Quem vem pela primeira vez à Alemanha fica impressionado com o transporte coletivo sobre trilhos. É tanto tipo de trem: de curta, média, longa distância, trem-bala. Aí muita gente, como eu, se faz a pergunta: por que o Brasil não tem isso também?
Bem que podia, não é. Mas, como você pode imaginar, não é tão simples. Eu conversei com diferentes especialistas do setor para te ajudar a entender neste vídeo o seguinte: por que o Brasil não tem uma rede ferroviária minimamente eficiente.
. . e quais são as chances de isso acontecer num futuro próximo?
É óbvio que o Brasil não é igual à Alemanha em termos de transporte ferroviário. Nunca foi, para falar a verdade. Mas um dia quis ser – ou podia ter sido.
Olha só essas fotos do tempo do Brasil imperial. E essas da Europa daquela mesma época, final do século 19. Tem alguma semelhança, não tem?
Se a gente colocar imagens atuais, nem de longe os dois cenários se parecem. É como se o Brasil tivesse enferrujado, parado no tempo. Mas eu só estou falando assim e mostrando para gente ter uma ideia, uma noção do atraso brasileiro.
Essa aqui é uma comparação muito simplificada. O que será que aconteceu que a coisa desandou? Quando foi que os trens deixaram de ser prioridade no Brasil?
Vamos lá. Vou tentar resumir essa história, porque ela tem a ver com decisões políticas de muito, muito tempo atrás. Você se lembra ou já ouviu falar dessa frase aqui: “governar é abrir estradas”?
Era o lema do último presidente da República Velha, Washington Luís, em meados dos anos 1920. E foi levado muito a sério. Washington Luís ficou conhecido até pelo apelido de “estradeiro”, de tantas rodovias que construiu durante a administração presidencial, de 1926 a 1930.
E é com ele que começam os anos de decadência dos trens no Brasil. O auge havia sido no século anterior. As locomotivas apareceram para substituir o lombo dos animais no transporte do principal produto da economia brasileira naquele período: o café.
Os trens evitavam que a carga se perdesse no caminho. A primeira estrada de ferro do Brasil, ligando a serra de Petrópolis ao Porto de Magé, no Rio de Janeiro, foi inaugurada em 1854. A partir dela vieram muitas outras, que durante décadas transformaram a infraestrutura logística do país.
Em 1888, por exemplo, já existiam pouco mais de 9 mil km de ferrovias em exploração. Mais ou menos um terço de toda a malha ferroviária atual. Lembra das fotos que eu mostrei ali no começo, não é?
Pois é. Mas os tempos mudaram no início do século 20. Veio a crise de 1929, o comércio de café entrou em colapso, a rentabilidade dos trens caiu, e o Brasil mudou de rumo.
Voltou os olhos para a indústria. Para ser mais específico, a indústria automobilística. Como eu falei, esse movimento de mudança começou com Washington Luís, e se estabeleceu mais tarde, nos anos 1950, com Juscelino Kubitschek.
Na gestão dele, o asfalto roubou o protagonismo do trilho com o início do chamado rodoviarismo no Brasil. A visão era de que o Brasil podia se desenvolver rápido e gerar empregos ao investir na montagem e fabricação de carros – assim como nas vias públicas de longa distância para eles circularem. Uma perspectiva importada dos Estados Unidos.
E aqui eu vou compartilhar com vocês um relato importante do Marcus Quintella, diretor da FGV Transportes. Ele explica por que esse foi um erro histórico que tem consequências no Brasil de hoje: Pois é. E a opção por concentrar a logística nas rodovias também é herança de um elemento característico do JK: a pressa.
Os famosos 50 anos em 5, lembra? Ele queria de todo jeito que o país se industrializasse rápido, e por isso colocou energia na estruturação de uma malha rodoviária. Era um jeito de suprir a demanda por mobilidade nos centros urbanos brasileiros, em pleno crescimento, e de ter como escoar mercadoria.
Não que as ferrovias não cumprissem esse papel. Elas cumpriam – ou poderiam cumprir. Mas tinham deixado de dar lucro.
Sem contar que não se constrói um trilho de trem na mesma rapidez que uma estrada – nem com o mesmo orçamento. Quem me falou isso foi o Vicente Abate, presidente da Associação Brasileira da Indústria Ferroviária. Está ali no limite de tempo de um mandato presidencial.
Mas a gente sabe que pode ter atrasos, ajustes orçamentários. E no Brasil, segundo os especialistas que eu ouvi, esse é um ponto problemático. Os presidentes historicamente na maioria das vezes não costumam dar continuidade aos projetos uns dos outros.
Muito menos planejam no longo prazo, pelo medo de que o próximo não siga o planejado. A rodovia, nesse sentido, acabou até certo ponto facilitando a vida dos políticos. Ficavam prontas enquanto eles ainda estavam cumprindo o mandato.
Serviam de vitrine. Esse é mais um fator que explica a negligência das ferrovias no passado – e hoje. Ele se soma aos outros que eu já citei.
Bom, com JK os carros, os caminhões ganharam importância, mas isso não precisava ter significado o abandono das linhas de trem, não é? Na teoria, não significou. Na prática, é outra história.
O Estado brasileiro assumiu na década de 1950 as ferrovias devolvidas pela iniciativa privada por conta da crise no setor cafeeiro. Unificou a administração para manter o serviço. Só que a situação dos trilhos – especialmente de passageiros - foi ladeira abaixo nas décadas seguintes.
Tanto é que hoje, segundo a Agência Nacional de Transportes Terrestres, a ANTT, só existem dois trechos em operação regular levando passageiros no Brasil: a Estrada de Ferro Carajás, entre Parauapebas, no Pará, e São Luís, no Maranhão, e a Estrada de Ferro Vitória a Minas, entre Belo Horizonte e Vitória, no Espírito Santo. Tem alguns trens turísticos, mas não estou contando eles aqui. Agora vamos falar um pouco da situação atual?
O Brasil tem hoje uma densidade de malha ferroviária baixa na comparação com vizinhos de América Latina, como Argentina e México. E não muda muito se a gente considerar somente os membros dos BRICS, o grupo das cinco principais economias emergentes. Nesse caso, o Brasil está muito, mas muito longe mesmo da Índia, que tem o quarto maior sistema ferroviário do mundo, e China, por exemplo (vou subir os números).
São países com ferrovias consistentes e que já estão mirando nos trens-bala. Mas onde os governos subsidiam o transporte, às vezes até ficando no prejuízo mesmo. Independentemente disso, em pouco mais de uma década, a China construiu quase 40 mil quilômetros de ferrovias de alta velocidade.
Esse tema está explicado em detalhes na nossa série Não Tem Planeta B, que você encontra na nossa playlist no YouTube. O Brasil também autorizou recentemente a construção de um trem-bala de São Paulo ao Rio, mesmo sem ter infraestrutura. É que agora isso é possível.
É a modalidade de autorização. Nela, a infraestrutura não precisa existir. O Estado vai lá e autoriza a iniciativa privada a construir uma linha férrea.
Mas tudo fica nas mãos de quem pediu a permissão: apresentar projeto, obter licenças, inclusive ambientais. A outra modalidade, mais comum e que existe desde a década de 1990 – e até antes, no império, depois República – é a concessão. É quando o governo constrói a infraestrutura básica, o trilho, e concede a uma empresa a operação de um trecho fazendo um leilão, por exemplo.
Foi o que aconteceu com a Vale. Ela teve a concessão da estrada de ferro Vitória a Minas renovada em 2020 por mais 30 anos. Diante disso, dá para dizer que uma rede eficiente de trens no Brasil é um sonho impossível?
Eu conversei também com a consultora sênior para mobilidade do instituto alemão Fraunhofer, a Marielisa Padilla. E ela me disse que o importante é fazer um planejamento de médio, longo prazo. Sem esquecer de focar no transporte ferroviário pensando no futuro das cidades, nas metas climáticas, já que os trens são considerados de baixo impacto ambiental.
E olha, eu falei no começo do vídeo dos trens, de como a gente fica admirado aqui na Alemanha, e pode parecer que é como se a malha ferroviária alemã não tivesse problemas. Mas tem sim, viu. Muitos.
Não é só falta de pontualidade. Apesar disso, é preciso reconhecer que funciona. Bem ou mal, funciona.
Quem sabe um dia, no Brasil também.