Durante toda a Idade Média, a questão da autoridade é inegável. Quando existe uma autoridade em algum ramo do conhecimento, seja na filosofia, ciências, teologia, retórica, lógica, ou em qualquer uma das outras Artes liberais, essa autoridade é indiscutível até que se prove o contrário. Essa visão pode nos parecer um tanto quanto alheia à nossa vida, já que nós somos educados sempre para criticarmos e olharmos tudo com os dois pés atrás.
Não é tudo aquilo que nós lemos. Nós somos educados a ler com espírito crítico e tantas outras coisas. Ah, isso não realmente não acontece na Idade Média.
Na Idade Média, quando se toma uma autoridade, quando a própria tradição impõe a autoridade de algum autor, aquilo é aprendido sempre como algo indiscutível até que se prove o contrário. Sim, mas primeiro aquilo precisa ser assimilado de forma indiscutível. Por que a Terra é o centro do universo e os sete planetas giram em torno dela?
Por Ptolomeu disse, e até então nunca ninguém havia provado o contrário. Quando surge uma outra teoria, um outro sistema, uma aproximação maior da realidade, isso deve ser, aos poucos, discutido. Isso sim é a novidade que precisa ser discutida.
Isso pode ser que leve muitíssimos séculos então, ao passo que, por exemplo, o sistema de Ptolomeu, geocêntrico, fica indiscutido por muitos séculos, podemos dizer, mais de um milênio e meio praticamente, é porque ele funcionava. Ele funcionava para questões bastante mecânicas; era possível navegar com aquele sistema, era possível montar calendários, contar o tempo com aquele sistema. Logo, ele não precisava ser discutido.
Mas ele não assume o caráter de dogma; isso nunca. A questão é que Ptolomeu é uma autoridade, e essa autoridade não será discutida, isso para a astronomia. Quando nós falamos das outras artes e nós tomamos, por exemplo, a gramática do Hélio Donato, do Priano, depois os textos que escreveram um São Bonifácio, por exemplo, um Alcino de York, isso também passa a ser a regra.
Eles ganham, através da tradição, uma autoridade que só será refutável se houver motivo para tanto. Enquanto as pessoas conseguem aprender gramática com aqueles textos, está tudo bem. No momento em que aquilo não for mais possível, ou outra coisa, aí vai se propor uma nova didática, uma nova metodologia, inclusive uma nova nomenclatura para as questões gramaticais.
Tudo isso também baseado no fato de que, ao longo de toda a Idade Média e no Renascimento, o latim é a língua oficial. O latim é a língua de cultura e o latim não muda. Não há um outro uso do latim que possa ser feito sem prejuízo.
Então, a autoridade de Cícero, no estilo de prosa; a autoridade de Virgílio no verso e Horácio, por exemplo, ela é e não será questionada. Ela só será questionada quando não se escrever mais em latim. Mas, até hoje, se nós queremos escrever em latim, nós vamos ter essa relação com a autoridade, com esses grandes mestres.
Quando nós tomamos um material introdutório, como é as Núpcias de Filologia e Mercúrio, como autoridade, vejam que tudo que se tratar das artes ali e das alegorias, tudo isso é aceito. Durante toda a Idade Média, é o material mais divulgado. Não é a obra de Marciano Capela, que ainda é da Antiguidade.
Marciano Capela é conhecido como o último pagão. Isso tudo é irrefutável e continua sendo por muito tempo. Quando nós tomamos, quando surge a obra de um Pedro Hispano, o próprio Guilherme de Ockham sobre a lógica, aquilo é incorporado dentro da tradição.
E por que essas obras foram escritas? Bem, justamente porque se observava uma falha, uma certa deficiência que havia nas obras dos autores anteriores. E aí eles precisam ser melhorados ou ser novamente explicados.
Se nós olharmos a produção intelectual da Idade Média por escrito, ela realmente é pequena comparada com outras épocas da humanidade, principalmente com a nossa, onde toda pessoa que frequenta uma universidade, uma escola, acaba produzindo coisas. Hoje em dia, a cada segundo, um livro é publicado no mundo, com novas ideias, com outras coisas. Isso é totalmente impensável na Idade Média por questões materiais, inclusive papel e tinta são caros, mas também por uma forma de encarar a cultura, que é essa forma de respeito à autoridade.
Se o Mugo de São Vítor organiza todos os estudos de tal forma, com um profundo conhecimento antropológico, ele o faz porque ele realmente percebia que o que existia antes, para a organização do conhecimento, para a própria epistemologia, para a organização de um currículo e de um programa de estudos, era insuficiente. Mas até então era o que se seguia e que vinha dando bastante certo. A partir de São Vítor, nós temos uma reformulação toda na vida de estudos e da própria organização de todas as disciplinas, que vai culminar na fundação da universidade, no surgimento dessa instituição como nós a conhecemos no Ocidente.
Então, o que nós temos para aprender com os mestres de artes liberais medievais, não é desses que eu citei aqui, um Alcino de York, por exemplo. É justamente o respeito a essa autoridade. Nós aqui no Instituto Hugo de São Vítor não estudamos apenas manuais de gramática de uma certa época, só estudamos a retórica que era ensinada por Quintiliano, porque essa que é a mais tradicional.
Não é bem por aí. Agora, a atitude de respeito para com esses autores todos é indispensável. E ela é um dos grandes problemas na atualidade.
No momento em que eu leio um texto qualquer, que eu sim reconheço que existe um autor, mas eu não lhe atribuo autoridade, não é? É a mesma coisa que não considerá-lo um autor. Autoridade vem de autor, e o respeito que eu devo a esse autor, o respeito que eu devo a esse texto, é fundamental para que eu o compreenda.
É fundamental para que eu, aí sim, depois de muita meditação, depois de muita contemplação, eu possa ver se aquilo corresponde ao estado atual da ciência, ao estado atual do conhecimento, ou se aquilo. . .
Ou quais são os erros ali presentes, quais são os problemas que nós encontramos nisso tudo. E bem, se falarmos. .
. Se formos estudar realmente o TRV somente pela obra de Alcino de Or, nós não vamos muito longe. É um material excelente, não é?
Aqueles diálogos entre Alcuino, com o seu pseudônimo de Flaco, né? Ele, como poeta, e Carlos Magno, com seu pseudônimo de Davi, por ser o rei, o que demonstra já esse aspecto lúdico da sala de aula, do ambiente pedagógico, isso no século IX. Imaginemos, não é?
Numa sala de aula onde existe essa interpretação, esse jogo de personagens. Ali, naquele momento de verdadeiro ócio, nós vamos aprender muita coisa. Muitas coisas deste gênero, nós vamos aprender uma série de definições que realmente são muitíssimo úteis.
Mas eu tenho certeza: ninguém vai aprender a gramática latina e muito menos a falar latim somente pela gramática do Alcuino, e nem vai aprender toda a dialética, toda a lógica com a dialética do Alcuino ou de retórica do Alcuino. Ninguém vai aprender toda a matemática estudando Nicômaco de Gerasa, com a exceção, talvez, de Euclides, que toda essa geometria euclidiana. .
. Euclides ainda é a única fonte, porque ele esgotou todas as possibilidades de estudo. Ali há alguma coisa ou outra que são acréscimos, são novas interpretações, reformulações, mas a base mesmo são os Elementos, isso que vem da antiguidade com Nicômaco de Gerasa, Euclides ou com Aristóteles, com Quintiliano.
Isso, durante a Idade Média, é muito respeitado, né? Nos lembremos que não se tinha toda a obra de Platão disponível. Era um diálogo que realmente circulava nas escolas medievais.
Não se tinha quase nada de Aristóteles; talvez se conhecesse Aristóteles através, por muitos séculos, né, através de um texto atribuído a Santo Agostinho sobre as categorias, que servia de elemento propedêutico para a lógica. O que existia eram as fontes de autores que precisavam ser preservados. A maior parte do esforço da Idade Média é um esforço de manutenção do conhecimento antigo.
Se por muitas vezes nós não percebemos avanço ao estudar a história da cultura medieval, no avanço no campo da ciência ou mesmo da filosofia, é porque não havia tempo para tanto. Os livros corriam o risco de se perderem; as invasões, incêndios nas bibliotecas eram constantes. E era necessário que muita gente aprendesse a ler e conhecer aqueles textos para que eles não se perdessem, que muita gente fizesse cópia, uma cópia fiel, fidedigna, daqueles textos para que aquilo não se perdesse.
E, tendo todo esse trabalho, sobrava por vezes pouco tempo para se dedicar a coisas novas. Quantas vezes podemos usar a nossa imaginação, mas quantas vezes estudiosos medievais não se depararam com erros dentro de obras importantes do pensamento humano? Mas, por uma questão de obediência, de disciplina, e uma questão vital para a cultura, não puderam se debruçar sobre aquele erro para corrigi-lo, refutá-lo, ou seja lá o que for, porque estavam realmente com pressa.
E a Idade Média toda se passa nesse ambiente de pressa, num ambiente onde as coisas não podem morrer. Mas o respeito à autoridade que nós enxergamos ali, e que durante o Renascimento passa a ser inclusive mais intenso com relação às obras da antiguidade, e que a partir do Iluminismo simplesmente desaparece, esse respeito, o Iluminismo justamente tem como ponto de partida que os antigos estão equivocados, que essas coisas são velhas e que hoje em dia nós precisamos redefini-las, reformá-las e praticamente partir do zero na pesquisa, no desenvolvimento cultural, científico, filosófico. Se não é de todo consciente, pelo menos é isso que nós enxergamos acontecer.
Não havia motivo nenhum para Kant ter proposto a si mesmo tantas questões que já haviam sido resolvidas, e o fato dele não ter tido acesso, ou pelo menos, ou não ter tido vontade de se debruçar sobre esses problemas fez com que ele cometesse certos erros que não seriam cometidos se se tratasse de um homem com respeito, como eram os mestres da Idade Média. E isso nós vemos acontecer antes de Kant, com Descartes, por exemplo, com o próprio Pascal, que parece alguém muito mais bem-intencionado. Isso acontece sobremaneira na França, com um Diderot ou um Voltaire, que a todo parágrafo, toda frase, praticamente estão desdenhando a autoridade, seja lá de quem for.
E bem, se isso traz contribuições ao pensamento, é muito difícil de encontrar. É muito difícil que nós encontremos essas contribuições. O pensamento ocidental sempre se desenvolveu através do respeito à autoridade dos grandes autores, do respeito aos clássicos.
Se tu tens algo para refutar, ótimo, está tudo bem; ninguém disse que eles são irrefutáveis e perfeitos, mas isso tu precisas fazer depois de conseguir respeitar.