Ao bater na porta para cobrar o aluguel atrasado, o milionário não esperava encontrar aquela cena. Uma menina franzina, de olhos cansados, costurando a mão, exausta, tentando terminar mais um vestido para ajudar a mãe. O que ele não sabia era que aquela menina era uma quarta-feira quente, dessas, em que o sol parece não dar trégua para ninguém. Marcelo, com a camisa social já grudando no corpo de tanto calor, estacionou sua caminhonete prata na frente de uma casa pequena, de muros baixos e portão velho. Aquela era uma das muitas casas que ele alugava pelo bairro. Pequena, sem
graça, nada que chamasse atenção. Era o tipo de imóvel que ele nem lembrava direito que tinha, até o inquilino atrasar o aluguel. Desceu do carro com o rosto sério, sem muita paciência. pegou uma pasta no banco do passageiro, conferiu o nome da moradora e respirou fundo antes de tocar a campainha. Ninguém atendeu. Esperou mais um pouco, olhou pro lado e, antes de tocar de novo, a porta abriu devagarzinho. Marcelo olhou para baixo e viu uma menina. Ela devia ter uns 7 anos, magrinha, de olhos grandes e cabelos presos num coque bagunçado. Ela não disse oi,
nem perguntou quem era, só olhou para ele e piscou devagar. como quem tá cansada até para pensar. Ele achou estranho, perguntou se a mãe dela estava em casa e ela fez que sim com a cabeça, mas não chamou ninguém, só se virou e foi andando para dentro da casa, deixando a porta aberta. Marcelo hesitou um pouco, mas entrou. O que ele viu o deixou travado por uns segundos. A menina caminhou até uma cadeira baixa, sentou e continuou o que já estava fazendo antes dele chegar. Tinha uma pilha de tecidos no chão, uma máquina de costura
velha em cima da mesa e, ao lado dela várias peças de roupa, umas já prontas, outras pela metade. A menina voltou a costurar como se aquilo fosse a coisa mais normal do mundo. Mas o que deixou Marcelo desconcertado foi o estado dela. As mãos tinham pequenos curativos, os dedos estavam marcados de linha e agulha e o olhar dela era distante, quase apagado. Ele olhou em volta da sala. Tudo ali parecia apertado, escuro, com cheiro de mofo e chá. Tinha uma televisão ligada no volume baixo, mostrando um programa de fofoca que ninguém estava assistindo. No sofá,
uma manta dobrada e uma garrafa térmica ao lado de uma caneca. Marcelo perguntou o nome dela. Ela disse quase num sussurro que era clara. Ele tentou puxar assunto, perguntou se a mãe dela estava bem e ela respondeu só com um. Tá deitada, descansando. A menina não parava de costurar. Parecia hipnotizada por aquilo, como se o mundo fosse só ela, os tecidos e a agulha. Marcelo ficou parado, meio sem saber o que fazer. Não era comum isso acontecer. Normalmente ele chegava, cobrava o aluguel, recebia as desculpas ou o pagamento e ia embora. Mas aquela menina ali,
costurando daquele jeito, o deixou sem reação. Ele perguntou se o aluguel estava pronto. Clara parou por um segundo, puxou uma caixinha de madeira debaixo da mesa e tirou de lá um envelope amassado. Entregou para ele. Com a mão tremendo, ele pegou o envelope, abriu ali mesmo e contou. Era menos da metade do valor. Fechou o envelope de novo e ficou olhando para ela. Pensou em reclamar, dizer que aquilo não resolvia, que precisava do valor todo, mas ficou calado. Ela já tinha voltado a costurar. A expressão dela não mudava. Era como se estivesse cansada demais para
se preocupar. Foi quando ele escutou uma tosse vinda do quarto. Uma tosse seca, forte, que fez até a parede tremer. Ele olhou pro corredor, depois voltou o olhar pra menina. Clara continuou ali firme, como se já estivesse acostumada com aquele som. Ela nem virou o rosto, só falou baixinho, quase como se estivesse falando com ela mesma. Minha mãe tá dodói. Marcelo deu dois passos em direção ao corredor, mas parou. Não era da conta dele. Ele não era parente nem amigo. Era só o dono da casa. estava ali para receber o que era dele e pronto.
Mas aquela imagem da menina pequena daquele jeito, costurando sem parar, com o som da tosse ao fundo, mexeu com ele de um jeito estranho. Ele perguntou de novo se a mãe dela estava tomando remédio. Clara só respondeu que sim, que ela tomava, uns que deixavam ela deitada quase o dia inteiro. disse que às vezes a mãe não conseguia nem levantar para comer. Marcelo ficou em silêncio, olhou de novo pro envelope, pensou em devolver, mas não conseguiu, guardou no bolso, agradeceu e foi embora devagar, sentindo o sol queimando o rosto, mas o coração gelado. No caminho
até o carro, cruzou com a vizinha da casa ao lado, uma mulher de olhar julgador, com os braços cruzados e o nariz empinado. Ela disse: "Tá difícil aquela casa aí, viu? A mulher vive doente e a menina que cuida de tudo. Vai dar problema isso aí, você vai ver." Marcelo não respondeu, entrou no carro, ligou o motor e saiu sem olhar para trás. Mas no retrovisor ele ainda viu a menina pela janela. Clara não parava de costurar. Naquela noite, depois que Marcelo foi embora, Clara continuou costurando até o sono vencer. A cabeça caía pra frente,
os olhos piscavam devagar, mas ela insistia. Terminou a última bainha, dobrou o pano com cuidado e apagou a luz da sala. No escuro, foi até o quarto da mãe. Andava devagar, arrastando os pés no chão de cimento frio. En par caminho. Pegou uma garrafinha com água e um paninho úmido. O quarto era pequeno, tinha cheiro de remédio e um silêncio pesado. Patrícia estava deitada de lado, os olhos fechados e o rosto suado. A respiração era fraca, arrastada, como se cada vez que puxasse o ar fosse um esforço gigante. Clara se aproximou, molhou o pano na
água e passou devagar na testa da mãe. Depois ajeitou o travesseiro e puxou o lençol até o pescoço dela. Patrícia abriu os olhos devagar, com dificuldade, e sorriu de leve quando viu a filha ali. Clara se sentou na beira da cama e disse baixinho: "Já terminei os vestidos da dona Lúcia. Amanhã vou entregar. Ela vai pagar certinho. Patrícia tentou falar alguma coisa, mas só saiu um som fraco, quase nada. A menina entendeu mesmo assim. disse que estava tudo bem, que ela podia descansar, que ia cuidar de tudo. No canto do quarto tinha uma caixa de
sapato cheia de frascos e cartelas de comprimidos. Clara sabia a hora de cada remédio. Pegou um deles, colocou o comprimido na colher com um pouco de água e ajudou a mãe a engolir. Não fez cara feia, não demonstrou medo. Era como se aquilo tudo já fizesse parte da rotina dela, como escovar os dentes ou tomar café. Depois que a mãe dormiu de novo, Clara deitou no colchão no chão, do lado da cama, cobriu-se com um cobertor fininho e ficou olhando pro teto. Não demorou muito e adormeceu, mas o sono era leve. Qualquer movimento da mãe
fazia ela abrir os olhos e levantar num pulo. No dia seguinte, bem cedo, ela se trocou sozinha, prendeu o cabelo e colocou as peças de roupa numa sacola. Antes de sair, deixou tudo arrumado. Remédio separado, água filtrada num copo, biscoito em cima da mesa. Escreveu num papel. Volto logo, mãe. Não levanta sozinha. Deixou o bilhete na cabeceira da cama, beijou o rosto dela e saiu. Pela rua. Clara andava rápido, com a sacola pesada e o sol já esquentando. O asfalto passou por vizinhos que fingiam não ver. Alguns só observavam com cara de pena, outros comentavam
baixinho uns com os outros. Dona Ivone, a mesma que falou com Marcelo no dia anterior, olhou pela janela e torceu o nariz quando viu a menina passando. "Essa menina vive sozinha na rua, daqui a pouco vai dar problema", resmungou para si mesma. Na casa da dona Lúcia, Clara entregou os vestidos. A mulher ficou satisfeita com o trabalho, elogiou as costuras e pagou um pouco mais do que o combinado. "Você é muito caprichosa", disse sorrindo. Clara agradeceu, mas não perdeu tempo. Guardou o dinheiro com cuidado, pediu mais tecido para fazer novas peças e foi embora com
o mesmo passo apressado. Ao chegar em casa, encontrou a mãe acordada, tentando levantar sozinha. Patrícia estava pálida, suando, segurando na beirada da cama. Clara correu, segurou a mãe pelos ombros e ajudou ela a se deitar de novo. Ficou brava, mas não gritou. Só disse com a voz embargada: "Você prometeu que ia esperar." Patrícia, com os olhos cheios d'água, disse que só queria ir até a cozinha pegar um chá. Clara respondeu que podia ter pedido, que ela ia buscar. pegou o copo, fez o chá, trouxe na mão e ajudou a mãe a beber. Patrícia chorou. Disse
que se sentia inútil, que não aguentava mais depender da filha para tudo. Clara se ajoelhou no chão e segurou as mãos dela. Disse que não era incômodo, que era só o jeito delas viverem por enquanto, que quando a mãe melhorasse tudo ia mudar. Patrícia não respondeu, só acariciou o rosto da menina com os olhos cheios de culpa. Naquela tarde, Clara começou a desenhar novas peças. Usava um caderno velho com páginas soltas. Tinha aprendido a costurar sozinha, observando a mãe nos tempos em que ela ainda tinha força. Agora era ela que fazia tudo, desde cortar os
tecidos até pregar botões e ajustar as medidas. Usava uma fita métrica rasgada. e uma tesoura que vivia cega. Mesmo assim não errava. Tinha precisão, cuidado, paciência. Cada ponto era feito com carinho. Enquanto costurava, escutava a mãe tir no quarto. Às vezes ia lá ver se estava tudo bem. Voltava, terminava mais uma peça, dobrava, colocava na pilha certa. O tempo passava devagar dentro daquela casa. O barulho da máquina de costura era o único som constante, como se marcasse as horas. Quando anoiteceu, Clara esquentou arroz com ovo, serviu num prato fundo e levou pra mãe. Sentou no
colchão de novo e comeu o dela ali, sem reclamar. Assistiram TV juntas num volume bem baixo. Era uma novela velha que a mãe gostava. Clara não entendia direito, mas gostava de ver a mãe rindo nas partes engraçadas. Antes de dormir, Clara voltou a lavar os panos de limpeza da casa e esfregou o chão da cozinha com sabão. Depois, deu banho na mãe com paciência, trocou a roupa dela e arrumou a cama. Foi um banho rápido, mas cheio de cuidado. Patrícia, já deitada, segurou a mão da filha e pediu desculpas por não estar presente como antes.
Clara disse que não precisava pedir desculpa por nada. Naquele quarto escuro, com cheiro de chá e pomada, ficava claro quem cuidava de quem. Patrícia era a mãe, mas clara é que fazia tudo. Ela segurava a casa, cuidava da doença, fazia o dinheiro aparecer, mesmo que fosse pouco. Era uma criança cuidando de uma adulta. Era uma filha sendo mãe. Dois dias depois, o sol ainda nem tinha esquentado direito quando Marcelo decidiu passar novamente na casa da Clara. O envelope que ela tinha entregue com o dinheiro incomodava ele desde o dia que saiu dali. Não era pela
quantia, mas pela imagem da menina costurando, com a mão cheia de curativos e o olhar sem vida. Tinha alguma coisa ali que mexia com ele, mas ele não sabia se era preocupação de verdade ou só uma culpa chata que não deixava ele em paz. Estacionou o carro no mesmo lugar de antes, desceu devagar e ficou parado na frente do portão por alguns segundos. Olhou a casa de cima a baixo. Tudo parecia igual. O mesmo silêncio, o mesmo ar de cansaço grudado nas paredes. Tocou a campainha e esperou. Dessa vez foi a mãe quem apareceu. Patrícia
usava um lenço amarrado na cabeça, a pele ainda mais pálida, os olhos fundos. Abriu a porta com esforço, apoiada na lateral. Forçou um sorriso quando viu Marcelo, mas o rosto dela mostrava que não tinha muita energia nem para isso. "Oi, o senhor voltou?", disse ela com a voz fraca. "Bom dia." Voltei, sim. Só queria conversar um pouco. Marcelo respondeu, ajeitando a camisa no ombro, como quenta, meio desconfortável. Ela abriu a porta um pouco mais e deixou ele entrar. A sala ainda estava cheia de tecidos, mas estava mais arrumada que da última vez. Clara estava ali
sentada mexendo numa barra de calça. Quando viu Marcelo, levantou rápido e ficou em pé do lado da mãe. "Fica tranquila, Clara. Eu só vim conversar", disse Marcelo, tentando aliviar o clima tenso. Patrícia fez sinal para ele se sentar e sentou também com dificuldade. Clara saiu da sala, foi até a cozinha e voltou com um copo de água, entregando pra mãe. Marcelo observava tudo em silêncio. "Eu queria pedir desculpa pela situação da última vez. A gente não gosta de atrasar as coisas. É que tá difícil, sabe?", disse Patrícia, bebendo um gole da água com cuidado. Marcelo
ficou olhando pro chão por um tempo, respirou fundo. Eu entendo, mas eu tenho contas para pagar também. Tenho outros imóveis. Se eu abrir exceção para vocês, vou ter que abrir para todo mundo", falou sem muito jeito. Patrícia assentiu com a cabeça, como quem já esperava aquilo, mas mesmo assim tentou de novo. "A Clara tá costurando bem, muito bem, na verdade. Ela pega serviço de vizinha, de algumas senhoras da rua de baixo. Se o senhor conhecer alguém que precise de costura, a gente pode fazer. Não quero caridade, só mais serviço. Marcelo passou a mão no rosto.
Por dentro ele sentia um peso, mas por fora manteve o mesmo tom. Patrícia, olha, eu admiro a força de vocês, de verdade, mas eu não tô nessa vida para resolver os problemas dos outros. Eu trabalho muito. Ralei para chegar onde cheguei. Não é fácil manter as coisas em pé. Ele fez uma pausa. Eu não sou mal, só realista. Eu venho cobrar porque é o certo. E se eu souber de alguém precisando de costura, eu aviso, mas não posso prometer nada. Clara ficou quieta o tempo todo, em pé, com as mãos atrás do corpo. Os olhos
dela não piscavam. Patrícia agradeceu mesmo assim. Obrigada por ter vindo e por escutar. Marcelo levantou, se despediu e saiu da casa. Enquanto fechava o portão, ouviu a tosse de Patrícia vindo da sala. A mesma tosse que ele já tinha escutado da última vez, agora mais forte. Ele travou no portão por uns segundos, mas depois foi embora. dentro do carro, ligou o ar condicionado e encostou a cabeça no banco. Pensava na menina, na mulher doente, na costura, no envelope com pouco dinheiro. Mas ele empurrou tudo isso para um canto da mente. Repetia para si mesmo que
cada um tinha seus problemas, que não era papel dele resolver, que ele tinha lutado sozinho na vida e ninguém ajudou. então que os outros fizessem o mesmo. Enquanto isso, lá dentro, Clara sentou de novo à frente da máquina e continuou a costurar, só que dessa vez com os olhos brilhando. Mas não era brilho de alegria, era de raiva engasgada, de uma tristeza que ela ainda não sabia explicar, mas sentia no corpo inteiro. Mais tarde, naquele mesmo dia, Patrícia passou mal, muito mal. desmaiou no banheiro. Clara, assustada, tentou segurar a mãe, mas não deu conta. Gritou
por socorro. Um vizinho escutou e entrou correndo. Chamaram o Samu. Enquanto a ambulância não chegava, Clara ficou sentada no chão do banheiro, abraçada ao corpo da mãe, tentando manter ela acordada. As mãos dela tremiam e ela sussurrava no ouvido da mãe. Fica comigo, por favor. Não me deixa sozinha. Dona Ivone apareceu na porta da casa, com os braços cruzados e o olhar carregado de julgamento. Não entrou, não ofereceu ajuda, só ficou ali observando de longe. Ela adorava saber de tudo antes dos outros e agora, com aquela cena, ia ter muito o que falar no bairro
inteiro. Quando a ambulância chegou, Clara foi junto de mãos dadas com a mãe, com o rosto sujo de lágrima e o coração disparado. Enquanto isso, Marcelo do outro lado da cidade entrava num restaurante caro com um amigo de infância. ria alto, tomava chope, contava piadas antigas, mas lá no fundo uma imagem não saía da cabeça dele. Uma menina de 7 anos com curativos nos dedos, segurando um envelope com pouco dinheiro. Na manhã seguinte, Marcelo acordou mais cedo do que o normal. Tinha dormido mal, revirando na cama a noite inteira. Por mais que tentasse não pensar,
aquela imagem da Clara, parada ao lado da mãe doente, com o rosto cheio de medo e cansaço, não saía da cabeça dele. Tentou ignorar, ligou a TV, mexeu no celular, abriu o notebook para ver e-mails, mas nada segurava na atenção dele por mais de 5 minutos. foi até a cozinha, passou um café forte e tomou sem açúcar, do jeito que fazia quando precisava acordar pra vida, como ele mesmo dizia. Ficou de pé encostado na pia, olhando pro nada. De repente, como se um gatilho tivesse sido puxado, a mente dele viajou para um lugar que ele
evitava fazia anos, um canto do passado que ele mantinha trancado como um porão sujo, mas agora a porta tinha se aberto sozinha. Quando era criança, Marcelo morava com a mãe em um quartinho nos fundos de uma casa em Santo André. O pai sumiu antes dele completar dois anos. Nunca soube o motivo. A mãe, dona Azira, era diarista e se virava como podia. Marcelo cresceu vendo a mãe trabalhar de domingo a domingo. Pegava dois ônibus por dia para limpar casas ricas enquanto ele ficava com uma vizinha. Às vezes nem comida tinha. Quando o aluguel atrasava, o
dono do imóvel aparecia com cara fechada e ameaçava botar os dois na rua. Era sempre a mesma coisa: cobrança, humilhação, medo. Um dia, dona Azira passou mal e desmaiou no serviço. Estava com pressão alta, estressada, sem comer direito. Marcelo tinha 10 anos na época. Lembra de ter visto a mãe voltar para casa com o olho roxo, porque caiu e bateu na quina da pia. Naquela noite, ele prometeu para si mesmo que ia dar um jeito de sair daquela vida, que nunca mais ninguém ia olhar para ele de cima, que um dia ia ter dinheiro suficiente
para ninguém nunca mais pisar na cabeça dele e conseguiu. Ralou, vendeu roupa na rua, lavou o carro, fez frete, trabalhou em oficina. Com 22 anos, montou uma lojinha. Cresceu devagar, depois mais rápido. Investiu em imóveis. Comprou dois apartamentos, depois três, depois mais. Hoje tinha sete propriedades alugadas, nunca mais passou o aperto. Mas no meio desse caminho todo, Marcelo virou outra pessoa. Foi endurecendo por dentro, deixando as lembranças no fundo da mente, escondidas, como se nunca tivessem existido. Só que agora, depois de ver a Clara e a mãe dela, tudo tinha voltado de um jeito esquisito,
meio sufocante. Não era saudade nem tristeza. Era um tipo de raiva mal resolvida. uma mistura de vergonha e orgulho. Ele não sabia direito o que era, mas o incomodava. Terminou o café e foi até o escritório. Sentou na cadeira de couro e abriu a gaveta. Lá dentro, um monte de papéis, quantas recibes, mas no fundo da gaveta tinha uma caixa pequena de madeira que ele não mexia fazia muito tempo. Pegou a caixa, abriu devagar e ficou olhando. Ali dentro tinha uma foto dele com a mãe. Estavam os dois num parque, sentados no gramado. A mãe
sorria mesmo cansada. Ele devia ter uns 11 anos. Aquela foi uma das poucas vezes que saíram para passear. Ela tinha ganhado um vale transporte extra e usou para levar o filho ao zoológico. Lembrou de ter comido pastel de queijo com caldo de cana. Lembrou da mãe dizendo: "Um dia você vai ter tudo o que quiser, meu filho, mas não esquece de onde você veio." Marcelo fechou os olhos e apertou a ponte do nariz. Aquilo doía mais do que ele gostaria de admitir. Guardou a foto de novo, fechou a caixa e empurrou a gaveta com força.
Levantou, pegou a chave do carro e saiu. Foi sem destino. Só dirigia pelas ruas da cidade, passando por bairros ricos, depois por ruas mais simples. Em uma delas, parou em frente a um bar que costumava frequentar quando era mais novo. O bar nem existia mais. Agora era uma loja de celular. Ficou ali parado dentro do carro, olhando para as pessoas andando na calçada. Um garoto passava empurrando um carrinho com papelão e um senhor vendia pipoca num carrinho enferrujado. A cidade não tinha mudado muito. As dificuldades continuavam morando ali. Era só ele que tinha trocado de
lado. O celular tocou. era uma das administradoras do prédio dele, ligou para avisar que o aluguel de outra casa também estava atrasado. Marcelo desligou rápido, sem paciência. Não queria pensar em cobrança naquele momento. Voltou para casa no fim da tarde, sentou no sofá e ficou com a TV ligada sem som. A imagem da Clara trabalhando não saía da cabeça e quanto mais pensava, mais lembrava da mãe dele, costurando à noite a luz de uma lâmpada fraca com os dedos cheios de calo. Era como se o tempo tivesse dado a volta e jogado tudo na cara
dele de novo. Mas agora era outra menina, outra mãe, outra história, só que tudo tão parecido. Marcelo não sabia o que fazer com aquilo. Queria esquecer. mas não conseguia. E o pior de tudo era que, por mais que dissesse para si mesmo que não era problema dele, uma parte dele já estava envolvida, mesmo que não quisesse admitir. Naquela noite, depois da correria com a ambulância, Clara voltou para casa sozinha. A mãe tinha ficado internada. Os médicos disseram que ela precisava de exames, de acompanhamento, de ficar em observação por uns dias. Clara não chorou na frente
de ninguém. segurou firme. Só respondeu com a cabeça quando perguntaram se ela entendia o que estava acontecendo. Disse que sim, que ia ficar bem, que sabia como funcionava. Mas quando a porta da casa bateu e ela ficou sozinha, aí sim o silêncio bateu forte. Tudo parecia grande demais sem a mãe. As paredes da casa, antes apertadas, pareciam enormes. O som da televisão desligada fazia falta. O barulho da tosse da mãe fazia falta. Era estranho sentir falta até do que doía. Clara tirou os sapatos, foi até o quarto e ficou ali sentada na cama da mãe.
O lençol ainda cheirava chá com lavanda. O travesseiro tinha a marca da cabeça dela. Ela abraçou o travesseiro e ficou em silêncio. O estômago doía, mas ela não estava com fome. Era outra coisa. Era um tipo de vazio que comida nenhuma resolvia. Depois de um tempo, levantou e foi paraa sala. Tinha serviço para fazer. A dona Lúcia tinha deixado mais tecido e ainda faltavam alguns ajustes num vestido de festa que uma moça ia buscar no sábado. Clara acendeu a luz, sentou na frente da máquina e começou. A agulha furava o tecido devagar, com um barulho
seco que já fazia parte da casa. Era um som que ela conhecia de cor e aquele som acalmava, fazia esquecer um pouco do resto. A cada ponto, ela lembrava da mãe, dizendo: "Não puxa demais, senão franzem os cantos". E ela não puxava, fazia como a mãe ensinou, direitinho, com cuidado, mesmo com o dedo do causa da picada do dia anterior, mesmo com o olho ardendo de sono, não podia errar. O vestido tinha que sair perfeito. Cada centavo importava. Lá pela meia-noite, Clara terminou a primeira parte, esticou as costas, pegou um copo d'água e sentou na
cadeira da cozinha. Ficou olhando pro vazio por um tempo, depois pegou uma folha de caderno e começou a escrever. Era uma carta, mas não dessas cheias de emoção. Era mais um combinado, uma promessa, um acordo com ela mesma. Prometo não deixar a senhora faltar nada. Prometo que vou fazer o dinheiro do remédio aparecer. Prometo que a senhora não vai voltar pro hospital sem eu ir junto. Prometo que vou dar um jeito. Mãe dobrou o papel, colocou debaixo do travesseiro da mãe e voltou pro trabalho. Pegou mais uma peça e recomeçou. O som da máquina voltou
a encher a sala. ritmado, contínuo, era como um mantra, como se enquanto ela costurava tudo ficasse um pouco menos difícil. No dia seguinte, antes mesmo do sol nascer, Clara arrumou a mochila com algumas peças prontas e saiu para entregar. Passou na casa da dona Lúcia, que ficou encantada com o vestido. Pagou o valor combinado e ainda deu um pote de doce de leite de presente, dizendo que a menina merecia um mimo. Na rua, Clara andava com pressa. O dinheiro no bolso fazia peso no coração, não nas pernas. Correu até a farmácia, mostrou a receita do
último remédio da mãe, pagou e guardou o troco com cuidado. Depois passou no hospital para ver a mãe. Tinha dormido pouco, mas não se importava. Patrícia estava mais fraca, mas abriu um sorriso quando viu a filha. Clara subiu na cama, abraçou a mãe e entregou o remédio. Sentaram juntas, conversaram baixinho. Patrícia perguntou se a menina tinha comido e ela mentiu dizendo que sim. Patrícia já não tinha forças para discutir, mas conhecia a filha. Mesmo fraca, passou a mão no rosto dela e disse: "Você tem que cuidar de você também, filha. Clara deu um beijo na
testa da mãe e disse que estava tudo sob controle. Contou que já tinha costurado três peças e que a vizinha da esquina ia trazer mais duas. Disse que a dona Lúcia tinha gostado tanto que talvez até trouxesse uma amiga e que ela ia conseguir pagar tudo, que ninguém ia tirar elas daquela casa. Patrícia ouviu tudo com os olhos marejados. Queria poder dizer que Clara não precisava fazer nada daquilo que não era justo, mas não disse porque sabia que se falasse a filha ia só ficar mais assustada e porque no fundo também sabia que a menina
não ia parar. Ela já tinha virado adulta, mesmo sem ter tido escolha. Na saída do hospital, Clara passou por um corredor vazio com cheiro de álcool e comida fria. Ficou olhando pela janela um tempo, viu um carro preto estacionado e por um segundo achou que era o de Marcelo, mas não era. Ele não apareceu e talvez nem aparecesse mais. Ela não sabia. Só sabia que não podia contar com ninguém, só com ela mesma. Na volta para casa, passou no mercadinho e comprou arroz, um ovo e um sabonete. O dinheiro estava contado. O troco foi guardado
numa latinha dentro do armário da cozinha. Clara chegou, lavou a louça, limpou a casa, colocou as roupas no varal e voltou pra máquina. Enquanto costurava, pensava num jeito de crescer com aquilo, de fazer mais. Talvez se fizesse mais rápido conseguiria pegar mais serviço. Talvez pudesse ir até o centro da cidade e deixar uns panfletos. Mas tinha medo de deixar a mãe sozinha e também não podia confiar nos vizinhos. Alguns até ajudavam, mas outros, como a dona Ivone, só sabiam apontar o dedo. Falando nela, no fim da tarde, Ivone apareceu na porta, bateu palmas secas com
um sorriso meio torto. Oi, menina. Tudo bem? Vi que sua mãe não tá mais em casa, internada, né? Clara fez que sim com a cabeça, sem paciência para papo. Então, se precisar de alguma coisa, qualquer coisa, pode me avisar, tá? disse Ivon. Mas o olhar dela era mais curioso do que solidário. Clara agradeceu por educação. Sabia que aquela mulher só queria saber detalhes e que se desse bobeira, ela seria a primeira a inventar alguma fofoca no bairro. Depois que Ivon foi embora, Clara trancou a porta, sentou na máquina e ficou ali até tarde. Os olhos
estavam ardendo, as mãos já doíam, mas ela continuava. Cada ponto costurado era uma promessa. Cada bainha feita era uma forma de manter a mãe viva, a casa de pé, o medo afastado. E mesmo sendo só uma menina, Clara sabia. Promessa feita não se quebra, principalmente quando se costura com amor. Nos dias que seguiram a internação de Patrícia, Clara se virou como pôde. A rotina da casa virou um quebra-cabeça complicado. Acordava cedo, passava na casa da dona Lúcia para pegar novos pedidos, ia ao hospital ver a mãe, depois voltava para casa correndo para costurar. Comia quando
lembrava, dormia quando dava. Tudo era no tempo dela, só que sem perceber ela estava sendo vigiada. Do outro lado da rua, atrás da cortina de renda encardida, estava sempre ela, dona Ivone. A mulher de cabelo tingido de loiro, preso com grampos tortos, vivia com os olhos grudados na janela da frente. O sofá da sala dela parecia moldado com o corpo dela, de tanto que ela ficava sentada ali. Se tinha movimento na rua, ela tava vendo. Se alguém espirrava, ela ouvia. E agora a nova obsessão era clara. Ivone achava tudo aquilo muito esquisito. Uma menina daquela
idade morando sozinha, entrando e saindo o dia todo com sacolas, tecidos, encomendas. Às vezes, gente batia na porta para buscar roupa. Outras vezes, Clara saía com um monte de peça nos braços, voltava com mais pano e a mãe internada. Quem cuidava da casa, quem fazia comida, quem dava banho na menina? Aquilo na cabeça da Ivone era anormal. Num dia de sol, Ivone foi até a calçada e fingiu varrer à frente da casa. Na verdade, só queria ouvir o que Clara dizia para uma moça que tinha acabado de buscar um vestido. A moça elogiava o trabalho,
pagou em dinheiro e ainda agradeceu. Clara agradeceu de volta e entrou. Ivone apertou os olhos. Isso não estava certo. Na cabeça dela, criança tinha que brincar, não costurar. À tarde, Ivone bateu na porta da vizinha do lado e começou: "Você já viu essa menina sozinha ali? O dia inteiro? A mãe tá no hospital e ela fica sozinha, fazendo sabe-se lá o quê. Outro dia vi até homem indo lá buscar coisa. A vizinha levantou as sobrancelhas meio surpresa. E será que não é parente? Que parente o quê? Aquela menina tá largada. Se continuar assim, daqui a
pouco acontece uma tragédia. A vizinha balançou a cabeça, mas não respondeu. Ivone, animada com a reação, continuou espalhando a desconfiança. Em dois dias, metade da rua já estava de olho em Clara. Enquanto isso, dentro da casa, Clara nem desconfiava do que estava se formando ao redor. A cabeça dela estava ocupada demais com outras coisas. O dinheiro já estava no fim, o arroz quase acabando e os remédios da mãe precisavam ser comprados de novo no dia seguinte. Ela costurava com pressa, mas sem perder a qualidade. Não queria entregar nada mal feito. Sabia que uma cliente satisfeita
voltava e ela precisava que todas voltassem. À noite, depois de entregar dois vestidos e guardar o dinheiro, Clara foi até o hospital. Chegando lá, encontrou a mãe dormindo, sentou ao lado da cama, segurou a mão dela e ficou ali. Patrícia acordou, aos poucos, olhou pra filha com os olhos baixos e perguntou se estava tudo bem. Clara sorriu mentindo com o sorriso. Disse que sim, que estava dando conta de tudo. Do lado de fora do hospital, Ivone passava com uma sacola de pão. Viu Clara saindo sozinha e não perdeu tempo. Parou na esquina, pegou o celular
e discou o número da assistência social. Boa noite. Eu queria fazer uma denúncia. É que tem uma menina morando sozinha aqui na minha rua. A mãe tá internada e a menina fica o dia inteiro fora de casa sem supervisão. Eu acho que ela tá passando necessidade. A atendente do outro lado da linha começou a fazer perguntas e Ivone respondeu tudo. Nome da rua, número da casa, horário que a menina costuma sair e ainda completou. E ela trabalha, viu? Isso mesmo. Costura, recebe gente em casa. Tá estranho isso aí. Tô preocupada com o bem-estar da criança.
Desligou o telefone satisfeita. Voltou para casa com o peito cheio. Achava que estava fazendo o certo, mas lá no fundo o que ela queria mesmo era tirar a menina dali. A movimentação incomodava. Ela não gostava de ver gente se virando sem ajuda de ninguém. Incomodava ver uma criança ser mais forte do que adulto. No dia seguinte, Clara voltou para casa e encontrou dois desconhecidos na porta. Um homem e uma mulher com crachás pendurados no pescoço. Era da assistência social. Eles falaram com calma. Perguntaram se ela estava sozinha, se a mãe estava internada, se ela sabia
quando a mãe voltava. Clara respondeu tudo com educação, mas dava para ver que o rosto dela ficou mais tenso a cada palavra. Os dois pediram para entrar. Olharam a casa, perguntaram o que ela comia, onde dormia, como cuidava da roupa, como comprava comida. Clara mostrava tudo sem esconder nada. Explicou que costurava, que pegava encomendas, que entregava o dinheiro no hospital, que comprava os remédios. A mulher da assistência anotava tudo num bloquinho. O homem só observava, às vezes trocando olhares com a colega. No fim, eles disseram que voltariam em breve, que o caso seria acompanhado, que
talvez fosse preciso conversar com a mãe. Clara fechou a porta quando eles saíram e sentou no chão da sala. Ficou ali sem dizer nada, olhando pro nada. Aquilo era o começo de algo que ela não sabia controlar. Até aquele momento, ela acreditava que estava tudo certo, que o esforço bastava, mas agora tinha percebido que o mundo dos adultos era cheio de regras que ela não conhecia e que, mesmo fazendo tudo certo, ainda podia dar errado. Do outro lado da rua, dona Ivone assistia tudo pela janela, com o café na mão e um sorrisinho no canto
da boca, como se tivesse conseguido o que queria. Dois dias depois da visita da assistência social, Clara começou a notar que algo tinha mudado. As pessoas na rua olhavam diferente. Era um tipo de olhar atravessado, misturado com pena e julgamento. Até o rapaz da padaria, que costumava dar uma esfirra quando sobrava, agora só entregava o troco em silêncio, sem nem olhar para ela direito. Na casa da frente, os coxichos aumentaram. Clara já não gostava de sair sem pressa. Ia, resolvia. O que precisava voltava correndo. Não queria dar motivo. Mesmo assim, o clima era pesado e
ela sentia. A casa antes silenciosa, agora parecia ter ouvidos grudados nas paredes. Na manhã de quarta-feira, tudo mudou de vez. Clara estava terminando um conserto de zíper quando bateram na porta com força. Não era palma de vizinho, nem toque leve, de cliente. Eram batidas sérias, insistentes. Levantou, foi até a porta com o coração apertado. Quando abriu, viu novamente os dois da assistência social. Mas dessa vez tinham mais gente com eles. Um policial, uma mulher com cara de quem mandava em todo o mundo e uma assistente de cabelo preso num coque. Clara, bom dia. Nós precisamos
conversar com você de novo e precisamos falar com sua mãe também, disse a mulher do coque, já entrando na casa sem esperar convite. Clara travou, não sabia se podia impedir, se devia fazer alguma coisa. Deixou que entrassem. O policial ficou na porta, olhando em volta. Os outros circularam pela sala como se estivessem caçando o problema. A mulher olhou paraas roupas dobradas, pra máquina ligada, pras linhas no chão. Tudo virou pista. Cada detalhe da vida de Clara agora parecia suspeito. "Você ainda está morando sozinha aqui?", perguntou a mulher do coque com uma caneta na mão e
um bloco cheio de anotações. Clara respondeu com a voz baixa, só por enquanto. Minha mãe tá no hospital. Eu visito ela todo dia. Trago remédio, faço comida quando ela vem. Eu sei cuidar dela. Mas você tem 7 anos, Clara. Isso não é responsabilidade sua?", respondeu a mulher com um tom que parecia mais uma bronca do que preocupação. Clara ficou em silêncio. Sabia que não adiantava discutir. Sabia que adulto não escuta criança e que, por mais que explicasse, eles nunca iam entender. A mulher olhou pros outros, deu um sinal com a cabeça. A assistente mais jovem
se aproximou de Clara e falou com uma voz mais calma: "A gente precisa garantir que você esteja segura. Vamos acompanhar seu caso com mais atenção agora, tá bom? Clara assentiu. Queria perguntar o que significava acompanhar com mais atenção, mas não teve coragem. O policial, que até então não tinha falado nada, se virou e saiu. Os outros ficaram mais alguns minutos anotando, perguntando mais coisas. Clara respondeu tudo, devagar, olhando pro chão. Quando foram embora, a menina fechou a porta devagar. como quem tenta não fazer barulho nenhum. Ficou parada de costas paraa porta, segurando a maçaneta com
força. Depois largou tudo e foi até o quarto da mãe. Se jogou na cama dela e ficou ali de cara virada pro travesseiro. Não chorou, mas sentiu a garganta travar. sabia que tinha alguma coisa errada, que aquela visita não foi só para ver como ela estava, era mais sério. Era como se tivessem vindo medir a vida dela, decidir se ela era capaz ou não, como se fossem tirar alguma coisa que ela mal sabia o nome. Naquela tarde, foi ao hospital. No caminho, sentia os olhos das pessoas grudando nela. Mesmo os que fingiam não ver, olhavam
de rabo de olho. Dentro do ônibus, um homem a encarou como se ela tivesse feito algo errado. Ela se encolheu, segurando a sacola com uma marmita e o remédio que tinha conseguido comprar com o pagamento da última entrega. Chegando no hospital, encontrou a mãe mais abatida. Patrícia estava sentada, mas com dificuldade. A enfermeira tinha acabado de ajudar ela a tomar banho e o cansaço deixava o rosto ainda mais pálido. Clara se aproximou, beijou o rosto da mãe e sorriu com esforço. Trouxe comida e remédio também. Tá tudo aqui. Patrícia sorriu de volta, mas com os
olhos cheios de perguntas. Ela já tinha percebido o jeito da filha. Sabia que quando ela ficava calada demais, alguma coisa estava errada. Aconteceu alguma coisa? Perguntou devagar. Clara hesitou, depois soltou de uma vez. Foram lá em casa de novo. Dessa vez vieram com polícia. Disseram que vão acompanhar com mais atenção. Eu não sei o que isso quer dizer, mãe. Tô com medo. Patrícia ficou em silêncio, apertou a mão da filha, respirou fundo e olhou pela janela. Sabia o que aquilo queria dizer. Já tinha escutado histórias parecidas, crianças tiradas das casas, famílias separadas por decisões de
gente que nunca viveu o que elas viviam. Ela não tinha forças para lutar contra o sistema. Mas também não ia deixar isso acontecer com a filha, não com Clara. Você fez tudo certo, filha. Eles estão errados. A gente só precisa aguentar mais um pouco. Eu vou sair daqui. Vou melhorar. A gente vai sair dessa. Clara balançou a cabeça como se acreditasse, mas no fundo o medo já tinha tomado espaço. Sentia que algo estava prestes a mudar e não era para melhor. No fim da visita, já do lado de fora do hospital, viu um carro estacionado.
Dentro dele, a mulher do coque conversava com alguém no telefone. Quando viu Clara, ela sorriu e acenou, mas o sorriso era frio. Desses que fazem a barriga da gente doer. Clara virou as costas e foi embora. A rua até parecia mais escura. O mundo dela estava encolhendo. E mesmo costurando tudo o que podia, ela não conseguia segurar as bordas da vida que estava desfiando bem na frente dos olhos. Depois daquele dia estranho, Clara voltou para casa com a cabeça cheia. A visita da assistência social não saía da mente dela. A imagem da mulher sorrindo daquele
jeito frio no carro ainda estava grudada nos pensamentos. Ela não sabia exatamente o que vinha pela frente, mas sabia que não podia continuar fazendo as coisas do mesmo jeito. Precisava mudar alguma coisa antes que mudassem tudo por ela. Naquela noite não teve costura. Ela só ficou sentada no chão da sala, abraçada aos joelhos, olhando a parede. Pensava em tudo, na mãe, no aluguel, no arroz quase acabando, na conta de luz que o Marcelo disse que ia passar a cobrar junto com o aluguel, porque estava ficando caro demais. Pensava também nos olhos da vizinha Ivone, sempre
espiando, sempre julgando, sempre pronta para falar alguma coisa. E agora tinha que lidar com essa gente de fora, vindo fiscalizar a vida dela. Clara sentia que se não fizesse alguma coisa diferente, logo viriam tirar a casa delas, ou pior, tirar ela da mãe. No dia seguinte, acordou cedo, prendeu o cabelo, botou uma roupa mais arrumada e encheu a sacola com algumas das melhores peças que tinha feito. Sobrou tudo com cuidado, pegou um panfleto que ela mesma tinha desenhado numa folha de caderno e foi pro centro da cidade. Era a primeira vez que ia tão longe
sozinha. Estava nervosa, mas não dava para continuar escondida. precisava mostrar o trabalho, arrumar mais encomenda, fazer mais dinheiro. Se ela conseguisse mostrar que estava bem, que dava conta, talvez parassem de encher. Pegou o ônibus cheia de coragem e medo ao mesmo tempo, sentou perto da janela com a sacola no colo e o olhar fixo no vidro. Contava as paradas, reparava nos prédios altos, nas pessoas correndo para lá e para cá. Tudo era novo e assustador, mas ela ficou firme. No centro, andou por várias ruas até encontrar uma loja de tecidos grande, com vitrine bonita e
manequins bem vestidos. Ficou parada na calçada por uns minutos, criando coragem. Depois respirou fundo e entrou. Lá dentro, o ar era gelado e tudo parecia mais limpo. Uma mulher bem vestida estava atrás do balcão. Clara se aproximou, tirou o panfleto da sacola e entregou. Eu faço costura, conserto, ajusto, faço peça nova também. Se a senhora precisar ou conhecer alguém, eu posso fazer. A mulher olhou o panfleto, depois olhou paraa menina de cima a baixo. Quantos anos você tem? Sete, mas sei costurar bem. Minha mãe me ensinou. Ela tá doente agora. Mas eu continuo. A mulher
ficou em silêncio por um tempo. Depois pegou um blazer que estava pendurado e mostrou pra Clara. Tem um rasgo aqui perto do bolso. Você consegue arrumar? Sim, mas eu preciso levar para casa, tá? Mas quero isso de volta amanhã, no mesmo horário. Pode ser. Clara assentiu, pegou a peça com cuidado, agradeceu e saiu. Aquilo já era alguma coisa, um teste. Se fizesse bem feito, podia virar uma cliente nova. Voltou para casa com o coração batendo forte e pela primeira vez em dias sentiu um fio de esperança. Mas ao entrar encontrou o portão aberto. Achou estranho.
Entrou devagar. A porta da sala também estava encostada. Quando entrou, viu tudo meio revirado, nada roubado, mas parecia que tinham mexido nas coisas. A sensação era de que alguém tinha estado ali sem permissão. Foi até o quarto, conferiu o armário, a gaveta onde guardava o dinheiro. Tudo ainda estava lá. Mas mesmo assim, um arrepio subiu pelas costas dela, como se tivesse sido invadida, como se tivesse deixado escapar o controle da própria vida. Naquela noite, costurou o blazer com cuidado dobrado. Cada ponto era feito com o dobro de atenção. Não queria errar. Era a chance de
abrir uma nova porta. Enquanto costurava, escutava a voz da mãe na cabeça. Capricho é tudo. Faz com carinho que o cliente volta. No dia seguinte, voltou à loja no horário combinado, entregou a peça pronta, passou o dia esperando resposta. Só à noite, quando já estava em casa, ouvi o baterem na porta. Era um motoboy com um envelope e um bilhete. No bilhete estava escrito: "Muito bem feito. Você tem talento. Vamos conversar. dentro do envelope, o dinheiro do serviço e mais do que o combinado. Clara nem acreditava. Aquilo era um respiro, mas junto com a alegria
veio o medo. Ela sabia que precisava correr. A assistência social podia voltar a qualquer momento. E se não vissem ela como capaz, tudo podia desmoronar. Foi aí que Clara teve uma ideia. Ela precisava de alguém que confirmasse que ela estava bem, alguém que tivesse autoridade, que pudesse dizer: "Essa menina sabe o que está fazendo". E o único nome que veio na cabeça dela foi o de Marcelo. Por mais frio que ele fosse, ele era o dono da casa. Se ele dissesse que confiava nela, talvez fizesse diferença. Talvez eles escutassem. Então, no dia seguinte, com o
envelope do pagamento na mochila e o bilhete na mão, Clara foi até a casa de Marcelo, tocou a campainha, esperou. Ele apareceu com cara de quem não esperava, de quem não queria conversa, mas ela não recuou. "Preciso falar com você." Ele olhou em volta, depois para ela. Sobre o quê? Sobre mim? Sobre a minha mãe? sobre o que tá acontecendo. Marcelo abriu o portão devagar. Clara entrou e ali a conversa mais importante da vida dela estava para começar. Marcelo não sabia o que pensar quando abriu o portão e viu Clara ali, com a mochila nas
costas e os olhos firmes, parados, como se tivesse ensaiado aquela visita várias vezes na cabeça. Por um instante, ele pensou em inventar uma desculpa qualquer, dizer que estava ocupado, que tinha reunião, mas o jeito da menina fez ele mudar de ideia. Aquela não era uma visita qualquer. Ela tinha ido ali com um motivo sério. "Entra", disse, abrindo a grade toda e saindo do caminho. Clara passou sem dizer nada, só foi direto pra sala e ficou em pé esperando. Marcelo deu a volta, fechou a porta, tirou o celular do bolso e jogou em cima da mesinha
de centro. "Pode sentar." Ela sentou na beirada do sofá, apertando a alça da mochila com força. "O que tá acontecendo?", ele perguntou, indo até a cozinha buscar um copo d'água. Voltou e colocou na frente dela. Clara demorou para responder, quase um minuto inteiro em silêncio, só mexendo no zíper da mochila, até que falou: "Estão querendo me tirar da minha mãe?" Marcelo franziu a testa. "Como assim, bu? A assistência social. Foram lá em casa duas vezes. A última vez foram com polícia e tudo. Disseram que vão acompanhar o caso, mas eu sei o que isso significa.
Eu sei que eles podem me levar para outro lugar. Eu não quero isso. Ele passou a mão no rosto, se encostou na cadeira e soltou um suspiro. Mas você tá sozinha, não é perigoso? Clara olhou direto para ele. Eu não tô sozinha. Eu tô cuidando da minha mãe, tô dando conta de tudo, tô fazendo serviço de costura. Tô indo ao hospital, tô comprando os remédios, tô fazendo tudo que eu consigo, melhor do que muito adulto. Marcelo ficou em silêncio, não sabia o que responder. Por dentro, algo começava a se mexer, uma mistura de admiração e
culpa. "E o que você quer de mim?", perguntou mais baixo. Clara tirou da mochila o bilhete que tinha recebido da loja do centro junto com um envelope de dinheiro. Isso aqui é a prova de que eu tô trabalhando direito. Eu fui até lá sozinha, peguei serviço e entreguei no prazo. Eles gostaram e disseram que vão me chamar de novo. Só que se alguém disser que eu tô em perigo, que não sei me cuidar, vão acabar com tudo isso. casa, a costura, minha mãe vão separar a gente. Ela respirou fundo. Eu sei que você é o
dono da casa, que você não é da família nem nada, mas se você puder falar com eles, dizer que eu tô fazendo certo, que você me conhece, que confia em mim, talvez eles acreditem. Marcelo ficou olhando pra menina, não falou nada de imediato. A cabeça dele tava uma bagunça. Lembrou da infância, da mãe dele passando perrengue, dele mesmo com idade parecida com a de Clara, tentando segurar as pontas da casa enquanto dona Azira varria quintal e limpava privada. A diferença era que ele nunca teve que enfrentar a possibilidade de ser separado da mãe. E agora
ver uma criança enfrentando isso de frente, com a cara limpa, sem drama, só com a verdade na mão, aquilo pesava. Olha, Clara, eu nunca me envolvi com a vida dos inquilinos. Meu negócio é receber o aluguel, manter o imóvel e seguir a vida. Eu não sou assistente social, nem juiz, nem tutor. Ela ficou quieta, só apertava mais ainda a alça da mochila. Mas Marcelo ficou parado com essa palavra presa na garganta, um querendo sair e puxar todo o resto. Só que ele ainda estava tentando decidir que tipo de homem queria ser naquele momento. O que
vira as costas ou o que levanta e faz alguma coisa. Me dá uns dias. Eu preciso pensar. Ele disse por fim. Clara assentiu, levantou, agradeceu e foi até a porta. Marcelo a acompanhou. Quando ela passou pelo portão, virou e olhou para ele uma última vez. Se eles forem lá de novo e ninguém estiver do meu lado, eles vão me levar. Eu só preciso que alguém diga que me conhece. E foi embora. Marcelo ficou ali parado, com a mão ainda na tranca do portão, o coração batendo rápido. Sabia que aquela menina estava pedindo mais do que
ele achava que podia dar, mas também sabia que se não fizesse nada, talvez se arrependesse pelo resto da vida. Naquela noite não conseguiu dormir. Ficou zapeando a TV sem parar, mudando de canal como se procurasse uma resposta em algum programa. Até que uma coisa aconteceu. Ele teve um sonho com a mãe. Estavam os dois numa cozinha velha, ela fazendo café e dizendo como dizia quando ele era pequeno. O mundo é pesado para quem não tem ajuda, meu filho, mas quem já carregou sozinho sabe o peso do outro. Acordou com isso na cabeça, foi até a
cozinha, passou o café e ficou olhando pela janela. O céu estava claro, começando a amanhecer. E no fundo ele já sabia o que ia fazer. No mesmo dia, pegou o telefone e ligou para um contato antigo dele. Era um advogado que cuidava dos aluguéis e contratos. Pediu uma reunião com alguém da assistência social. Disse que tinha uma inquilina menor de idade que precisava ser ouvida e que ele queria dar um depoimento. Do outro lado da linha, o advogado estranhou, mas não discutiu. Marcou tudo para dois dias depois. Marcelo desligou o telefone e ficou parado no
meio da sala. Sabia que não ia ser fácil e que talvez se metesse num problema maior. Mas agora não era mais só sobre aluguel, era sobre algo que ele já tinha esquecido há muito tempo. Responsabilidade. Responsabilidade com quem nunca teve ninguém. No fim da tarde de quinta-feira, Patrícia estava mais acordada do que nos outros dias. tinha conseguido tomar o café da manhã sem enjoar e até conversou um pouco com a enfermeira que sempre vinha trocar o soro. A médica passou mais cedo e falou que se os exames dessem uma melhorada, talvez ela pudesse voltar para
casa em poucos dias, mas nada era certeza. Clara chegou logo depois das visitas serem liberadas. Estava com o rosto mais sério que o normal. tinha ido direto do centro depois de entregar outra peça na loja nova que tinha conseguido o cliente. Levava uma sacola com uma blusa limpa paraa mãe, dois biscoitos e um copinho de suco. Sentou ao lado da cama, colocou as coisas na mesinha e ficou um tempo quieta, só observando. Patrícia percebeu. "O que foi, filha?", perguntou, passando a mão no braço da menina. Clara demorou para responder, depois soltou sem rodeios. Eu fui
na casa do Marcelo. Patrícia franziu a testa. O dono da casa? É. Eu pedi ajuda para ele. Ela contou tudo. Como foi até lá? Como explicou a situação? Como mostrou o bilhete da loja e falou da assistência social. Patrícia escutou tudo em silêncio, sem interromper, mas a respiração dela começou a ficar mais curta. O rosto ficou mais tenso. Ela fechou os olhos por um instante. "Mãe, tô aqui", respondeu elas abrindo os olhos de novo. "Você fez isso sozinha?" Fiz. Não tinha mais ninguém para pedir. Ele não prometeu nada, mas disse que ia pensar. Eu não
sei se vai fazer diferença, mas eu tentei. Patrícia pegou a mão da filha e segurou com força. Eu não queria que você tivesse que fazer essas coisas. Não era para ser assim. Era para eu cuidar de você. Não, o contrário. Clara olhou para baixo. Mas agora é assim. E se eu não fizer nada, eles vão separar a gente. Eu não deixo. Patrícia ficou com os olhos cheios de lágrimas. não conseguia dizer mais nada. O orgulho de ver a filha tão forte misturado com o peso de não poder protegê-la como queria, aquilo esmagava o peito dela.
Depois de um tempo, Patrícia olhou para Clara e falou: "Me promete uma coisa? Prometo. Se algum dia alguém vier te tirar de mim, não briga, não foge, não faz escândalo, mas não esquece de mim. Não esquece que a gente se amou até o fim. Clara segurou o choro com força. Sentia uma coisa apertando por dentro, como se o mundo estivesse ficando pequeno demais para tudo o que ela sentia. Mas não chorou, só assentiu com a cabeça. Eu não vou deixar ninguém tirar a gente, mas se acontecer, eu vou lembrar. Naquele momento, as duas ficaram em
silêncio. Patrícia com a mão sobre a da filha, Clara com os olhos fixos no lençol. Nenhuma palavra a mais, só aquele espaço cheio de coisa que não precisa ser dita para doer. No dia seguinte, Marcelo apareceu no hospital. Chegou no meio da tarde, perguntou na recepção pelo nome de Patrícia. A funcionária fez uma cara de dúvida, depois conferiu no sistema e indicou o quarto. Quando ele bateu na porta e entrou, Patrícia arregalou os olhos. Não esperava por aquilo. Estava sozinha. Clara ainda não tinha chegado. Marcelo, oi. Desculpa parecer assim. Ela ficou sem saber o que
dizer. Não ouvi há anos. A última vez que tinham conversado de verdade tinha sido antes da Clara nascer. Eu não imaginei que você viria. Nem eu imaginei. Mas a Clara veio até minha casa, me explicou tudo. Patrícia encostou na cabeceira, ajeitando o travesseiro. Ela te procurou? Procurou e me pediu ajuda. Foi direto, firme, sem choro, sem drama. Só pediu que eu dissesse a verdade, que ela se vira sozinha, que cuida da casa, que trabalha, que é responsável. pediu que eu falasse isso paraa assistência social. Disse que se ninguém fizer isso, eles vão tirar ela daqui.
Patrícia fechou os olhos de novo. Aquele assunto doía. "Eu não sei se você acredita", disse ela com a voz fraca. "Mas essa menina, ela carrega o mundo nas costas e ainda sorri. Eu devia ser mais forte, mas meu corpo não ajuda." Marcelo se aproximou um pouco mais da cama. Eu sei como é. Minha mãe também segurava tudo sozinha. A diferença é que eu era mais velho quando precisei ajudar. A Clara ainda é só uma menina, mas ela me fez lembrar de muita coisa que eu tinha enterrado. Ele parou, pensou se devia continuar, mas continuou. Eu
marquei uma reunião com o pessoal da assistência. Vou dizer tudo o que vi. Que ela trabalha, que paga o que pode, que mantém. A casa limpa que não depende de esmola. Eu vou falar por ela. Patrícia ficou com os olhos marejados. Por que tá fazendo isso? Marcelo deu de ombros. Porque é o certo. E por quê? Talvez eu devesse ter feito isso antes. Na porta do quarto, Clara apareceu. Estava com uma sacola na mão e parou quando viu Marcelo ali. Os dois se olharam. Marcelo abriu um leve sorriso. Oi, pequena. Você veio? Eu vim. Clara
entrou devagar, foi até a mãe, deu um beijo na testa dela e depois olhou de novo pro Marcelo. Vai mesmo ajudar? Vou, já falei com o advogado. Semana que vem a gente se encontra com eles. Ela respirou aliviada pela primeira vez em muito tempo. E naquele instante, mesmo que ninguém dissesse em voz alta, uma coisa ficou clara entre os três. Agora eles eram uma espécie de time, pequeno, desajeitado, com histórias mal resolvidas, mas um time. E por enquanto isso era tudo o que eles tinham. O sol mal tinha subido quando Marcelo estacionou sua caminhonete na
frente do imóvel alugado por Patrícia. Ele tinha vindo conferir se a casa estava em ordem, se Clara precisava de algo e, principalmente, se tudo estava pronto para a visita da assistência social marcada para os próximos dias. Mas não estava sozinho ali. Há poucos metros, sentada numa cadeira de plástico branco encostada no muro da própria casa, estava dona Ivone, com a xícara de café na mão e o olhar afiado. Quando viu Marcelo descer do carro, ela levantou na hora, foi caminhando até ele com aquele jeito metido de quem acha que sabe mais do que todo mundo.
Ô, Marcelo, bom dia. Que surpresa, hein? veio dar uma olhada no seu investimento. Marcelo respondeu com um aceno curto. Bom dia, Ivone. Olha, vou ser direta porque sou mulher de papo reto disse ela já encostando o braço no portão da casa de Patrícia. Tava pensando aqui com meus botões. Se um dia você quiser vender esse imóvel, me avisa. Tenho um dinheiro guardado. E, sinceramente, tá meio mal cuidado, né? Aquela menina não dá conta. A mãe doente, essa confusão de entra e sai vai acabar te dando problema. Melhor resolver logo. Vende para mim. Faço a vista.
Marcelo encarou a mulher por um segundo. Ela continuou falando com um sorriso cínico no rosto e aquele tom que parecia ser simpático, mas tinha veneno escondido. Eu nem precisaria fazer reforma, viu? Só tirar esse pessoal, dar uma limpada e já alugava rapidinho para alguém mais organizado. Posso até pagar mais do que vale hoje, só para não perder a chance. Que me diz? Marcelo cruzou os braços. Sabia que Ivone nunca foi confiável, sempre aparecia nas reuniões de condomínio só para reclamar. Era do tipo que colava o ouvido na parede para ouvir briga de vizinho e depois
espalhar a fofoca pelo bairro todo. E agora vinha com essa de resolver o problema. Não tô vendendo, dona Ivon. Nem agora, nem depois. Ela riu como se fosse uma piada. Ah, Marcelo, você é esperto. Sabe que manter esse tipo de inquilina não te ajuda em nada. Essa menina, por mais que tente, não tem estrutura. A mãe vai piorar, você sabe disso. E quando isso acontecer, vai sobrar para quem? Para você. Vai ter que lidar com justiça, criança em situação de risco, conselho tutelar, sem contar o escândalo no bairro, imagina a manchete. Milionário se recusa a
tirar criança de imóvel insalubre. Acha que isso é bom pra imagem? Marcelo fechou a cara. Olha, eu sei o que tô fazendo e, com todo respeito, não preciso da senhora para decidir o que é, bom ou ruim para mim. Ivone mudou o tom. Agora falava mais baixo, quase sussurrando. Tô tentando te ajudar, Marcelo. Só isso. Um imóvel a menos, um problema a menos. E eu te pago bem, viu? Pode confiar. Marcelo deu um passo para trás e apontou pra calçada com a cabeça. Bom, se não se importa, eu preciso entrar. Claro, claro. Disse ela, recuando
com um sorrisinho sem graça. Ele entrou. bateu a porta atrás de si e ficou parado um instante, respirando fundo. Aquela mulher queria comprar a casa não era só por interesse no imóvel, queria ver Clara fora dali. Estava incomodada com a presença dela desde o início, desde o dia em que a menina começou a se destacar com a costura. E agora, com toda essa história da assistência social, ela estava sentindo que o momento certo de atacar era esse. Marcelo foi até a sala, onde Clara dobrava algumas peças. Ela olhou para ele com um ar desconfiado. Ela
falou com você, né? Falou. Eu vi pela janela. Marcelo assentiu. Veio com o papo de comprar a casa, resolver tudo. Disse que faria um favor. Mas eu conheço o tipo, não quero ajudar ninguém, só tirar o que incomoda ela. Clara voltou a dobrar os panos sem levantar o olhar. Ela não gosta de mim. Fica olhando pela janela, inventa coisa pros outros. Eu só saio para trabalhar, para cuidar da minha mãe. Nunca fiz nada contra ela. Eu sei. Não se preocupa com isso. Ela largou o pano em cima da mesa e olhou direto para ele. Você
vai vender? A casa. Marcelo se sentiu travado por um segundo. A pergunta veio direto, sem curva. Clara não enrolava, não jogava em direta, queria saber logo. Não vou. e mesmo que vendesse, não seria para alguém como ela. Clara respirou fundo. Por um segundo, Marcelo percebeu que a menina tinha mesmo medo de ser jogada para fora. E não era só por perder um teto, era por tudo que aquela casa representava. A luta da mãe, o esforço dela, a segurança que por mais frágil que fosse ainda existia. Ele deu um passo até a mesa e colocou um
envelope ali. Isso é o que sobrou do pagamento da loja. Eles mandaram bem mais do que você pediu. Disseram que o trabalho foi impecável. Clara pegou o envelope e abriu devagar. Quando viu a quantia, os olhos brilharam. Ela nunca tinha segurado tanto dinheiro nas mãos. "Eu posso pagar o aluguel com isso?", disse, já separando parte do valor. "Pode sim. E o resto guarda. Compra comida, compra tecido, o que for preciso. Se precisar de mais coisa, me fala. Ela olhou para ele com um misto de surpresa e alívio. Marcelo ainda parecia durão, mas o jeito dele
tinha mudado. Agora ele falava como alguém que estava dentro da história e não só passando pela calçada. Lá fora, Ivon espiava pela fresta da cortina, com os olhos apertados e o maxilar travado. Viu Marcelo entregando o envelope, viu Clara sorrindo. Aquilo foi o suficiente para ela entender que o plano dela não tinha dado certo ainda. Mas Ivone não era o tipo que desistia fácil. Só ia esperar a próxima chance. Era sábado de manhã, quando Clara acordou com um barulho diferente. Não era o som da máquina de costura, nem da chaleira. pitando, nem da rua agitada.
Era a campainha da casa tocando sem parar, como se alguém tivesse com pressa. Ela levantou ainda com os olhos inchados de sono, calçou as sandálias e foi até a porta, esperando ver a cara da dona Ivon ou de algum vizinho curioso. Mas não era ninguém conhecido. Um homem alto, com óculos escuros e camisa social clara, estava parado no portão, segurando uma sacola grande nas mãos. Você é a Clara? Ela fez que sim. desconfiada. Meu nome é Renato. Eu sou amigo do Marcelo. Ele falou de você. Disse que você costura muito bem. Eu tenho umas coisas
aqui que queria ver se você consegue arrumar para mim. Clara ainda não sabia como reagir. A cabeça estava tentando juntar tudo ao mesmo tempo. O Marcelo, o tal Renato, a sacola, a roupa, o pedido. Respirou fundo, abriu o portão e deixou ele entrar. Pode entrar. A sala tá meio bagunçada, mas é onde eu trabalho. Renato entrou e ficou olhando em volta. A casa era simples, mas tudo tinha lugar. Tecidos dobrados, panos empilhados, máquina no canto, alguns moldes rabiscados em folhas de caderno. A impressão era de que o lugar respirava costura. Ele colocou a sacola na
mesa. Eu trabalho num restaurante, sou gerente. A gente usa uniforme e a empresa que fornece não dá conta de fazer os ajustes. Tô com umas camisas que precisam encurtar. A manga, apertar nas costas, nada difícil. Mas a costureira de lá vive atrasando. Clara abriu a sacola. Tinha cinco camisas brancas, todas com etiquetas da mesma empresa. Você consegue fazer isso em quanto tempo? Dois dias. Renato sorriu. Rápida, hein? Marcelo não tava exagerando. Ele falou isso. Falou. E olha que ele não é de elogiar ninguém. Disse que você costura como gente grande, que entrega no prazo e
não enrola. Por isso eu vim. Clara ficou vermelha, mas manteve o tom sério. Pegou a fita métrica e começou a medir as peças ali mesmo, anotando tudo num caderninho. Fez perguntas técnicas. apontou os pontos que precisavam reforço, perguntou se podiam ser passadas a ferro depois dos ajustes. Renato só observava. Era uma menina assim, pequena, magra, com o cabelo preso de qualquer jeito e as mãos com marcas de agulha. Mas o jeito de falar, o olhar atento, os gestos seguros, ela não tinha nada de criança quando se tratava do trabalho. Tem muita gente grande que não
faz o que você faz", comentou ele quase sem pensar. Clara não respondeu, só continuou anotando até fechar o caderno e dizer: "Pode passar, buscar depois de amanhã à tarde, já vão estar prontas". Combinado. Ele tirou uma nota da carteira e colocou sobre a mesa. Adianto do pagamento. O resto te dou quando entregar. Clara agradeceu e guardou no envelope junto com o que tinha. Recebido da loja do centro. Renato se despediu e foi embora. Clara fechou o portão, voltou pra sala e ficou parada, olhando para as camisas. Aquilo podia ser o começo de uma coisa nova,
um cliente fixo, um serviço mais constante, algo que dava para planejar. E planejamento era tudo que ela nunca tinha tido. Pegou, uma camisa, colocou na bancada e começou a trabalhar. A máquina fez o barulho que ela já conhecia de cor, mas naquele dia parecia até mais suave, como se ela estivesse dançando junto com a esperança. Enquanto costurava, a cabeça não parava. Pensava na mãe que talvez voltasse para casa naquela semana. Pensava na reunião que o Marcelo ia ter com a assistência. Pensava na Ivone, que devia estar de olho em tudo do outro lado da rua.
E agora pensava nesse tal de Renato, que chegou do nada e abriu outra porta. No fim da tarde, Clara foi ao hospital com o caderninho na mochila e as mãos manchadas de linha. Quando entrou no quarto, Patrícia estava sentada com um travesseiro nas costas e o rosto um pouco mais corado. E aí, costureira? Hoje eu ganhei mais um cliente. Mais um amigo do Marcelo. Veio aqui em casa, trouxe cinco camisas. É para um restaurante. Eu acho que pode virar algo fixo. Vou fazer bem. Feito. Aí ele volta. Patrícia sorriu, não falou nada, só estendeu a
mão e puxou a filha para perto. Você tá abrindo caminhos, filha? Sozinha? Não tô sozinha. A senhora tá aqui. Mas você é quem segura tudo. Clara encostou a cabeça no ombro da mãe. Ficaram assim por um tempo. Patrícia fazendo carinho nos cabelos da filha e pensando em tudo o que elas ainda precisavam enfrentar. No dia seguinte, enquanto Clara costurava, Ivone passou pela calçada devagar, fingindo olhar o chão. Quando viu as camisas penduradas no varal, prontas, passadas e etiquetadas, apertou os lábios e fez cara feia. Até parece que virou empresa agora? Resmungou baixinho, mas por dentro
sabia que tinha perdido mais uma. A menina não só estava resistindo, ela estava crescendo. O domingo amanheceu estranho. O céu estava fechado, o ar abafado, o vento quente e a rua estava mais silenciosa do que o normal. Nem as crianças jogavam bola na calçada, nem o rádio da dona Edna tocava as músicas sertanejas de costume. Marcelo acordou cedo, como sempre, mas alguma coisa parecia fora do lugar. Ele tomou café, olhando pela janela, o copo na mão e os olhos fixos na casa de Clara. Tinha o costume de dar uma espiada de longe, só para ver
se estava tudo bem. As palmas vezes via ela estendendo roupa, varrendo a calçada, atendendo alguém, mas naquele dia nada, nenhuma movimentação. A cortina fechada, a porta trancada, nenhum som vindo de dentro. No começo, ele pensou que era só cansaço. Talvez Clara estivesse dormindo até mais tarde ou tivesse ido ao hospital visitar a mãe mais cedo, mas depois das 9 ele começou a achar estranho. A menina era certinha com os horários, sempre começava a costurar por volta das 8:30 e quando tinha visita no hospital avisava ou deixava bilhete no portão. Marcelo tentou esquecer, fez uma ligação
de trabalho, respondeu uns e-mails, mas a sensação de que algo estava errado não passou. Às 11 saiu de casa e foi andando até lá. Bateu no portão. Nada. Chamou. Silêncio. Bateu de novo com mais força. Foi até o vizinho da direita, o seu agenor. O senhor viu a Clara hoje? Não vi não. Estranho mesmo. Ela sempre aparece cedo, mas hoje tá um silêncio só. Marcelo ficou ali parado, olhando a casa como se conseguisse enxergar através da parede. Foi quando dona Ivone apareceu no portão dela. Ué, procurando a menina. Sim, ela tá aí? Não sei não,
mas teve movimento aí de madrugada. Movimento? Escutei barulho de porta, tipo pressa, correria. Depois tudo ficou escuro. Mas também, né, Marcelo? Aquela menina vive sozinha. A mãe doente, entra e sai de gente o dia inteiro. Uma hora ia dar nisso. Marcelo ignorou o veneno na voz dela e voltou pro portão da casa. Dessa vez empurrou. Estava trancado. Ele pensou em arrombar, mas se controlou. tirou o celular do bolso e ligou paraa Clara. Chamou até cair na caixa postal. Tentou de novo. Nada. Depois ligou pro hospital. Boa tarde. Queria saber se a Patrícia Souza ainda está
internada. A filha dela não apareceu hoje e estamos preocupados. A moça da recepção digitou no computador. A senora Patrícia Souza deu entrada ontem à noite na emergência. Está internada na ala de cuidados intensivos. Foi um quadro grave. E a filha dela, a Clara, ela tá aí, acompanhante menor de idade? Sim. Ela veio com a paciente, mas depois que a mãe foi transferida, a menina desapareceu. Disseram que ela saiu do hospital para buscar uma coisa e não voltou. Marcelo sentiu um frio no estômago. Ninguém ligou para avisar. Ninguém procurou ela? Não, senhor. A equipe chegou a
tentar, mas não tem registro de responsável legal. A menina não tem ficha no sistema como tutora. Estamos aguardando a assistência social desde ontem. Marcelo desligou o telefone sem falar mais nada. Sentiu o peso da responsabilidade que antes ele dizia que não era dele. Agora era totalmente. Pegou o carro e foi até o hospital. falou com a equipe, confirmou tudo. Patrícia estava em estado grave. Clara tinha dado entrada com ela na emergência, ajudado a preencher os dados, chorado quando a mãe foi levada, mas depois disso sumiu. Disseram que viram a menina andando sozinha pelo corredor, de
mochila nas costas, dizendo que ia voltar logo, e não voltou. Marcelo voltou pro bairro, dirigindo rápido. Passou por cada esquina que conhecia. Parou na padaria? Perguntou pro dono. Parou na banca de jornal, na casa da dona Lúcia. Ninguém sabia de nada. A única pessoa que deu uma pista foi o motoboy da farmácia. Vi ela ontem à noite. Sim. Ela passou aqui correndo, pediu um remédio, disse que era urgente, estava nervosa, parecia que tinha chorado. Depois saiu com pressa, pegou o caminho do viaduto. Marcelo pegou o carro e foi naquela direção. Mas ali, naquela hora, tudo
já era escuro, confuso. Ninguém sabia dizer onde ela tinha ido depois. Era como se a menina tivesse sumido no ar. De volta ao bairro, a notícia se espalhou rápido. Dona Ivone contava de um jeito que parecia até feliz. Eu avisei. Falei que ia dar problema. Criança sozinha, inventando de trabalhar, cuidando de doente. Agora, ó, sumiu. Vai ver fugiu ou aconteceu coisa pior. Marcelo ouviu de longe e não respondeu. Subiu até a casa da menina, abriu a porta com a chave reserva que ele tinha guardada na imobiliária. A casa estava arrumada, nada fora do lugar. A
mesa com os tecidos dobrados, a máquina desligada. A cama feita, a marmita lavada na pia. A única coisa que destoava era o caderninho dela aberto em cima da mesa. No topo da página, escrito com caneta azul, estava lista de coisas para fazer amanhã. A primeira tarefa era levar o suco paraa mamãe. Marcelo sentou na cadeira e passou a mão no rosto. Aquilo não fazia sentido. Clara não era do tipo que fugia, não era de abandonar. Algo tinha acontecido. Mas o quê? Lá fora, a rua seguia em silêncio e dentro daquela casa, a ausência de Clara
era tão forte que dava para sentir no ar, como se o espaço dela ainda estivesse ali esperando ela voltar. Marcelo passou a noite em claro, a casa de Clara vazia, a mãe dela internada em estado grave e ninguém fazia ideia de onde a menina tinha ido. Ele voltou para sua casa, mas não conseguiu ficar parado. Andava de um lado pro outro, abria o celular de cinco em 5 minutos, ligava para lugares onde já tinha perguntado antes. Nada, nenhuma notícia. Cada minuto que passava fazia um peso crescer no peito dele. Lá pelas 5 da manhã, ele
ligou para um amigo antigo da época da oficina, que hoje trabalhava como guarda, noturno na estação rodoviária. Perguntou se tinha visto uma menina sozinha pelas redondezas, descreveu Clara. Falou da mochila, da roupa, da idade. O amigo respondeu que ia dar uma olhada nas câmeras assim que amanhecesse. Não era muito, mas era alguma coisa. A sete, Marcelo, já estava na porta do hospital. Pediu para ver Patrícia, que estava sedada e com os olhos fundos, quase sem reação. A médica explicou que o quadro dela piorou. O corpo não estava mais respondendo ao tratamento como antes. O organismo
enfraquecia rápido demais. O que ela tem é agressivo e o tempo dela está acabando. Marcelo ficou parado com os olhos fixos na cama. Patrícia respirava devagar com a ajuda de um aparelho. Os fios grudados no braço dela pareciam manter o pouco de vida que ainda restava. Aquela mulher que segurava tudo sozinha agora mal conseguia abrir os olhos. E a filha dela ainda não apareceu? Perguntou a médica. Não desapareceu desde ontem à noite. Ela precisa saber. Não pode passar por isso sozinha. Marcelo concordou, mas por dentro ele estava se culpando. Pensava que devia ter feito mais
antes, ter se envolvido antes, ter enxergado antes. Mas agora não tinha mais espaço para arrependimento. Tinha que achar clara. e rápido. Saiu do hospital direto paraa delegacia. Registrou um boletim de ocorrência, explicou que a menina tinha sumido. Contou tudo o que sabia, mostrou fotos, endereço, até os croques que ela fazia no caderninho, como se isso ajudasse a entender quem ela era. O policial preencheu tudo com calma, mas parecia já ter visto histórias parecidas antes. Disse que iam avisar abrigos, hospitais e postos de polícia. Mas Marcelo sabia que aquilo era só o começo. Se quisesse mesmo
encontrá-la, teria que fazer mais. Pegou o carro e rodou por bairros que Clara costumava passar. Foi ao centro, voltou no restaurante do Renato. Lá, o gerente disse que não tinha visto a menina, mas ficou preocupado quando soube do desaparecimento. Marcelo também passou na loja de tecidos onde ela tinha conseguido os primeiros trabalhos. A moça do balcão ficou com os olhos cheios de lágrima ao ouvir a notícia. "Ela é uma menina incrível, tão responsável", disse emocionada. Entregou tudo sempre certo. "Eu não acredito que ela sumiu. Isso não é dela." Marcelo concordava. Por isso mesmo, estava cada
vez mais certo de que algo ruim tinha acontecido. Já era tarde da manhã quando o amigo da rodoviária retornou à ligação. Achei uma coisa. Pelas câmeras, uma menina com as características que você falou passou aqui ontem à noite. Parecia nervosa. Tava com uma sacola na mão. Ficou parada perto do guichê da aviação Campo Verde, mas depois sumiu. Ninguém viu mais. Não comprou passagem, só ficou ali por uns minutos e saiu andando. Pegou o caminho da Avenida da Marginal. Marcelo desligou o telefone e correu para lá. No caminho, o trânsito travou. Buzinas, gente com pressa, calor.
Ele socava o volante impaciente, como se cada segundo preso no carro afastasse mais a chance de achar a menina. Chegando na região, desceu do carro e foi andando pela calçada, perguntando de loja em loja, de banca em banca. Mostrava a foto de Clara no celular, perguntava para vendedor, para segurança, para motoboy. A maioria dizia que não tinha visto nada. Outros diziam que podia ser aquela menina que andou por ali, mas ninguém sabia para onde ela foi. No fim da tarde, o telefone tocou. Era uma enfermeira do hospital. Marcelo, a Patrícia acordou e está perguntando da
filha. Disse que precisa vê-la. Está fraca, mas muito agitada. Parece que está sentindo que algo aconteceu. Ele não disse nada, só desligou, entrou no carro e acelerou. Chegando no hospital, correu até o quarto. Patrícia estava sentada com esforço, tentando arrancar o acesso do braço, os olhos arregalados, a respiração descompassada. Cadê a Clara?", perguntou ela com a voz rouca. Marcelo se aproximou. "A gente tá procurando. Ela sumiu ontem à noite. Foi quando trouxeram você. Ela entrou com você, mas depois ninguém viu mais. Eu tô fazendo tudo o que posso." Patrícia começou a chorar. Ela nunca fugiria.
Ela me prometeu que não ia me deixar. Eu sei, ela não fugiu. Eu sinto isso, mas alguma coisa aconteceu e eu vou encontrar, prometo. A médica entrou, tentou acalmar Patrícia. Acedaram de novo. Marcelo ficou no canto do quarto, vendo a cena como se tivesse levado um soco. Aquela mulher estava morrendo e a única coisa que ela queria era ver a filha. E a filha desaparecida no mundo. Do lado de fora, o sol começava a cair, a cidade mudava de cor, mas Marcelo só pensava em uma coisa, onde uma menina de 7 anos podia ter ido
com uma mochila nas costas, sem dinheiro, sem ninguém, no meio de um mundo tão grande, ele pegou o celular e escreveu uma mensagem que não sabia para quem mandaria. Só digitou. Clara, se você estiver lendo isso, volta para casa. Sua mãe precisa de você. Eu também. A gente tá te procurando. Eu prometo que não vou deixar ninguém tirar você dela. Depois ficou parado, olhando pra tela, sem saber se devia enviar, para onde e para quem. No fundo, sentia que o tempo estava correndo e correndo contra eles. Enquanto Marcelo rodava pela cidade atrás de Clara, uma
outra movimentação estava acontecendo bem debaixo do nariz dele. Dentro da casa de número 28, bem de frente pro imóvel da menina, dona Ivone tramava em silêncio. Sentada na sua cadeira de balanço, encostada à janela, com o rádio ligado bem baixinho e a caneca de café esquecida no chão. Ela observava na ausência de Clara como quem assiste o final de um filme que já sabia onde ia dar. Na cabeça dela, tudo estava se encaixando. A menina tinha desaparecido. A mãe estava entre a vida e a morte no hospital. E o dono do imóvel finalmente estava se
aproximando demais. Era só uma questão de tempo. Tempo e uma mãozinha bem dada. Desde que a assistência social apareceu na rua, Ivon andava mais ativa. Sempre que via um carro oficial, puxava assunto. Oferecia água, biscoito, dava informações úteis, como ela mesma dizia. Claro que tudo vinha com um tempero a mais. exagerava no que sabia, inventava o que não sabia e aumentava o que ouviu de longe. Dizia que a menina ficava sozinha o dia todo, que andava em lugares perigosos, que recebia homens em casa, quando na verdade era só cliente da costura e que a vizinhança
já estava preocupada. Mas o que Ivone queria de verdade não era só ver Clara fora dali, era ver aquela casa sendo passada adiante para ela. No fim da manhã, ela pegou a velha agenda de contatos e ligou para um advogado que conhecia de uma briga antiga de herança da irmã. Era um sujeito que ela já tinha usado para resolver umas pendências com aluguel atrasado de um kitinete que tinha herdado, o tipo de cara que sabia onde forçar e onde calar. Quando ele atendeu, Ivone foi direto ao ponto. Doutor, lembra daquela casinha da minha rua que
te falei? A da mulher doente e a menina costureira? Lembro sim, dona Ivone. Aquela que a senhora queria comprar, né? Exatamente. Então, a mulher tá praticamente desenganada no hospital e a menina sumiu. Fugiu. Dizem que foi embora. abandonou a mãe. Ninguém sabe onde tá. O Marcelo, dono do imóvel, até agora não tomou providência nenhuma. Eu quero saber o que dá para fazer nesse caso. Tem como acionar o conselho, declarar abandono? Algo assim? O advogado riu com aquele riso debochado de quem já conhece o tipo de cliente que tem. A senhora quer tomar o imóvel no
grito. É isso? Quero resolver antes que o Marcelo acorde. Ele tá envolvido demais com isso agora. Se deixar, daqui a pouco ele adota a menina e transforma a casa em santuário. Eu quero comprar e quero rápido. Se tiver um jeitinho legal, melhor ainda. Do outro lado da linha, o advogado ficou em silêncio por alguns segundos. Depois disse que ia dar uma olhada no caso, conversar com alguém do conselho que ele conhecia e ver se dava para entrar com alguma notificação formal sobre abandono de imóvel. Disse também que se fosse constatado que a menor estava sem
supervisão legal e a mãe incapaz, podia haver uma movimentação da justiça para realocar a criança, o que abriria caminho paraa desocupação. Ivon desligou satisfeita. Sentia que agora as coisas iam andar do jeito dela. Pegou o celular e mandou mensagem para três conhecidos da rua, espalhando a novidade. A menina fugiu. A casa tá vazia. Ah, qualquer hora o juiz vem intervir. Eu já me adiantei. Tomara que resolvam logo. Enquanto isso, ela começou a preparar o terreno. Tirou fotos da fachada da casa de Clara, pegou registros antigos de reclamações da vizinhança que tinha guardado, inclusive uns que
ela mesma escreveu com nome falso, e até imprimiu notícias de jornal falando sobre abandono de menores para usar como referência, caso precisasse. À tarde apareceu um carro branco parado na esquina. Dois homens desceram e foram direto na porta da casa de Clara. Tocaram a campainha, bateram palma, ninguém atendeu. Ivone saiu correndo do portão dela com um sorriso pronto. Oi, senhores. Estão procurando a menina? Sim. Recebemos uma denúncia de desaparecimento e viemos verificar o local. Pois é, sumiu mesmo. Desde sábado ninguém vê. Eu como vizinha, só posso dizer que já estava na hora de alguém cuidar
disso. A mãe dela tá no hospital, né? Sozinha a menina vivia. Nunca foi certo. Os homens ouviram, anotaram, fizeram fotos do portão fechado e agradeceram. Ivone voltou para casa com o peito estufado. Não disse, mas sabia que era ela mesma quem tinha feito a denúncia de forma anônima. Claro. No fim da tarde, Marcelo apareceu na rua. Estava com os olhos fundos, roupa amassada e um cansaço que vinha mais da mente do que do corpo. Parou o carro e desceu, indo direto paraa casa de Clara. Viu os papéis grudados no portão, uma notificação, algo sobre visita
técnica, estado de abandono e solicitação de retorno do morador para esclarecimentos. Quando ele leu, sentiu um calafrio. Que é essa? Virou pra rua e viu Ivone, fingindo regar as plantas. Ivone, você sabe o que é isso? Ah, apareceu aí. Eu vi uns homens mais cedo, mas não sei detalhes. Devem ter vindo por causa da menina. Afinal, né? Não tá certo uma casa dessas ficar vazia. Marcelo não respondeu, só arrancou o papel do portão e entrou. Dentro tudo ainda igual, só a ausência de Clara que gritava mais alto. Ele olhou pro papel mais uma vez. Sabia
que se deixasse o sistema andar sozinho, iam declarar aquela casa como abandonada. E aí seria muito difícil proteger a menina quando ela voltasse. Mas ela ia voltar, ele tinha certeza. E quando voltasse, ele ia garantir que encontrasse tudo do jeito que deixou. O hospital estava mais silencioso do que o normal naquela manhã. Marcelo chegou cedo, com a notificação da casa ainda dobrada no bolso e a cabeça fervendo. Já tinha lido aquele papel mais de 20 vezes, mas não era isso que mais apertava o peito dele. O que incomodava mesmo era a ausência da Clara. Quatro
dias. Quatro dias sem notícia. Quatro dias com a mãe dela piorando a cada hora. No corredor da UTI, ele se sentou num banco de madeira e ficou ali de cabeça baixa, sentindo o tempo escorrer como areia entre os dedos. Até que a médica saiu da sala e se aproximou com aquele jeito cuidadoso que só médico treinado tem quando sabe. Que vem notícia ruim. Ela acordou. Tá fraca, mas lúcida. Tá perguntando por você. Marcelo levantou rápido, entrou no quarto e fechou a porta devagar. Patrícia estava ali magra, com o rosto mais pálido do que nunca, o
cabelo ralo sob o lenço, os olhos fundos e um sorriso pequeno ao ver ele entrando. Achei que você não ia voltar. Eu nunca fui embora. Ele respondeu se aproximando da cama. Ela fez sinal com a mão para ele se sentar e ele obedeceu, puxando a cadeira para perto dela. Ficaram em silêncio por alguns segundos. O barulho do monitor cardíaco preenchia o espaço. Ainda sem sinal da Clara? Ela perguntou quase num sussurro. Marcelo balançou a cabeça devagar. Ninguém viu, ninguém sabe, mas eu não vou parar. Patrícia fechou os olhos por um instante. Parecia segurando o mundo
dentro do peito. "Eu preciso te contar uma coisa", ela disse com esforço. Antes que não dê mais tempo. Marcelo franziu a testa. Que coisa. Ela respirou fundo, como quem toma impulso para mergulhar num lugar que ficou escondido por muito tempo. "A Clara é sua filha." Marcelo congelou. Por um instante. O som do monitor pareceu mais alto e o mundo mais lento. Ele achou que tinha escutado errado, que era efeito do cansaço, mas ela repetiu: "É sua filha, Marcelo." Ele ficou parado. O corpo não reagia. A boca travou. A respiração ficou presa. Só os olhos dele
se mexiam, tentando buscar no rosto dela algum sinal de brincadeira. Mas não era brincadeira. Como assim? Lembra daquela época quando a gente se encontrou de novo antes de eu sair do emprego na loja de tecidos? Foi pouco tempo, mas aconteceu. Eu descobri que estava grávida um mês depois. Tentei te procurar, mas você já tinha mudado de número. Já tava envolvido com os seus negócios crescendo e eu engoliu seco. Eu me senti pequena. Achei que você não ia querer saber. Achei que não ia se importar e aí fui levando. Fui criando ela sozinha, do meu jeito,
com o que dava. Marcelo levou a mão à boca, se afastou da cadeira, ficou em pé, deu dois passos pro lado, como se o chão estivesse se abrindo. Você tá dizendo que a Clara é minha filha esse tempo todo e você nunca contou? Não, por mal. Eu juro, no começo foi medo, depois vergonha, depois virou tarde demais e no fim achava que estava protegendo ela de você. Achei que você era outra pessoa, frio, distante, alguém que não ia querer carregar isso. Marcelo sentou de novo, não porque queria, mas porque as pernas fraquejaram. ficou com a
cabeça abaixada, as mãos entrelaçadas, tentando encaixar as peças que agora pareciam estar fazendo sentido. O jeito da Clara, a força, o olhar firme, a teimosia. Era como se estivesse vendo um pedaço dele, mesmo que ele nunca soube que existia. Ela ela sabe? Não, nunca contei. Ela perguntava às vezes. Dizia que todos os amigos tinham pai, menos ela. Eu dizia que o pai dela tinha viajado, que um dia talvez voltasse, mas nunca tive coragem. Marcelo passou a mão nos olhos, tentando segurar as lágrimas que vinham. Mais uma escorregou, silenciosa, rápida. Ele limpou com raiva e agora
ela tá perdida. Tá sozinha com medo. E eu nem sabia que ela era minha. Ela não tá sozinha, Marcelo. Ela é forte, muito mais do que a gente acha. Mas você precisa encontrá-la. precisa dizer que não vai mais sair da vida dela, nem por um segundo. Ele assentiu. O coração batia tão forte que dava para ouvir. Aquilo mudava tudo. Não era mais só a filha de uma inquilina, era a filha dele de sangue, de verdade. Eu prometo que vou encontrar e quando eu encontrar, ela vai saber, vai ouvir da minha boca. Patrícia fechou os olhos
de novo. Um sorriso fraco se formou nos lábios. Era só isso que eu precisava ouvir. O alarme do monitor disparou por um segundo. Marcelo levantou de novo, assustado. A médica entrou correndo, checando os sinais. Patrícia ainda estava consciente, mas muito fraca. O corpo dela estava desistindo. "Fica com ela. Cuida dela por mim." Eu prometo. Ele respondeu com a voz embargada. A médica pediu para ele sair para cuidar dos procedimentos. Marcelo saiu devagar com a cabeça a mil do lado de fora do hospital. Sentou na escada, puxou o celular e ficou olhando a foto de Clara.
os olhos dela, agora tudo fazia sentido. Ali, naquela escada fria, ele entendeu que tinha deixado a própria filha passar por tudo sozinha, que tinha cobrado aluguel, batido na porta dela, sem saber quem era. E agora o mundo estava cobrando dele o que ele devia desde o dia que Clara nasceu, ser pai. Ele levantou, colocou o celular no bolso e saiu andando com o passo firme. Agora não era mais questão de ajudar, era questão de encontrar, de proteger, de consertar o que ainda dava tempo. E o tempo estava acabando. Marcelo saiu do hospital com o coração
acelerado e as pernas meio bambas. A revelação ainda estava martelando dentro da cabeça dele como um sino que não parava. A Clara era filha dele, filha dele, aquela menina pequena, forte, decidida, que enfrentava o mundo sozinha. Era sangue do sangue dele. E agora ela estava sumida, desaparecida, talvez assustada, com fome, com frio, talvez pensando que tinha sido deixada de novo. Ele entrou no carro sem saber direito para onde ir. A cidade inteira parecia grande demais e ele pequeno demais naquele momento. Mas a ideia de perder a filha, antes mesmo de poder chamá-la assim, doía mais
do que qualquer coisa que ele já tinha sentido na vida. Parou num sinal fechado, abriu o celular e olhou mais uma vez a foto dela. Aquela imagem virou um soco no estômago. Respirou fundo e começou a pensar em tudo o que ainda podia fazer. Já tinha ido na polícia, em hospitais, em terminais. Faltava pouco, mas talvez estivesse procurando do jeito errado. Pegou o celular e ligou pro Renato, o gerente do restaurante. Fala, Marcelo. Alguma notícia? Não, mas eu preciso da sua ajuda. Fala, você tem amigos que trabalham com segurança, não tem? Gente que monitora câmera,
sistema, essas coisas? Tenho sim. Um deles é da prefeitura. cuida das câmeras da região central. Me consegue acesso. Eu preciso ver se ela passou por ali. Ontem o pessoal da rodoviária disse que viu uma menina parecida, mas ninguém confirmou. Talvez ela esteja andando por perto, sem saber onde ir. Renato não questionou, só disse: "Deixa comigo". E desligou. Marcelo também ligou pro advogado. Disse que não ia mais aceitar a ideia de que Clara era uma criança sem responsável. Agora que sabia a verdade, ia assumir. Ia se apresentar como pai, dar entrada nos documentos, fazer o que
fosse preciso. Pediu pressa, pediu urgência. Disse que se não resolvessem aquilo, logo iam tirar tudo dela, a casa, o nome, a liberdade, e ele não ia deixar. Naquele mesmo dia à tarde, ele voltou à casa de Clara, passou por Ivone no portão, que tentou puxar papo com aquele jeitinho, fingido de quem se importa. Alguma novidade, Marcelo? Vai cuidar da sua vida, Ivone. Ele nem olhou para trás. Abriu o portão, entrou e trancou. sentou no sofá e ficou em silêncio. A casa ainda tinha o cheiro de clara. Do sabão em pó que ela usava, do pano
de chão molhado, das roupas recém-costuradas, era como se ela tivesse acabado de sair e isso doía mais do que o silêncio. Foi quando ouviu um barulho do lado de fora, um toque leve, a campainha, uma vez só. Ele se levantou devagar, o coração disparou, mas ele não deixou a esperança subir rápido demais. Abriu a porta. Ela estava lá, Clara, com a mochila nas costas, o cabelo preso de qualquer jeito e os olhos inchados, cansados, fundos, a roupa suja, os pés cheios de poeira, mas ela estava lá. Os dois se encararam por alguns segundos sem dizer
nada. Marcelo tentou falar. Mas a voz não saiu. Clara quebrou o silêncio. Eu fui até a rodoviária. Queria ir para longe, mas não consegui. A mãe tá lá no hospital e eu não sabia mais para onde correr. Marcelo deu um passo à frente, se abaixou até ficar na altura dela. Você não precisa mais correr, Clara, nunca mais. Ela franziu a testa confusa. Por quê? Ele respirou fundo. A voz tremia, mas ele falou mesmo assim: "Porque eu sou seu pai". Clara deu um passo para trás. O quê? Sua mãe me contou. Eu não sabia, nunca soube,
mas agora eu sei. E agora eu tô aqui e eu não vou sair mais. Ela ficou parada, tentando entender, tentando acreditar. Você é meu pai. Sou. E eu devia ter sido desde o começo, mas agora eu quero ser de verdade. O rosto dela começou a tremer. A lágrima veio de repente, rápida, e caiu sem aviso. Clara não chorava fácil, mas ali não deu para segurar. Marcelo abriu os braços devagar. Ela hesitou, depois num impulso, foi correndo até ele e se jogou no abraço. Ficaram assim, pai e filha, pela primeira vez, de verdade. Quando entraram, Clara
tirou a mochila e contou tudo. disse que ficou com medo, que achou que iam separar ela da mãe, que viu os homens colando papel no portão e se apavorou, que tentou fugir, mas depois ficou pensando que não tinha ninguém no mundo. E por isso voltou. Marcelo ouviu tudo calado, mas por dentro fazia promessas em silêncio. No dia seguinte, foi com ela ao hospital. Clara entrou no quarto com um buquê de flores baratas na mão e a voz embargada. Mãe, eu voltei. Patrícia chorou na mesma hora e quando olhou para trás e viu Marcelo entrando com
a mão no ombro da filha, entendeu tudo sem precisar ouvir de novo. Ela não estava mais sozinha, nem Clara. Dois dias depois, o céu amanheceu nublado. Clara acordou cedo, mesmo depois de dias mal dormidos. levantou devagar, pisando no chão gelado com cuidado. Marcelo estava na cozinha esquentando o café na chaleira, atrapalhado, mexendo com uma colher torta dentro de uma caneca enorme. Ela entrou devagar e se sentou na cadeira da ponta da mesa. Marcelo virou e sorriu daquele jeito meio desajeitado de quem ainda não sabe ser pai, mas está tentando. Bom dia, pequena. Bom dia. Ele
serviu o café com pão e margarina. Não era muito, mas para Clara aquilo parecia um banquete. Era a primeira vez que alguém fazia café para ela em muito tempo. Ela mordeu o pão, olhou ao redor e respirou fundo. A casa estava em silêncio, mas agora era um silêncio diferente. Não do tipo que machuca, era o tipo que descansa. Naquele mesmo dia, os dois foram até o hospital juntos. Patrícia estava fraca, mas lúcida. Tinha falado pouco nos últimos dias. Sabia que o corpo estava desistindo, mas o coração estava em paz. Quando Clara entrou no quarto com
Marcelo, ela sorriu. Os olhos dela diziam tudo. Obrigada. Marcelo se aproximou da cama, segurou a mão dela e disse com a voz firme, mesmo engasgada: "Eu tô aqui, não vou sair. Prometo que vou cuidar dela. Por mim? Por você. Patrícia fechou os olhos devagar. Uma lágrima escorreu. Aquela foi a última vez que falou com a filha. Na madrugada do dia seguinte, ela partiu. O enterro foi simples, mas bonito. Algumas vizinhas apareceram, até a dona Lúcia do vestido de festa e o motoboy da farmácia. Renato foi também de uniforme e levou flores. Marcelo segurou a mão
de Clara o tempo todo. Ela chorou calada, como sempre fazia. Não era de cena, não era de grito, mas a dor dela estava em cada movimento pequeno, em cada respiração pesada. Depois disso, as coisas mudaram rápido. Marcelo não deixou que a assistência social tomasse nenhuma decisão. Mostrou todos os documentos, fez os registros, assumiu oficialmente a paternidade, disse com todas as letras: "Essa menina é minha filha e vai morar comigo." Eles podiam ter se mudado pra casa dele. Era maior, mais confortável, mas Clara pediu para ficar onde sempre viveu. A casa da mãe era o que
ela conhecia. E Marcelo respeitou, reformou tudo, pintou as paredes, arrumou o telhado, trocou os móveis, velhos por novos, comprou uma cama grande paraa Clara e colocou até um filtro de barro na cozinha do jeito que ela gostava. Mas a maior mudança mesmo foi na sala. Marcelo mandou fazer uma placa e pendurou na parede. Atelier da Clara. Montaram juntos um pequeno espaço de costura, a mesma máquina, agora com uma bancada nova, estante de linhas coloridas, tesouras afiadas, tecidos empilhados em ordem e uma prancheta com pedidos pendurados. Gente do bairro inteiro começou a aparecer, primeiro por curiosidade,
depois por indicação. Logo ela estava recebendo encomenda até de fora do bairro. Com o tempo, Marcelo começou a aprender também. Ajudava a cortar tecido, levava peça para passar, buscava zíper na loja do centro. Às vezes errava, se enrolava, costurava torto, mas ria disso. E Clara ria junto. A casa que antes era só silêncio, agora tinha barulho de máquina, de conversa, de risada, de vida. Um mês depois, Marcelo fez uma reunião com amigos empresários e propôs uma ideia: montar um projeto social no bairro, um atelier, escola para mulheres em situação difícil, com aulas de corte, costura
e empreendedorismo. A proposta ganhou força rápido. Clara seria a professora mais nova da cidade. A primeira aula aconteceu numa tarde de sol. Quatro mulheres sentadas em mesinhas com caderninho na mão e tesoura na outra. Clara com o avental azul claro e a fita métrica pendurada no pescoço. Marcelo de pé no fundo com cara de pai babão. Quando ela explicou como fazia a bainha perfeita, todas ouviram em silêncio, encantadas. Dona Ivone, claro, nunca mais tentou se meter quando viu a placa no muro da casa dizendo: "Projeto costura de mãe entrada pela lateral, ficou vermelha". Tentou disfarçar
e disse que achava bonito ver gente trabalhando. Mas ninguém deu ouvidos. Ela passou a ser só mais uma vizinha ranzinza, ignorada por todos. Numa tarde qualquer, Clara sentou com Marcelo na varanda da frente. O sol batia nas plantas do jardim, que agora estavam bem cuidadas. Ela olhou para ele e perguntou meio tímida: "Você acha que a mamãe tá vendo isso tudo?" Marcelo passou o braço pelos ombros dela e respondeu: "Tenho certeza e acho que ela tá orgulhosa. Muito Clara sorriu, um sorriso leve, tranquilo. O tipo de sorriso que só aparece quando o medo vai embora
e dá lugar paraa paz. Naquela casa, com cheiro de tecido novo e café passado na hora, nasceu uma nova história. Não era perfeita, não era fácil, mas era verdadeira. E pela primeira vez, Clara podia costurar o que quisesse, porque agora ela tinha linha de sobra, tempo para sonhar e um pai ao lado, firme, presente inteiro. [Música]