Ela acreditava que a criança estabelecia a transferência desde cedo e, como eu disse nas aulas passadas, ela dizia assim: "Eu analiso as minhas crianças como Freud analisa os seus adultos, né? Os adultos deitam-se no divã e falam dos sonhos. As crianças brincam.
" Então, ela é responsável, digamos assim, por criar essa técnica do brincar, né? A técnica do brincar consiste em apresentar para a criança uma série de brinquedos, né? Então, o que um analista infantil, naquela época, deveria ter?
Eu acho bonito que ela tem um texto no qual coloca uma série de recomendações, né? Tipo um manualzinho. Ela fala assim: "O analista tem que ter uma pia para a criança brincar de se molhar, lavar as mãos, brinquedos pequenos, brinquedos grandes, folhas, cola, tesoura, lápis, tinta.
" É um momento de liberdade para essa criança, de criatividade, né? E ela diz assim: "O que eu acho muito bonito é que, em nenhum momento e em nenhuma ocasião, a análise deve estar atravessada por questões morais, né? Ali, a criança vai fazer o que ela quer; ela vai associar livremente, desde que ela não se coloque em risco e nem parta para uma agressão, né?
Com o analista, tudo acontece na sala de análise. " E eu acho que aqui é onde a gente entra, né? Analisando crianças.
Eu tinha uma professora na graduação que dizia assim: "Quem analisou crianças analisa adultos com o pé nas costas. " E eu acho que faz todo sentido, né? Porque, quando a gente atende criança, a gente não atende só a criança; a gente atende a escola, a gente atende os pais, avós, a família inteira que está ali, né?
Às vezes, por mais que venha só a criança para consulta, essa criança já está toda atravessada por todos esses valores familiares e culturais nos quais ela está inserida, né? Então, eu acho que é um desafio, porque às vezes a gente tenta colocar um pouco da nossa moralidade, de uma restrição, né? De uma lei, e isso não vale, né?
A criança tem que sentir-se confortável, livre, para poder criar e associar livremente. Antes de entrar na teoria propriamente dita, eu lembro que foi muito útil para mim, porque a minha experiência clínica começou com crianças, né? Eu fiquei anos analisando crianças.
Quando terminei a formação, fiquei em análise porque não me sentia pronto para analisar adultos. E aí, minha supervisora clínica falava assim: "Alê, você analisa adulto o tempo todo; você que não sabe, né? Você tem que conversar com os pais, você tem que conversar com a escola.
" Então assim, vai em frente. Depois de alguns anos atendendo crianças, foi que comecei a atender adultos, né? Eu acho interessante que eu lembro de um recorte e acho que foi justamente aqui que o pensamento da Melanie Klein começou a fazer sentido na minha prática.
Quando entrou um pacientezinho no meu consultório, né? E aí eu tinha um pote de balas em cima da minha mesa. Ele abre o pote de balas, começa a comer as balas e vai jogando o papel no chão, né?
Eu, claro, ali com a minha neurose obsessiva, pensando: "Nossa, o que é isso? Sujando todo meu consultório, jogando papel de bala no chão! Como que eu vou fazer com isso?
" Mas só que eu não falei nada. E aí, depois, ele pega um carrinho. Esse carrinho tinha uma caçamba, era um caminhão, e ele pega esses papéis de bala e coloca dentro dessa caçamba, né?
E aí eu arrisco uma interpretação: eu falo assim: "Nossa, tá com tanta raiva da mamãe que tá colocando tudo sujo dentro dela, né? " Porque a queixa é que ele estava muito agressivo na escola por conta da ausência dessa mãe que tinha que passar o dia todo trabalhando para poder manter a casa, já que ela era mãe sozinha, né? Não contava com uma rede de apoio.
Então, ele estava muito agressivo. E aí, quando faço essa interpretação, né? "Nossa, tá colocando todo lixo, toda sujeira dentro da sua mamãe, toda sua raiva dentro da mamãe," ele olha para mim e me responde assim: "Claro, né?
Ela me deixa o dia todo sozinha! " Então, isso é interessante para a gente perceber que, se eu tivesse falado para ele: "Que sujeira é essa no meu consultório? Pega esses papéis, joga no lixo," se eu tivesse tido uma postura mais educativa do que analítica, essa associação não iria acontecer e ele não conseguiria expressar a raiva, o ressentimento que ele tem em relação à mãe dele, né?
Por ficar sozinho em casa. Então, é importante que a gente pense nesse sentido. Seja assinante da Casa do Saber, mais e confira essa aula completa e também 250 outros cursos sobre filosofia, história, psicanálise, psicologia, artes e muitos outros temas.
Assista agora e quando e onde quiser!