Ildo muitas vezes é usado como grande exemplo daquilo que foi superado pela filosofia. Nós tínhamos o mito e aí vem o Logos, que vai suplantar os mitos. E aí se fala assim: "Não, Ildo foi superado então por Tales e os outros pré-socráticos, filósofos da natureza.
" Sendo que Ildo já havia suplantado e enterrado quase que de uma vez por todas o próprio mito. O mito não é a literatura; a gente muitas vezes erra ao pensar que, por mais que a literatura seja a única fonte que nós temos para acessar o que teriam sido os mitos, ele já não é mais a literatura. A literatura já não é mais um mito.
No momento em que cristaliza, ela enriquece e congela aquilo que era algo vivo. O mito precisa ser vivo para que seja realmente um mito. A história literária não é e não precisa ser de forma escrita; ela pode ser transmitida de forma oral.
Mas quando ela tem uma forma fixa, uma ordem dos fatos ali acontecendo dentro da obra literária já fixada ou prefixada, ou quando consegue fixar isso de forma prévia, isso já acaba destruindo aquilo que realmente era o mito na sua essência. O que faz com que o mito não seja uma explicação para fenômenos da natureza, por exemplo, ou para a existência das coisas, é justamente que o mito, por ser móvel, assim como as línguas, se desenvolve junto com elas. As línguas vão mudando aos poucos, conforme vão sendo usadas, e por isso se transformam.
Em 500 anos, uma língua é totalmente outra, e isso acontece com o mito também. O que nós vemos em Ildo é que ele consegue fixar de uma vez por todas, não só os mitos, assim como alguém que escreve um dicionário ou uma gramática e acaba fixando certos padrões da língua, que não é que não vão mais ser alterados, mas eles vão demorar mais para serem alterados. Então, quando vamos pensar no que acontece com a língua portuguesa na sua história, não é dos primeiros documentos escritos em português, ainda na Idade Média, até Camões, temos um tempo menor do que entre Camões e a nossa época.
Certo? Porém, nós temos uma variação linguística muito maior. Assim, entre o início da Língua Portuguesa de forma escrita e Camões, temos quase que dois idiomas diferentes.
Enquanto lemos Camões e percebemos diversas diferenças, vamos saber que ainda é a mesma língua. E se olharmos nas canções trovadorescas e tal, e Camões, veremos que ali há uma diferença muito grande. Camões acaba fixando muito da nossa língua e ela deixa de se desenvolver, de se transformar, na verdade, com a mesma velocidade que vinha se transformando.
A mesma coisa acontece a partir de Ildo. É óbvio que com Homero também, mas a partir de Ildo, inclusive, o vocabulário fica mais fixado, e os mitos todos — a genealogia dos deuses, a genealogia do cosmos inteiro, a origem do homem, a origem dos sofrimentos humanos e todas essas coisas — acabam sendo fixas. Isso não diz respeito somente à língua; é óbvio que Ildo fixa muito do que é a língua grega, assim como Homero também, mas Ildo é particularmente importante para que isso seja feito.
Porém, ele fixa a própria cosmovisão e a própria forma de enxergar as coisas. A partir daquele momento, todo mundo passa a dar por subentendido que as coisas devem ser vistas dessa forma e não há mais espaço para novas interpretações tão livres assim, ou novas narrativas que contradigam a do próprio Ildo. Pouquíssima gente vai se arriscar a contar de novo a mesma história.
Isso acontece muitas vezes quando as histórias são tiradas do contexto. Não são inventadas a partir do nada; isso vai acontecer ao longo de toda a literatura. Digamos que alguém de nós vai pensar: "Não, eu vou escrever literatura brasileira.
Eu vou falar do Rio de Janeiro no Segundo Reinado. " Bom, Machado de Assis já falou; você vai pegar justamente esse tema para competir com um cara como Machado de Assis, para falar daquela mesma realidade, sendo que ele vivia lá e você já não vive mais ali. Por mais que viva no Rio de Janeiro, já não é mais aquela realidade.
Então, você vai pegar outro tema e deixar aquilo cristalizado da forma que Machado de Assis havia deixado. O que é, então? Isso é um movimento normal.
Logo, nós não podemos dizer que Ildo foi superado pelo filósofo, porque ele já havia superado e cristalizado algo que antes era bastante anárquico e muito difícil de ser transmitido sem a cristalização literária. Então, são duas coisas diferentes. Isso faz com que nós consigamos enxergar a importância que existe na literatura.
Não é só literatura; não é entretenimento. Literatura não é só a expressão da cultura. Não, ela é a forjadora da cultura.
O teatro é a expressão da cultura de um povo; ele é o forjador da cultura de um povo com o teatro grego. O que acontece com todos aqueles mitos mais importantes, não é? Do ciclo troiano, do ciclo.
. . Tebano, eh, Hércules.
E tudo aquilo fica cristalizado de tal forma que aquilo passa a determinar o que é cultura grega. Não é o reflexo da cultura grega, né? Ele até nasce, mas eh da cultura eh viva, né, acontecendo, das pessoas contando essas histórias, se referindo a esses personagens.
Mas no momento que ele cristaliza, agora tudo vai ser canalizado a partir daquela obra, e isso faz com que a cultura realmente se engrandeça. Isso faz com que a cultura seja acessível a um número muitíssimo maior de pessoas. Isso faz com que surja o que nós podemos dizer que é uma nação, eh, um povo com uma unidade cultural eh minimamente reconhecível, eh, então.
Eh, nós, ao estudarmos a história da literatura, ao analisarmos a importância que Ildo tem, nós conseguimos enxergar ali, justamente, eh, isso. Não é que o escritor, o poeta, uma obra como a Teogonia, como os Trabalhos e os Dias, elas são forjadores da cultura. Inclusive, nós não teríamos nenhuma filosofia, nós não teríamos nenhum desenvolvimento de método científico, do logos, ou qualquer coisa do tipo, né, que gostam de usar em detrimento da literatura.
Nós não teríamos nada disso em literatura. Tanto é assim que muitos outros povos até tiveram literaturas e cosmovisões bastante semelhantes, né, hoje, eh, mas só foram cristalizados em forma literária, quase, né, eh, já muito perto do cristianismo ou já na época do cristianismo, né, como os povos germânicos, por exemplo, eh, também têm os seus deuses, os seus mitos cosmogônicos e todas essas coisas. Ah, mas não cristalizaram, não tiveram um gênio poético literário como Deildo, e por isso que não surge filosofia nos povos germânicos e nem em nenhum outro.
A filosofia é um fenômeno grego, né? E, por comparação, nós chamamos, nós dizemos que a filosofia hindu, chinesa, e todas essas coisas, mas é um fenômeno grego, né, que eles mesmos admitiam não terem sido os grandes criadores. Isso aí vem tudo do Egito, segundo eles mesmos, né?
Eh, os conhecimentos. Mas agora a forma de pensar, eh, e essa divisão, e essa busca incessante pela verdade é um fenômeno grego. E isso só existe, ah, depois de terem sido cristalizadas a, de uma a, e comunicado entre muitas pessoas uma cosmovisão bastante específica.
Isso se deu a partir da literatura. Sem a literatura, sem essa cristalização de narrativas, do vocabulário, da linguagem, nós não temos cultura, nós não temos o desenvolvimento cultural, intelectual, institucional, inclusive de sociedade alguma. A base de todas essas instituições é justamente a literatura.
Sem isso, dá para se dizer que não existe mais nada.