, você pra ser forte, não desista, tá bem? — disse Laí, colocando a mão no ombro dela. Pela primeira vez em muito tempo, Maria Clara sentiu que havia uma chance real de encontrar o pai e, apesar das dificuldades, Laí era como um raio de sol no meio de tantas nuvens. Os dias no abrigo pareciam mais curtos agora que Laí estava ali
e Maria Clara sentia uma esperança crescente. Ela sabia que, com o tempo, poderia contar mais com a nova funcionária, mas as perguntas sobre o pai ainda atormentavam. Foi em uma tarde que finalmente Laí trouxe algo que Maria Clara não esperava. Laí chamou Maria Clara para um canto distante dos outros e falou com uma voz suave e cuidadosa: — Eu consegui descobrir algo sobre o seu pai, Carlos. Ele... ele vai ao mesmo restaurante quase todas as semanas, sempre acompanhado de uma mulher. Maria Clara olhou para ela, surpresa, mas sem demonstrar sinais de ciúmes; ela estava apenas
tentando entender a situação. — Como você sabe disso? — perguntou Maria Clara, com um fio de voz, ainda tentando processar a informação. Laí respirou fundo, olhando ao redor antes de continuar: — Eu tenho algumas fontes, Maria Clara, algumas pessoas que me passaram essa informação, mas elas não podiam falar muito abertamente. O que sei é que ele ainda frequenta esse restaurante e está sempre acompanhado, mas não sei quem é essa mulher. Maria Clara ouviu atentamente, sem demonstrar raiva ou ciúmes, apenas uma curiosidade tranquila. Ela queria entender o que estava acontecendo, por que seu pai estava longe
e com quem ele estava. Ela não se sentia rejeitada, apenas confusa. Você vai descobrir mais sobre ele? Perguntou Maria Clara, com esperança no olhar, sorrindo suavemente, reconhecendo a serenidade e força da menina. Vou continuar procurando, Maria Clara. Vou tentar descobrir mais sobre ele e se ele ainda mora lá. O importante é que, enquanto isso, você continue com fé. Estamos um passo mais perto da verdade. Maria Clara sentiu, percebendo que, apesar das dificuldades, ela estava mais próxima de encontrar as respostas que tanto desejava. Laí, com um olhar cheio de cuidado, colocou a mão no ombro de
Maria Clara. — Não desista, tá bem? Você é muito corajosa e eu vou te ajudar a descobrir o que aconteceu. Estamos nisso juntas. Maria Clara sorriu timidamente, sentindo uma sensação de acolhimento que não sentia há muito tempo. Ela sabia que, com Laí ao seu lado, havia uma chance real de reencontrar o pai e descobrir a verdade sem precisar lidar com o peso da dor e da solidão. Só Maria Clara, Joana e Pedro não conseguiam mais suportar os dias no abrigo. O ambiente pesado, a vigilância constante e a falta de liberdade faziam com que se sentissem
cada vez mais presos. Quando Laí contou a Maria Clara sobre o restaurante e a possibilidade de encontrar mais informações sobre o pai, um fio de esperança se acendeu. Mas a vida no abrigo não permitia que ela tivesse tempo para esperar; era preciso agir. Uma tarde, enquanto Mar estava distraída em uma reunião e Laí estava fora, Maria Clara se aproximou de Joana e Pedro. O coração batia rápido, mas ela estava decidida. — Eu não aguento mais aqui — disse Maria Clara, sua voz baixa, mas cheia de determinação. — Eu preciso sair, preciso encontrar meu pai. Joana,
que sempre fora mais cautelosa, olhou para ela com hesitação, mas Pedro, o mais impulsivo do grupo, concordou. — Eu também não aguento mais. Vamos sair daqui e procurar o que é nosso — disse Pedro, com um brilho de coragem nos olhos. — Mas e se eles nos encontrarem? E se der errado? — Joana perguntou, apertando as mãos nervosamente. — Eu confio na gente — respondeu Maria Clara. — A gente sempre se ajudou, não vai ser diferente agora. Pedro assentiu, e os três começaram a planejar a fuga. Sabiam que o abrigo ficava perto de uma rua
movimentada, e se conseguissem sair sem serem vistos, poderiam encontrar uma maneira de chegar até o restaurante que Laí mencionara. Eles se esconderiam no lado de trás do prédio até a noite cair. Naquela noite, depois que as luzes do abrigo se apagaram e todos estavam dormindo, Maria Clara, Joana e Pedro se levantaram silenciosamente, deslizaram pelas escadas, evitando os corredores iluminados, e chegaram à porta dos fundos. Era só uma questão de empurrar o trinco e sair para o mundo lá fora, onde ninguém os vigiava. Quando finalmente atravessaram a porta, o ar fresco da noite os envolveu. Eles
se olharam, sentindo uma mistura de medo e excitação. — Agora vamos em frente, até encontrarmos as respostas — disse Maria Clara, sua voz firme, apesar do nervosismo. Eles caminharam pelas ruas desertas, sem saber exatamente para onde estavam indo, mas com a certeza de que não podiam mais ficar no abrigo. O objetivo era claro: encontrar o restaurante, descobrir mais sobre o pai de Maria Clara e entender o que havia acontecido com a sua vida. À medida que se afastavam do abrigo, uma sensação de liberdade, embora temporária, os envolvia. Mas, ao mesmo tempo, havia o medo de
serem pegos. A cidade parecia tão grande e desconhecida, e por mais que quisessem seguir em frente, a realidade de estarem fugindo os pressionava. — Se algo acontecer, vamos ficar juntos — disse Joana, olhando para os dois. — Sim, sempre juntos — respondeu Pedro, com um sorriso tenso. Mas, enquanto caminhavam, sem saber os desafios que os aguardavam, Maria Clara não podia deixar de pensar em Laí. Será que ela entenderia o que estavam fazendo? Será que Laí os ajudaria mesmo estando longe? Ela sentia que, de alguma forma, Laí acreditava nela, mas estava ciente de que estavam sozinhos
agora, pelo menos por enquanto. Naquele dia, Carlos chegou em casa tarde mais uma vez. O dia no trabalho tinha sido caótico, como sempre, mas a verdadeira tempestade estava dentro dele. Assim que abriu a porta, encontrou Regina sentada no sofá, com um copo de vinho na mão e a televisão ligada em algum programa qualquer. Ela não parecia estar assistindo; os olhos estavam fixos no nada, e a expressão no rosto dela era de puro cansaço. — Chegou tarde de novo — Carlos disse, sem desviar o olhar da tela. Não era uma acusação, mas também não era um
simples comentário; era um misto de frustração e resignação. — Tinha muita coisa no escritório — respondeu ele, enquanto tirava o paletó e afrouxava a gravata. Ele queria mudar de assunto, mas sabia que não adiantava. O problema que rondava os dois não tinha ficado no trabalho; estava ali, no ar, no silêncio desconfortável que dominava a casa. Carlos sentou-se ao lado dela no sofá, mas Regina se afastou um pouco, cruzando os braços. O copo de vinho tremia levemente em sua mão, mas ela tentou disfarçar. — Você pensou no que a gente conversou? — perguntou Regina, sem olhar
para ele. Carlos suspirou. Ele sabia exatamente do que ela estava falando, mas não tinha uma resposta que fosse agradá-la. — Regina, eu tô pensando, mas isso não é simples. — Ele passou a mão pelos cabelos, tentando aliviar a tensão que parecia crescer no peito. Regina finalmente virou o rosto para ele. Seus olhos estavam marejados, mas ela se esforçava para manter a firmeza. — Não é simples para você, Carlos, porque você já tem tudo. Carlos ficou parado por um momento, mergulhado em seus pensamentos. Seu passado o atormentava. Anos atrás, havia se envolvido com uma mulher chamada
Ana, mas, devido a uma mentira cruel, os dois tiveram uma briga feia e Ana desapareceu de sua vida. Desde então, ele nunca mais a… Carlos lembrava dos boatos espalhados por falsos amigos que diziam que o filho que Ana esperava não era dele. Até hoje, ele carregava dúvidas sobre isso e se arrependia profundamente de suas atitudes na época. No entanto, decidiu seguir em frente. O silêncio que veio depois foi insuportável. Carlos sabia que ela estava certa, mas também sabia que não era tão fácil como ela fazia parecer. Eles tinham tentado de tudo: consultas médicas, tratamentos caros,
uma série de exames dolorosos e invasivos. No início, havia esperança, mas a cada teste com resultado negativo, essa esperança foi se transformando em algo mais pesado. Agora, era um buraco entre os dois. “Regina, eu sei o quanto isso dói para você, mas adotar não vai apagar o que a gente perdeu, não vai mudar o que você está sentindo”, disse Carlos, tentando escolher as palavras com cuidado. Regina levantou-se do sofá, visivelmente irritada. “Não é sobre apagar nada, Carlos. É sobre construir alguma coisa! Eu não aguento mais viver nessa casa vazia, com esse silêncio o tempo todo.
Eu quero, eu preciso de algo mais!” Carlos ficou olhando para ela, sentindo-se impotente. Ele sabia que Regina estava sofrendo; ele também estava. Mas, para ele, a ideia de trazer outra criança para aquela casa parecia mais assustadora do que consoladora. “Eu não quero que a gente tome uma decisão por desespero”, disse ele, levantando-se para ficar frente a frente com ela. “Isso tem que ser certo: há para você, para mim, para qualquer criança que entrar nessa casa.” Regina respirou fundo, tentando se controlar. As lágrimas agora escorriam livremente pelo rosto dela. “Sabe o que é pior, Carlos? Eu
sinto que você nunca vai, porque, no fundo, você já teve isso uma vez. Você sabe como é segurar um bebê nos braços e chamá-lo de seu. Eu nunca vou ter isso! Nunca!” Ela apertou o copo de vinho com tanta força que parecia que iria quebrá-lo. Carlos sentiu o peso daquelas palavras como um soco no estômago. Ele sabia que Regina tinha razão; ele tinha tido Ana, mesmo que por pouco tempo, e sabia o que era ser pai. Mas também sabia o que era perder, e o medo de passar por aquilo de novo era algo que ele
não conseguia superar. “Amor, eu quero que você seja feliz. Eu quero que a gente seja feliz, mas eu também preciso ser honesto com você. Eu não sei se estou pronto para isso”, disse ele, a voz quase um sussurro. Regina balançou a cabeça, dando um passo para trás. “Você nunca está pronto para nada que não seja, Carlos. Talvez seja por isso que a gente está aqui, presos nesse mesmo lugar há anos.” Carlos tentou se aproximar, mas ela levantou a mão, pedindo espaço. “Só me deixa sozinha, Carlos, por favor.” Ele ficou parado por um momento, sem saber
o que fazer. Depois, pegou o paletó e saiu da sala, deixando Regina sozinha. Assim que ele desapareceu, ela desabou no sofá, abraçando um travesseiro como se fosse a única coisa que a mantinha inteira naquela noite. Carlos ficou sentado no escritório por horas, olhando para a foto de Ana que guardava em uma gaveta. Sentia que estava falhando com Regina, mas não sabia como consertar aquilo. E, ao mesmo tempo, sentia que o vazio que separava os dois estava crescendo, tornando-se cada vez mais difícil de atravessar. Do outro lado da casa, Regina chorava em silêncio, segurando o prospecto
de uma agência de adoção que tinha pegado no mês anterior. Era como se cada um deles estivesse em uma ilha diferente, gritando por socorro, mas sem saber como se alcançar. A noite estava fria e as luzes da cidade brilhavam como estrelas nas vitrines dos prédios altos. Maria Clara segurava a foto de Carlos com força; o papel já gasto pelos dias de aperto e esperança. Joana estava ao lado dela, olhando para o restaurante à frente. Era um lugar grande, elegante, com mesas cobertas por toalhas brancas e pessoas bem vestidas conversando atrás das janelas de vidro. “É
aqui?” perguntou Joana, tentando esconder o nervosismo. “É o que dona Laí disse. Ele vem aqui quase toda semana, sempre nesse horário”, respondeu Maria Clara, sentindo o coração bater mais rápido. Ela olhou para as portas grandes e douradas do restaurante; era o lugar mais bonito que já tinha visto na vida, mas também o mais intimidante. Pedro estava mais afastado, encostado em um poste, observando as duas com os braços cruzados. “Vocês têm certeza disso? Ele pode nem estar aí hoje e, mesmo se tiver, e daí? Você vai só aparecer do nada e dizer 'oi, sou sua filha'?”
perguntou ele, com o tom provocador de sempre. “Pedro, para de falar besteira!” cortou Joana, irritada. “Deixa ela tentar.” Maria Clara olhou para a foto mais uma vez. Carlos estava sorrindo na imagem, mas ela não sabia como seria vê-lo ao vivo depois de tudo. “E se ele não a reconhecesse? E se não quisesse saber dela?” Ela tentou afastar esses pensamentos. Tinha chegado tão longe, precisava tentar. “Eu vou entrar”, disse Maria Clara, firme, antes de dar um passo em direção à porta. O calor dentro do restaurante era um alívio imediato, mas o ambiente parecia um mundo à
parte. Havia luzes suaves penduradas no teto, garçons andando de um lado para o outro com bandejas prateadas, e o som de copos tilintando acompanhava o burburinho das conversas. Maria Clara sentiu os olhares de algumas pessoas caírem sobre ela, com suas roupas simples e mochila velha. Sabia que não parecia pertencer àquele lugar. Ela caminhou pelo salão, passando pelas mesas, até que seus olhos o encontraram. Carlos estava sentado em uma das mesas no canto, ao lado de uma mulher elegante que Maria Clara reconheceu como Regina. Ele parecia tão diferente da foto; os cabelos estavam mais curtos, o
rosto mais sério, mas ela sabia que era ele. Sentiu um aperto no peito. “Vai lá, você consegue”, sussurrou para si mesma. Se tentasse reunir coragem quando chegou perto da mesa, Carlos e Regina ainda não tinham percebido sua presença. Ele estava lendo algo no celular e Regina parecia distraída com o cardápio. "Com licença," disse Maria Clara, a voz baixa e hesitante. Carlos levantou os olhos surpreso ao ver uma menina parada ali. Regina franziu a testa, já incomodada. "O que foi? Você tá perdida?" perguntou Regina, direta, antes que Carlos pudesse dizer algo. "Eu... eu preciso falar com
você," disse Maria Clara, olhando diretamente para Carlos. O coração dela parecia que ia sair pela boca. Carlos olhou para a menina, confuso; não a reconheceu, mas algo na expressão dela o deixou intrigado. "Me falar sobre o quê?" perguntou ele, enquanto Regina suspirava impaciente. Maria Clara respirou fundo e tirou a foto do bolso. Com as mãos trêmulas, colocou-a sobre a mesa, virando-a para ele. "Sobre isso," disse ela. Carlos pegou a foto e, por um momento, ficou paralisado. Seus olhos se fixaram na imagem dele e de Ana. Ele passou o dedo pela foto como se tentasse entender
por que aquela garota tinha algo tão pessoal. Regina inclinou-se para ver melhor e ficou ainda mais desconfiada. "Quem é você e de onde tirou essa foto?" perguntou Regina, olhando de Maria Clara para Carlos. "Eu sou... sou Maria Clara. Eu acho que você é meu pai," disse ela, a voz quase falhando. A mesa ficou em silêncio. Carlos parecia ter perdido o fôlego. Regina, no entanto, se levantou, furiosa. "Isso é algum tipo de golpe? Uma brincadeira? Como você ousa aparecer aqui e dizer algo assim?" Regina levantou a voz, atraindo olhares de outras mesas. "Não, não é golpe!
Eu só... eu só queria falar com ele!" Maria Clara tentou se explicar, as lágrimas começando a brotar nos olhos. Carlos colocou a foto na mesa, ainda em choque. Ele olhou para Maria Clara e depois para Regina, como se não soubesse o que fazer. "Carlos, alguma coisa!" insistiu Regina, furiosa. "Eu... eu não sei," respondeu ele, perdido. Um garçom se aproximou, preocupado com a confusão. "Está tudo bem aqui, senhor?" perguntou, olhando para Carlos. Regina virou-se para o garçom. "Não, não está! Essa menina está nos incomodando, por favor, tire-a daqui," disse ela. "Não, por favor! Eu só quero
falar com ele! Eu não vou machucar ninguém!" implorou Maria Clara, enquanto o garçom a assegurava gentilmente pelo braço para afastá-la. Carlos observava tudo em silêncio, mas algo dentro dele parecia gritar. Maria Clara olhou para ele uma última vez antes de ser levada para fora; as lágrimas já escorriam livremente pelo rosto dela. Lá fora, Joana a esperava. Assim que a viram, correram para ela. "O que aconteceu? Ele falou com você?" perguntou Joana, preocupada. Maria Clara balançou a cabeça, tentando controlar o choro. "Não, ele não disse nada," respondeu ela, sentindo o peso da rejeição. Enquanto isso, dentro
do restaurante, Carlos ainda segurava a foto. Regina continuava falando, irritada, mas ele não ouvia; seus olhos estavam fixos na imagem e o rosto de Maria Clara não saía da sua cabeça. Havia algo nela que ele não conseguia ignorar, uma semelhança que ele não podia negar. Carlos estava sentado em sua mesa de escritório, mas os papéis espalhados à sua frente não tinham a menor importância naquele momento. Na mão, ele segurava a foto que Maria Clara havia deixado no restaurante. Já havia passado uma noite inteira desde aquele inesperado, mas ele não conseguia tirar a imagem da cabeça.
Cada detalhe parecia gritar com ele: o sorriso de Ana, o rosto ansioso de Maria Clara, as palavras dela: "Eu acho que você é meu pai." Ele passou os dedos pelo papel envelhecido; a memória de Ana veio como um raio, nítida e dolorosa. Fazia anos desde que ele a tinha visto pela última vez, mas a expressão dela naquela foto parecia idêntica à que ele guardava na lembrança. E aquela garota... ela parecia ter algo de Ana, um brilho nos olhos, um jeito que ele não conseguia explicar, mas que o fazia questionar se ela estava dizendo a verdade.
"Carlos, você está ouvindo?" A voz de Regina interrompeu seus pensamentos. Ele olhou para cima e viu a esposa na porta do escritório; Regina estava visivelmente irritada, os braços cruzados e o rosto tenso. "Eu já falei, Carlos! Isso é absurdo! Essa menina apareceu do nada com uma história que não faz sentido; é claro que é uma mentira!" Ela entrou no escritório, pegando a foto das mãos dele. Carlos suspirou, tentando manter a calma. "Regina, a foto é real! Eu me lembro desse dia. Foi antes de eu e Ana terminarmos. Isso não é mentira." "E o que você
vai fazer? Procurar a garota? Abrir sua vida para uma estranha?" Regina jogou a foto de volta na mesa. "Você já pensou no que isso pode fazer com a gente?" Carlos olhou para a foto novamente, ignorando a indignação de Regina. Ele sabia que para ela isso era mais do que um incômodo; era uma ameaça. Mas para ele, era algo que precisava de resposta. "Regina, eu não vou ignorar isso! Se ela está mentindo, eu preciso saber. E se não estiver..." Ele hesitou, sabendo que aquilo não seria fácil de dizer. "Se não estiver, ela é minha filha e
eu tenho uma responsabilidade." Regina balançou a cabeça em descrença. "Faça o que quiser, Carlos, mas não espere que eu fique aqui assistindo você destruir nossa vida por causa de uma história sem pé nem cabeça." Ela saiu do escritório, batendo a porta. Carlos ficou sozinho, o silêncio da sala mais pesado do que nunca. Ele pegou o telefone e começou a procurar algo; tinha que descobrir quem era aquela menina, onde ela estava e, acima de tudo, a verdade sobre o que ela tinha dito. No dia seguinte, Carlos decidiu começar pelo restaurante. Voltou ao local, esperando encontrar algum
funcionário que tivesse visto para onde Maria Clara foi depois que foi retirada. O garçom que tinha lidado com... A situação se aproximou com um olhar de surpresa. — Senor Carlos, posso ajudar com algo? — Sim, você pode. Carlos colocou a foto sobre a mesa. — Essa menina, você se lembra dela? Ela estava aqui ontem à noite. O garçom olhou para a foto e assentiu. — Sim, senhor, ela foi retirada por minha ordem, como solicitado por sua esposa. Ela estava muito nervosa, chorando. Carlos sentiu uma pontada de culpa; ele lembrou dos olhos marejados de Maria Clara
quando ela foi levada. Ele tinha ficado paralisado, sem saber o que fazer, mas agora isso parecia imperdoável. — Para onde ela foi? — perguntou. — Não, senhor, mas ela saiu acompanhada de duas outras crianças. Eles pareciam estar esperando do lado de fora. Carlos agradeceu e deixou o restaurante. Enquanto dirigia de volta para casa, sentiu uma mistura de ansiedade e determinação; precisava ir mais fundo. Havia algo real na história dela e ele não podia descansar até descobrir o que era. Mais tarde, no escritório, Carlos decidiu procurar registros antigos. Tinha uma caixa guardada com fotos e documentos
daquela época, mas fazia anos que não mexia nela. Quando abriu, o cheiro de papel velho encheu o ar. Lá dentro, encontrou cartas de Ana, bilhetes antigos e, finalmente, uma cópia da mesma foto que Maria Clara havia mostrado. Ele virou a foto e viu as palavras no verso: "Ana e Carlos, nosso futuro em uma só imagem." Era exatamente igual à que estava na foto da menina. Um arrepio percorreu sua espinha; aquilo não podia ser coincidência. Carlos sabia que precisava de mais informações. Decidiu ligar para uma pessoa que talvez pudesse ajudar: Dona Teresa, a mulher que Ana
tinha mencionado brevemente em uma das cartas antigas. Ela havia trabalhado em um abrigo comunitário e, pelo que ele sabia, ainda estava lá. — Alô, Dona Teresa? Aqui é o Carlos, você se lembra de mim? — começou ele, nervoso. — Carlos? Claro que me lembro! Faz muito tempo. O que você precisa? — respondeu ela, com um tom caloroso. Carlos explicou rapidamente sobre Maria Clara, sobre a foto e o encontro no restaurante. Dona Teresa ouviu tudo em silêncio antes de responder. — Carlos, ela esteve aqui no abrigo. É uma menina boa, mas passou por muito. Perdeu a
mãe e está sozinha. Ela acreditava que você era a única pessoa que poderia ajudá-la. As palavras atingiram Carlos como um soco; ele se encostou na cadeira, processando o que tinha acabado de ouvir. — Você sabe onde ela está agora? — perguntou. — Não exatamente, mas ela estava com duas crianças de rua: Pedro e Joana. Eles costumam circular pela região central. Se quiser encontrá-la, é um bom lugar para começar. Carlos agradeceu e desligou. Ficou um momento em silêncio, segurando o telefone. Algo dentro dele dizia que a vida estava prestes a mudar de um jeito que ele
não imaginava. Era fim de tarde e as sombras dos prédios altos cobriam as ruas movimentadas do centro da cidade. Maria Clara, Joana e Pedro estavam na calçada, discutindo sobre o próximo lugar onde poderiam procurar abrigo. O estômago de Maria Clara roncava, mas ela tentou ignorar. Os biscoitos que tinham conseguido no abrigo já tinham acabado há dois dias e encontrar comida estava cada vez mais difícil. — Eu conheço um lugar, — disse Pedro, com um sorriso que Maria Clara não gostou. Ele tinha aquele olhar que usava quando estava tramando alguma coisa. — Que lugar? — perguntou
Joana, cruzando os braços, confiada. — É um galpão abandonado lá perto da ponte. Tem um pessoal que às vezes aparece por lá, mas eles não incomodam se a gente não encher o saco deles. Maria Clara sentiu um arrepio. Pedro sempre parecia saber onde ir, mas dessa vez, algo na voz dele não parecia certo. — Não parece seguro, — disse ela, hesitante. — Nada nessa cidade é seguro, princesa, — respondeu Pedro, revirando os olhos. — Mas você quer ficar aqui no meio da rua ou quer um lugar para dormir? Joana olhou para Maria Clara e deu
de ombros, como quem dizia que não tinham muitas opções. Relutante, Maria Clara seguiu os dois. Quando chegaram ao galpão, o lugar parecia abandonado. As janelas estavam quebradas e a porta rangia ao ser empurrada. Lá dentro, havia caixas empilhadas e alguns colchões velhos espalhados no chão. O cheiro de poeira era forte e o ambiente estava escuro, com apenas algumas frestas de luz entrando pelas paredes. — Viu? Tranquilo, — disse Pedro, jogando uma moeda em Joana. Maria Clara se sentou em um dos colchões, mas o ócio do lugar fez os pelos do braço dela se arrepiarem. Ela
olhou ao redor e sentiu que algo estava errado. Antes que pudessem relaxar, vozes começaram a ecoar pelo galpão. Eram grossas, rudes, e estavam ficando mais próximas. Pedro levantou-se rápido, os olhos arregalados. — Quem tá aí? — perguntou uma das vozes, grave e ameaçadora. De repente, três homens surgiram no fundo do galpão. Eles tinham roupas gastas, tatuagens nos braços e um jeito que deixava claro que não estavam ali para fazer amigos. O líder, um homem alto com uma cicatriz que cruzava o rosto, segurava um cigarro entre os dedos e encarou os três com um sorriso frio.
— Olha só o que temos aqui, crianças brincando no meu território, — ele deu uma risada curta e assustadora. — Vocês acham que isso aqui é parque? — Desculpa, a gente não sabia, — começou Joana, mas o homem levantou a mão, interrompendo-a. — Não quero saber de desculpas, quero saber o que vocês têm para oferecer. Aqui, ninguém fica de... Pedro tentou parecer corajoso, mas a voz dele tremeu. — A gente não tem nada, só estamos de passagem. — Nada? — O homem deu um passo à frente e os outros dois o seguiram como sombras. —
Então talvez vocês possam ajudar de outro jeito... Maria Clara sentiu o coração disparar. Tentou puxar Pedro pelo braço para que fossem embora, mas ele não se mexeu. — Que? — perguntou Pedro, a voz quase um sussurro. O homem com a cicatriz deu uma risada baixa. — Tá vendo aquelas lojas no fim da rua? Quero que vocês... "Entrem lá e peguem o que puderem: dinheiro, comida, qualquer coisa de valor. Façam isso e talvez eu deixe vocês irem roubar." Maria Clara disse, horrorizada. "A gente não pode fazer isso!" "Ah, pode sim, princesinha. Pode! Ou fica aqui comigo.
Escolha rápida." O tom dele era calmo, mas a ameaça era clara. Pedro olhou para Maria Clara e Joana, visivelmente assustados. Ele não queria fazer aquilo, mas sabia que discutir não era uma opção. "Tá bom, tá bom, a gente faz. Só deixa elas fora disso," disse ele, bonitinho. "Você tentando ser o herói, mas não funciona assim. Todo mundo ajuda ou ninguém sai." O homem apagou o cigarro no chão e cruzou os braços, esperando. Maria Clara sentiu o medo crescendo, mas também uma raiva que não conseguia controlar. Ela sabia que isso era errado, mas o que podiam
fazer? Se não obedecessem, aqueles homens poderiam machucar elas ou, pior ainda. Quando saíram do galpão, o grupo estava em silêncio. Pedro chutava pedrinhas no chão, enquanto Joana olhava nervosamente para os lados. Maria Clara segurava o terço com força, tentando pensar em uma solução. "A gente não pode fazer isso," Pedro disse, Maria Clara finalmente parando no meio da calçada. "E o que você quer que a gente faça?" respondeu Pedro, girando para encará-la. "Você viu o tamanho daqueles caras! Se a gente voltar sem nada, já era." "Tem que ter outro jeito," insistiu Maria Clara, mas as palavras
pareciam vazias até para ela mesma. Eles continuaram andando até chegar perto das lojas. Pedro e Joana começaram a discutir um plano, mas Maria Clara mal ouvia; sua mente estava trabalhando rápido, tentando encontrar uma saída. Foi quando ela viu uma viatura da polícia estacionada na esquina. Os policiais estavam dentro do carro, conversando. Maria parou, sentindo o coração acelerar. Era arriscado, mas podia ser a única chance de escapar. "Fiquem aqui, eu já volto," disse Maria Clara, correndo antes que Pedro ou Joana pudessem detê-la. Quando chegou perto da viatura, bateu na janela com força. Um dos policiais abaixou
o vidro, olhando para ela com surpresa. "O que foi, garota?" "Tem homens no galpão ali atrás! Eles querem que a gente roube para eles! Por favor, me ajudem," disse ela, a voz cheia de urgência. Os policiais trocaram olhares e saíram do carro rapidamente. Maria Clara os guiou de volta ao galpão, com Pedro e Joana correndo atrás dela. Quando os policiais entraram no galpão, os homens tentaram resistir, mas não foram longe. Em poucos minutos, estavam algemados e sendo levados. Maria Clara, Pedro e Joana ficaram do lado de fora, observando em silêncio. "Você foi corajosa," disse Joana,
quebrando o silêncio. Pedro, por outro lado, parecia dividido entre raiva e alívio. "Isso podia ter dado muito errado," disse ele, mas sem a mesma convicção de antes. Maria Clara olhou para os dois, ainda tremendo, mas com um estranho sentimento de alívio. Pela primeira vez em dias, sentiu que tinha feito algo certo. A noite estava gelada e as luzes de Natal brilhavam em todas as casas do bairro. Maria Clara caminhava pela calçada com o terço azul na mão, apertando-o como se aquilo fosse lhe dar coragem. Joana e Pedro tinham insistido para acompanhá-la, mas dessa vez ela
disse que precisava fazer isso sozinha. Quando virou a esquina, avistou a mansão. Era enorme, com portões de ferro altos e um jardim perfeitamente aparado. As luzes natalinas piscavam nos arbustos e no telhado, e uma árvore gigantesca iluminava a sala visível pelas janelas. Maria Clara sentiu o estômago embrulhar. Tudo aquilo parecia tão distante da sua realidade, tão impossível de alcançar. " só mais alguns passos," sussurrou para si mesma, tentando controlar o medo. Cada passo parecia mais pesado que o anterior. Quando chegou ao portão, segurou as grades frias e olhou para dentro. Lá estava ele: Carlos estava
parado na sala, conversando com Regina. Maria Clara reconheceu ambos de longe. Ele parecia preocupado, gesticulando enquanto falava, e Regina estava sentada em uma poltrona com os braços cruzados. "Era agora ou nunca." Maria Clara respirou fundo e apertou o botão da campainha ao lado do portão. O som ecoou pelo jardim e seu coração começou a bater como tambor. Depois de alguns minutos que pareceram horas, uma empregada apareceu na porta da casa. Ela olhou em direção ao portão e franziu a testa ao ver uma menina parada ali. "Quem é você?" perguntou a mulher, se aproximando. "Eu... eu
preciso falar com o Carlos. É muito importante, por favor!" A voz de Maria Clara saiu mais alta do que esperava, mas tremida o suficiente para revelar seu nervosismo. A empregada hesitou, mas voltou para dentro da casa. Maria Clara ficou esperando, sentindo o vento frio cortando sua pele. Finalmente, Carlos apareceu na porta. Ele parecia cansado, como alguém que já tinha enfrentado muitas batalhas. Naquele dia, quando seus olhos encontraram os de Maria Clara, ele parou por um momento. "Você de novo," murmurou, andando em direção ao portão. Ele destrancou-o e abriu devagar, observando Maria Clara como se ela
fosse um quebra-cabeça que ele ainda não sabia como montar. "O que você tá fazendo aqui?" perguntou ele, com um misto de preocupação e exasperação. Maria Clara engoliu em seco e tirou a foto do bolso, estendendo-a para ele. "Eu vim porque preciso saber a verdade. Eu preciso saber se você é meu pai." Carlos pegou a foto, mas dessa vez não desviou o olhar dela. Algo no tom de Maria Clara parecia diferente: mais urgente, mais desesperado. "Eu já vi essa foto," disse ele mais para si mesmo do que para ela. "E eu tô tentando entender tudo isso."
Maria Clara balançou a cabeça, as lágrimas começando a se formar. "Eu não tô mentindo! Eu perdi minha mãe e tenho quase certeza que um senhor é meu pai. Eu não tenho mais ninguém! Por favor, só me escuta." Carlos passou a mão pelos cabelos, claramente confuso. Antes que pudesse dizer mais alguma coisa, Regina apareceu na porta. Com um casaco de lã e uma expressão de puro descontentamento, o que tá acontecendo aqui? Perguntou ela, olhando de Carlos para Maria Clara. "Essa menina, de novo! Por que você tá ouvindo isso?" Carlos. "Regina, só um minuto," disse Carlos, levantando
a mão, mas Regina não estava disposta a esperar. Ela desceu os degraus da entrada rapidamente, parando ao lado dele. "Olha, garota, eu não sei o que você tá tentando fazer, mas essa história não faz sentido. Carlos não tem nenhuma filha perdida! Isso é um absurdo." A voz dela era fria, cortante. "Eu não quero nada de vocês, eu só quero saber a verdade." Maria Clara, com a voz embargada, mais firme, disse: "Carlos." Carlos olhou para Regina e, depois, para Maria Clara. Era como se estivesse tentando juntar todas as peças de um quebra-cabeça impossível. Finalmente, ele respirou
fundo e se virou para Maria Clara. "Entra." A palavra saiu simples, mas carregada de significado. "O quê?" Perguntou Regina, chocada. "Você não pode simplesmente deixá-la entrar!" Carlos. "Regina, chega! Eu preciso resolver isso." Ele abriu a porta do portão completamente e fez sinal para Maria Clara entrar. Regina suspirou, indignada, mas não disse mais nada; entrou na casa, claramente irritada, enquanto Carlos guiava Maria Clara até a sala. A menina sentiu o calor da casa envolvê-la, um contraste enorme com o frio que estava do lado de fora. Ela olhou ao redor, fascinada pela decoração: a árvore de Natal
enorme, os enfeites dourados, as luzes brilhantes. "Senta," disse Carlos, apontando para o sofá. Ele sentou-se na poltrona em frente e segurou a foto nas mãos. "Eu preciso entender," começou ele. "Se isso for verdade, se você realmente for minha filha, a gente pode resolver isso, mas para isso eu preciso de provas. Eu preciso de um teste." Maria Clara sentiu as lágrimas escorrerem pelo rosto. "Eu faço qualquer coisa! Eu só... eu só quero saber se você é meu pai." Carlos olhou para ela e, pela primeira vez, Maria Clara viu algo diferente nos olhos dele. Não era só
dúvida; era um lampejo de esperança misturado com medo. Aquela véspera de Natal, que deveria ser apenas mais uma noite comum para ele e Regina, estava prestes a mudar tudo. Os dias que se seguiram à véspera de Natal pareciam se arrastar como semanas para Maria Clara. Desde que tinha entrado na mansão, tudo era novo e desconfortável. As paredes eram decoradas com quadros caros, os móveis pareciam feitos para um museu, e as refeições eram cheias de pratos que ela não conseguia nem pronunciar. Mas, mesmo com todo aquele luxo ao redor, ela sentia um peso constante, como se
estivesse sempre andando na ponta dos pés. Carlos tinha cumprido o que prometeu. No dia seguinte ao Natal, ele a levou até uma clínica para fazer o teste de DNA. O médico explicou que o resultado demoraria alguns dias e, enquanto isso, Maria Clara ficou na mansão. Não porque Carlos tinha insistido; ele até ofereceu colocá-la em um hotel para que ficasse mais confortável, mas Maria Clara recusou. Queria ficar ali perto dele, mesmo que Regina tornasse tudo mais difícil. Regina não escondia o descontentamento desde que Maria Clara chegou; ela fazia questão de mostrar que não gostava da situação.
Seu tom era sempre frio, suas palavras afiadas como facas. "Você acha mesmo que pode aparecer do nada e mudar tudo?" Perguntou Regina certa noite, enquanto Maria Clara tentava ajudar na cozinha. Maria Clara ficou em silêncio, tentando ignorar o aperto no peito; não tinha resposta para aquilo, e mesmo que tivesse, sabia que Regina não ouviria. Carlos, por outro lado, parecia dividido. Ele era educado, até tentava se aproximar, mas ainda parecia distante; passava a maior parte do tempo no escritório ou saía para reuniões, como se estivesse usando o trabalho como uma desculpa para evitar a tensão crescente
em casa. Uma tarde, enquanto estava sozinha no quarto que Carlos tinha preparado para ela, Maria Clara pegou a foto de Carlos e Ana que tinha guardado na mochila. Sentada na cama, ela passou os dedos pela imagem, pensando na mãe: será que Ana teria imaginado que tudo isso aconteceria? Será que tinha acreditado que Carlos um dia aceitaria? Uma batida na porta tirou Maria Clara dos pensamentos. Era Regina. "Preciso conversar com você," disse, entrando sem esperar convite. O tom era sério, quase duro. Maria Clara colocou a foto de lado e sentou-se reta, esperando o que viria a
seguir. "Olha, eu não sei o que você acha que vai conseguir aqui, mas eu vou deixar uma coisa bem clara: eu não quero essa confusão na minha casa. Se o resultado do teste der negativo, você vai embora imediatamente. Entendeu?" Maria Clara sentiu um nó na garganta, mas assentiu. Não queria piorar as coisas, mesmo que a raiva estivesse se queimando dentro dela. Regina cruzou os braços, observando Maria Clara por um momento antes de sair do quarto, batendo a porta atrás de si. Naquela noite, Carlos finalmente sentou-se para jantar com Maria Clara. Ele parecia cansado, mas havia
algo diferente no olhar dele. "Como você tá se sentindo?" Perguntou, quebrando o silêncio. Maria Clara olhou para o prato de comida, evitando o olhar dele. "Eu tô bem, só ansiosa." Carlos assentiu, mexendo na comida com o garfo. "Eu também. É muita coisa para processar, sabe? Mas eu quero que você saiba que, independente do que acontecer, eu tô aqui para conversar." Ele olhou para ela, esperando uma resposta. Maria Clara finalmente ergueu o olhar. "Obrigada. Eu só... eu só quero saber a verdade." Carlos deu um pequeno sorriso, mas era um sorriso triste, carregado de dúvida e preocupação.
Os dias seguintes foram cheios de pequenos momentos de tensão. Maria Clara tentava se manter ocupada ajudando na cozinha ou organizando os livros na biblioteca, mas a espera pelo resultado do DNA parecia interminável. Em alguns momentos, ela pensava em fugir; talvez fosse mais fácil voltar para a rua do que lidar com a incerteza e o desprezo de Regina. Mas, mas sempre que pensava nisso, olhava para o terço azul que sua mãe tinha lhe dado. Era como um lembrete para não desistir, mesmo quando tudo parecia difícil. Uma manhã, enquanto Maria Clara estava no jardim, Regina apareceu novamente.
Desta vez, o tom era diferente; ainda tinha uma ponta de frieza, mas havia algo mais: uma espécie de cansaço. — Você realmente acha que ele vai aceitar? — perguntou Regina, com os braços cruzados. Maria Clara olhou para ela, tentando encontrar as palavras certas. — Eu não sei, mas eu preciso tentar. Regina ficou em silêncio por um momento, depois suspirou e foi embora sem dizer mais nada. Finalmente, o dia do resultado chegou. Carlos entrou na sala com um envelope na mão. Maria Clara estava sentada no sofá, com as mãos suando e o coração batendo tão rápido
que parecia que ia sair pela boca. Regina estava ao lado de Carlos, com uma expressão fechada; ela não dizia nada, mas o olhar dizia tudo: queria que aquilo acabasse logo. Carlos sentou-se na poltrona em frente a Maria Clara e abriu o envelope. Seus olhos percorreram o documento, e ele ficou em silêncio por alguns segundos; parecia estar processando o que estava lendo. Então começou: — Você... — olhando para Maria Clara. O silêncio na sala era tão pesado que parecia preencher cada canto. Maria Clara mal conseguia respirar enquanto esperava a resposta que mudaria tudo. O resultado do
teste de DNA mudou tudo. Quando Carlos olhou para Maria Clara e disse as palavras que ela tanto esperava: — Você é minha filha. Algo dentro dela parecia ter se quebrado e se reconstruído ao mesmo tempo. A verdade era um alívio, mas também trazia um peso enorme. Agora, ela e Carlos precisavam descobrir como viver com isso. Nos dias que se seguiram, a casa parecia diferente. Carlos começou a passar mais tempo com Maria Clara, tentando conhecê-la, entender quem era aquela menina que de repente fazia parte da sua vida. Mas as coisas não eram simples. Maria Clara ainda
se sentia deslocada, como se fosse uma visitante em uma casa que não era sua, e Carlos parecia estar aprendendo a lidar com a ideia de ser pai novamente. Uma manhã, Carlos decidiu levar Maria Clara para conhecer seu escritório. Era um prédio imponente no centro da cidade, com janelas de vidro que refletiam o céu. Ele queria mostrar a ela uma parte da sua vida, talvez na tentativa de encontrar um ponto de conexão. — E aí, o que achou? — perguntou ele enquanto subiam no elevador. Maria Clara deu de ombros, olhando para os botões iluminados. — É
grande — respondeu ela, tentando não parecer intimidada. Carlos riu, percebendo o nervosismo dela. — Grande demais às vezes, mas é onde eu passo a maior parte do tempo. Quando chegaram à sala dele, Carlos mostrou a vista da janela; lá de cima, dava para ver quase toda a cidade. Maria Clara ficou em silêncio por um momento, observando. — É bonito, mas também parece meio distante. Sabe como? Se tudo fosse pequeno lá embaixo. Carlos olhou para ela, surpreso pela profundidade da resposta. Ele sorriu e passou a mão pelo ombro dela. — É, eu acho que você tem
razão. Apesar dos esforços de Carlos, havia momentos de tensão. Maria Clara ainda se sentia insegura, especialmente quando Regina estava por perto. O desprezo dela era difícil de ignorar, e Maria Clara não queria causar mais problemas; isso fazia com que, às vezes, ela se afastasse de Carlos, mesmo sem querer. Certo dia, Carlos percebeu que Maria Clara estava mais quieta do que o normal. Ele a encontrou sentada no jardim, com o terço azul nas mãos. Sentou-se ao lado dela, sem dizer nada por um tempo. — Você quer conversar? — perguntou ele finalmente. Maria Clara olhou para ele,
tentando segurar as lágrimas. — Eu só não quero ser um problema. Parece que tudo ficou mais complicado desde que eu cheguei. Carlos franziu a testa e balançou a cabeça. — Você não é um problema, Maria Clara. É minha filha, e eu sei que não é fácil, mas vamos resolver isso juntos, eu prometo. Maria Clara queria acreditar nele, mas as palavras de Regina ainda ecoavam em sua mente. Mesmo assim, ela sentiu, guardando o terço no bolso. Conforme os dias passavam, pequenos momentos começaram a aproximá-los. Uma noite, Carlos sugeriu que assistissem a um filme juntos. Ele escolheu
uma comédia antiga que costumava assistir quando era jovem, e pela primeira vez, Maria Clara riu ao lado dele. — Tá vendo? Não sou tão chato assim — brincou Carlos enquanto ela ria de uma cena boba. — Não é tão ruim — respondeu Maria Clara, com um sorriso tímido. Esses momentos se tornaram mais frequentes. Carlos a levava para passear no parque, ensinava coisas sobre o trabalho e até começou a mostrar como cozinhar pratos simples. Aos poucos, Maria Clara começou a se sentir mais à vontade, como se aquele lugar pudesse realmente ser um lar. Mas nem tudo
era perfeito. Um dia, Maria Clara viu uma foto de Ana em uma gaveta do escritório de Carlos. Era uma foto antiga, parecida com a que ela tinha, mas emoldurada. — Você ainda pensa nela? — perguntou Maria Clara, pegando a foto. Carlos suspirou, sentando-se na cadeira. — Penso, sim. Ela foi muito importante para mim, e mesmo depois de tanto tempo, acho que uma parte de mim nunca vai esquecer. Maria Clara olhou para ele, sentindo uma conexão diferente. — Ela era a melhor mãe do mundo e falava de você como se você fosse incrível. Carlos riu, mas
havia um brilho de tristeza nos olhos dele. — Eu cometi muitos erros, Maria Clara. Não fui o homem que ela merecia, e acho que é uma parte de mim que tem medo de não ser o pai que você merece. Maria Clara ficou em silêncio por um momento, depois colocou a foto de volta na gaveta e fechou. — Você tá tentando, e isso já é mais do que eu podia pedir. Carlos sorriu, emocionado, e bagunçou os cabelos dela. — Obrigado, filha. Foi a primeira vez que ouviram um ao outro de verdade. vez que ele a chamou
assim, Maria Clara sentiu algo aquecer seu peito. Era estranho, mas ao mesmo tempo bom. A relação entre eles ainda estava sendo construída, com altos e baixos, mas Carlos estava determinado a fazer aquilo dar certo. Ele sabia que não podia mudar o passado, mas queria garantir que o futuro de Maria Clara fosse diferente, melhor. E, mesmo sem dizer em voz alta, Maria Clara estava começando a acreditar que talvez ela realmente tivesse encontrado um pai. A tensão na mansão crescia a cada dia e o ar parecia ficar mais pesado sempre que Regina e Maria Clara estavam na
mesma sala. Mesmo depois que o teste de DNA confirmou que Carlos era o pai de Maria Clara, Regina não conseguia aceitar. Para ela, a presença da menina era como uma rachadura na vida que ela tinha tentado construir com tanto esforço, e Maria Clara sentia isso em cada olhar frio e em cada palavra cortante que Regina deixava escapar. Uma manhã, enquanto Maria Clara tomava café na cozinha, Regina entrou de repente. Ela estava impecavelmente arrumada, com o cabelo preso em um coque e usando um vestido de lã. Pegou uma xícara no armário, mas sua presença já parecia
dominar o ambiente. "Vejo que você está bem confortável aqui", disse Regina, sem nem olhar diretamente para Maria Clara. Maria Clara, que estava passando manteiga em uma fatia de pão, congelou por um momento. Ela sabia que aquilo não era um elogio. "O Carlos pediu para eu ficar aqui até a gente resolver tudo," respondeu Maria Clara, baixinho, tentando evitar mais atrito. Regina riu, mas foi uma risada seca, sem humor. "Resolver tudo? E o que exatamente isso significa? Você acha que vai ficar aqui para sempre, tomando o café da manhã como se fosse parte da família?" Maria Clara
sentiu o rosto esquentar, e as mãos começaram a tremer. Tentou manter a calma, mas era difícil. "Eu não quero causar problemas, só estou tentando encontrar meu lugar." "Seu lugar não é aqui. Essa é a minha casa, minha vida, e você está virando tudo de cabeça para baixo." Regina colocou a xícara sobre a bancada com força, fazendo um barulho seco. Maria Clara ficou em silêncio por alguns segundos. Ela queria gritar, queria defender a si mesma, mas sabia que Regina não estava disposta a ouvir. Mesmo assim, não conseguiu segurar as palavras. "Eu não pedi para isso acontecer.
Eu só quero conhecer meu pai. É pedir demais?" Regina finalmente olhou para Maria Clara, os olhos cheios de frustração e algo mais profundo, algo que parecia dor. "Você não entende tudo que eu e o Carlos construímos. Agora você aparece do nada e bagunça tudo! Você acha que é só sobre você? Não é!" "Não tô tentando bagunçar nada! Eu só queria..." Maria Clara parou, sentindo as lágrimas começarem a se formar. "Eu só queria não me sentir sozinha." As palavras ficaram suspensas no ar por um momento. Regina parecia impactada, mas logo voltou ao tom frio de antes.
"Bom, talvez você devesse ter pensado nisso antes de entrar na nossa vida assim." E saiu da cozinha, deixando Maria Clara sozinha. Mais tarde, naquele mesmo dia, Carlos percebeu que algo estava errado. Encontrou Maria Clara no jardim, sentada no banco de pedra com os olhos vermelhos. Ele se aproximou e sentou-se ao lado dela. "O que aconteceu?" perguntou, preocupado. Maria Clara hesitou antes de responder. "Eu acho que a Regina me odeia." Carlos suspirou, passando a mão pelos cabelos. "Ela não odeia você. Ela só..." Ele parou, tentando encontrar as palavras certas. "Ela tá tentando lidar com tudo isso,
assim como eu, mas o jeito dela é diferente." Maria Clara olhou para ele, as lágrimas escorrendo silenciosamente pelo rosto. "Ela faz eu me sentir como se eu não devesse estar aqui, como se eu fosse um erro." Carlos sentiu o coração apertar. Ele sabia que Regina estava sendo dura, mas ouvir aquilo de Maria Clara fez com que algo dentro dele despertasse. "Você não é um erro. Você é minha filha, e eu quero que você saiba que tem todo o direito de estar aqui." Ele colocou a mão no ombro dela. "Eu vou falar com a Regina. Isso
precisa mudar." Naquela noite, Carlos decidiu enfrentar Regina. Eles estavam no quarto e ele a encontrou sentada na poltrona, lendo um livro. Quando ele entrou, ela levantou os olhos, já percebendo que ele queria falar algo sério. "Precisamos conversar sobre a Maria Clara," começou ele, direto. Regina fechou o livro e suspirou. "Se é sobre eu tentar ser mais gentil, já te digo que não vou fingir que está tudo bem." Carlos franziu a testa, sentindo a frustração crescer. "Regina, ela é só uma menina. Ela perdeu a mãe, passou por coisas que nenhum de nós consegue imaginar, e agora
só quer um lugar onde possa se sentir segura. E você está dificultando isso." Regina levantou-se, cruzando os braços. "Você acha que eu não estou passando por nada? Isso é fácil para você porque é o seu sangue, mas para mim é como se eu estivesse perdendo tudo que a gente construiu." Carlos balançou a cabeça. "Você não está perdendo nada, Regina. Maria Clara não está aqui para tirar seu lugar, mas se você continuar assim, vai acabar criando um abismo entre a gente." Regina ficou em silêncio por um momento. Ela sabia que Carlos tinha razão, mas admitir isso
era mais difícil do que ela queria. "Eu não sei se consigo, Carlos. Eu não sei se consigo aceitar tudo isso... aceitar ela." Carlos se aproximou, pegando as mãos dela. "Eu não estou pedindo para você amar a Maria Clara de um dia pro outro. Só estou pedindo que você tente. Por mim, por ela." Regina desviou o olhar, mas assentiu lentamente. Era um começo, mesmo que pequeno. Nos dias seguintes, Regina tentou, de forma hesitante, se aproximar de Maria Clara. Ainda havia momentos de tensão, mas de vez em quando surgiam pequenas... Faíscas de entendimento entre as duas. O
caminho para a paz não seria fácil, mas, pela primeira vez, havia uma chance de que algo novo pudesse nascer entre elas. A mudança começou de forma sutil, quase despercebida. Regina ainda mantinha seu jeito distante, falando pouco com Maria Clara e evitando o máximo de interação possível, mas havia algo diferente em seus olhos, como se ela estivesse começando a observar a menina de uma forma que nunca tinha feito antes. Não era mais apenas como uma intrusa, mas como alguém que talvez também estivesse tentando encontrar seu lugar. Certa tarde, Regina estava no jardim, regando as flores cuidadosamente.
O jardim era seu refúgio, um lugar onde ela sentia que podia organizar os pensamentos e, pelo menos por um tempo, esquecer as tensões dentro da casa. Maria Clara apareceu, segurando uma pilha de livros que pegara na biblioteca. Ela parou ao ver Regina, hesitando antes de dizer qualquer coisa. — Você gosta de flores? — perguntou Maria Clara, a voz baixa, mas curiosa. Regina levantou os olhos, surpresa pela pergunta. Pensou em ignorar, mas algo a fez responder: — Gosto! Sempre. Cuidar delas me ajuda a pensar. Maria Clara sorriu de leve, o tipo de sorriso tímido de quem
não sabe ao certo se está sendo bem-vinda. — Minha mãe também gostava. Ela dizia que flores eram como pessoas. Algumas são mais difíceis de cuidar, mas todas podem crescer se a gente tiver paciência. Regina olhou para Maria Clara e, por um momento, não soube o que dizer. Voltou a regar as plantas, mas aquelas palavras ficaram na sua mente por um tempo. Nos dias que seguiram, Regina começou a reparar em detalhes que antes ignorava. Ela viu Maria Clara ajudando na cozinha, mesmo quando ninguém pedia; observou como a menina dobrava cuidadosamente suas roupas ou passava horas organizando
os livros da biblioteca. Não era uma atitude de alguém que queria invadir um espaço, mas de alguém que queria pertencer a ele. Uma noite, enquanto Carlos estava fora em uma reunião, Regina encontrou Maria Clara na sala, sentada no sofá com o terço azul na mão. A menina parecia concentrada, os olhos fixos no objeto. — Por que você sempre carrega isso? — perguntou Regina, sentando-se no sofá oposto. Maria Clara olhou para ela, surpresa pela pergunta. Pensou por um momento antes de responder: — Minha mãe me deu antes de morrer. Ela disse que ia me proteger e
que eu nunca deveria esquecer que sou mais forte do que penso. Regina ficou em silêncio, observando Maria Clara. Havia algo na voz dela que fez Regina sentir um aperto no peito. Era um tipo de dor que ela conhecia bem: a dor de perder algo que se ama. — Deve ser importante para você — disse Regina, num tom mais suave do que o normal. — É. É a única coisa que me lembra dela, além da foto. Regina sentiu, ainda processando o que estava. Pela primeira vez, percebeu que Maria Clara não era apenas uma menina que tinha
aparecido para bagunçar sua vida. Era alguém que já tinha enfrentado mais sofrimento do que uma criança deveria enfrentar. A transformação de Regina começou a se tornar mais visível quando ela decidiu convidar Maria Clara para ajudá-la no jardim. Foi algo simples, mas significativo. — Quer me ajudar a plantar essas flores? — perguntou Regina, segurando uma pequena pá. Maria Clara arregalou os olhos, surpresa pelo convite. — Sério? Claro, quero sim! Enquanto cavavam a terra e colocavam as mudas no chão, Regina começou a falar mais sobre si mesma. Contou como sempre quis ter filhos, mas nunca conseguiu; falou
sobre as tentativas frustradas de adoção e como aquilo a fez se sentir insuficiente. — Não é que eu não goste de você, Maria Clara. É que tudo isso é difícil para mim. Eu demorei muito tempo para aceitar que não podia ser mãe, e quando finalmente aceitei, você apareceu. Foi como abrir uma ferida que eu achava que tinha fechado. Maria Clara ficou em silêncio, absorvendo aquelas palavras. Depois de um tempo, respondeu: — Eu não quero te machucar, só queria não me sentir sozinha. Regina parou por um momento, olhando para ela. Enxergou algo ali que nunca tinha
permitido a si mesma ver antes: uma criança que não queria tomar nada dela, mas que só precisava de um lugar para ser aceita. As mudanças continuaram em pequenos gestos. Regina começou a preparar o prato favorito de Maria Clara sem que ela pedisse. Passou a conversar com ela durante o jantar, perguntando sobre os livros que estava lendo ou os passeios que fazia com Carlos. Um dia, até levou Maria Clara para comprar roupas novas, algo que ela mesma sugeriu. — Você não pode andar por aí com essas roupas velhas — disse Regina, com um sorriso tímido. —
Vamos dar um jeito nisso. Maria Clara aceitou a oferta com gratidão, mas o que realmente marcou foi o jeito como Regina parecia mais aberta, menos rígida. Não era só o ato de comprar roupas; era a mensagem por trás disso. Regina estava tentando. O momento mais marcante desceu em uma noite tranquila, quando Maria Clara teve um pesadelo. Ela acordou chorando, assustada, e Regina foi a primeira a entrar no quarto. Sem dizer nada, sentou-se ao lado da cama e segurou a mão da menina até ela se acalmar. — Você está segura aqui — disse Regina, num tom
que Maria Clara nunca tinha ouvido antes. Naquele instante, Maria Clara percebeu que algo realmente tinha mudado. Regina não era mais apenas a mulher fria que havia como um problema. Ela estava começando a se tornar alguém em quem Maria Clara podia confiar. E Regina, pela primeira vez em muito tempo, começou a sentir que poderia ser uma mãe. Não do jeito que sempre imaginou, mas talvez de um jeito ainda mais especial. Era uma tarde tranquila e o sol entrava pelas grandes janelas da sala de estar, iluminando cada canto. Maria Clara estava sentada no sofá, com Regina ao
lado, enquanto Carlos lia alguns papéis no escritório. Alguns meses se passaram desde que a vida de todos havia mudado, mas agora a casa começava a parecer um lar de verdade. Maria Clara olhava para uma foto que tinha tirado recentemente; ela, Carlos e Regina juntos no jardim. Era estranho, mas pela primeira vez parecia natural. Ela tinha encontrado uma família, algo que pensava ser impossível. Mas mesmo com essa nova felicidade, havia uma pontada de preocupação em seu coração. Ela pensava em Joana e Pedro; desde que saíra das ruas, não parava de se perguntar como eles estavam, se
estavam bem, se ainda tinham com quem contar. Naquela tarde, ela não conseguiu segurar mais e decidiu falar: — Carlos, eu preciso conversar com você sobre uma coisa. Carlos olhou para ela, percebendo a seriedade em seu tom, e se aproximou, sentando-se ao lado. Regina, curiosa, ficou em silêncio esperando. — É sobre os meus amigos Joana e Pedro. Eles eram como minha família antes de eu vir para cá. Eles me ajudaram quando eu não tinha mais ninguém, e agora... agora eu fico pensando se eles estão bem — disse Maria Clara, com a voz embargada. Carlos olhou para
Regina e os dois pareciam entender que aquilo era importante para Maria Clara. — Você sabe onde eles estão? — perguntou Carlos, com um tom preocupado. — Eu acho que ainda estão por aí, nas ruas. Dona Laí me disse que eles ficam perto do abrigo. É difícil saber — Carlos suspirou, pensando no que fazer. Regina, que costumava ser mais relutante, colocou a mão no braço de Maria Clara. — Eles foram importantes para você. A gente devia tentar encontrá-los — disse ela, surpreendendo até a si mesma. No dia seguinte, Carlos usou todos os contatos que tinha para
procurar Joana e Pedro. Ligou para Dona Laí, visitou o abrigo comunitário e até pediu ajuda a alguns conhecidos na assistência social. Foram dias de busca, mas finalmente conseguiram uma pista: Joana e Pedro estavam no mesmo lugar onde Maria Clara os tinha deixado. Quando chegaram lá, Maria Clara avistou-os. Joana saía de uma loja fechada enquanto Pedro mexia em uma mochila rasgada. Quando viram Maria Clara, seus rostos se iluminaram. — Maria Clara! — gritou Joana, correndo para abraçá-la. — Você sumiu, princesinha! — brincou Pedro, mas havia um alívio genuíno na voz dele. Maria Clara explicou tudo o
que tinha acontecido: sobre o teste de DNA, sobre a mansão, sobre Carlos e Regina. Eles ouviram com atenção, surpresos e felizes por ela, mas ainda assim com um certo ceticismo. — E o que você veio fazer aqui? — perguntou Pedro. — Eu vim buscar vocês. Pedro riu, achando que era uma brincadeira, mas o olhar sério de Maria Clara fez ele parar. — Espera, você tá falando sério? — perguntou Joana, com os olhos arregalados. Maria Clara sentiu que seu pai queria falar com eles. Quando Joana e Pedro entraram na mansão, estavam visivelmente desconfortáveis. Olhavam para os
móveis caros e a decoração impecável, como se fossem de outro planeta. Carlos, no entanto, os recebeu com um sorriso caloroso. Regina, embora ainda parecesse um pouco nervosa, também fez questão de ser educada. Carlos conversou com eles por horas, ouvindo suas histórias, entendendo suas dificuldades. Ele viu nos dois algo que o tocou profundamente: a mesma resiliência que tinha visto em Maria Clara. Depois de um tempo, ele se virou para Regina, como se pedisse aprovação. Ela respirou fundo, pensando em tudo que tinham passado, mas ao olhar para os rostos de Joana e Pedro, algo mudou dentro dela.
Eles não eram apenas crianças sem rumo; eram amigos leais de Maria Clara que tinham feito o possível para protegê-la. — Acho que já sabemos o que precisamos fazer — disse Regina, finalmente, com um sorriso. Poucas semanas depois, tudo estava oficializado. Carlos e Regina adotaram Joana e Pedro, trazendo-os para a mansão. Foi uma mudança enorme para todos, mas pouco a pouco, a casa se encheu de risadas, brincadeiras e até algumas discussões bobas. Naquela noite de Natal, a casa estava mais cheia do que nunca. Maria Clara, Joana e Pedro ajudaram a decorar a árvore enquanto Regina preparava
a ceia. Carlos olhava para tudo aquilo, sentindo-se grato por ter escolhido dar uma chance à vida que nunca imaginou ter. — Agora sim somos uma família! — disse Maria Clara, abraçando Joana e Pedro. E pela primeira vez, Carlos e Regina sentiram que aquele Natal era realmente especial. A casa não estava mais vazia e seus corações também não. Ah! [Música]