Olá, essa é a primeira videoaula sobre Orgulho e Preconceito, de Jane Austen. Esse vídeo é para você assistir antes da leitura do livro. A professora Sandra Guardini Vasconcelos fala sobre a biografia de Jane Austen e também o contexto histórico da época.
Bom vídeo! [Música] Meu nome é Sandra Guardini Vasconcelos, eu sou professora de Literatura Inglesa na Universidade de São Paulo. Estamos aqui hoje para conversar um pouco sobre Orgulho e preconceito, essa obra que a Antofágica está lançando em nova tradução.
Eu vou falar um pouquinho sobre a autora, sobre a Jane Austen, e depois eu vou falar um pouquinho também sobre o romance, sobre esse romance em particular. É um pouco curioso a gente pensar que essa escritora se tornou uma espécie de queridinha, não é? Tem um fã clube enorme.
Ela se tornou quase que o que a gente poderia chamar de um fenômeno da cultura de massas. E isso soa um pouco estranho, estou dizendo que é curioso porque isso cria um contraste muito grande com a figura dela e o próprio período histórico no qual ela escreveu e publicou seus romances. São seis romances publicados entre 1811 e 1817, dois deles já póstumos, publicados após a morte da escritora, e são romances que tiveram pouca repercussão quando foram publicados.
A Jane Austen nasceu em 1775 e, como eu disse, ela faleceu em 1817. Uma vida razoavelmente curta se a gente pensar nos dias de hoje, mas não tão curta se a gente pensar na expectativa de vida naquele momento em que ela viveu. Ela nasceu em uma família grande, digamos assim, e de poucas posses.
O pai dela era um pároco, o que se chamava na época de um reitor. Ele era responsável por uma paróquia na cidade onde ela nasceu. E era, enfim, um homem de poucos meios no sentido financeiro.
Uma família grande, com 8 filhos, dos quais apenas duas eram mulheres. A única irmã dela, a Cassandra, foi uma das pessoas mais próximas da Austen, ao longo de toda a vida eram muito próximas, muito amigas. Diferentemente dos rapazes, as moças não tinham acesso à educação formal Do ponto de vista da educação, a gente poderia dizer que essas duas moças, a Jane e a Cassandra, foram educadas em casa a maior parte do tempo.
A Jane particularmente frequentou a escola por apenas dois anos, dois anos e pouco, e o resto do tempo, portanto, a educação dela se fez em casa. E o pai e os irmãos mais velhos foram responsáveis por cuidar da educação delas Essa era uma família de leitores. O pai tinha uma biblioteca de cerca 500 volumes, claro que é um número estimado, mas eram esses volumes que ela pôde ter acesso ao longo da sua juventude.
Nesse período era muito comum que a família se reunisse para ler junto e comentar as leituras, então após o jantar e o jantar era sempre em um horário muito cedo para os nossos padrões de hoje, né? Mas a família jantava e aí havia um serão familiar, as pessoas se reuniam, a família se reunia, lia junto e comentava a leitura. Então foi nesse ambiente que a Jane Austen teve acesso a poetas, a ensaístas e a romancistas que a antecederam, né?
Que publicaram sua obra antes de ela de fato se tornar uma autora. Embora ela tenha publicado seu primeiro romance, Razão e Sensibilidade, apenas em 1811, ela já vinha escrevendo desde o final da década de 1780 E esses primeiros manuscritos, essas primeiras experiências dela de composição de textos literários foram reunidos naquilo que hoje a gente chama de Juvenília. O primeiro esboço, vamos dizer assim, de Orgulho e Preconceito, que não se chamava, na verdade, não tinha como título Orgulho e Preconceito, ela vai criar na década de 1790.
Em 1795 a 1797, ela cria esse primeiro esboço do Orgulho e preconceito que tinha naquela época ainda o nome de First Impressions, Primeiras Impressões. E se a gente pensa nisso de "primeiras impressões" depois de ler Orgulho e preconceito a gente vai ver que esse título também tem muito a ver com a história, com a narrativa que ela vai criar nesse romance. A Jane Austen teve uma vida muito circunscrita.
Não podemos dizer que ela ficou limitada à esfera doméstica. Assim como elas não tinham grandes oportunidades na área de educação, também não se esperava que as mulheres exercessem alguma profissão, sobretudo moças dessa classe social, desse segmento social ao qual ela pertencia. Hoje, a gente poderia pensar, se a gente fosse fazer uma espécie de atualização da situação socioeconômica dela, a gente poderia pensar que ela pertenceria a uma espécie de classe média, com alguns recursos, mas também sem grandes facilidades econômicas.
E também no caso dessas moças, não importa se ricas ou de uma situação mais mediana ou pobres, não se esperava também ou não se abria muita possibilidade para que elas se tornassem escritoras. A atividade de escrita da Austen sempre foi exercida em casa e a negociação da publicação dos seus romances sempre foi feita pelos membros masculinos da família, ou pelo pai ou pelos irmãos, o que significa também, o que, enfim, é uma informação interessante porque não havia qualquer tipo de restrição por parte da família a essa atividade dela como escritora. É interessante a gente pensar também que a Austen, além de escrever aquilo que a gente chama de "obras de imaginação", foi uma grande escritora de cartas.
E essas cartas elas são super importantes para a gente, inclusive vou fazer aqui um parênteses, elas estão sendo traduzidas e vão ser publicadas em breve por uma outra editora. Mas essas cartas elas são talvez tão significativas numericamente, porque grande parte das cartas que ele escreveu ao longo da vida, e os números são estimados em torno de três mil cartas, sobraram cerca de 10% delas, então é um número não muito significativo nesse sentido, mas são cartas que contam muito sobre esse cotidiano dessas moças, então a gente aprende lendo as cartas que a vida da Jane Austen é muito parecida com a vida das suas personagens nos romances, isto é, são moças que têm oportunidades limitadas, que estão sempre acompanhadas pelos membros mais velhos da família ou pela senhoras, mães, tias ou pelos irmãos ou pais, E que do ponto de vista social têm a oportunidade de comparecer a pequenos bailes, a pequenas reuniões familiares, pequenas reuniões sociais bem dentro do espírito daquilo que ela escreve nos romances. A Austen vivia num pequeno vilarejo, numa cidadezinha muito pequena e frequentava as famílias daquele espaço.
Ela viajou com alguma frequência para Londres, em Londres evidentemente o círculo social era um pouco mais amplo, envolvia famílias que nem sempre tinham uma intimidade entre si mas nessas viagens justamente pra fora desse vilarejo onde ela morava, ela tinha oportunidade de observar a vida no espectro social mais amplo do que o dela. Então toda essa experiência ela traz para dentro dos romances. As cartas mostram uma Jane Austen muito observadora do modo de vida e do modo de ser das pessoas que ela conhecia.
E mostram também uma Jane Austen bastante irônica, às vezes até sarcástica em relação àquilo que ela comenta sobre as pessoas da sua convivência nesse círculo social. Então a gente aprende também, por exemplo, como que a Austen vivia dentro desse espaço familiar, como ela era responsável por tarefas domésticas. A família tinha criadas, mas eram poucas e a Austen muitas vezes supervisionava o trabalho delas na cozinha, e inclusive ela se dedicava a trabalhos de costura, enfim, e a gente também tem vários comentários a respeito das próprias roupas, ao guarda-roupa, vamos dizer assim, ou as vestimentas que ela e a irmã vão preparando, vão costurando, vão comprando para poder frequentar essas reuniões sociais.
Então a gente tem uma boa visão do que era de fato esse cotidiano dessas moças e a gente aprende também como essa experiência cotidiana foi importante para ela no sentido de incorporar essa vivência dentro dos romances. Os seis romances que ela considerou acabados e que ela acabou publicando, talvez com exceção do último, Persuasão, que é o romance que ela ainda estava escrevendo quando ela morre. Parecia que o romance estava em vias de estar acabado, de estar completo.
A gente tem indícios e tem informações de que ela ainda pretendia fazer revisões nesse romance, mas enfim, a gente considera o romance acabado tal como ele foi publicado, como eu disse postumamente, junto com A Abadia de Northanger, que foi um dos primeiros romances que ela escreveu, então a Austen teve assim uma história de publicação talvez não tão fácil, porque vários dos manuscritos dela foram rejeitados de imediato e só depois aceitos para publicação por diferentes editoras e ela acabou tendo depois um editor o Murray, que acabou de uma certa maneira aceitando e ajudando a publicação desses romances. E como eu disse são romances que tiveram o apoio da família, de membros da família que funcionaram como uma espécie de intermediários, agentes, vamos dizer assim entre a autora que publicou anonimamente de início. A autoria feminina, de modo geral, desde o começo do século XVIII até bem final do século XIX, era sempre uma briga, era sempre uma luta Não era uma atividade aceita de maneira tão tranquila socialmente, então muitas das mulheres que publicavam romances publicavam esses romances anonimamente.
E é o caso dela também. Então por isso que aparece essa espécie de registro, a identificação é sempre "pela autora de". Em inglês, a gente não tem justamente uma identificação de gênero, a palavra "author" tanto pode ser referida a um homem, a um membro do sexo masculino, como a uma moça, e portanto "author" ficava também bastante indefinido, o que criava uma certa proteção para a reputação das mulheres que ousavam, digamos assim, publicar as suas obras.
Demora um certo tempo para que esses romances possam de fato serem atribuídos a ela. E isso vai acontecer já para o final do século XIX e sobretudo no início do século XX, através de um dos editores dos romances que vai fazer então a publicação e aí de fato vai a atribuir os romances e o nome Jane Austen vai ser associado a esses romances. E aí enfim à história da Austen.
Por volta de 1920 vai de fato se tornar uma marca registrada, uma marca. Todos esses romances, esses seis romances publicados, têm como personagem principal uma moça. A personagem principal é sempre feminina e, de uma certa maneira, essa personagem carrega a experiência dessas moças na sua vida doméstica, quer dizer, então todas as limitações que eu estava aqui descrevendo em relação à própria Austen, são limitações que essas moças também vão de uma certa maneira ter que enfrentar.
Nesse período histórico havia duas possibilidades para aquelas moças que não eram herdeiras das fortunas da família e que também não eram pobres e que tinham que trabalhar para sobreviver. Então essas moças que ficavam nessa espécie de limbo, elas tinham às vezes duas possibilidades de uma vida estável: elas poderiam assumir algumas profissões que eram consideradas as profissões mais ou menos respeitáveis, mais ou menos respeitáveis, uma delas era a profissão de governanta, que não deixava de ser uma espécie de extensão da maternidade. Você não tem os seus filhos, você vai cuidar dos filhos das famílias ricas.
Então muitas dessas escritoras, inclusive as Irmãs Brontë, por exemplo, elas todas tiveram essa experiência de trabalharem como governantas. Ou serem professoras, que também é uma espécie de continuidade você vai cuidar de criança, não na casa da família mas na escola. Ou ainda enfermeiras.
A enfermagem também era uma espécie de trabalho considerado razoavelmente digno. De maneira geral, não se esperava que as mulheres trabalhassem, mas se elas tivessem que trabalhar as profissões mais dignas mais respeitáveis seriam essas: governanta, enfermeira, professora porque eram, como eu disse, continuações da tarefa materna, sempre envolviam um cuidado com as crianças. No caso da Austen, ela não optou por nenhuma delas e também não se casou que era a outra possibilidade, por isso que o casamento é alguma coisa de tão importante nos romances todos.
Com exceção de Emma, que a personagem do romance que tem o nome dela no título, que é uma moça rica e uma herdeira e, portanto, não precisa do casamento, inclusive rejeita a própria possibilidade, a própria ideia de se casar, todas as outras personagens são moças que estão em situação precária no sentido econômico porque enquanto elas são solteiras elas podem ser amparadas pelo pai ou pelos irmãos, se elas não tem o amparo do pai e nem dos irmãos, o casamento é a única outra possibilidade, e para moças de uma certa classe média como falei, essa condição meio mediana do ponto de vista financeiro, às vezes nem ao menos assim a profissão de governante, enfermeira e professora eram consideradas aceitáveis, o melhor mesmo seria aquelas não trabalhassem e que elas arrumassem um casamento, um bom partido então o marido seria uma espécie de substituto, ele vai o papel de protetor dessas mulheres no lugar do pai e dos irmãos. a Austen e a Cassandra, as duas irmãs, não se casaram e com a morte do pai elas foram justamente amparados pelos irmãos. Também para os homens assim na situação deles as profissões dignas seriam a igreja, dos seis irmãos alguns vão seguir esse caminho, ou a Marinha Mercante, e essa é uma outra profissão.
Um dos irmãos dela, na verdade, vai ser "adotado" ainda com pais vivos, ele vai ser adotado por um casal de tios ricos, vai inclusive incorporar o sobrenome. O sobrenome dele vai ser Austen-Lee, e esse irmão é que vai amparar a mãe e as duas irmãs que ficam desamparadas com a morte do pai. E por conta disso inclusive a Austen e a Cassandra vão ficar viajando de lá para cá, visitar as casas dos irmãos, etc.
Então essa experiência toda vai ser justamente incorporada nesses romances. Na leitura da Jane Austen de modo geral, e em particular do Orgulho e Preconceito, o leitor deve prestar bastante atenção na figura do narrador Isso é fundamental, porque esse narrador que já começa o romance com uma afirmativa que nós podemos comprar como sendo uma afirmativa verdadeira na qual nós devemos confiar e, na verdade, é uma afirmativa que já põe em questão justamente essa mentalidade casadoura das mães das moças solteiras. A Austen então começa o romance, ela cria um narrador, uma voz narrativa, que está sempre olhando para as personagens a partir de uma perspectiva irônica e muitas vezes sarcástica, no caso da senhora Bennet e no caso do Sr.
Collins e no caso da tia do Darcy É preciso que a gente sempre se lembre dessa pitada sarcástica que o narrador usa para narrar seus personagens, isso é super importante. O leitor deve prestar atenção nisso porque é um diferencial desses romances, é inclusive um diferencial que faz com que estes romances não sejam historinhas bobas para mocinhas românticas. E a segunda coisa que é o segundo elemento que é muito importante também é justamente a criação, a composição, a caracterização das personagens principais Aí no caso do Orgulho e Preconceito é muito importante o leitor ficar atento ao modo de apresentação da Elizabeth, de todos as personagens femininas, mas particularmente da personagem principal pra gente inclusive ter uma perspectiva, uma visão muito clara a respeito da perspicácia, da inteligência, da autonomia de pensamento dessa moça.
Então ela é diferente das outras irmãs, ela tem um diferencial em relação às outras irmãs e isso é fundamental para a gente perceber que de uma certa forma também existe ali na Austen uma espécie de valoração das diferentes personalidades que ela cria no romance. E por último, só assim como uma espécie de nota de rodapé, é interessante também comentar que a Jane Austen é uma das primeiras, uma dos primeiros escritores, eu vou que até usar na forma universal, ainda que masculina, a explorar as possibilidades do discurso indireto livre, quer dizer, desta técnica do escritor que permite um acesso a interioridade das personagens e no caso da Elizabeth Bennet isso vai acontecer, então é bom que o leitor fique atento ao modo como nós vamos podendo acompanhar esse crescimento, esse amadurecimento interior dessa personagem. Eu espero que vocês tenham uma ótima experiência lendo o Orgulho e preconceito, que vocês se divirtam e tenham uma boa leitura.
Muito obrigada!