Você já leu a metamorfose de Cafca? E aí, o que é que você achou? Gostou?
Não gostou? Achou super estimado? Não entendeuas?
E se não leu também não tem problema. A ideia desse vídeo é servir para qualquer público. É um vídeo democrático.
Então, se você leu a obra, com certeza vai ser muito interessante para você. E se não leu, você vai ter a oportunidade de entender a grandeza de um verdadeiro clássico da literatura moderna. Por isso, convido logo a se acomodar bem no sofá, que a conversa de hoje é sobre a metamorfose de Franz Cafk.
Olá amigos, espero que estejam bem, que nosso Senhor nos abençoe. Eu sou o Rodrigo Leão, sou professor e aqui nesse canal falamos de qualquer coisa, desde que tenhamos um bom livro. Aqui no canal eu tenho uma playlist dedicada exclusivamente à literatura.
Nesses vídeos, em geral, eu faço análises bem completas, detalhadas, de um único aspecto de uma obra literária. Costuma ser uma leitura, uma crítica bem específica, voltada para uma determinada face, para um determinado aspecto, para uma determinada possibilidade no campo de significação daquele livro. Porém, eu percebi que esse tipo de conteúdo, ao mesmo tempo que ele tem seu valor, sua importância, que eu gosto muito de fazer, ele também tem sua limitação, é que a gente tem que reconhecer que boa parte dos brasileiros não têm o hábito da leitura.
E se meu propósito ou um dos meus propósitos com esse canal é incentivar ainda mais a prática da leitura nas pessoas, fazer esse tipo de material que fica mais restrito apenas a quem já leu a obra ou quem tem o hábito da leitura ou entende a sua importância acaba sendo excludente. Então, a ideia agora é a gente fazer mais vídeos sobre obras literárias, abordando a integridade obra do livro, tentando falar o máximo possível do autor, do contexto, do enredo. E enquanto a gente vai falando do enredo, vai tentando arrancar um outro aspecto mais evidente daquela daquele trabalho, mostrando para você e para qualquer outro que caia de para-quedas nesse tipo de material, o quanto pode ser fascinante experimentar a literatura, porque eu acho, do fundo do meu coração, que as pessoas que não gostam de ler estão perdendo um aspecto fascinante da existência.
Claro e evidente que nós vamos continuar fazendo outro tipo de material. Muitas vezes até possível que a gente pegue o mesmo livro e faça dois tipos de vídeo, um como esse, mais aberto, mais focado em discutir a totalidade da obra. E façamos também um vídeo mais voltado para uma análise mais minuciosa, detalhada, apurada, com um roteiro muito mais trabalhado, com edição mais sofisticada.
Esse tipo de material você não vai encontrar fácil no YouTube. Pode até ser que exista, já que é uma possibilidade imensa, é uma infinidade de conteúdos que tem na internet, graças ao bom Deus. Mas é muito difícil achar dessa forma.
uma aula de fato em que a gente vai discutir a obra em seus diversos aspectos. Se você gosta de mais materiais assim, de forma mais ampla, comentando a totalidade de uma obra, já vai deixando seu like e comentando Quero Mais que aí eu vou tendo uma noção se tá funcionando ou não. E antes que você fique preocupado se não leu a obra e etc, lembre-se sempre disso.
A obra literária, assim como Um Bom Filme, ela é completamente independente de spoiler, de qualquer surpresa que você seja tomado no meio do caminho. São raras as exceções de ficções em que você realmente tem a sua experiência prejudicada. Se você sabe um detalhe da história, o importante não é o que acontece, mas como acontece, como isso é desenvolvido, como isso é desenrolado.
Então não, não precisa ter essa preocupação. Aproveita o momento. Se você não é leitor, se você nunca leu essa obra, ou se você não tem sequer o hábito da leitura, aproveite para escutar sobre um livro, entender o que é que as pessoas se fascinam tanto nesse hábito que parece tão cansativo e que mesmo assim as pessoas continuam se dedicando a ele.
Antes de investigar qualquer livro, a crítica tem uma mania de se debruçar sobre a vida de um autor. E a justificativa para isso, ela é bem simples, é que conforme o sujeito vai passeando pela existência, mais das suas experiências vão tomando conta da sua produção. É um processo completamente natural.
Acontece com muita gente. Com os mais, com uns vai acontecer bem mais do que isso, com outros acontece menos. Mas no caso de Kafka isso acontece bem mais, muito mais.
Mais mesmo. Sim. bastante.
Dá para destacar inclusive as fotografias do sujeito. É sério, olha isso aqui. Olha a cara do rapaz.
Não parece. Independente se você já leu, se você conhece a obra dele ou não, você não tem uma noção que vai ler alguma coisa muito estranha, muito esquisita, porque é isso que passa essa foto dele. E não adianta nem negar isso, porque o mercado editorial já sabe e se apropriou completamente dessa imagem.
Essa aqui é a edição da LPM Pocket. Atualmente eu vejo pouco dessas edições, mas antigamente isso aqui fazia um sucesso absurdo, principalmente em banca de jornal, vendia baratinho. Deixa eu ver se tem o preço aqui da capa.
Geralmente vinha com preço, inclusive era um negócio muito barato, era fácil de adquirir e eu não tenho visto mais, não tanto, pelo menos lançamentos novos. Essa edição aqui é mais recente, a edição da Novo Século. E como volme eu dizia, olha aqui, ó.
Olha a cara do indivíduo. As editoras elas sabem que a cara de Cafica é estranha, que ela remete a estranheza da sua obra e se aproveitam disso. A novo século colocou um negativo no lugar do olho do cara, onde a letra passa, vazou um negativo.
Fica ainda mais estranha do que só a foto dele, como se precisasse, né? Porque a foto dele já é estranhíssima. Beleza?
a gente reconhece que tem muito da tecnologia da época, mas é porque essa cara dele, essa fisionomia, esse aspecto nos remete a alguém que definitivamente tem algum problema e que vai deixar passar isso na literatura. Então, começa por aí. Então, a gente já sabe que precisa ou que deveria dar uma olhada na vida desse sujeito.
E o fato é que a vida de Cafca não teve nada de realmente extraordinário, mas tem alguns eventos que determinaram profundamente o andar da sua obra, o caminhar da sua obra. É uma vida banal, completamente banal, possível de acontecer com qualquer um, mas o modo como ele transforma isso em literatura é que tá a chave. Cafca nasceu em 1883, lá no finalzinho do século XIX, que muitos historiadores vão considerar o século mais malucão assim da história da humanidade.
Porque o século XIX foi tomado de tanta mudança, tanta revolução, tanta coisa aconteceu num curto espaço de tempo que nunca se viu isso. E uma das coisas que mais afetou a cabecinha do nosso escritor no momento foi a segunda revolução industrial. A gente precisa reconhecer que, por vezes, né, o pensamento liberal conservador, ele costuma criticar o marxismo de forma meio vorais, com razão.
Afinal, o marxismo tem muita maluquice, merece ser criticado mesmo. Mas não podemos esquecer em que ponto os marxistas acertaram ou Marx acertou. De fato, lá na Segunda Revolução Industrial, havia uma exploração muito forte da mão de obra do ser humano, que era considerada apenas uma peça de um maquinário.
Não que isso tenha desaparecido, é necessário reconhecer também que hoje tem muito empresário safado, muita gente pilantra no mundo. O ser humano é cruel, tem muita gente ruim que acaba explorando o outro. Isso existe, é uma realidade.
Mas graças a Deus as leis evoluíram. A própria dinâmica do mercado evoluiu muito, mas na época de Cafca isso era ainda mais forte e avaçalador. Isso vai estar muito presente em toda a sua obra.
Não é só na metamorfose não. Mas na metamorfose ela aparece com toque especial. A gente vai dar uma olhada disso quando começarmos a falar do livro.
O próprio Cafka, ele era funcionário num empresa de seguros, que é um tipo de comércio que cresceu muito durante a segunda revolução industrial. Conforme começaram a aparecer muitas empresas grandes, as pessoas passaram a adquirir mais coisas e tal. O seguro em si, a empresa de seguro, esse tipo de negócio floresceu muito.
Cafque era advogado, trabalhava numa dessas empresas. É um trabalho burocrático e completamente insignificante do ponto de vista do destaque, daquilo que se espera no mundo moderno ou no mundo contemporâneo nos dias de hoje, de um indivíduo, que ele se destaque na sua carreira. a essa pressão.
A gente vai aprofundar isso melhor daqui a pouco. Kafca também nasceu no que era conhecido como império austroúngngaro, que era uma espécie de conglomerado multinacional formado por duas nações. Essa mesma região em que ele nasceu depois veio ser a Tzecoslováquia e hoje em dia a gente conhece como República Checa.
O desmanche dess desse império se deu apenas no final da Primeira Guerra Mundial. Inclusive o império austro-úngnguro foi um dos pivôs fundamentais da existência do conflito. Então, a gente já tem dois fatos importantes na vida do rapaz.
Ele passou pela segunda revolução industrial, ele viveu isso na pele. O próprio emprego que ele desempenhava era um fruto, de certa forma dessa revolução. E passou também pela primeira grande guerra.
A Primeira Grande Guerra e a Revolução Industrial foram só pequenos temperos em uma vida arrasada, tomada por mudanças drásticas no plano global, mas também no plano emocional, particular da vida familiar de Cafca. cursou o direito. Então, lá na faculdade de direito ele conheceu Max Bro, ficou muito amigo de Max e ele não era de muitos amigos, ele tinha uma personalidade mais reclusa, inclusive ele era meio inseguro com a sua produção literária, publicou pouquíssimas coisas em vida e o amigo com quem ele compartilhava, que era o próprio Max, ele fez Max prometer que nunca iria publicar nenhuma das suas obras que ele não publicou em vida, o que Marx prontamente não obedeceu e é graças a ele que temos acesso a vários outros livros de Cafka, que essa publicação aconteceu.
seu jitamento depois da sua morte. Entre eles, um livro que é carta ao pai, que era uma correspondência extremamente íntima. Era algo feito para Cafka entregar ao genitor com quem Kafka não tinha uma relação das mais maravilhosas do mundo.
Porém, é graças à publicação de carta ao pai que a gente consegue hoje olhar para vários livros de Cafca e entender a presença desse personagem do pai que vai aparecer em várias das suas histórias, sempre repetindo um certo padrão. E a gente consegue entender o funcionamento disso graças a entender melhor a biografia dele. E isso acontece também na metamorfose e a gente vai começar a ver isso agora.
A palavra metamorfose, ela significa literalmente uma mudança na estrutura, em algo que constitui a essência do sujeito, do indivíduo, do objeto, do que quer que seja, que esteja passando por essa transformação. E a primeira frase do livro, ela é bastante icônica, mesmo quem nunca leu certamente conhece. Certa manhã, ao despertar de sonhos intranquilos, Gregor Sansa encontrou-se em sua cama metamorfoseado no inseto monstruoso.
Metamorfose faz parte daquelas histórias que estão no patrimônio da humanidade, aquelas histórias que você não precisa ter conhecido, você não precisa ter tido acesso direto a ela, não precisa ter lido para conhecê-la. Muita gente, inclusive, baseado nessa percepção do senso comum, vai dizer que Gregor Sansa, o personagem da metamorfose, acordou transformado numa barata. é a imagem mais comum que a gente tem, quando na verdade o livro não especifica que tipo de inseto é, mas assim, pela descrição podemos concluir que talvez tenha sido uma barata de fato.
Olhamos então esse trecho inicial e concluímos: achamos a metamorfose Gregor Sansa acordou transformado em um terrível inseto. Fechou a questão, já sabemos o significado do título, correto? Aí, meu querido, devemos ter a consciência que não seria a magnitude que é a metamorfose se a gente matasse a charada logo nessas primeiras linhas.
Devemos ter em mente que a metamorfose que acontece nesse livro não é de forma alguma apenas física, mas se dá em outras camadas do ser, do personagem, desse indivíduo que é Gregor Sansa. E a metamorfose sequer está restrita apenas a ele, mas vai acontecer em vários outros elementos da história que tem contato direto com esse personagem. E cada um desses detalhes nós veremos no seu devido tempo.
Por enquanto, a gente precisa ter em mente que a metamorfose de Kafca é um livro que está listado na lista, no hall, no elenco de obras literárias pertencentes ao existencialismo. O existencialismo, por si nasce lá em 1930, quando a obra de Cafca foi publicada em 1915. Então, é justo nos perguntarmos como que uma obra publicada em 1915 se encaixa numa corrente filosófica de 1930 ou da década de de 1930, melhor falando, é que na verdade os primeiros idealizadores do existencialismo, que a gente vai focar aqui apenas em Sartre, Kami, Albert Cami, eles acabaram olhando para obras anteriores e identificando nessas obras elementos do existencialismo.
A primeira delas, por exemplo, seria Memórias do subsolo de Dostoyevski, obra sobre a qual eu tenho um excelente vídeo aqui no canal. Vou deixar o link na descrição. Mais uma obra que eu gosto de falar sobre o existencialismo e traduz bem a essência do que é esse movimento filosófico é a obra O estrangeiro de Albert Cami.
Não por acaso um dos grandes pensadores desse movimento. Lá em O estrangeiro, que eu também tenho vídeo também está lá na descrição, nós temos um personagem completamente apático que os eventos, os acontecimentos da vida vão carregando ele de uma forma inevitável. ele acaba entendendo que não precisa ou que é inútil qualquer movimentação.
E por mais que as coisas sejam absurdas e completamente trágicas a acontecerem em sua existência, ele simplesmente deixa as coisas acontecerem. É uma apatia, um desengano. Não há motivação, não há energia para movimentar-se.
Esse sentimento tá presente aqui em metamorfose, tá presente lá em Memórias do Subsolo, tá presente no estrangeiro de Albert Cami. Enquanto em metamorfose, você tem uma situação realmente do ponto de vista prático, da realidade absurda, afinal um realismo fantástico. O personagem acorda transmutado, metamorfoseado no inseto.
Lá em estrangeiro, você tem apenas um ser humano normal, comum, que não passa por nenhuma transformação mágica extraordinária. Mas o sentimento é igual, o comportamento, a apatia, a angústia, a noção de responsabilidade, é um peso em cima das costas do personagem que ele não consegue lidar com isso. Conforme dá pra gente perceber aqui nas edições, tanto a da Novo Século como da LPM, é um livro curtinho.
Esse da LPM, inclusive, ele traz duas histórias. Ele traz a metamorfose, que tá mais para uma novela pela sua extensão, e traz o veredito, que é mais um conto. As duas edições são bem fininhas porque são isso, são histórias, é, é, é uma história bem curta, não precisa de muitas páginas.
Você consegue dar conta disso aqui em duas, três horinhas, facinho. Sementou, se tiver o hábito da leitura, você consegue ler fácil. Para começar a leitura, não leio nada.
Seria bom começar pela metamorfose de cáfica? Nunca li nada. Não tenho prática disso não.
Pelo nível da linguagem, o nível dos movimentos psicológicos que o personagem vai fazer. Você vai se sentir perdido e vai ser uma leitura muito chata. Então começa por outra coisa.
Mas se você já tem o hábito da leitura, duas, três horinhas consegue dar conta disso. Cafca separou em três partes numeradas dessa forma, 1, dois e três. Simplesmente isso.
Não tem título, não tem nada. Eu coloquei títulos porque eu gosto de fazer isso para clarear na minha mente, conseguir organizar essas ideias, sistematizar de forma a conseguir relacionar essas partes entre si e com o todo da obra. Então eu dei os seguintes nomes.
A primeira parte eu chamei de Gregor acorda um inseto. A segunda parte eu chamei de Gregor é um inseto. E a terceira Gregor não é nada.
Como eu disse, são títulos meramente para sistematização. O importante é que eu olho para eles e eu consigo lembrar exatamente tudo que acontece naquela parte, o miolo, a essência daquela parte. Nós vamos conversar sobre cada uma delas a partir de agora.
Antes de tudo, Gregor acorda um inseto. Toda esta primeira parte, ela acontece em torno do evento físico, da metamorfose física. E esse começo, o impacto desta abertura, ela é icônica por vários motivos, mas a gente pode aqui falar de um específico.
Parece a princípio que Cafca tá rompendo a estrutura canônica da literatura. Explico. É que a princípio toda obra de ficção, toda narrativa, ela deve seguir ou deveria seguir ou tá ancorada em de alguma forma a uma ordem canônica de como a história vai acontecer.
Quando eu falo ordem, não quer dizer que os eventos tenham de acontecer nesta mesma sequência, mas eles eh precisa estar ali organizado e estruturado. Primeiro, nós temos uma apresentação de personagem. Você vai entender quem são os personagens principais, entender o contexto deles, as motivações.
Depois você tem um conflito que é quando a ordem da narrativa daquele universo é alterada de alguma forma pela interferência de alguma coisa, de algum evento, de algum objeto, de algum ser. E por último, nós temos um desfecho que é quando o conflito é resolvido e o equilíbrio é restabelecido. Esse equilíbrio não precisa ser o do começo de quando o conflito não existia ainda, mas ele precisa ser um equilíbrio.
É dessa forma que quando a gente olha paraa Gregor Sansa transformado no inseto logo no começo da narrativa, nós temos a impressão de que tudo foi subvertido, de que a gente tá começando a obra já no meio do conflito com apresentação, que Kafka teria juntado nesse início a apresentação do personagem Gregor Sansa também com o conflito. Ele tá transformado num inseto. Mas isso é apenas ilusório, é um engano, porque na verdade o conflito principal de a metamorfose não é Gregor Sansa está transformado no inseto.
O fato dele estar transformado, metamorfoseado fisicamente não é sequer um problema em si. Ele gera problemas, mas não é o principal problema. Vamos entender isso.
Quando a gente pensa no nosso mundo, e isso é a literatura, a gente lê uma obra de ficção sempre espelhando no nosso, procurando correspondentes no mundo real. Então, quando a gente pensa na nossa realidade, é muito fácil olharmos paraa obra da metamorfose e esperar que Gregor Sansa quando perceba que tá transformado num inseto monstruoso, que ele vá se desesperar, que a sua mente seja tomada pelo caos, que ele comece a se questionar o motivo daquilo, que ele tente entender como é que diabos ele foi se transformar num inseto no meio da noite. Ele acordou transformado num inseto, mas nada disso acontece.
Gregor não para sequer para pensar que em como aquilo aconteceu, no motivo daquela transformação, no motivo daquela metamorfose. A impressão que temos, inclusive, é que ele tá acordando como se tivesse tomado por qualquer outro problema banal. Corriqueiro.
Nossa, acordei hoje com dor de barriga. A sua mente tá completamente focada e ancorada em problemas banais da sua realidade, não nesse evento extraordinário. Isso é chocante, rompe com a nossa expectativa.
Ele começa a pensar, então, como é que ele vai se levantar da cama? Como é que ele vai sair do quarto? como é que ele vai alcançar o transporte, como é que ele vai chegar ao trabalho?
Gregor odeia o trabalho. Ele lamenta-se profundamente por aquele emprego que ele tem. Lembra do que a gente falou no começo sobre a Segunda Revolução Industrial?
O peso, a exploração, essa necessidade da sobrevivência de como os empregadores e a lógica industrial sufocava o indivíduo? Cafka passou por isso também. De certa forma, por ocupar um emprego em uma empresa de seguros, não tem um destaque profissional, ter de lidar todos os dias com a mera burocracia.
Ele trabalhava também em um ofício sufocante que não oferecia qualquer tipo de realização. E a realização, a gente lembra, é algo muito demandado nos dias de hoje. O trabalho, desde a época de Cafca e se repete até hoje, precisa ocupar o centro da nossa existência.
Ao menos é assim que a sociedade diz que deve ser feito. Mas nem sempre foi assim. Para os gregos, por exemplo, o trabalho não era uma forma de realização da sua vida, mas tão somente um meio de alcançar uma vida melhor ou uma plenitude existencial por meio do óscio.
No Medievo, por mais que a gente fale e reconheça as complicadas relações de exploração que existia, por exemplo, no feudalismo, a gente deve reconhecer que o trabalho também não ocupava o centro da existência do indivíduo. Hoje eu posso relatar para vocês o que eu vejo nas escolas do ensino médio, sistema educacional brasileiro, mas que se repete pelo mundo. Os meus alunos do ensino médio, eles são incentivados o tempo todo a refletirem sobre a sua existência, sobre o seu futuro, sempre focados no trabalho.
Eles não são levados a refletir sobre a sua existência desvinculada de um ofício. É como se a profissão, o ofício, o que ele vai exercer enquanto profissional na sociedade fosse o seu próprio ser. A autopercepção que o sistema educacional tenta imprimir no indivíduo é que ele é uma máquina, ele é uma peça de uma engrenagem voltada apenas para produtividade.
A ideia é desenvolver nesse aluno a consciência de um proletário. E isso fica mais claro ainda quando a gente percebe que não basta despertar o trabalho como centro da existência do indivíduo, mas como também criar uma demanda da felicidade dentro do próprio trabalho. Então, não basta mais você trabalhar, conseguir um emprego, conseguir tirar um sustento de um lugar decente.
Você precisa ser feliz no seu emprego. As pessoas transformaram o emprego na vida. Você precisa trabalhar com o que ama, você precisa se destacar.
Você precisa ser um protagonista. Cafka foi vítima profunda desse tipo de pensamento ou da gestão do que ele viria a se tornar hoje. Isso reflete completamente em Gregor San.
O protagonista de a metamorfose parece não ter consciência da possibilidade de existir fora do seu trabalho. A prova maior disso é de que ele tá transformado num inseto monstruoso e mesmo assim tudo que ele consegue pensar, toda a sua preocupação é em como vai cumprir a sua jornada de trabalho naquele dia. É então que ele começa a elencar motivos para essa sua preocupação e a gente começa a entender a formação da estrutura familiar de Gregor Sansa.
Ele tem um pai que já foi dono de firma e chegou à falência, hoje é um encostado, não trabalha mais. Ele tem uma mãe que é dona de casa e tem uma irmã mais nova que é um talento artístico musical. O sonho de Gregor, inclusive, é mandar essa irmã para um conservatório para que ela possa estudar música.
Alguns críticos vão apontar esse fator inclusive como um aspecto de dominação, como se o personagem quisesse controlar a vida dessa irmã numa espécie de conflito meio freudiano. Eu não gosto muito desse tipo de abordagem psicanalítica na literatura porque eu acho que uma forçação de barra. Mas prosseguindo, ele odeio o trabalho.
Deu para entender isso? Já ficou claro, acredito eu. Porém, ele precisa permanecer, ele precisa continuar.
Ele não pode simplesmente abandonar o seu ofício de uma hora para outra. Primeiro porque ele faz isso pela família. Ele é o único que trabalha na casa.
Ele sustenta essa residência inteira. Depois, porque ele pensa no futuro da irmã, ele quer que a irmã tenha a possibilidade de estudar num conservatório. E por último, porque o empregador, a sua família, na verdade, teria uma dívida com seu empregador e ele precisa pagar essa dívida.
Então ele tem essa série de elementos que prendem ele. Porque pare para pensar quantas vezes se você já trabalha, se você já é alguém mais velho como eu, quantas vezes você se viu enredado nas tramas do destino, olhando para uma possibilidade ou outra que até possa ter surgido na sua vida e que você não pôde seguir porque já tá comprometido com infinitas demandas da vida moderna, da própria subsistência. Isso aconteceu com Gregor San.
Os elementos da vida foram enredando, foram amarrando, foram deixando ele preso de tal forma que ele não consegue mais se libertar. E ele fica alimentando uma ilusão de que outro dia, quem sabe quando ele conseguir pagar essa dívida, ele vai sair do trabalho. O pai chega a comentar em determinado momento que o filho não tem qualquer diversão, vive para o trabalho.
É então que precisando chegar ao trabalho com essa preocupação na cabeça, Gregor começa a calcular uma forma de se levantar da cama. Lembro que ele é um inseto, as perninhas pequenininhas, fininhas, o corpo abaloado, ele não consegue sequer se movimentar na cama direita, ele começa a fazer um esforço tremendo para fazer isso. E aí começa uma batalha física.
São duas batalhas acontecendo na história, uma dentro da cabeça dele, em que ele começa a pensar nas possibilidades das consequências dele faltar o trabalho e a outra batalha é física dele tentando se levantar da cama. O menor dos problemas é ele tá transformado no inseto, porque ele não pensa nisso, no inseto em si, no seu corpo. Ele começa a pensar nas consequências dessa transformação para sua família.
Então ele começa a pensar, se eles escutarem qualquer coisa de estranho, vão querer abrir o quarto, vão ficar preocupados comigo. Ou se eu fizer qualquer barulho, ou se eu aparecer assim, eles vão ficar preocupados comigo. Então, a preocupação dele o tempo todo é com a família.
Ele não tem existência própria. Ele tá sempre atrelado ao trabalho e à família. Tudo que ele tá pensando nesse momento é como é que ele vai sair da cama, como é que ele vai se levantar, como é que ele vai passar pela sala, como é que ele vai chegar até a condução para só então chegar até o trabalho.
Há uma pressão enorme, uma responsabilidade na sua cabeça o tempo todo. Há um sentido de urgência a cada movimento que ele dá. E nesse momento do livro, o relógio ele serve como um marcador temporal importantíssimo.
Ao passo que Gregor vai calculando as consequências e calculando os seus movimentos, o relógio vai marcando as horas, ele vai prestando atenção de como a hora avança e de como minuto após minuto ele vai perdendo o tempo. É então que ele começa a ficar desesperado, começa a entrar num parafuso de agonia, de alucinação, de loucura. E nós temos uma informação importante que ele nunca chegou atrasado, ele nunca faltou ao serviço, um funcionário exemplar, isso ajuda a construir a imagem do personagem como alguém responsável, como alguém íntegro.
E isso serve de contraste completamente com a sua imagem de inseto, que é o que temos fisicamente. É então que a família de fato fica preocupada. passou da hora do rapaz se levantar, a família chega a bater na porta, procurando por ele.
E a princípio a gente até chega a acreditar que esse interesse da família é um interesse meramente financeiro, tá preocupada com ele, não pela condição física dele, por ele estar doente, por ter acontecido alguma coisa de fato, mas porque se acontecer alguma coisa, isso pode representar um prejuízo financeiro, a falência da família, eles vão passar necessidade, etc. E muitos críticos ou muitos leitores da obra de Cfica vão destacar esse fato, só que isso não é completamente verdadeiro. Mais adiante vamos perceber que a mãe e a irmã chegam a demonstrar um cuidado genuíno com o personagem.
Até o pai apresenta isso. Tem a Kafca planejado isso ou não? Então, depois de falar com a família, dizer que tá tudo bem, que ele começa a se movimentar de fato no quarto, as perninhas finas, tentando alcançar a porta e chega a sua casa o gerente.
Isso deixa a gente meio atordoado, meio sem entender direito o que tá acontecendo, porque acabamos de saber que o personagem é alguém muito responsável, que nunca faltou, que nunca sequer se atrasou. Não faz o mínimo sentido que o gerente tenha chegado até a sua casa procurando por causa de atraso em alguns minutos. É então que o gerente se aproxima da porta, procura saber de de do personagem de Gregor e nós temos uma informação que até então nós não tínhamos.
Ele cita um dinheiro que Gregor estaria, que o dono da firme estaria preocupado e cita também um eventual comportamento diferente, diferenciado do personagem ao longo dos últimos dias. Isso é um elemento importante, porque a narrativa brinca com o narrador o tempo todo. A perspectiva do narrador tá colada em Gregor, não é em primeira pessoa, é outra.
é uma câmera acima do seu ombro, por assim dizer. É importante notar isso. Como essa informação não foi nos dada, então pode ser é possível, termos uma pista textual para isso, para dizer que talvez Gregor não fosse assim um funcionário tão exemplar.
Talvez as coisas não estivessem saindo tão bem como ele faz parecer. Então o pai começa a ficar agoniado, justifica pro gerente que Gregor não é de fazer esse tipo de coisa. O próprio Gregor fica mais agoniado ainda dentro do quarto e acontece o primeiro momento de realmente assim conflito dentro da obra.
Primeiro desespero. Primeiro corre para um lado, corre pro outro. Aqui Gregor tenta abrir a porta, tenta envolver a maçaneta com suas perninhas e acaba caindo no chão, fazendo imenso barulho.
E aí todos na casa ficam preocupados. O gerente também começa a falar com Grego sobre o dinheiro que Gregor estaria devendo ou que estaria na posse dele e que o dono da firma tá preocupado e sobre o comportamento anormal de Gregor nos últimos dias. Mas tudo isso acaba saindo de cena quando acontece finalmente a abertura da porta e o que aparece é um inseto terrível.
E aí é esse momento que a mãe desmaia, o pai fica desesperado, a irmã grita, o gerente fica muito assustado, tenta fugir a qualquer custo e é assim que vai acabar a primeira parte. Todo o enfoque dessa parte tá na condição de Gregor dele ter se transformado em um inseto monstruoso. Mas o narrador nos engana desde o princípio, fazend-nos acreditar que se trata de um problema físico.
Mas a metamorfose de Gregor, tudo indica, aconteceu há muito tempo. Gregor esqueceu que é um ser humano. Ele não tem vida, não tem qualquer pretensões.
Ele vive apenas em função da sua própria subsistência e também de sua família. No quadro geral em que ele está inserido dentro desse emprego extenuante, horrível, que ele não aguenta mais qualquer dia, ele já se transformou em um inseto há muito tempo, sendo esmagado pela engrenagem do sistema dia após dia. Por isso que quando ele acorda metamorfoseado de fato num terrível inseto, num inseto monstruoso, ele não dá a mínima importância.
ele não se preocupa para sua condição física, porque internamente já era isso o que ele via, já era isso que ele tinha. Alguns leitores vão ficar meio confusos nessa parte ou esse aspecto da obra e até dizer que é uma obra confusa, que não merece toda a o status que tem dentro da literatura universal, porque não faz o mínimo sentido o cara acordar transformado em um inseto e não preocupar-se com o fato de estar transformado em um inseto. Esse tipo de leitura, ele tá preso só na primeira camada da leitura.
é que a escrita de Kafka é uma escrita que beira o que Norfr Fry chama de escrita mítica, em que as palavras elas não remetem necessariamente a um referencial no mundo externo e elas representam coisas em um nível muito diferente do que nós estamos acostumados. Imagine o mito de Prometeu, por exemplo, em que lá correntar uma pedra e todos os dias vem uma águia devorar o seu fígado e esse fígado é reconstruído. Ou o nascimento de Atena, que brota da cabeça de Zeus.
Um grego antigo, lá na Grécia antiga, não parava para se preocupar, muito provavelmente com a explicação desses fatos misteriosos. Eles simplesmente aconteciam e você aceitava. Da mesma forma a escrita de Cafka em a metamorfose, Gregor Sans está transformado em um terrível inseto, mas como isso não é o núcleo essencial da narrativa, não é esse o maior evento da narrativa com o qual devemos nos preocupar, então não cabe ou não precisamos de explicação.
Entenda, é claro que toda a narrativa ela acontece e se desenrola porque Gregor se transformou num bicho medonho. Porém, por se tratar de uma obra em que a cabeça dos personagens importa muito mais do que as suas ações, as suas preocupações, elas não são com esse evento em si, elas são com o que esse evento desencadeia. Então, do ponto de vista narrativo, o fato dele ter se transformado em inseto é apenas um motivador e de fato não carece de explicação.
O que carece de explicação é porque ele tá o tempo todo muito mais preocupado com o trabalho do que em estar transformado num inseto. Inclusive, isso fica muito claro. Quando Gregor sai do seu quarto e ele fica de pé na sala com as mãozinhas na cintura, falando pro gerente que agora ele tá pronto, que ele vai só trocar de roupa para chegar até o trabalho.
Na cabeça de Gregor tá tudo bem, ele não tem qualquer problema com o que aconteceu com o seu corpo. Ele só quer resolver o seu problema maior, que é o emprego. Claro que ninguém consegue entender o que ele tá falando.
Todo o som que ele produz, a narrativa nos leva a crer que é apenas aquele guincho asqueroso de inseto. É então que o pai se arma de alguma coisa e coloca ele para voltar para dentro do quarto. No final dessa primeira parte, a gente precisa prestar atenção também na própria família de Gregor, na mãe, no pai, na irmã e também na própria casa.
Todos esses elementos, nesse começo, são satélites, orbitam em torno de Gregor Sansa. E a partir do momento que ele é transformado num inseto em que o Gregor Sansa não existe mais, mudanças significativas precisam acontecer também com eles. Também eles passarão por metamorfoses.
Na segunda parte, o conflito, toda a preocupação de Grego a respeito de chegar até o trabalho perde importância, perde significação. Isso sequer é tocado mais, é trazido pra narrativa. parte da filosofia existencialista constata a inércia do ser humano diante do absurdo da existência.
Veja o personagem principal de O estrangeiro de Albert Cami, já falamos, por exemplo, inúmeras coisas absurdas, trágicas, catastróficas acontecem em sua vida. Ele se envolve com a pessoa, esse relacionamento se desfaz, ele se envolve em assassinato, vai preso por causa disso, que ele não tem nem a ver diretamente com essas questões, mas ele tá inerte, completamente incapaz de tomar uma ação, tomar uma atitude para sair dessa situação, porque para ele qualquer ação é completamente inútil. Trata-se da inevitabilidade dos fatos da existência.
Da mesma forma, Gregor foi empurrado de volta pro quarto pelo seu pai e tudo que ele pensa agora é em manter a sua existência ali trancafiada. E tudo que ele consegue pensar agora é no dano que pode ter causado a sua família do ponto de vista psicológico e também financeiro. Por que não?
A família, por sua vez, passa então a cuidar daquele pequeno inseto. E eu comentei já com vocês, como o narrador fica aqui posicionado pertinho do protagonista o tempo todo. Isso gera várias consequências.
Nesse momento, uma das consequências é a gente não saber nunca a perspectiva da família. Tudo que temos acesso são as impressões de Gregor sobre os seus familiares. Quando ele aparece na porta lá na primeira parte, é confuso pra gente, porque não temos como ter certeza se a família consegue compreender que aquele ser monstruoso é o seu filho ou não.
Se aquele ser monstruoso talvez tenha devorado o seu filho. Não temos como saber isso. Não dá para ter uma certeza, não dá para bater o martelo a respeito de uma interpretação nesse sentido.
Porém, por via das dúvidas, tudo indica que eles tomam a atitude de mantê-lo ali alimentado, de cuidar dele. É a irmã então que toma a iniciativa de vai lá deixar a comida favorita de Gregor no cantinho do quarto. Comida que ele tenta se alimentar, sente um asco terrível, não come, a irmã percebe, volta com restos de comida e esses sim servem de alimento.
E aqui é importante a gente perceber como bons escritores eles nos entregam chaves de interpretação ao longo da obra. A obra acaba sendo autossuficiente. Isso inclusive é algo que North Rob Fry defende, que a estrutura interna da obra ela sustenta a si própria, sem precisar recorrer a nada de fora.
Então quando Gregor San se alimenta de resto de comida e a gente olha para esse evento e não sente nenhuma estranheza pela falta de explicação, isso acontece porque é óbvio, porque insetos se alimentam de fato de resto de comida. Da mesma forma, quando a gente volta lá pro começo, paraa primeira parte, quando nós vemos Gregor Sanssa transformado no inseto, também não precisamos de qualquer explicação, porque conforme a narrativa avança, percebemos que ele já era um inseto antes, mesmo que o seu corpo não traduzisse esta condição. Afinal, é assim que é esse tipo de gente, vivendo apenas pela própria subsistência, sem vida, que só pensa no trabalho, uma condição de inseto.
Ao longo da segunda parte acontecerão novas metamorfoses. metamorfoses diferentes com diferentes personagens. O pai, que até então era um inerte, um inútil, que não trabalhava mais, arruma um emprego, ganha dignidade.
E isso pode soar até contraditório a princípio. Afinal, nós temos uma narrativa que vem mostrando a degradação do do emprego, de como um trabalho pode destruir a psiquê de um personagem. Ao mesmo tempo, temos um outro personagem que é dignificado pelo trabalho.
Mas é claro que nem tudo é excelência. De certa forma, a família também perde um pouco da sua personalidade e da sua vida, já que passa a alugar um cômodo da casa para dois inquilinos. Eles acabam fazendo isso porque eles precisam de dinheiro para sustentar, agora que não tem mais Gregor para fazer esse trabalho.
No meio do caminho temos também floresce de certa forma o amor da mãe que já existia. Conseguimos perceber isso na primeira parte, quando ela desmaia, quando ela fala em busca do filho, mas nessa segunda parte fica mais evidente. Em determinado momento, a irmã de Gregor percebe que ele gosta de caminhar pelas paredes.
Então, ela tem a brilhante ideia de retirar os móveis do quarto para permitir que ele possa passear com mais liberdade, sem ter qualquer ajuda, já que a empregada se recusa a entrar naquele quarto, a mãe se oferece e é a primeira vez que ela coloca os olhos sobre o filho. E a gente pode perceber a ternura de como a mãe tá preocupada com seu pequeno Gregor. E nesse momento o contraste é bem estabelecido, porque enquanto a irmã e a mãe estão lá dentro do quarto trabalhando para o conforto daquele inseto que eles acham ser Gregor, o pai sequer toca no seu nome na sua existência.
Gregor passa então a acostumar-se com essa condição. Ele passa a ocupar o quarto. Ele tal qual o personagem lá de o estrangeiro de Albert Cami, ele aceita a sua existência, a sua situação e fica lá quietinho no quarto dele o tempo todo.
Chegam até a oferecer a ele pequenos momentos de convivência com a família. é deixada a porta um pouco aberta do quarto, ele consegue ver pela fresta todo o movimento, consegue ver a família conversando, consegue ver a família compartilhando momentos juntos. E é nesse instante que temos um novo dispositivo dentro da trama que serve de impulso para o que vai acontecer depois para o desfecho.
É que a irmã de Gregor é música, toca. Em determinado momento os inquilinos escutam ela tocar. O pai fica até preocupado, acha que está incomodando, mas os inquilinos fazem questão de ouvi-la.
O pai então traz orgulhoso a menina, coloca para tocar violino na presença deles e Gregor de dentro do quarto começa a escutar a música também. Aqui a gente precisa voltar lá para Platão e entender que a música ela tem uma função primordial na existência do ser humano e na literatura ela costuma aparecer também com essa função. A vibração musical ela costuma alterar a vibração do indivíduo.
Então Gregor quando escuta a melodia produzida pela sua irmã, ele esquece da sua condição de inseto. E a gente precisa aqui lembrar que esquece da sua condição de inseto, inclusive não só a física, porque a gente já discutiu isso, que Gregor não tá transformado em inseto apenas fisicamente. Então é a música que consegue libertá-lo dessa condição.
Ele volta a ser humano de novo. Esquece que tem qualquer problema com sua aparência física. Ele começa então a se arrastar, a se aproximar cada vez mais para conseguir ouvir cada vez mais, cada vez melhor.
E é nesse momento que os inquilinos acabam dando de cara com ele, percebem a sua presença, ficam desesperado, aquele escarcel volta a acontecer. E nas duas vezes em que Gregor sai do quarto, isso acontece tanto na primeira parte como na segunda, é o pai que coloca ele de volta. De certa forma, isso é uma alegoria interessantíssima.
Porque também Cafca durante a sua vida sentiu-se reprimido pelo pela figura do pai. Então, todas as vezes que ele tinha uma pretensão artística, por exemplo, e tentava sair dos limites impostos do seu quarto, daquele lugar que ele tava tendo cafiado, era a figura do pai que o empurrava de volta para o seu quarto, pra sua gaiola. O personagem da história então volta pro quarto ferido, machucado, dessa vez com a ferida aberta na sua carapaça.
E essa ferida, curiosamente, vai ser uma janela pela qual ele poderá encontrar finalmente a liberdade. É, então que chegamos na terceira parte. Gregor não é nada.
Os inquilinos saem da casa sem pagar qualquer aluguel, já que eles se sentiram ofendidos pela existência daquele bife monstruoso, asqueroso. É a primeira vez que a família fala abertamente de Gregor da sua existência e ele escuta tudo isso de dentro do quarto. E sabemos que eles questionam até mesmo se aquele inseto, se aquele monstro ainda é o filho, o irmão.
A irmã chega a questionar inclusive se eles precisam mesmo continuar cuidando dele ou se precisam dar um prosseguimento da vida. Essas palavras atingem grego como se fosse uma navalha, abrem ainda mais a sua ferida, expandem a janela pela qual ele poderá escapar. Então ele para de se alimentar, aos poucos ele morre.
No livro não fica muito claro se ele morreu de fome, se ele morreu de desgosto, mas ele morre. Como eu disse, a ferida serve de janela. É pular que ele escapa.
E o escape vem de uma forma romântica. É um escapismo. Ele morreu, acabou, saiu daquela existência medíocre.
Os pais então mudam-se de casa. É a metamorfose que acontece também com a casa. Já vimos uma metamorfose acontecendo com o pai.
Agora a metamorfose acontece com a própria casa. Vamos para uma casa maior. Afinal a casa antiga era pequena e estava completamente associada à figura de Gregor, que já não existe mais.
E a irmã também arruma um emprego, abandona a música e se dedica plenamente à mesma existência que tinha condenado o seu irmão. Cafka, inclusive se preocupa de compor uma imagem cheia de antíteses. E ao mesmo tempo que sabemos da existência terrível que é essa condição de estar subjugada ao emprego que a narrativa nos mostrou, a gente tem a figura da moça bela, espreguiçando ou esticando ou exibindo o seu corpo jovem, indo em direção a esse destino terrível.
E se a gente parar para prestar atenção em toda a trama, nós presenciamos, na verdade, várias metamorfoses na história e nenhuma delas é a do personagem Gregor Sansa. Quando a história começa, Gregor já está transformado. Nós não vimos a metamorfose acontecer, porém presenciamos a metamorfose do pai, que deixou de ser um inútil e passou a ser alguém responsável, líder da família de fato.
Presenciamos a metamorfose da casa. Ele sai de uma casa pequena com aspecto triste, melancólico para uma casa maior. E presenciamos também a metamorfose da irmã, que sai de uma condição de dependência e torna-se uma adulta para seguir a sua própria vida, a sua própria existência.
De certa forma, é até cruel pensarmos assim, mas é o que a história nos dá. Gregoransa era um peso, uma pedra que ancorava essa família. Por mais que ele desse a subsistência, a sua existência estava atravacando o o progresso dos outros.
Como eu disse no começo do vídeo, é muito fácil a gente ficar aqui criticando as loucuras marxistas, porque são loucuras, né? Então a gente é impossível não olhar pessoas jogando feeses para cima e não ficar achando isso ridículo. Porém, a gente precisa também reconhecer em que ponto eles acertaram ou Marx acertou.
A crítica ao capitalismo vorais, as condições terríveis em que passar por quais passavam os trabalhadores naquela época e até hoje continuam muito válidas. Mas é claro e a gente precisa ressaltar que não há santidade nas ideias marxistas. Eu já falei para vocês como os meus alunos são impelidos, são impulsionados a se enxergarem como trabalhadores, como se toda sua existência se baseasse apenas no material, esquecendo completamente, ignorando e, por vezes, repudiando o transcendental.
Gregor era também um sujeito limitado à matéria. O emprego era tudo que ele tinha. E muitos de nós, por vezes, optamos pelo mesmíssimo destino, como se alcançar um sucesso material, profissional fosse o ápice, o ponto maior da nossa existência.
Quanto mais o tempo passa, quanto mais nos enrendamos nas burocracias e nos processos burocráticos e sufocantes da subexistência, mas corremos os riscos de nos tornarmos também terríveis insetos. Não vamos permitir que as circunstâncias da vida nos engulam. Precisamos, evidentemente, sobreviver, é verdade, mas nós temos a incrível vantagem de sabermos ler e graças a Deus temos a literatura para clarear os nossos caminhos.
E é isso, amigos, por hoje é só. Espero que tenham gostado de mais desse vídeo. Que nosso Senhor nos abençoe e até a próxima.