Eu dizia, na quinta-feira depois de cinzas, que essa primeira parte do tempo da [Música] Quaresma se destina a [Música] nos levar a uma reforma interior através da palavra de Deus, das práticas quaresmais e assim por diante. Na sexta-feira, a liturgia nos convidava a falar sobre o jejum; hoje, a liturgia nos convida a falar sobre a esmola. É claro que, por esmola, nós não entendemos [Música] apenas o ato de dar um centavo para a pessoa que precisa.
Quando a Escritura fala de esmola, inclusive a palavra esmola, em hebraico, é justiça; ela está fazendo apelo a que nós nos sensibilizemos pela dor, pela carência que passa ao nosso lado e que nos toca todo dia. Notem que o Evangelho é a parábola do juízo final, que encerra o sermão escatológico de São Mateus, e é um dos textos mais incômodos do Evangelho, porque Jesus separa nitidamente duas classes de pessoas. Ele diz que o Rei colocará as ovelhas à sua direita e os cabritos à sua esquerda, e dirá aos que estiverem à sua direita: "Vinde, benditos de meu Pai, para o reino que está preparado para vós desde antes da fundação do mundo".
Aí você pensa: "Bom, o que ele vai dizer? " "Vós lestes a minha palavra e vós enchestes de unção, vós orastes por muito tempo, vós dedicastes a uma vida mortificada. " [Música] Não, ele diz: "Eu estava com fome e me destes de comer; com sede, e me destes de beber.
" Ele apresenta as obras de misericórdia corporais. Por que as obras de misericórdia corporais? Porque elas são as mais urgentes, no sentido de que uma pessoa que está morrendo de fome, morrendo de sede, que está doente, que está presa, que é estrangeira, que está nua, ela precisa de um cuidado imediato.
Seria hipocrisia simplesmente ignorar as suas necessidades e falar: "Não, vou pregar a palavra para essa pessoa. " Ok, ela precisa da pregação da palavra, mas eu tenho que ser sensível para entender que há uma necessidade emergencial mais profunda que, naquele momento, é justamente ajudá-la a não morrer. Ora, quando o Rei se dirige àqueles que estão à sua esquerda, diz: "Afastai-vos de mim, malditos, ide para o fogo eterno.
" Por quê? A gente pensa: "Não, você adulterou, você roubou dos outros, você matou; por isso você vai para o inferno. " E aí ele diz: "Eu estava com fome e não me destes de comer.
" Ou seja, eles são condenados não pelo que não fizeram de mal, mas pelo bem que omitiram. Nós, no início da Santa Missa, nos confessamos de ter pecado por pensamentos, palavras, atos e, em quarto lugar, pelas omissões. Mas é muito raro alguém, por exemplo, se confessar de ter omitido um socorro que poderia ter dado, uma ajuda humana, no sentido de que eu enxergo uma pessoa na minha frente, um ser humano de carne e osso.
Porque não se trata só, por exemplo, de dar uma esmola, mas de olhar dentro dos olhos daquela pessoa, de exercer para com ela um ato de amor. Não se trata só de cuidar de um doente e fazê-lo de maus modos, mas se trata de fazer com amor, com atenção, com carinho, com cuidado, com humanidade. Por que o Evangelho nos chama a essa conversão?
É porque ela é fundamental. Existe um tipo de catolicismo que é burguês e elitista, é limpinho; é um catolicismo de fachada. Então, a pessoa se contenta em receber os sacramentos, em ir à missa, em se confessar, às vezes, de coisas obsessivas, das suas orações, de rezar o terço, de fazer a Via Sacra, de ler as Escrituras, de fazer um tempo de meditação, e pronto.
Então, ela se sente quites com Deus porque cumpriu uma agenda de espiritualidade, rezou, recebeu os sacramentos, e depois é o seu trabalhinho, a sua "famíliazinha", aquela vida micro centrada nos próprios problemas. E é interessante como as pessoas vivem em função de si mesmas. Então, elas acordam cedo, vão para a academia, treinam, fazem a sua marmita, levam para o trabalho, trabalham no seu expediente, voltam para casa, talvez fazendo uma oração no carro, chegam de noite, descansam, e isso é tudo.
No final de semana, fazem as suas compras, visitam parentes, têm algum momento de divertimento, talvez uma missa ao domingo. Mas e aquilo que eu posso fazer de fato pelos outros? O que estou fazendo de fato de bem para os outros?
Isso também inclui as obras de misericórdia espirituais, porque veja: o que estou fazendo para evangelizar as pessoas? O que estou fazendo dentro da minha paróquia para levar o evangelho para o incrédulo, para o perdido? Tem tanto católico que perde tempo com polêmicas de internet, com apologética inútil, com ortodoxia morta, mas não está no chão da realidade, no chão da igreja, lidando com pessoas reais.
O drogado que precisa se converter, entender Jesus Cristo; a menina de conduta um pouco pervertida, ou o rapaz de hábitos completamente não recomendáveis; e pessoas que precisam da nossa ajuda material, até porque precisam mesmo de um socorro. Vejam, um cristão deveria pensar seriamente se ele não poderia se dedicar um dia da semana ao voluntariado, a trabalhos pastorais. Ou não?
Pode ser na Pastoral da Saúde, indo lá prestar serviços a um doente, e às vezes esse serviço que a gente presta não é nem algo extraordinário; às vezes, é limpar a casa de uma pessoa que precisa, que está lá numa situação deplorável. Nós temos que nos perguntar: como é que eu tenho tempo para tanta coisa, e eu não tenho tempo para uma obra de caridade? Todas as paróquias têm obras sociais, todas, ao menos em nossa diocese.
O que eu posso fazer para ajudar os outros? Isso é importante para nós, queridos irmãos, porque o homem moderno está enlouquecendo. E ele está enlouquecendo por quê?
Porque Ele vive. Dentro de um cubículo, a mente dele é uma espécie de gaiola pequeninha em que ele está. A vida dele, as preocupações dele, giram em torno de picuinhas, de mesquinharias; isso enlouquece.
Se você fica em casa o tempo todo, concentrado apenas naquilo ali e não consegue ampliar o seu horizonte, você vai enlouquecendo. Aí, ass tuchar de remédios. Agora você está deprimido, mas aí, uma vez por semana, você vai lá, vou trabalhar no orfanato, vou trabalhar com os idosos; temos um asilo aqui atrás, vou lá ajudar do jeito que eu puder.
E eu faço isso. Isso tem um poder de cura. Quantas pessoas deixam de ser doidas simplesmente fazendo algo pelo bem dos outros, porque elas percebem o sofrimento real e conseguem distinguir o sofrimento real do sofrimento imaginário!
Sofrimento imaginário é aquela pessoa que foi abandonada, sei lá, pelo namorado que era um canalha; aí ela chega para você e diz assim: “Ai, nossa, Deus me abandonou, eu estou com a maior dor do mundo”! Você olha e fala: “Meu Deus do céu, né? Vai numa casa de crianças carentes.
” Aí você chega lá e vê aquelas crianças felizes, sendo cuidadas por outras pessoas que também não estão ali de mal grado, estão bem. Aí você olha pra sua própria vida e percebe que você é uma droga, porque está o tempo todo concentrado em si mesmo, no seu trabalhinho, na sua familinha, nas suas coisinhas, nas suas microloucuras, nas suas manias, nas suas mesquinharias. Esse é o catolicismo burguês que eu acuso, que o evangelho acusa, que vai criando gente doida, maníaca, com mania de uma coisinha, de outra, não sei o quê.
Manias religiosas. . .
Aí fica com escrúpulo: “Ai, por que será que eu fiz isso? Será que eu pequei aqui? ” Seu filho.
. . esquece isso; vai lá, varre um pátio, vai na sua paróquia e diz assim: “Nossos banheiros estão sujos, não tem ninguém para lavar.
Vou lavar. Eu vou lavar os banheiros. ” Veja como isso vai te trazer um senso de realidade, para que você saia dessa cabeça oca, que é um cérebro de mosquito, que a cada dia vai se tornando pior.
Agora, vejam: as obras de caridade não devem ser feitas por essa razão. Esse é um efeito colateral das obras de misericórdia. As obras de misericórdia devem ser feitas por amor, e por um amor que nasce de dentro de um coração bondoso.
Um dos versículos que mais escandalizam nesse texto é justamente quando o Senhor diz: “Eu estava com fome, me deixaste de comer; estava com sede, me deixaste de beber”, etc. Então os justos lhe perguntarão: “Senhor, quando foi que te vimos com fome e te demos de comer? ” É uma pergunta desconcertante, porque ela demonstra uma ignorância.
Como é que essas pessoas estão fazendo obras de misericórdia e não percebem que estão fazendo-as para o Senhor? É muito simples, é porque, assim como da macieira brota maçã, do homem bondoso brota bondade. Não é algo extraordinário que ele faz de maneira autoproclamada.
Aliás, Jesus diz: “Quando deres esmola, não faças como os fariseus, os hipócritas, que tocam a trombeta diante de si, que chegam ostentando: ‘Oh, meu filho pobre! ’” E aí você vai lá: “Aqui está o meu pobre, vou ajudá-lo. ” Não, que a tua mão direita não saiba o que a esquerda faz; seja discreto.
Essa descrição não se refere a uma descrição de tipo artificial, é a descrição própria de quem não está fazendo nada de extraordinário, de quem faz aquilo com a naturalidade de algo normal, porque aquilo pertence ao seu coração, à sua vida, à sua natureza que está regenerada. É aí que nós vemos quem realmente pratica misericórdia e quem é só um filantropo, alguém que faz um trabalho social talvez até para se orgulhar disso, para aparecer na televisão, ou para ser premiado, ou para ser louvado pelos outros. Acerca disso, o Senhor disse muito claramente: “Eles já receberam a sua recompensa, não serão premiados no céu por causa disso.
” O evangelho é claro, não deixa espaço para dúvidas. Mas quando você tem a simplicidade de chegar para um mendigo, ao invés de o mendigo chegar para você te pedir alguma coisa, e você simplesmente dar para ele: “Qual é o teu nome? Nossa, você está fazendo o que aqui?
Poxa vida, eu vou te comprar um negócio, vamos comer juntos. ” Você olha para aquela pessoa, você é capaz de abraçá-la. Você não tem aquele tipo de atitude erroneamente asséptica para um cristão que é de ter nojo dos outros.
O cristão não deveria ter isso. É aquela famosa cena de São Francisco Xavier, que eu já comentei várias vezes aqui, que ele tinha nojinho. Então ele foi lá no leproso e chupou a ferida do leproso.
Aí o nojinho foi embora. Então você vai naquele lugar fedido, e você diz: “Eu estou no céu”, e faz aquilo com todo o amor, como se você estivesse diante do sacrário adorando a Cristo. Esta é a obra de caridade, misericórdia, que o Senhor espera de nós.
Aí eu quero subir à sétima morada, bonito, né? Quero subir à montanha do Monte Carmelo, fazendo o quê pelos outros? Nada, só buscando a minha vaidade espiritual.
Então vou rezar, vou fazer minhas mortificações e vou falar muito mal dos hereges, muito mal das pessoas que estão de fora. Vou ficar o tempo todo com dedo em riste julgando o mundo inteiro. Despeça-se da santidade.
Nenhum santo nunca se santificou assim. Se a santidade é a perfeição na caridade, ela existe em nós. Caridade heroica e caridade heroica significam ajudar até o fim, como fez o Bom Samaritano: colocar o semimorto na própria montaria, cuidar da ferida, passar primeiro o óleo para não doer, depois passar o vinho, depois cuidar lá na hospedaria, na estalagem, pagar por aquilo, ainda dizer que vai pagar mais quando voltar.
É assim a obra. De caridade feita até o fim, quando eu era jovem, jovem é tudo lascado, né? Então, a gente vive de carona.
Eu também vivia de carona e tinha uma pessoa que dava carona até uns dois quarteirões acima. Tipo, tarde da noite, eu pensava comigo: "Nossa, por que que não me leva até lá, né? " Mas tudo bem, a gente faz o educado e pronto, aceita.
Mas eu tenho horror a isso: aquelas pessoas que se sentem sempre abusadas. Não, ai, não quero que abusem de mim, não quero que peguem do que é meu. Não quero, não, não, não.
Ai, fulaninho já tá querendo olhar, tá querendo ajuda demais. Não, todo mundo muito folgadinho. Eu tenho que me preservar, porque os outros são folgados.
Menos, menos! Batista, você precisa ser caridoso. Se é para ajudar, ajuda até o fim, não paga o mico de ficar deixando os outros no meio do caminho.
É feio, não ajuda pela metade. Não seja aquela pessoa que faz assim: "Ah, pera aí, vou fulano. .
. Ah, não deu certo, pronto, acabou. " Não tem a bondade de ajudar mesmo de verdade, não ajudar por cima, assim, como quem não se mistura com a coisa.
O problema não é meu. Tem gente muito egoísta que pensa assim: "Ah, o outro não estudou, o problema é dele. " Poxa, eu posso ajudar aquela pessoa, eu vou ajudar.
Tem uma coisa que ao longo da vida, como jovem, eu aprendi: o melhor jeito de aprender é ensinar. Então, eu era muito bom em matemática quando eu estava no. .
. então, a gente chamava de ginásio, colegial, etc. E o que eu fazia?
Meus colegas, às vezes, não conseguiam entender nada daquilo, ficavam boiando, perdidos entre os números. Então, eu ensinei, sempre ensinei, sempre ensinei. Algumas pessoas dizem: "Nossa, mas que besteira você gastar tempo com os outros, deixa eles estudarem, eles que aprendam sozinhos.
" O problema é o seguinte: se a gente pensa assim, não tem como avançar. Eu não posso pensar apenas em mim, eu não posso me encerrar em mim mesmo. Esse é o problema: a gente cria problema na cabeça porque não lida com um problema real.
Sai um pouco de você, é quaresma, trate de feridas reais, busque pessoas que estão sofrendo de verdade, não esse sofrimento retórico. Quem tá fazendo sofrimento real? E aí, depois, a gente vai falar sobre espiritualidade.
Enquanto isso, é teatro. A espiritualidade verdadeira segue o critério que nos aponta as Escrituras. A fé sem obras é morta, fé sem virtude é invertebrada.
Não pare em pé, que o Senhor nos leve por caminhos de uma autêntica caridade.