A leste, Rússia. A oeste, União Europeia. No meio, um país que já vinha sofrendo com um conflito armado desde 2014 e agora se vê invadido pelo vizinho.
Falo da Ucrânia, um dos países mais extensos da Europa, alvo de ataques militares russos em diversas partes do território desde o último 24 de fevereiro. A escalada de tensão entre os dois países se arrastava há pelo menos 4 meses, e tinha no centro a região de Donbass, palco de uma guerra que fez 14 mil vítimas nos últimos 8 anos e que tem ramificações que vão bem além das suas fronteiras. No último dia 21 de fevereiro, a Rússia reconheceu formalmente a independência de duas regiões separatistas localizadas nessa área - o que abriu a porta para o conflito em maior escala que a gente vê se desenrolar agora na Ucrânia.
Sou Camilla Veras Mota, da BBC News Brasil, e nesse vídeo explico qual a origem desse conflito Vamos começar olhando pra trás pra entender o presente. E bem pra trás: entre os séculos 9º e 13 o atual território da Ucrânia era parte da chamada Rus de Kiev, uma poderosa federação de tribos eslavas que se estendia do Mar Báltico ao norte até o Mar Negro no sul. Desde então, sua história tem se caracterizado pela dominação por potências estrangeiras - o Reino da Polônia, o Império Otomano, o Austríaco e, sobretudo, o Russo.
A zona oriental, que antes da Revolução de 1917 formava parte do Império Russo, passou a se chamar República Socialista Soviética da Ucrânia quando a União Soviética se estabeleceu, em 1922. Enquanto isso, a zona ocidental se encontrava principalmente nas mãos dos poloneses. Foi com a repartição de territórios durante a Segunda Guerra Mundial que a zona sob domínio polonês e outras áreas adjacentes foram integradas à República Socialista Soviética da Ucrânia.
Em princípio, também lhe pertencia a península da Crimeia. Essa região estratégica, situada no norte do Mar Negro, tinha sido anexada pelo Império Russo no século 18 e era uma demanda histórica da Ucrânia. Ainda assim, foi uma surpresa quando, em 1954, o então líder da União Soviética, Nikita Krushchov, atendeu ao pedido e passou a Crimeia de mãos russas a ucranianas.
Tudo isso sob o manto comum soviético - guarda essa informação porque ela é importante para entender o que vai acontecer mais tarde. Lembremos que em 1991 a União Soviética colapsa. A Ucrânia se consolida como país independente e mantém inicialmente uma sintonia com a Rússia, que tinha sido a maior e mais influente república soviética.
Com o passar do tempo, contudo, a Ucrânia passa a se aproximar mais da Europa. A ponto de, em 2012, elaborar um acordo de associação entre Ucrânia e União Europeia. Isso incomodou a Rússia, que passou a pressionar para que o acordo não saísse.
Até que, em novembro de 2013, quando estava tudo pronto para a assinatura, o então presidente ucraniano, Viktor Yanukovich, suspendeu as tratativas. A decisão repentina levou centenas de milhares de ucranianos às ruas, em direção à Praça de Independência de Kiev, para pedir a retomada do diálogo com o bloco econômico europeu. Começava ali o Euromaidan, uma série de manifestações e protestos que se estenderam por boa parte do país por vários meses.
Esse período turbulento deixou um saldo de mais de 100 mortos, até que, em 22 de fevereiro de 2014, Yanukovich fugiu da Ucrânia. Cinco dias depois, a Rússia tirou proveito da crise. Grupos armados pró-russos apoiados por Moscou tomaram as principais instituições da península da Criméia, cravaram a bandeira russa e convocaram um referendo de independência.
Em poucos dias, a região passou a ser controlada de fato pela Rússia. Mais tarde, o presidente russo, Vladimir Putin, reconheceu que muitos membros daqueles grupos armados pertenciam mesmo ao Exército russo. O ministro da defesa russo chegou a condecorar os oficiais com medalhas reconhecendo o que chamou de “recuperação da Crimeia”.
Todo esse episódio marcou um ponto crítico das relações entre Rússia e Europa e Estados Unidos. Provocou a expulsão da Rússia do G8, o grupo dos 8 países mais industrializados do mundo, e a implementação de uma série de sanções econômicas por parte da União Europeia contra Moscou nos anos seguintes. A Crimeia tem uma importância estratégica pra Rússia.
Em Sebastopol, no sul da península, fica a principal base naval russa no Mar Negro. Desde a independência da Ucrânia, Moscou pagava uma taxa anual a Kiev pelo uso da base, algo que não precisava mais fazer depois da anexação. Como comentei antes, essa região já havia sido parte do território russo - então, na visão Putin, a Rússia só estava recuperando uma área que na verdade lhe pertencia.
Um mês depois, forças pró-Rússia tomaram várias localidades no leste da Ucrânia, na bacia de Donbass, aquelas que mencionei no começo do vídeo, o que deu início a um confronto armado entre o exército ucraniano e os separatistas. No dia 11 de maio de 2014, os rebeldes declararam independentes o que chamaram de Repúblicas Populares de Donetsk e Luhansk - que até hoje não são reconhecidas internacionalmente. Desde o início da chamada guerra de Donbass entre ucranianos e forças pró-russas, a OTAN tem acusado a Rússia de apoiar militarmente os separatistas, o que Moscou nega.
Várias tentativas de acordos de paz, entre eles o protocolo de Minsk e o acordo de Minsk II, não conseguiram estabelecer um cessar fogo definitivo. Ucrânia, Rússia, Alemanha, França, representantes da Organização para a Segurança e Cooperação da Europa e representantes das chamadas Repúblicas Populares de Donetsk e Luhansk participaram das conversas, mas o conflito segue fazendo vítimas no leste da Ucrânia. A ONU denunciou a ocorrência de crimes de guerras na região de Donbass e o que chamou de “alarmante deterioração” dos direitos humanos.
A entidade calcula que cerca de um milhão e meio de pessoas que moravam na região tiveram que deixar suas casas nesses 8 anos. Além das vítimas diretas do conflito, há ainda os 300 passageiros do voo da Malásia Airlines que foi atingido por um míssil de fabricação russa no dia 17 de julho de 2014. Um episódio pelo qual nenhuma das partes até hoje se apresentou como responsável.
Vamos fechar o vídeo então falando sobre algumas questões subjacentes importantes do conflito. Rússia e Ucrânia compartilham laços históricos, étnicos e culturais. Especificamente no leste, a maioria da população fala russo, uma característica, aliás, usada como argumento por aqueles que defendem a anexação dessa região ao território russo.
União Europeia e Estados Unidos, por sua vez, veem a Ucrânia como potencial aliado em nível estratégico e militar, inclusive por sua localização geográfica - que é justamente o que, segundo analistas, o que preocupa Putin. Em 2008, a OTAN, capitaneada pelos Estados Unidos, prometeu à Ucrânia e à Geórgia, outra ex-república soviética, que seriam admitidas como membros da aliança. Naquele mesmo ano, a Rússia invadiu a Geórgia, apoiando separatistas da região da Ossétia do Sul.
O leste europeu é uma espécie de linha vermelha marcada pela Rússia, uma região pra qual Putin quer evitar que a OTAN estenda sua zona de influência. No meio disso tudo existe ainda uma questão econômica importante. O setor de energia também é chave pra entender os fatores que transcendem a disputa em si.
A Rússia construiu um enorme gasoduto ligando seu território à Alemanha, batizado de Nord Stream 2. A infraestrutura já está pronta, só precisa da certificação para começar a operar. Hoje, a maior parte do gás russo que chega à Europa passa pela Ucrânia - com o Nord Stream 2, ele chegaria à Alemanha sem necessariamente passar pelo país.
Um movimento que tiraria da Ucrânia uma receita de cerca de US$ 1 bilhão por ano. Segundo o presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, o projeto é também uma arma geopolítica do Kremlin. Uma vez que o gás não passaria mais pela Ucrânia, não haveria muitas barreiras que impedissem um potencial ataque da Rússia, que poderia continuar lucrando com a venda do combustível.
O bloqueio do Nord Stream 2 traria prejuízo não apenas à Rússia, mas também para a Europa como um todo, grande consumidora do gás do país. Ainda assim, foi isso que fez o chanceler da Alemanha, Olaf Scholz, que anunciou no último dia 22 que interromperia a certificação do gasoduto. Como dá pra perceber, o conflito que hoje se desenrola na Europa vai bem além dos limites territoriais e pode ter consequências a nível global.
A gente segue de olho nos próximos capítulos dessa crise. Acompanhe nossa cobertura pelo bbcbrasil. com, pelas nossas redes sociais e nosso canal no YouTube.
Obrigada e até a próxima.