O Brasil do olhar estrangeiro, parte 1: O paradoxo do paraíso

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Como o mundo enxerga o Brasil? De onde vem o clichê do país do futebol, do samba e Carnaval? Nesta ...
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Duzentos anos atrás, em algum ponto do que hoje é o Parque da Independência, em São Paulo, Dom Pedro anunciava que o Brasil rompia com Portugal. O tal do grito do Ipiranga guarda pouca semelhança com a imagem apoteótica que ficou para a história na pintura de Pedro Américo. No quadro - feito 66 anos depois do episódio que ele retrata - o grito da independência é um evento militar grandioso.
No Parque da Independência, um respiro verde no mar de concreto que é São Paulo, não se sabe o local exato em que dom Pedro teria dito a famosa “independência ou morte” O rio foi canalizado, corre parcialmente embaixo da terra, São Paulo se urbanizou, cresceu, e essa referência simplesmente se perdeu no tempo. Mas o 7 de setembro, tal qual foi moldado pela história oficial, funda o Brasil como nação independente para nós brasileiros e para o resto do mundo. Nessa série especial, a gente mergulha neste e em outros capítulos simbólicos que ajudaram a moldar a reputação do Brasil lá fora.
O grito do Ipiranga, as expedições de Dom Pedro 2º pelo mundo, Darwin, Carmen Miranda e Zé Carioca, a Bossa Nova, a praia, o futebol, a violência e essas duas décadas de século 21. Mas vamos começar do começo. Não da chegada há milhares de anos dos povos que seriam, digamos, os verdadeiros descobridores dessa terra, mas da história que começa a ser escrita aqui em 1500.
A primeira representação de um estrangeiro sobre o Brasil. A carta de Pero Vaz de Caminha. Já está aqui a imagem do indígena que anda nu, pardos nus sem nenhuma coisa que lhes cobrisse as vergonhas e da natureza exuberante, pródiga, em tal maneira graciosa, que querendo a aproveitar, dar-se-á nela tudo por causa das águas que tem Um retrato não distante da verdade.
Mas que é só uma parte da história. E que aparece não só nas cartas náuticas que os exploradores portugueses enviavam para a coroa, mas é repetido por vários viajantes que passaram por aqui a partir do momento em que o Brasil passa a existir para a Europa. Aqui, os portugueses ocuparam a terra, mas, pelo menos até o século 19, a única descrição que o mundo tinha do que então era o Brasil vinha de outros viajantes europeus.
Primeiro, que você tem um mercado editorial paupérrimo em Portugal, é só você pegar, por exemplo, o que foi publicado sobre o Brasil: basicamente são textos religiosos - é o que predomina, né? Sermões, panegíricos, textos morais, textos religiosos… pouquíssimos são descritivos, poucos. Nós não temos essa tradição na colônia de textos descritivos.
As editoras desaparecem, aparecem. . .
poucas duram muito tempo, as tiragens são muito pequenas. E aí Portugal também não traduziu nada, não é, porque você tem narrativas muito importantes que se fizeram circular: as narrativas da França Antártica, por exemplo, Léry, Thevet, todas foram muito impactantes no seu tempo. Portugal nunca se traduziu, a não ser lá pro século 19 Então não tem traduções das obras sobre a América.
Portugal praticamente não foi impactado pela literatura de viagem, mas também não impactou É a impressão de franceses, italianos, ingleses, holandeses, alemães com um detalhe: entre 1500 e 1570, eles nem chegavam a entrar no território. Muitos não passavam da faixa de areia do litoral. E mesmo depois, o contato de fato com o Brasil foi muitas vezes superficial Muitos que fizeram grande sucesso não ficaram 30 dias numa cidade brasileira, não havia permissão de adentrar para o interior, só podia circular durante o dia, não se podia dormir em terra - também não havia pensão, uma casa de pasto, nada em que você pudesse fazer refeições.
Se você quisesse muito dormir em terra, ou fosse extremamente necessário - no caso, tem que desocupar o navio para fazer algum reparo e tal -, você teria que alugar uma casa com autorização da polícia, e provavelmente os guardas iam ficar na porta da sua casa, e você não poderia circular à noite. É muito restritivo para o estrangeiro. Muitos não chegaram nem a fazer isso.
Por exemplo, eu conheço um caso de um rapaz, que passou pela Bahia, então ele tem de fato uma descrição de Salvador onde ele aportou e desceu e conheceu blá blá blá, né? E depois quando ele passa pelo Rio de Janeiro, ele passa muito rápido e ele fala assim: “Olha, como eu passei muito rápido, mas é uma cidade importante, não vou deixar de escrever aqui, eu vou pegar de descrições que já foram feitas e vou colocar aqui. Então até isso ocorre: pessoas que passaram, mas as descrições não são deles, as descrições são de outro, e que ele reproduz ali, né?
Então esses vão informar outros, que vão informar outros… é uma cadeia de fofocas, digamos assim, né, então para formação desse senso comum acerca do que que é o Novo Mundo, especificamente a América do Sul, Brasil. E nesse senso comum, o indígena aparece como bárbaro, incivilizado e pagão - uma descrição que casa perfeitamente com os interesses da colonização, que com o tempo vai incorporar na sua retórica o pretexto da missão civilizatória e da evangelização dos povos locais. A antropofagia dos indígenas brasileiros ganha destaque nos primeiros séculos da colonização.
A maioria dos estudos antropológicos hoje indica que ela era ritualística, com um significado que variava a depender do grupo. Os Tupinambá, por exemplo, que habitavam aqui o sul da Bahia, matavam e comiam prisioneiros de guerra. Já os Tarairiú, que habitavam a caatinga nordestina, o faziam como uma espécie de reverência, com pessoas que admiravam, enquanto outros o faziam pra vingar a morte de parentes.
Mas no relato dos viajantes, a ênfase é muitas vezes no grotesco, no bizarro. Para o senso comum, comer carne humana vira hábito da dieta indígena - são os índios comedores de gente. Sim, comiam gente, mas em situações simbólicas - como indicam boa parte dos estudos mais recentes.
O Hans Staden foi um dos grandes divulgadores, né… aquelas imagens que a gente conhece que saíram do De Bry por aí, né? Porque é uma das grandes coletâneas de viagem da época, e são coletâneas muito importantes, que têm um impacto imenso na Europa, e ela é imagética. Ela traz ilustrações.
Aí você se pergunta: “Mas o ilustrador veio? ”. Não, ele ouviu sugestões e fez lá as ilustrações com coisa que pudesse ter a mínima familiaridade Com o tempo, a imagem do Brasil dos viajantes vai ganhando novas tintas.
E a terra de indígenas bárbaros vira uma espécie de paradoxo do paraíso: de um lado, uma natureza exuberante, exótica, forjada em um clima quente; de outro, um povo visto com frequência como preguiçoso, corrompido e erotizado. Isso é mais ou menos aceito, de que há uma exuberância da natureza, é pródiga. E o povo?
Um dos problemas é a miscigenação, né, a miscigenação acelerada. Não é propriamente racial, mas a mistura - não é um discurso racialista propriamente, isso não existe durante a colônia, é uma outra invenção do século 19, né. Mas há um discurso do tipo: miscigena-se cada vez mais, de dia para dia.
Há uma flexibilidade muito grande na nas cadeias de comando e nos exemplos morais e tal, e isso de certo modo degrada a população. A escravidão degrada ela de certo modo denigre o trabalho. Quando se comemora mais ou menos 200 anos do descobrimento da América, a França promove um grande concurso de monografias nos seus institutos históricos que tinha uma única pergunta, elaborada por um Iluminista, o Abade Raynal: quais são as vantagens e desvantagens mais ou menos isso, do descobrimento do novo mundo para os europeus?
Aqui algumas das respostas que chegaram: "Nós não descobrimos o Novo Mundo para levar a felicidade ou encontrarmos maneiras de sermos melhores. Ao contrário, os europeus armaram os povos selvagens e os colocaram uns contra os outros. " “Oh, Colombo, foste vós a causa de uma degradação tão humilhante para a humanidade!
” “As leis bárbaras que escravizam uma raça a outra tendem a degradar ambas ao mesmo tempo” É inegável que os avanços econômicos foram fundamentais, né, a prosperidade da Europa, ela tem a ver com o descobrimento da América, mas o descobrimento da América trouxe uma degradação moral do ocidente em geral. E aí você tem uma nova literatura bastante impactante também, que vai enxergar a América como um princípio de decadência. Você percebe que a inteligência brasileira que está aqui no Brasil, ela leva um choque quando ela depara com as primeiras narrativas sobre o Brasil feita por estrangeiros.
Esse choque se manifesta em diversos textos publicados por autores brasileiros que a partir do século 19 vão contestar os relatos dos viajantes. Nesse daqui, Antonio Deodoro de Pascual, então membro do Instituto Histórico Geográfico Brasileiro, dedica quase 250 páginas para criticar as cartas sobre o Brasil escritas pelo viajante britânico Charles Mansfield. “Coitado de Mansfield!
”, ele escreve em um dos trechos, “acredito piamente que desencaminhou-se da verdade, porque vinha de Londres, onde nada se sabe desta parte do mundo. ” O século 19 é um encontro de desconhecidos. E esse encontro é tão forte que nunca mais o Brasil deixou de pensar-se a si próprio sem levar em consideração o olhar que o outro - europeu, no caso - tem dele.
Esse encontro entre o Brasil dos estrangeiros e o Brasil “brasileiro”, digamos assim, é tema do nosso próximo episódio.
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