Queridos irmãos, continuamos a nossa leitura do livro do Gênesis, a sequência do segundo relato da criação. O texto diz: "A serpente era o mais astuto de todos os animais dos campos que o Senhor Deus tinha feito". É muito interessante esse primeiro versículo.
Todos nós já sabemos que a serpente, no relato do capítulo 3 do livro do Gênesis, personifica o tentador. Nós já também sabemos, pelos comentários que fizemos há dois dias, que esses textos foram escritos com um interesse catequético muito forte pelos sacerdotes de Jerusalém, que queriam, de alguma maneira, coibir a idolatria no culto dos habitantes do campo, daquele campesinato que estava em torno de Judá. Ora, por que utilizar a serpente como imagem do mal, imagem da tentação?
Se a gente faz um percurso pelas escrituras, a gente percebe umas coisas bastante interessantes. Por exemplo, nós lemos em Segunda Reis, no capítulo 18, logo no começo do capítulo, o seguinte: "No terceiro ano de Oséias, filho de Elá, rei de Israel, começou a reinar Ezequias, filho de Acaz, rei de Judá. " Ezequias é um rei que vai fazer uma grande reforma religiosa em Jerusalém.
Uma primeira tentativa de reforma religiosa ele fez. O que é reto aos olhos de Javé, conforme tudo que fizera Davi, seu pai. Destruiu os lugares altos.
Os lugares altos eram pequenos acidentes, pequenas colinas feitas de propósito, nas quais se colocavam esses troncos. Aqui diz: "Destruiu os lugares altos e destroçou os pilares". Esses pilares, esses postes, eram postes de adoração a Baal, porque Baal era entendido como Deus da fertilidade.
Então, como é que eles realizavam um culto de fertilidade? Tomavam aquele poste, que era uma imagem do membro viril de Baal, e passavam pela terra como se Baal estivesse fecundando a terra com a sua semente. Então, destruiu os lugares altos, destroçou os pilares, derrubou postes sagrados e despedaçou a serpente de bronze feita por Moisés, pois os filhos de Israel ainda queimavam-lhe incenso.
Chamava-se Neustã. Vejam que a tradução não deixa claro um outro elemento que está presente no texto hebraico: quando fala de "destroçou os pilares", aparece a figura de uma deusa muito venerada naquele território, chamada Aserá, que era a esposa de Baal. Então, Josias destrói.
Josias, Ezequias, destrói o quê? A serpente de bronze. O nome "Neustã" simplesmente diz que um objeto é de bronze, como se algo de bronze, porque a serpente era de bronze.
Ora, que os israelitas adoravam dentro do templo, essa serpente, essa serpente de bronze que Moisés, segundo o texto, teria feito lá no deserto. Se a gente pega o texto e vai em Números, no capítulo 21, ali aparece o relato e, no relato, a partir do versículo 4, nós encontramos essa situação: o povo blasfema contra Deus. Então, no versículo 6, Javé mandou contra o povo serpentes venenosas que os mordiam, e muitos do povo de Israel morreram.
O povo foi até Moisés e disse: "Pecamos, falando contra Javé e contra ti. Roga que afaste de nós as serpentes. " Então, Moisés orou pelo povo.
Javé disse a Moisés: "Faz uma serpente ardente e coloca sobre uma haste. Todo que for mordido, mas olhar para ela, ficará com vida. " Essa expressão "serpente ardente" não é a mesma expressão para "serpente".
É um tipo de serpente que aqui é chamada de "saraf", o plural de "saraf", "serafim". Agora, quando nós vamos ao capítulo 14 de Isaías, essa mesma expressão aparece aqui no versículo 28-29: "Aliás, não te alegres, filisteia toda, por ter se quebrado o bastão que te feria, pois da raiz da cobra sairá uma víbora, e a sua descendência é uma saraf, uma serpente voadora. " Então, essas "saraf", esses "serafim", têm asas.
Serpentes com asas, serpentes aladas. Nós vemos a mesma expressão ainda em Isaías, no capítulo 30, versículo 6. O texto diz: "Por uma terra de aflição e de angústia, da leoa e do leão que ruge, da víbora e da saraf voadora.
" O texto aqui traduz como "dragão", mas é "saraf", a serpente voadora. Estão levando em lombo de mula suas riquezas, etc. , etc.
Ou seja, nós estamos falando de serpentes que, na compreensão mitológica daqueles povos, eram serpentes aladas que tinham poderes curativos. A serpente era venerada na antiguidade por supostos efeitos curativos. Todos conhecem, todos sabem disso.
Porque, como a serpente troca de pele, ela acaba sendo um sinal da vida que se regenera. E o bronze, por ser um tipo de metal que, na compreensão daqueles povos, tirava aquilo que estivesse ruim no corpo, torna a veneração de uma serpente alada, de uma serpente que é considerada um animal alto, muito compreensível. Ou seja, aquelas populações adoravam, de fato, a serpente, adoravam esse deus, esse ídolo em que eles acreditavam que tinha o poder de curá-los.
Quando nós entendemos essas coisas, o texto do Gênesis passa a fazer mais sentido. Por exemplo, nós leremos amanhã, e já vou adiantar aqui: quando Deus diz à serpente: "Rastejarás sobre o ventre e comerás pó todos os dias da tua vida", quando você entende que, na compreensão dessas pessoas, a serpente tinha asas, então o fato de ela perder as asas a faz rastejar pelo chão como um castigo divino. Mas você tem que pressupor a ideia que pairava na cabeça daquelas pessoas de que a serpente era alada, era um deus, um falso deus, e um deus astuto, um deus de cura que todo mundo queria, no fundo, os seus poderes, a sua força, para se ver livre do mal, do contágio.
A serpente disse à mulher: "É verdade que Deus vos disse: Não comereis de nenhuma das árvores do jardim? " Ou seja, a impressão que dá é que ela está jogando um verde, né? No sentido assim, não sabe qual é a árvore.
É verdade que Deus vos disse: "não comereis de nenhuma das árvores do Jardim"? E a mulher respondeu à serpente: "Do fruto das árvores do Jardim nós podemos comer, mas do fruto da árvore que está no meio do Jardim, Deus nos disse: 'não comais dele, nem sequer toqueis, do contrário, morrereis'". Há um detalhe aqui que contrasta com o que nós lemos anteriormente, anteontem, no versículo 16 do capítulo 2.
Deus diz a Adão: "Podes comer de todas as árvores do Jardim, mas não comas da árvore do conhecimento do bem e do mal". Ah, só que no versículo diz que o Senhor Deus fez brotar da terra toda sorte de árvores, de aspecto atraente e de fruto saboroso ao paladar: a Árvore da Vida no meio do Jardim e a árvore do conhecimento do bem e do mal. Então, a árvore da vida parece que está no meio do Jardim, enquanto que a árvore do conhecimento do bem e do mal está na periferia do Jardim.
Só que, quando a gente vai para o versículo — no versículo 3, a mulher responde à serpente, versículo 2: "Do fruto das árvores do Jardim nós podemos comer, mas do fruto da árvore que está no meio do Jardim, Deus nos disse: 'não comais dele, nem sequer o toqueis, do contrário, morrereis'". Mas o texto tinha dito que a Árvore da Vida estava no meio do Jardim. Agora parece que trocou: a árvore da vida foi para a periferia do Jardim e a árvore do conhecimento do bem e do mal foi para o meio do Jardim.
Será que o leitor, aliás, o escritor, imagina que a gente é desatento ou há uma intenção aqui nesse texto? Por exemplo, quando Deus diz a Adão, no capítulo 2, ele não tinha criado a mulher ainda. Ou seja, será que a mulher sabia qual era a árvore dentro da lógica do relato?
Ou o que o autor está querendo nos dizer é que o centro não é fixo? O que ele entende por centro é a posição em que cada um está. Nós sabemos.
. . São perguntas que o texto nos permite fazer.
A serpente disse à mulher: "Não, vós não morrereis, mas Deus sabe que no dia em que dele comerdes, vossos olhos se abrirão e vós sereis como Deus, conhecendo o que é bom e o que é mal". Ou seja, há um conhecimento oculto, há um conhecimento escondido, há um conhecimento esotérico que Deus está querendo tirar de vocês. Ele não quer que vocês saibam, porque na hora que vocês souberem, vocês serão como Ele.
Vejam como, quando a gente analisa as coisas com um pouco mais de atenção, o relato ganha sentido. Quando uma leitura apressada, por exemplo, não consegue perceber que aqui já estamos num contexto deol e de feitiçaria, com algo que está na vida campestre, com uma serpente sibilante, com uma sugestão, como alguém que joga um verde. A mulher viu que seria bom comer da árvore, pois era atraente para os olhos e desejável para obter conhecimento, e colheu um fruto, comeu e deu também ao marido que estava com ela, e ele comeu.
Então, aqui o texto já deixa claro que Adão estava com ela. Ela serviu o fruto, não se diz que fruto era. Tem essa fixação com a maçã, que todo mundo enxerga maçã aqui, e não tem nada de maçã aqui no meio.
Nada, nada, nada. É que, em outras línguas, maçã se chama "mela". Então, a palavra parece "malo", parece que parece "mela" com "mal", "mal", "mala".
Não tem maçã nenhuma. O fruto pode ser uma jaca, pode ser uma ciguela, eu não sei o que era. O texto não está dizendo isso.
Deu ao marido. Então, os olhos dos dois se abriram e, vendo que estavam nus, ou seja, entrou a malícia. Os olhos se abriram para fora, mas a malícia entrou no seu coração.
Eles desceram tangas para si com folhas de figueira. Veja bem esse detalhe. Nós temos que guardar, porque quando o homem peca, ele se sente flagrado pelo olhar de Deus.
E o que ele faz? Ele tem que se cobrir, ele tem que se esconder. Mais ou menos o que acontece conosco, né?
Digamos assim, que nós sejamos pegos no flagra fazendo alguma coisa que não deveríamos fazer, né? Eu me lembro, quando era criança, que uma vez uma tia minha. .
. estava todo mundo dormindo, e ela foi bem devagarzinho na cozinha pegar um pedaço de pudim escondido. E aí eu levantei e peguei ela no flagra, né?
Ela se escondeu, ficou com medo. É o que a gente faz: a gente quer se esconder, a gente se oculta. O problema é que o texto aqui vai colocar, ele está colocando em questão o tempo todo a realidade agrícola daquela gente.
Figueira. A figueira não é capaz de cobrir, as folhas não são capazes de cobrir. Você não vai conseguir ser coberto.
Isso vai ficar mais claro na medida em que o relato progride. Quando ouviram a voz de Yavé Lorim, que passeava pelo Jardim à brisa da tarde, Adão e sua mulher esconderam-se do Senhor Deus no meio das árvores do Jardim. Eles tentaram se camuflar entre as árvores, né?
Estavam cobertos com folhas, viraram árvores. A cena chega a ser engraçada: o pessoal que fala, né? Finge que você é uma árvore.
Pois foram os primeiros a incorporar esse tipo de estratégia de camuflagem, né? Então, vejam, a leitura do texto abre para nós janelas, né? Portais de compreensão.
Nós começamos a ver, por exemplo, que aquilo que aqui se apresenta como mal, como sugestão de acesso a. . .
Um conhecimento oculto e sinistro que abre os olhos, mas ao mesmo tempo traz culpa e vergonha, justamente por ser oculto e sinistro, é um jogo que nós precisamos aprender a dominar. No livro do Gênesis, essa imagem vai aparecer em outras passagens. Nós, amanhã, vamos dar continuidade a essa leitura, mas, depois, por exemplo, na segunda-feira, eu não sei se tem alguma festa litúrgica; mas, se não tiver, nós vamos ler o Capítulo 4 do livro do Gênesis.
Deus confronta Caim e diz: "Por que estás cheio de cólera e andas com o rosto abatido? É verdade que, se fizeres o bem, andarás de cabeça erguida; mas, se fizeres o mal, o pecado estará à tua porta, espreitando. Tu, porém, poderás dominá-lo.
" Ou seja, o pecado é apresentado como um ente vivo, uma espécie de serpente que está escondida, pronta para dar o bote. Ou seja, Deus não tem nada a esconder de ninguém. O conhecimento que nós temos pela Sua Palavra, o conhecimento que nos vem pela fé, nos ilumina, nos dá força para vivermos dia a dia.
Nós não necessitamos de nenhuma força sinistra que nos ajude. O Senhor nos sustenta desde dentro e nos faz caminhar, buscando sempre a cobertura verdadeira, que é aquela que vem da Sua graça. Que Deus nos ajude e, então, nós também andaremos sempre alertas, ao invés de estarmos seduzidos pelo primeiro conhecimento oculto que promete desvendar para nós uma fonte de poder que não é aquela que nos é garantida pela Palavra de Deus, na pessoa do Espírito Santo.