Nesses dias que ainda nos separam do tempo da Quaresma, a Igreja nos coloca para ler e meditar o início do livro do Gênesis, que para nós é um texto muito significativo, mas que precisa ser bem compreendido. Segundo os estudiosos, o relato do livro do Gênesis, do Capítulo 1 até o Versículo 2, aliás, o Versículo 4 do capítulo 2, a primeira parte do versículo foi redigida. O relato foi redigido na volta do exílio da Babilônia, e é muito interessante que tenha sido assim, porque os povos antigos não tinham a mesma compreensão cosmológica que nós temos.
Por exemplo, a ideia de mundo para eles não era a mesma ideia que nós temos de mundo. Eles não sabiam do mundo; o mundo era o mundo deles, aquele lugar habitado, como nós chamamos de ecúmeno. A palavra ecúmeno vem de uma palavra grega, oikos, ou seja, aquele lugar habitado, aquele lugar civilizado.
E o que acontece quando eles vão para a Babilônia? Judá fica toda destruída, ocupada por inimigos; aquilo fica um lugar devastado. E já o primeiro versículo do livro do Gênesis diz: "No princípio, criou Deus o céu e a terra.
A terra estava deserta e vazia, deserta e desolada. Trevas cobriam a face do abismo, e o Espírito de Deus pairava sobre as águas. " Na mentalidade dos povos antigos, quando a terra era destruída, ela descia para as águas.
As águas representavam a destruição, o caos. Então Deus disse: "Haja luz", e ali surge uma pequena luz; e depois essa luz vai, como que afastando as trevas. E aí você tem o dia e a noite que se separam.
Então Deus levanta uma cúpula separando as águas; eles achavam que havia uma cúpula sobre a qual estavam águas, porque agora, se cai água do céu, é porque tem água lá em cima. Então, eles imaginavam que havia uma cúpula. E aí Deus separa as águas de cima das águas de baixo, e então ele junta as águas, e aparece o solo enxuto.
Ele chama a terra de "terra", e as águas, de "mar". Então começa a brotar vegetação; depois ele faz os luzeiros: o Sol, a Lua, as estrelas. Depois ele faz com que as águas fervilhem de seres vivos: de peixes, répteis, e depois que as aves povoem o céu.
E aí a terra começa a ser povoada por animais, por seres vivos, animais domésticos. Esse relato é o que nós chamamos de cosmogonia; é uma junção de palavras gregas que significam a origem do Cosmos, o nascimento de um Cosmos, Deus fazendo tudo de novo. Nós lemos no profeta Isaías essa expressão acerca do povo que volta do exílio: "Um povo criado louve a Deus.
" Que o povo criado, ou seja, aquilo vai começar de novo, vai começar do zero, vai ser restaurado. Deus fazendo aquilo de novo, fazendo com que haja vida (antes tinha morte), haja ordem (antes tinha caos). É Deus que faz tudo recomeçar de novo.
Então, o versículo 27 diz: "E Deus criou o homem à sua imagem; a imagem de Deus ele o criou; homem e mulher os criou. " É muito interessante, porque nos povos antigos havia a ideia de que o rei é uma imagem de Deus. Em que sentido?
É como se Deus tivesse um bonequinho que é uma imagem dele, que é uma representação dele. Para os povos antigos, Deus e os deuses, como os povos pagãos imaginavam, eram pessoas como nós, inclusive de carne e osso, que estavam lá em cima da abóboda, e que, de vez em quando, nascia um Deus na terra, que era uma imagem, uma cópia, um double daquele Deus que está lá no céu. Então, o livro do Gênesis utiliza exatamente essa mesma expressão: "E Deus os abençoou e disse ao homem e à mulher: Sede fecundos, multiplicai-vos, enchei a terra, submetei-a, dominai.
" Ou seja, ele está falando de um rei. Esse homem é um homem que enche a terra, a submete, domina os mares, os pássaros; tudo eu vos entrego, todas as plantas que dão sementes, todos os animais da terra, tudo isso por alimento. É aqui que os veganos ficam um pouco desconsolados.
E assim se fez; e Deus viu tudo quanto havia feito, e que era tudo muito bom. Então vem o shabbat, o sétimo dia, que é o dia da Aliança, que é o dia do descanso, o dia em que o homem se volta para Deus, para olhar a obra da criação e desfrutá-la com ele, descansar com Deus através da espiritualidade. Ou seja, é um relato maravilhoso, lindo, esse relato, um relato que historicamente tem a ver com a recriação do povo em Judá, que alegoricamente é interpretado em função da criação do universo e que contém uma mensagem de esperança maravilhosa.
Deus é aquele que faz novas todas as coisas; ele nos faz renascer. O caos, a desordem, a terra deserta, vazia, desolada, é a especialidade dele. O Espírito Santo paira sobre as águas da destruição para refazer tudo de novo.
Portanto, quando nós vemos a nossa vida desolada, destruída, mesmo assim, nós não podemos perder a esperança, porque ele faz todas as coisas aparecerem de acordo com a força da sua palavra. É pela sua palavra que ele diz e acontece. E nós não podemos nos esquecer nunca que há um repouso sabático para o povo de Deus, como diz o autor da carta aos Hebreus, no capítulo 4 do seu livro.
E esse repouso sabático não é mais um dia para nós, porque a velha criação já passou; agora é o oitavo dia que se inaugurou no dia em que o Senhor venceu a morte e que nos faz rejubilar de alegria, podendo construir tudo, con-criar com Deus. Agora, nós, cristãos, somos chamados a ser cooperadores com a força da redenção da obra de recriação do universo, para podermos voltar àquela maravilha de um descanso sabático, ou seja, olharmos todas. .
. As coisas, e vermos que tudo é muito bom: o céu é bom, a Terra é boa, a água é boa, as flores são boas, os frutos, as árvores, os animais. .
. é tudo isso muito bom! Tudo isso nós precisamos aprender a contemplar para enxergar, por detrás de todas essas obras, o seu Divino Artífice, que é o Deus Criador.
Peçamos ao Senhor que nos conceda esse olhar contemplativo, este olhar sabático. Nós vivemos num tempo em que todo mundo quer apenas trabalhar. Como dizia Hannah Arendt, o homem moderno é homo faber, o homem que trabalha, o homem que fabrica.
Mas há um repouso sabático para o povo de Deus. Quando nós olhamos o trabalho que Deus fez no Universo para a sua glória, se nós pensarmos, existem seres que nós não conhecemos dentro desse planeta, não fora, no profundo dos oceanos, no profundo das montanhas, nos lugares mais remotos, abaixo da terra, que nós nunca veremos, que existem apenas para glorificar a Deus. Somente para isso as Escrituras nos ensinam a discernir e a dar voz a este louvor cósmico.
Os céus proclamam a glória do Senhor e o firmamento à obra de suas mãos. Que nós possamos dar voz a este louvor que sobe de todas as criaturas ao Senhor, olhando tudo a partir desse ângulo divino, maravilhoso e cheio de esperança. Deus sempre poderá recomeçar tudo do nada.