M. Nome é Gerson. 61 anos nas costas e mais de 40 rodando nessas BRs da vida. Por aí me conhecem como Gerson do Sul, porque saí lá de Vacaria, no Rio Grande, e nunca mais consegui tirar o sotaque carregado. Na boleia a gente vê de tudo, mas aquele dia eu vi o que nunca vou esquecer. Tem gente que diz que eu sou bruto, grosseirão, cara fechado. E é verdade mesmo. A estrada vai deixando a gente assim com casca grossa. Não é vida fácil não, viu? Solidão dos infernos, poeira, buraco, assalto, fiscal chato no pé, rastreador
te vigiando até para mijar, mas aprendi a conviver com isso tudo. O problema é conviver comigo mesmo, com minhas culpas e arrependimentos. Aí é mais complicado. Tava eu naquela madrugada frienta de junho cortando a BR282 em Santa Catarina. Céu estrelado, serra abaixo. O velho Scania 113 roncando firme. Tava levando carga de Chapecó para Florianópolis. Frango congelado. Não é o melhor frete, mas paga as contas, né? Você sabe como é. A gente não escolhe muito, principalmente nessa idade. Tá cada vez mais difícil para nós, os dinossauros da estrada. Quando a gente vai ficando velho, tudo complica.
Os olhos já não enxergam direito. A coluna tá toda ferrada. A diabetes não dá sossego, mas a cabeça essa fica mais mole. É engraçado, né? Quanto mais duro o corpo, mais mole a cabeça. Hoje eu me emociono com propaganda de margarina na TV. Vê se pode. Antigamente eu era um touro bravo. Hoje choro vendo passarinho. Era umas 3 e pouco da madrugada quando passei naquele trecho desgraçado da serra do rio do rastro. Lugar perigoso da Neblina entrando, visibilidade quase zero. Tava indo devagarinho, só no farol alto e rezando para São Cristóvão. Foi quando vi assim
meio de relance uma coisa estranha no acostamento, perto daquela curva fechada antes do mirante. No começo achei que era lixo, sabe? Tem muito caminhoneiro, filho da que joga tralha na estrada. Mas algo me fez dar uma olhada melhor pelo retrovisor e meu coração gelou na hora. Parecia uma pessoa. Num primeiro momento, pensei, é algum malandro armando casinha para me assaltar. Não seria a primeira vez, mas eu tava errado. Reduzzi, encostei mais à frente e peguei a lanterna no porta-luvas. Não sou desses que para qualquer um, não. Mas algo me dizia que era diferente. Desci do
caminhão xingando baixinho. Vou me meter em encrenca, seu burro velho. Mas continuei andando e lá estava. Vi uma cadeira de rodas encostada na mureta da estrada. Quando cheguei perto, ela me olhou com os olhos mais cansados do mundo. Uma senhora devia ter seus 80 anos, toda encolhidinha com um cobertor fino nos ombros, pálida que nem papel, tremendo de frio, com uma malinha surrada no colo. Meu Deus do céu, foi só o que consegui dizer. A velhinha sorriu um sorriso sem dente, como se aquilo fosse a coisa mais normal do mundo. Estar sozinha numa cadeira de
rodas no meio da serra à 3 da madruga, com temperatura de quase 0 grau. Fiquei parado nem sei quanto tempo, só olhando, sem acreditar. Era como ver um ET. Não fazia sentido, nenhum sentido. Como uma idosa de cadeira de rodas foi parar ali. Quem deixou? Por quê? Mil perguntas. explodindo na cabeça. Acho que a vida quis me dar uma lição naquela noite. Eu que sempre reclamei de tudo, da minha solidão, dos meus problemas, do meu joelho doendo. E ali estava alguém que tinha motivos de verdade para reclamar. E mesmo assim sorria com aquela cara enrugada.
Nessa vida de estrada a gente endurece, vira bicho, mas tem hora que Deus manda uns tapa na cara da gente para mostrar que ainda somos humanos e que ainda tem gente mais que a gente por aí. Aquela senhora ia me ensinar mais sobre a vida do que meus 40 anos de asfalto. Sabe o que é acordar todo o santo dia sem saber em que cidade você tá? É a minha vida há mais de quatro décadas. Esse trecho aí é meu endereço fixo. BR para cá, BR para lá, postos de gasolina fedendo a óleo diesel e
mijo de caminhoneiro. Banheiro sujo que se precisa tomar banho depois de usar o vaso. Essa é minha casa. Minha rotina é uma desgraça só. Levanto cedo para quando o sol nem pensou em aparecer. Escovo os dentes com água de garrafa PET, como pão dormido com mortadela e café requentado do dia anterior. Tudo isso sentado na boleia, encarando o para-brisa embaçado. Não tem nada de romantismo nessa não. Quem fala que ama a estrada ou nunca pegou um frete na vida ou é maluco de pedra. Meu colchonete é fino que nem lasca de queijo. O banco é
duro que nem pedra. E meu travesseiro é um casaco velho dobrado. Durmo igual cachorro, sempre com um olho aberto. Já levei rubaço duas vezes dormindo e na segunda quase não saí vivo. Desde então durmo com um 38 debaixo do banco. Não conto isso para ninguém, mas ali tá ele, meu companheiro de sono mais fiel que qualquer mulher que já tive. Fazia três semanas que eu tava emendando frete. Saí de Uruguaiana com arroz, descarreguei em São Paulo, peguei eletrônico em Guarulhos e levei para Porto Alegre. Depois subi com calçado até Chapecó e agora tava com esse
frango congelado. É o que a gente chama de fechar a volta. Mas a volta nunca fecha de verdade. A gente só segue rodando, rodando igual hsterquela rodinha de merda. Tem dias que eu fico 14, 16 horas direto no volante. É proibido? É, mas e daí? Se eu não fizer, tem 10 moleque louco de rebit querendo meu lugar. A concorrência tá braba e ninguém liga se você dormiu ou não. O que importa é entregar no prazo, senão não tem mais frete. A verdade é que eu tô tentando esquecer um monte de coisa rodando assim, tentando deixar
os problemas para trás, mas eles sempre alcançam a gente, né? Não adianta correr. Minha ex-mulher, a Marinette, desistiu de mim depois de 17 anos de casamento. Não aguento olhar a foto dela até hoje. Cansou de esperar marido. Disse que casou com fantasma, não com homem. Foi embora com um vendedor de consórcio lá da cidade, um tal de Rogério consorciador, sujeito de bigodinho fino, cabelo tingido, virou piada no trecho todo. E aí, Gerson? O consórcio da Marinete tá em dia? E meu filho, essa é a ferida que não fecha. O Denis deve estar com uns 32
anos agora. Não vejo ele há mais de 15. No começo ainda falava pelo telefone. Depois foi espaçando, espaçando. Até que um dia ele falou na cara dura: "Pai, se nunca tá aí quando preciso. Cansei de ser órfão de pai vivo. aquilo doeu mais que facada. Desde então, ele mudou de número, bloqueou no Facebook e sumiu. Eu até tento vez ou outra. Mando mensagem no aniversário dele no Natal, mas é igual jogar garrafa no mar. Nunca sei se ele recebe, se lê, se ri, se chora, ou se nem tá nem aí. Meu filho nem lembra mais
que eu existo. A mulher cansou de esperar e foi embora com outro. Só me sobrou estrada e solidão. Solidão que eu mesmo construí asfalto por asfalto. A verdade é essa. Fui um péssimo marido e um pai mais merda ainda. Escolhi a estrada e a estrada me escolheu de volta. Troca justa, mas dolorida para De tanto ficar sozinho, a gente começa a falar sozinho. Eu converso com o painel do caminhão, dou nome pras marchas, bato papo com São Cristóvão no santinho do painel, discuto com os pardal da estrada, xingo os buraco como se eles tivessem culpa
de existir. É assim que a gente mantém um teco de sanidade ou insanidade, sei lá. O negócio é não ficar em silêncio por muito tempo, porque senão os pensamentos ruins vem com tudo. Tem época que fico três, 4 meses sem abraçar ninguém. Abraço de verdade, sabe? Não esses tapinhas nas costas que a gente dá em outro caminhoneiro no posto. Um dia desses, uma garçonete num boteco de beira de estrada colocou a mão no meu ombro para perguntar se eu queria mais café e quase chorei. Patético, né? Mas é assim que a gente vai ficando. O
corpo todo duro por fora e a alma toda mole por dentro. E eu tô nessa idade escrota que nem velho eu sou direito, nem jovem sou mais. Pego as duas desvantagens, as dores da velice e a obrigação de trabalhar como se fosse novo. Ninguém respeita mais caminhoneiro velho. Somos tratados como lixo, como entúo. Os mais novos tiram sarro. Chamam a gente de jurásico, de tartaruga. Não sabem nem trocar uma embreagem e já vem com carrão zero, tudo automatizado. No meu tempo, a gente tinha que saber consertar motor na estrada, trocar correia, adivinhar o problema só
pelo barulho. Tudo que eu tenho hoje é esse Scania 113 vermelho desbotado com quase 1 milhão de quilômetros rodados. É mais velho que muito colega de estrada por aí, mas é meu companheiro fiel. Brutus. Esse é o nome dele. Dei quando comprei já usado há 18 anos. A cabine tá remendada. O motor já foi retificado três vezes, mas ainda ronca firme. É igual eu, velho, surrado, mas ainda na ativa, todo rabiscado de adesivo, santinho, frase de para-choque, uma colxa de retalhos ambulante. Esse caminhão é minha casa, consultório confessionário. Já chorei litros dentro dessa cabine. E
ali estava eu, naquela madrugada fria, rodando e tentando não pensar muito na vida, escutando modão sertanejo antigo, daqueles que falam de dor de cotovelo, de amor perdido. Fumando mais do que devia, tinha prometido a mim mesmo parar e bebendo café amargo para espantar o sono. Foi quando encontrei aquela senhora na cadeira de rodas. Eu não sabia, mas aquela senhora ia mudar meu rumo. É engraçado como a vida dá voltas, né? A gente acha que tá tudo definido, que nosso caminho já tá atraçado até o fim e do nada vem uma curva que nenhum GPS avisou.
Parece que Deus ou o destino ou sei lá quem comanda essa bagaça toda, de vez em quando joga uma pedra no meio da estrada só para ver como a gente vai desviar ou se a gente vai ter coragem de parar e tirar a pedra do caminho. Aquela velhinha na cadeira de rodas era minha pedra ou seria minha salvação? Eu que nunca paro para ninguém, que passo reto em batida na estrada para não me envolver, que faço de conta que não vejo o caroneiro. Parei para ela. Por quê? Até hoje não sei explicar direito. Talvez porque
aqueles olhos cansados me lembraram os da minha mãe. Talvez porque lá no fundo eu queria que alguém parasse por mim se eu estivesse na mesma situação. Ou talvez porque depois de tantos anos de estrada ainda sobrou um tiquinho de humanidade nesse corpo velho e cansado. Aquela cena não sai da minha cabeça, nem que eu queira. Era uma madrugada filha da de fria, daquelas que fazem o nariz escorrer e as juntas doerem tudo. Céu limpo, estrelado, lua grandona, mas um frio do que entrava na alma. A serra estava tão deserta que dava até medo. Só se
ouvia o barulho dos motores e vez ou outra, algum bicho na mata ao lado. Não estava passando nem 10 carros por hora naquele trecho. Eu sempre me cago todo quando passo naquela merda de serra do rio do rastro. É bonita de ver na foto, mas é o inferno na terra para dirigir. Mais de 250 curvas coladas uma na outra, umas tão fechada que você tem que manobrar o caminhão igual pescaria de anzol. Uma frenada brusca, um volante errado e tu já vira presunto lá no fundo do vale. Tem trecho que não tem nem guard rail
direito. É só uma mureta vagabunda entre você e a queda livre pro abismo. Lembro que tinha uma neblina rala começando a se formar. daquelas traiçoeiras que vão engrossando devagarzinho até se não ver um palmo na frente do nariz. Tava dirigindo quase abraçado no volante, com os olhos arregalados que nem coruja, tentando enxergar cada curva. E aí do nada vejo aquela silhueta na beira da estrada. No começo achei que era uma ilusão de ótica, sabe? A mente da gente prega cada peça quando tá cansada. Mas quando passei do lado e olhei melhor, vi que era uma
cadeira de rodas mesmo. Uma cadeira de rodas empetiada, daquelas antigas, pesadona, com uma velhinha sentada nela. Quando eu voltei e cheguei perto, minha lanterna mostrou a cena completa. que pariu, era uma senhora de idade, cabelo todo branco, preso num cocozinho apertado. Devia ter no máximo 1,50 m, toda mirradinha. Estava encolhida igual um passarinho, tremendo mais que vara verde. No colo dela, uma mala pequena, dessas de mão, toda judiada, fechada com um barbante amarrado em volta, porque o zíper tinha quebrado, e nos ombros uma manta de lã desbotada, que nem dava para cobrir ela direito. O
rosto dela, isso nunca vou esquecer, todo enrugado, que nem mapa cheio de estradas, mas de uma delicadeza, sabe? Uma pele fininha que parecia que ia rasgar se encostasse muito forte. E os olhos, meu Deus do céu, olhos castanhos, fundos, com uma tristeza que não cabia dentro deles. Olhos que já tinham visto tanta coisa nessa vida que pareciam estar olhando através de mim, não para mim. E o mais estranho, ela não estava pedindo ajuda, não tava acenando, não tava gritando, não tava fazendo nada, só estava ali sentada olhando o nada, como se tivesse se conformado com
aquela situação absurda. "Moça, tá tudo bem por aqui?", perguntei, me sentindo um completo idiota. Nada estava bem naquela cena. Era óbvio que não estava bem nenhuma. Como uma velhinha aleijada na beira de uma rodovia perigosa no meio da madrugada gelada poderia estar bem. Ela demorou uns segundos para responder, como se minha voz tivesse acordado ela de um transe. Aí olhou para mim, deu um sorrisinho sem graça e falou com uma voz fininha: "Só tô esperando meu filho, mas acho que ele esqueceu de mim. Na hora eu congelei, não pelo frio, mas por dentro mesmo. Aquela
frase simples me atravessou igual faca. Quase não consegui disfarçar o choque. Esqueceu. Como assim esqueceu? Quem diabos esquece a própria mãe idosa e cadeirante na beirada de uma rodovia? Nemum cachorro a gente abandona assim. Faz quanto tempo que a senhora tá aqui? Perguntei tentando manter a calma. Desde ontem de tarde, meu filho. Ele disse que ia até a cidade comprar um remédio para mim e que voltava logo. Mas já anoiteceu, passou a noite e amanheceu de novo. Deve ter acontecido alguma coisa com ele. Meu sangue ferveu na hora. Eu conhecia bem aquela história. Não era
a primeira vez que ouvia falar de filho da abandonando idoso na estrada, mas ver com os próprios olhos era diferente. Dava um negócio ruim na boca do estômago, uma raiva misturada com tristeza. "A senhora tá sem comer desde ontem?", perguntei, já procurando na boleia algo para dar para ela. "Não, não. Eu trouxe uns biscoitinhos na bolsa. Sempre carrego comigo. E um moço passou de moto mais cedo e me deu uma garrafinha d'água. As pessoas são muito boas, graças a Deus. merda. A velhinha agradecendo pela bondade das pessoas, quando na verdade o próprio sangue dela tinha
abandonado ela para morrer ali. Aquilo mexeu comigo de um jeito que não sei nem explicar. Ela estava tão indefesa ali. O corpo frágil todo exposto, a pele enrugada já roxa de frio, os lábios meio arrocheados, as mãos trêmulas. A cadeira de rodas era daquelas antigas, toda pesada. dura de movimentar, com o estofado rasgado e remendado com fita isolante. Parecia até de museu de tão velha. Como a senhora veio parar aqui? Tentei entender melhor. Meu filho disse que ia me levar para um lugar melhor, que ia me dar uma nova casa. A gente veio no carro
dele, um Monza verdinho, aí parou aqui e disse que precisava ir rapidinho na farmácia comprar meu remédio de pressão. Me deixou esperando e falou que voltava logo. Enquanto ela falava, vi que tinha uma sacola plástica amarrada na lateral da cadeira. Dentro tinha uns documentos, uma carteira de identidade toda surrada, uma receita médica amarelada e um terço católico velho. O que será que passa na cabeça de um homem quando ele planeja abandonar a própria mãe assim? Será que dormiu tranquilo essa noite? A senhora tem algum outro parente que a gente possa chamar? Algum telefone de outro
filho, sobrinho, sei lá. Ela balançou a cabeça negativamente. Só tenho ele, o júnior. Meu marido morreu faz 15 anos. e minha outra filha faleceu de câncer às cinco. Morávamos só nós dois numa casinha em Lauro Müller. Ali eu entendi a situação toda. O desgraçado aproveitou que ninguém mais ia cobrar dele e simplesmente se livrou da carga que considerava pesada demais. Devia ter planejado tudo. Escolheu um lugar isolado onde poucos carros param, numa temperatura que uma pessoa idosa não aguentaria muito tempo. Olhei ao redor e não tinha nada. Nenhuma casa, nenhum posto, nem uma biboca de
estrada por perto, só asfalto, curvas e o precipício ao lado. O posto mais próximo ficava uns 30 km dali. Se ela ficasse ali mais um dia, com aquele frio, não sobreviveria. "Como é seu nome, senhora?", perguntei enquanto tirava meu casaco e colocava nas costas dela. Áurea. Áure Maria da Conceição. "E o seu moço?" "Gerson?" Respondi, sentindo um nó na garganta. Olha, dona Áurria, eu acho que seu filho não vai voltar. A senhora acha que ele pode ter sofrido algum acidente? Ela ficou em silêncio por um momento, olhando pro chão. Depois ergueu a cabeça com os
olhos marejados, mas sem derramar lágrima nenhuma. A dignidade daquela senhora era algo fora do comum. Não, seu Gerson. Acho que ele só cansou de cuidar de mim. Faz dois anos que tive o derrame e não ando mais. Dou muito trabalho, sabe? Ele tem a vida dele, os filhos dele. Eu entendo. Nessa hora quase desabei. Como que ela conseguia ter compaixão por alguém que fez aquilo com ela? Que tipo de amor é esse que perdoa até o imperdoável? Fiquei sem palavras, só parado ali com a lanterna na mão, olhando para aquela mulher que tinha mais força
na alma que muito marmanjo por aí. Não dava para deixar aquela história assim, né? Queria entender melhor quem era aquela senhora, como tinha chegado até ali. Mal sabia que cada detalhe que ela fosse me contar ia enfiar uma adaga no peito. Puxei um caixote velho que tinha na boleia para sentar na frente dela. Quer dizer, dona Áurria. Vê só. Já tô chamando ela de dona, instintivamente, respeito de filho que a mãe ensinou na base da chinelada. Dona Áurria, a senhora tem 79 anos, é isso? perguntei enquanto oferecia meu café quente da garrafa térmica. Isso mesmo,
seu Gerson. Faço 80 em dezembro, se Deus permitir. Ela respondeu, aceitando a caneca com as mãos tremendo. Nossa, que café gostoso. Faz tempo que não tomo um café quentinho assim. Precisava extrair mais informação, então emendei. E o seu filho, a senhora falou que é o Júnior? Ele tem quantos anos? O Edilson Júnior tem 53 anos. trabalha numa madeireira em Lauro Müller. Pelo menos trabalhava não sei mais. Nos últimos tempos ele andava muito nervoso, reclamando que tava difícil, que o dinheiro não dava. Ela bebericou o café com cuidado antes de continuar. Eu tenho minha aposentadiazinha, sabe?
Mas não é muito. R$ 600 e poucos reais. No começo ajudava nas despesas, mas depois que fiquei na cadeira veio gastos com fralda, remédio, pomada. Aí ficou mais apertado. Minha cabeça fervia enquanto eu ouvia aquilo. Um homem de 53 anos abandonando a mãe idosa e doente por causa de dinheiro. Que de mundo é esse? Eu podia ser um caminhoneiro cheio de problema, mas nunca cogitei fazer uma atrocidade dessas. Minha mãe, quando estava viva, pelo menos tinha meus irmãos para cuidar dela, já que eu não parava em casa. E esse tal de Júnior? A senhora mora
com ele há quanto tempo? Depois que o derrame me pegou, faz dois anos, ele me levou paraa casa dele. Antes eu morava sozinha num quartinho que alugava perto da igreja. Era pequenininho, mas dava para mim. Tinha minhas plantinhas, minhas santinhas. Depois que fiquei assim, não tinha como ficar sozinha. E foi aí que ela começou a contar como era a vida na casa do filho. que pariu, cada palavra era uma facada. O tal do Júnior era casado com uma mulher chamada Marlene, que pelo jeito, não engolia dona Áurea nem com mel. Tinham dois filhos adolescentes que
tratavam a avó como um estorvo. A velha dormia num quartinho improvisado nos fundos, que antes era despensa. Passava o dia sozinha enquanto todo mundo trabalhava ou estudava. Mas eu não reclamava não, seu Gerson. Ela justificava como se fosse culpada de algo. Eu sei que dou trabalho. Desde que fiquei na cadeira, preciso de ajuda para tudo. Para tomar banho, para ir no banheiro, até para comer. Às vezes a mão treme tanto que derramo tudo. A Marlene reclamava que eu sujava muito, que gastava muita fralda, que o cheiro de velho impregnava a casa. Conforme ela ia falando,
ia me dando um aperto, uma angústia. Eu imaginando ela naquela casa sendo tratada como um traste velho que ninguém quer, mas que não tem coragem de jogar fora. Até que o filho aparentemente tomou coragem. Ontem de manhã ele chegou diferente, ela continuou. Disse que tinha conseguido uma vaga num asilo muito bom em Florianópolis, que era perto da praia, que eu ia poder ver o mar todos os dias, que tinha médico, enfermeira, tudo de bom. falou para arrumar uma malinha só com o essencial, que o resto ele levava depois. A voz dela embargou um pouco. Eu
até fiquei animada, sabe? Fazia tempo que não saía daquela casa e gosto do mar, mesmo nunca tendo morado perto. Coloquei minhas fotos antigas, minhas roupinhas melhores, meu terço, meus remédios, tudo nessa malinha aqui. A malinha era tão pequena e surrada que não devia caber nem a metade da vida dela, uma vida espremida num trocinho daquele tamanho. E mesmo assim ela sorria ao falar da possibilidade de ver o mar. Isso me destruiu por dentro. E aí ele botou a senhora no carro e trouxe até aqui. Isso. A gente saiu depois do almoço. Eu até achei estranho
que a Marlene e os meninos não foram se despedir. Ele disse que estavam trabalhando, mas era sábado. Viemos nesse Monza velho dele, eu no banco de trás com a cadeira desmontada no porta-malas. Quando chegamos aqui, já estava anoitecendo. Ele disse que precisava ir comprar meu remédio de pressão na cidade e voltava logo. Me deixou aqui porque disse que a estrada era perigosa para ficar parando e dando carona. Só aí me dei conta que já fazia mais de 24 horas que ela estava ali. Um dia e uma noite inteira, exposta ao frio, à fome, ao perigo.
Qualquer maloqueiro poderia ter passado e feito o que bem entendesse. Ou um animal selvagem. Ou ela poderia ter tido uma queda de pressão, um AVC, qualquer coisa. Era um milagre ela estar viva. Alguém passou por aqui nesse tempo todo? Perguntei incrédulo, que ninguém tivesse parado para ajudar. Ah, passou sim. Logo que escureceu, passou um carro com os rapazes, mas eles só buzinaram e riram. Acho que pensaram que eu era espantalho. Ela deu uma risadinha sem graça. De madrugada, passou um caminhão grande que nem o seu, mas não parou. De manhã cedinho, um motoqueiro parou e
me deu água. Perguntou se eu tava bem. Eu falei que estava esperando meu filho e ele disse que ia avisar na próxima cidade, mas acho que esqueceu. Isso me fez lembrar de quantas vezes eu mesmo já passei reto por gente precisando de ajuda na estrada. A gente se endurece, acha que tudo é golpe, que todo mundo quer te passar a perna e talvez muitos sejam mesmo. Mas e quando não é? E quando é uma dona Áurea que tá ali precisando apenas de um pouco de humanidade? E a senhora ficou aqui a noite toda com esse
frio da serra? Fiquei sim. Foi friozinho, mas já passei por coisa pior na vida. Ela respondeu com uma dignidade absurda. Eu só fiquei preocupada com meu filho. Será que aconteceu alguma coisa com ele, seu Gerson? Será que ele sofreu algum acidente? Meu Deus do céu, ela ainda se preocupava com aquele filho da Isso me deixou com um misto de raiva e admiração. Como alguém pode ser tão bom assim, tão puro, depois de tudo que fizeram com ela? Dona Áura, vou ser sincero com a senhora. Pelo que tô vendo, seu filho não vai voltar. Ele, hesitei,
sem saber como dizer aquilo. Ele trouxe a senhora até aqui e deixou mesmo. Não tem asilo nenhum esperando. Os olhinhos dela fitaram o chão por um longo momento. Pensei que ia chorar, desabar, ter um treco, mas não. Ela levantou o rosto, ainda sem lágrimas e disse baixinho: "Eu já sabia, seu Gerson. Desde que ele me deixou aqui, no fundo, eu já sabia. Só não queria acreditar. Nesse momento, um carro passou por nós em alta velocidade, buzinando como se fôssemos obstáculos inconvenientes. O vento gelado da serra cortou nossos rostos. Eu já tinha decidido o que ia
fazer, só não sabia como dizer para ela. Então, lembrei de um detalhe. A senhora disse que um frentista viu a senhora aqui? Ah, sim. De tardezinha ontem, um moço de um posto aqui perto passou de carro e parou. disse que trabalhava num posto uns quilômetros paraa frente. Perguntou se eu estava esperando alguém e eu falei que sim. Ele disse que já tinha me visto ali fazia algumas horas e perguntou se eu não queria que ele chamasse alguém, mas eu falei que meu filho já estava voltando. Ele disse que eu devia ser parente de alguém da
região, porque só assim estaria ali naquele lugar tão isolado. Resolvi ir até esse posto. Talvez o frentista soubesse de mais alguma coisa. Talvez tivesse visto o carro anotado à placa, qualquer informação que pudesse ajudar. E também precisava ligar paraa polícia, pro conselho do idoso, para alguém que pudesse tomar as providências legais contra aquele monstro. "Donaura, a senhora já comeu alguma coisa hoje?", perguntei enquanto abria a mochila térmica que sempre carrego na boleia. Só uns biscoitinhos que trouxe, mas tô bem, não se preocupe. Tirei um pão com mortadela que tinha preparado mais cedo e entreguei para
ela. Ela aceitou com tanta gratidão que parecia que eu tinha dado um banquete. Comeu devagarzinho, saboreando cada pedaço como se fosse a melhor refeição do mundo. Meu coração parecia eixo estourado, bicho. Tava doendo fisicamente ver aquela cena. Seu Gerson, o senhor é um homem muito bom", ela disse de repente, com a boca ainda meio cheia. Deus vai lhe abençoar muito por isso. E foi aí que não aguentei. Virei de costas para ela não ver e passei a manga da camisa nos olhos. Um caminhoneiro velho chorando na beira da estrada. Se os parceiros do trecho me
vissem assim, iam zoar até o fim dos tempos. Mas que se algumas coisas ainda conseguem quebrar essa casca grossa que a vida criou. Olha a senha. Na hora eu nem raciocinei direito. Só sabia que não ia deixar aquela velhinha ali, nem Olhei pro céu e vi que estava armando um tempão feio. Nuvensavam a se formar, daquelas que prometem chuva grossa. A temperatura já tinha caído mais ainda. Dona Áuria tremia que nem vara verde, apesar do meu casaco nas costas dela. Dona Ária, a senhora vai ter que vir comigo falei já decidido. Não posso deixar a
senhora aqui. Vai chover. Tá esfriando mais ainda e esse lugar é perigoso para Mas e meu filho? E se ele voltar e não me encontrar? Ela perguntou. E juro que quase mandei aquele filho da pro quinto dos infernos ali mesmo, mas me segurei. Se ele voltar, vai ficar feliz de saber que a senhora tá segura. Vou deixar um bilhete, tá bom? E a gente vai no posto mais próximo ligar paraa polícia ver o que pode ser feito. Nem esperei ela concordar. Arranquei uma folha do meu caderninho de registro de frete e escrevi bem grande: "Sua
mãe está segura. Ela foi levada por um caminhoneiro até o posto Ipiranga do km78. Se você existe mesmo, é só ir lá buscar ela. E embaixo coloquei meu nome e telefone. Prendi o papel na mureta com uma pedra. Na real, eu sabia que ele nunca ia voltar. Aquele papel era só para acalmar dona Áurea e talvez no fundo do fundo para deixar um rastro caso alguém encontrasse e se importasse. Afinal, abandonar idoso é crime e dos mais filhos da que existem. Vou ter que levar a senhora pro meu caminhão. Tudo bem? Falei já pensando na
logística daquilo tudo. A cadeira de rodas a gente coloca na carroceria. Mas eu não quero dar trabalho pro senhor", ela falou com aquela voz fraquinha que partia meu coração em mil pedaços. Trabalho nenhum, menti. Na real, ia ser um trampo. Mas e aí? Eu ia fazer o quê? Deixar ela ali? Nem que o diabo viesse me buscar, eu deixaria. Vou precisar carregar a senhora no colo até o caminhão. Depois volto para pegar a cadeira. Ela ficou toda sem graça. Ai, seu Gerson, mas eu sou pesada. Quase ri. Aquela coisinha devia pesar menos que um saco
de amendoim. Parecia tão frágil que dava medo de quebrar. Que nada, dona Áurea. Eu carrego saco de 60 kg todo dia. A senhora deve ter uns 40, no máximo. Ela sorriu meio sem graça, e aquele sorrisinho sem dentes iluminou a cara dela de um jeito que é difícil explicar. Era como se alguém tivesse ligado uma luzinha dentro daqueles olhos cansados, uma esperança pequenininha que eu não tinha o direito de apagar. Peguei ela no colo com o maior cuidado do mundo. Meu Deus, parecia que tava carregando um passarinho. Era leve demais, só pele e osso. Enquanto
carregava ela até o caminhão, percebi que ela cheirava a talco e a um perfuminho barato desses que vendem em supermercado. Mesmo naquela situação, ela tinha se importado em passar perfume. Dignidade da A malinha dela estava amarrada com barbante no braço da cadeira. Coloquei as duas coisas dentro da boleia. A cadeira era um trambolho dos infernos, pesada para ferrugenta nas rodas, com o estofado meio podre. Devia ter uns 30 anos fácil. Foi um trabalho encaixar aquela merda no caminhão, mas dei meu jeito. Não é fácil subir cadeira de rodas em cabine de Scania, mas dei meu
jeito. Tive que empurrar, puxar, quase quebrei as costas. Já não são mais as costas de um moleque, né? Seis décadas nas costas pesam. Mas consegui botar aquela cadeira de rodas na boleia e amarrei com uma corda para não ficar batendo durante a viagem. Quando voltei para pegar dona Áurria, ela estava olhando pro alto da serra, como se esperasse algo ou alguém. Doeu ver aquilo. Mesmo depois de tudo, ela ainda esperava que o filho voltasse. Vamos, dona Áuria, vai começar a chover daqui a pouco. Ela deu uma última olhada na estrada, suspirou fundo e assentiu. Peguei
ela no colo novamente, com todo o cuidado do mundo. Era tipo carregar minha neta pequena, só que ainda mais frágil. Tive medo de apertar demais e machucar. Quando abri a porta do Scania, ela arregalou os olhos. Nossa, como é alto. Eu nunca andei num caminhão na vida. Pois agora vai andar, falei tentando soar animado. E esse aqui é dos bons. Não é 0 km não, mas é brabo, igual marimbondo novo. Ajeitei ela no banco do passageiro com todo cuidado. Coloquei a malinha dela no chão da cabine. Arrumei a cadeira amarrada atrás dos bancos, espremida naquele
espaço pequeno. A cabine, que sempre me pareceu enorme, de repente ficou apertada para caramba. Mas a gente dá um jeito. Ela se assustou quando liguei o motor. O ronco do Scania é grosso, parece trovão. Ela deu um pulinho no banco, depois riu da própria reação. É barulhento assim sempre? Perguntou com os olhos arregalados. É o ronco dele, dona. Cada caminhão tem o seu. A gente acostuma tanto que é até estranho quando tá em silêncio. É tipo música para nós. Ela ficou olhando para tudo dentro da cabine, como se fosse um mundo alienígena. Os botões, as
luzes do painel, o rádio, os santinhos grudados, as fitas penduradas, os adesivos de posto que eu fui colecionando. Parecia uma criança descobrindo um parque de diversões. Quando arranquei com o caminhão, vi pelo retrovisor que ela se agarrou na porta, assustada. Não se preocupe, dona Áurria. Comigo a senhora tá segura. Nunca sofri acidente em 40 anos de estrada. Menti de novo. Já tinha batido três vezes, mas nada grave. E não ia contar isso para ela, né? Coitada, já estava assustada demais. A cara dela, quando ela viu a estrada de cima da cabine foi impagável. Era como
se tivesse vendo o mundo de um ângulo completamente novo. Os olhos brilhavam feito duas contas. Mesmo com tudo de ruim que tinha acontecido, ela conseguia se maravilhar com aquela novidade. Isso me emocionou para Seu Gerson! Ela disse de repente. Para onde o senhor vai me levar? E essa era a pergunta de 1 milhão de dólares. Para onde caralhos eu ia levar uma senhora de 79 anos? Cadeirante, abandonada, sem parentes, sem lugar para ficar. Não tinha a menor ideia, mas não podia dizer isso para ela. Vai me levar para onde, moço? Ela insistiu com uma pontinha
de medo na voz. Olhei para ela e falei o que veio no coração. Para onde tiver calor humano, porque aqui você não vai ficar. Ela me olhou por uns segundos em silêncio, depois sorriu daquele jeito sem dente que era de rachar o peito, e falou baixinho: "Obrigada, seu Gerson." Dirigi em silêncio por uns 10 minutos. pensando no que ia fazer, precisava encontrar a polícia, explicar a situação, registrar um bo, denunciar o abandono, mas também precisava pensar no bem-estar dela. Estava quase noite de novo. Ela estava fraca, cansada, com frio. Precisava de banho, comida quente, um
lugar confortável para dormir. Os procedimentos legais podiam esperar até o dia seguinte. Decidi ir até o posto que ficava uns 30 km à frente. Era um posto grande, desses com restaurante, loja de conveniência, banheiro limpo. Lá poderia pelo menos comprar algo decente para ela comer, ligar para alguma autoridade, pedir orientação. "A senhora tá com fome?", perguntei já sabendo a resposta. Ela tava há mais de um dia comendo só biscoitinho. "Pelo amor de Deus." Um pouquinho", ela respondeu, sempre minimizando suas necessidades. "Mas não se preocupe, já comi o pãozinho que o senhor me deu. Que pãozinho?"
Nada, dona Áura, "A gente vai comer uma janta decente. De repente até um bifinho com batata frita. Que tal?" Os olhos dela brilharam de novo. Nossa, faz tanto tempo que não como um bife. que pariu, isso me destruiu. Imagina chegar a uma idade dessas e se emocionar com a possibilidade de comer um pedaço de carne. Que de mundo é esse? Pois hoje a senhora vai comer o que quiser. Tá tudo por minha conta. Ela tentou protestar, dizer que não precisava, que eu já estava fazendo demais toda aquela humildade que parte o coração, mas cortei na
hora. Sem discussão, Gerson do Sul tá dizendo que hoje a senhora é minha convidada. Meu celular tocou. Era o dono da transportadora, querendo saber porque eu estava parado há tanto tempo. Expliquei rapidinho a situação. O cara ficou puto dizendo que eu tava atrasando a entrega, que não era assistente social, blá blá blá. Desliguei na cara dele. se quisesse me demitir, que demitisse, eu daria um jeito, sempre dei. Mas deixar aquela senhora na mão, isso eu não ia fazer, nem que me pagassem. Tá tudo bem, seu Gerson? Dona Áuria perguntou preocupada. Devia ter percebido minha cara
fechada depois da ligação. Tá tudo ótimo, dona Áurria. Só patrão chato enchendo o saco, coisa de sempre. Ai, não quero atrapalhar seu trabalho. A senhora não tá atrapalhando nada. Meu trabalho é entregar carga, mas antes disso sou gente e gente ajuda gente. Nesse momento começou a chover forte, aquela chuva grossa de serra que parece que o céu tá caindo. Os limpadores de para-brisa mal davam conta. Se dona Áurea ainda tivesse lá naquela beira de estrada, não quero nem pensar. A cidadezinha mais próxima ficava a uns 50 km. Lá teria delegacia, assistência social, tudo que precisávamos.
Mas naquela chuva forte, com a estrada escorregadia, era perigoso apressar. Melhor parar no posto, passar a noite lá e seguir no dia seguinte. Já tinha decidido. Olhei para ela, que observava a chuva com olhos assustados e tentei tranquilizá-la. Não se preocupe, a gente vai ficar num lugar seguro hoje à noite. Ela assentiu, confiando em mim como uma criança confia no pai. Aquela confiança cega me deu mais responsabilidade ainda. Era um ser humano frágil que agora dependia de mim. Eu, que nunca cuidei direito, nem dos meus, agora estava ali sendo guardião de alguém que mal conhecia.
Chegamos nesse posto simples, já eram umas 8 da noite. Não era nenhum palácio, não. Desses postos antigos de beira de estrada com bomba velha e aquele cheiro característico de óleo diesel misturado com fritura. O letreiro piscava alto posto beira serra, mas metade das lâmpadas estava queimada. Tava chovendo para aquela cortina d'água que parece que o mundo vai acabar. Parei o mais perto possível da entrada da lanchonete, mas ainda tinha uns 10 m até lá. Olhei pra dona Áuria e pensei: "Como diabos vou fazer para ela não se molhar toda?" A cadeira de roda estava na
cabine, mas levar ela pra lanchonete naquela chuva ia ser Mês de junho, na Serra Catarinense, não é? brincadeira. Um banho de chuva daqueles podia dar uma pneumonia nela. Dona Áurria, vou ter que fazer uma coisa meio doida aqui. Falei enquanto tirava meu casaco e colocava por cima da cabeça dela como um guarda-chuva improvisado. Vou carregar a senhora no colo até lá dentro. Depois volto para pegar a cadeira. Se segura firme no meu pescoço, tá bom? Ela ficou sem graça para coitada. Ai, seu Gerson, que vergonha. O senhor vai se molhar todo por minha causa. Que
nada. Caminhoneiro é igual pato, já tá acostumado com água. Brinquei enquanto me preparava para aquela corrida maluca. No três a gente vai, tá? 1 2 3. Abri a porta, peguei ela no colo e saí correndo pelo estacionamento. que pariu, que dilúvio. Em 2 segundos já estava ensopado até a alma. A chuva era gelada que nem água de geladeira entrava pelo colarinho e descia pelas costas, mas fiz de tudo para manter o casaco protegendo dona Áurria. Corri igual um maluco, tomando cuidado para não escorregar no chão molhado. Quando entramos na lanchonete, todo mundo olhou. Normal, né?
Um velho carregando uma velhinha no colo, os dois encharcados. Não é cena que se vê todo dia. Tinha uns quatro caminhoneiros tomando café no balcão, uma família jantando numa mesa e dois funcionários com cara de tédio. Todo mundo parou o que estava fazendo para olhar pra gente. Boa noite, falei alto, tentando soar mais confiante do que tava. Essa senhora precisa de um lugar para sentar urgente. Tem alguma cadeira disponível? Um dos funcionários, um rapaz novinho que devia ter seus 18 anos, veio correndo ajudar. puxou uma cadeira paraa dona Áurea e eu coloquei ela com todo
cuidado. Ela estava vermelhinha de vergonha, coitada. "O senhor quer que eu pegue toalha no banheiro?", o rapaz perguntou o prestativo. "Seria ótimo, filho, agradeci. e depois preciso de ajuda para trazer a cadeira de rodas que tá no caminhão. O moleque voltou com umas toalhas de papel que não serviam para merda nenhuma naquela situação, mas pelo menos deu para enxugar o rosto dela. Percebi que dona Áuria tremia um pouco. "Traz um café bem quente para ela, por favor", pedi pro garçom. "E uma manta, se tiver. Ela precisa se aquecer." "E pro senhor?", ele perguntou. Para mim,
só um café mesmo. Vou buscar a cadeira dela e já volto. Voltei paraa chuva, todo ensopado mesmo, e fui até o caminhão buscar a cadeira de rodas. Aquela merda era pesada, que nem um boi morto, toda enferrujada e dura. Quando voltei arrastando a cadeira, já tinha uma senhora que parecia ser a dona do posto conversando com dona Áurria. "Seu marido é muito gentil, dona", ela dizia paraa Áurria. "Quase engasguei quando ouvi isso." A velha achou que éramos casados. Dona Áuria deu uma risadinha sem graça e não corrigiu. "Vai ver." Tava com vergonha de explicar toda
aquela situação maluca. A dona do posto, que depois descobri que se chamava Elsa, era uma senhora gorda de cabelo tingido de vermelho bombeiro e batom combinando, daquelas bem faladeira, sabe, mas de bom coração. Quando viu a cadeira de rodas, logo perguntou: "A senhora sofreu algum acidente?" Antes que eu pudesse inventar alguma história, dona Áuria respondeu com aquela voz mansinha dela. "Tive um derrame faz dois anos. Não ando mais desde então. E vocês estão viajando para onde? A xereta continuou perguntando. Olhei para dona Áuria sem saber o que responder. Ela também me olhou meio perdida. Foi
quando tive uma ideia. Estamos indo pra casa da nossa filha em Florianópolis. Menti. Ela teve bebê recentemente e precisamos ajudar, não é, querida? E pisquei paraa dona Áura, rezando para ela pegar a deixa. "Isso mesmo", ela respondeu, entrando na história com uma naturalidade que me surpreendeu. "Nosso primeiro netinho." Dona Elsa abriu um sorrisão. "Que maravilha! E qual o nome do bebê?" Luís Carlos, né? Dona Áura, respondeu na lata: "Como o avô dele que já faleceu?" que pariu, a velha era boa de improviso. Inventou até nome pro netinho imaginário. Tive que segurar para não rir. Olha,
dona Elsa continuou. Tenho um quartinho aqui nos fundos que eu alugo para caminhoneiros que precisam descansar. É simples, mas tem uma cama de casal, banheiro limpo e chuveiro quente. Vocês podem ficar lá essa noite se quiserem. Com essa chuva não dá para seguir viagem. Aceitei na hora. Era exatamente o que a gente precisava, um lugar limpo e quente para dona Áurea passar a noite. Eu podia até dormir na boleia, como sempre fazia, mas ela precisava de conforto. "Quanto fica?", perguntei já metendo a mão no bolso. "R$ 80 a diária. Mas para vocês vou fazer por
60 pela situação. E já inclui um café da manhã simples. 60 conto era barato demais. Paguei adiantado e ainda deixei 10 de gorgeta. Ai, o que vocês vão querer jantar? Ela perguntou. A cozinha tá aberta até às 10. Olhei pro cardápio escrito num quadro negro atrás do balcão. Nada muito sofisticado. Bife acebolado, frango grelhado, linguiça, essas coisas de posto. Dona Áuria, o que a senhora prefere? Perguntei. Ela ficou toda sem jeito, olhando pro cardápio como se fosse um enigma. Qualquer coisa tá bom, seu Gerson. Não precisa gastar comigo. Que isso? A senhora escolhe o que
quiser. Hoje é por minha conta. Depois de muito insistir, ela escolheu um bife com fritas. Pedi dois e dois sucos de laranja. Enquanto esperávamos a comida, o garoto funcionário ajudou a levar a cadeira de rodas pro quarto dos fundos. Dona Elsa trouxe um cobertor velho mais limpo para dona Áureia se aquecer enquanto a roupa dela secava. A comida chegou fumegando. Era um bifão grande, daqueles de restaurante de caminhoneiro mesmo, com uma montanha de batata frita e arroz branco. Simples, mas na situação parecia um banquete. Os olhos de dona Áurea brilharam quando viu aquele prato cheio.
"Nossa, quanta comida", ela exclamou. "Nem vou dar conta de tudo isso." Mas deu. Comeu cada pedacinho devagarinho, saboreando. Cortei o bife para ela porque as mãos tremiam. um pouco. Enquanto comíamos, ela começou a se soltar mais, a contar historinhas da vida dela. Sabe, seu Gerson, eu era costureira, fazia vestido de noiva, roupa de festa, tinha muito cliente lá em Lauro Müller. Cheguei a fazer o vestido de casamento da filha do prefeito na época. Ela falava daquilo com tanto orgulho que dava gosto de ouvir. Os olhos iam brilhando conforme contava das rendas, dos bordados, dos véus
que fazia. Bordava enxoval de bebê também, lençolzinho, toalha, roupinha, tudo à mão. Hoje ninguém mais quer saber disso, né? Tudo industrializado. Mas tinha uma mágica em cada ponto feito à mão. Enquanto ela falava de bordados e costuras, lembrei da minha mãe. A velha também costurava, fazia crochê, essas coisas de antigamente. Fazia anos que eu não pensava nisso, anos que não visitava o túmulo dela lá em Vacaria. Na verdade, nem sei mais se o túmulo ainda existe, se alguém cuida. Meus irmãos também se espalharam pelo Brasil. Família de caminhoneiro é assim. Vai se desmanchando com o
tempo, igual nó de gravata quando a gente puxa a ponta errada. O senhor tá triste, seu Gerson. Dona Áuria perguntou de repente. Não, que isso? Respondi meio sem jeito por ela ter percebido. Só lembrei da minha mãe. Ela também fazia esses trabalhos manuais. Ela ainda é viva? Não. Faleceu faz uns 15 anos. "Sinto muito,", ela disse com uma sinceridade que só os velhos têm. "Deve ter sido uma boa mãe, pois criou um filho de bom coração. Aquilo me pegou desprevenido. Bom coração. Eu, o filho que abandonou a própria família por amor à estrada, o cara
que passava reto por gente precisando de ajuda. É engraçado como às vezes a gente precisa que alguém de fora nos diga algo sobre nós mesmos. Algo que nem sabíamos que existia. Depois da janta, ajudei ela a ir até o quarto. Era pequeno mesmo, com uma cama de casal simples, um criado mudo, uma TV antiga e um banheiro apertado. Mas estava limpo, tinha água quente e, o mais importante, não tinha goteira nem vento entrando, um luxo comparado à beira da estrada onde ela estava horas antes. Seu Gerson, eu vou dormir na cama. E o senhor onde?
Ela perguntou preocupada. Eu durmo no caminhão como sempre. Tô acostumado. Mas está chovendo tanto. O senhor não vai ficar doente. Que nada. Caminhoneiro tem couro duro, nem gripe pega mais. Ela insistiu. Essa cama é grande, dá para nós dois. O senhor dorme de um lado, eu do outro. Prometo que não ronco. Quase ri com aquilo. Ela preocupada em não me incomodar com ronco depois de tudo que tinha passado. Mas recusei. Não queria deixar ela sem graça e também precisava de um tempo sozinho para pensar no que diabos eu ia fazer a partir dali. Antes de
sair, ajudei ela a tomar um banho. Foi um momento delicado. Ela tinha vergonha, eu também, mas alguém precisava ajudar. Coloquei ela sentada num banquinho dentro do box e ela se virou como pôde com a porta fechada. Eu só ajudei a entrar e sair. Seu pudor e sua dignidade foram preservados. Depois emprestei uma camiseta minha para ela dormir, já que as roupas dela ainda estavam molhadas. A camiseta virou um vestido nela de tão pequena que era. Ajeitei os travesseiros, coloquei água num copo na mesinha ao lado, deixei a luz do banheiro acesa para ela não se
assustar no escuro e me despedi. Qualquer coisa a senhora grita, tá? Vou deixar o caminhão estacionado bem na frente da janela. É só bater no vidro se precisar. Seu Gerson ela chamou quando eu já estava na porta. Obrigada por tudo. O Senhor é um anjo que Deus colocou no meu caminho. Saí dali com um nó na garganta. Anjo eu Tomás para demônio aposentado. Mas aquela noite, enquanto a chuva lavava o asfalto lá fora, algo dentro de mim também estava sendo lavado. Passamos a noite naquele postinho e quando acordei já eram quase 6 da manhã. dormi
que nem uma pedra. Isso nunca acontece comigo. Geralmente fico me revirando na cabine, acordando a cada barulhinho suspeito, com medo de ladrão ou de alguém mexendo na carga. Mas naquela noite, mesmo com toda aquela chuva dos infernos batendo no teto do caminhão, apaguei total. Levantei meio grog, me espreguiçando naquele espaço apertado da boleia. Tava tudo embaçado de umidade, até os vidros por dentro estavam molhados. Saí do caminhão e fui direto ver como dona Áuria tinha passado a noite. Bati de leve na porta do quartinho, mas ninguém respondeu. Bati um pouco mais forte, nada. Comecei a
ficar preocupado. E se ela tinha passado mal? Idosos às vezes têm esses problemas no meio da noite. AVC, ataque cardíaco e o a dona Áurea. Chamei encostando o ouvido na porta. Finalmente ouvi um barulhinho lá dentro. Já vai. Ela respondeu com a voz fraquinha. Só um minutinho. Quando ela abriu a porta, quase não acreditei. Estava toda arrumadinha, com o cabelo penteado num coque bem feito, as roupas já secas e passadas à mão, o rostinho lavado. Como diabos ela fez tudo isso sozinha numa cadeira de rodas, num quarto de posto de gasolina? que pariu, essa Velia
era guerreira mesmo. Bom dia, seu Gerson. O senhor dormiu bem? Dormi sim, dona Ária. E a senhora conseguiu descansar? Ah, dormi como um anjo. Essa cama parecia nuvem depois daquele tempo todo na cadeira. Fomos tomar café na lanchonete. Dona Elsa, a dona do posto, já estava lá servindo café fresco. Ela ficou toda sorrisos quando viu a gente, achando que éramos um casal de velhinhos a caminho de conhecer o netinho. "E então, dormiram bem?", perguntou, colocando xícaras fumegantes na nossa frente. Muito bem, graças a Deus. Dona Áuria respondeu com aquela educação antiga que já não existe
mais. A cama é muito confortável. No café da manhã, enquanto dona Áurea tomava seu copo de leite com pãozinho, expliquei o plano para ela. Dona Áurria, hoje a gente vai até a delegacia da próxima cidade, Bom Jardim da Serra. Lá a senhora vai precisar contar tudo que aconteceu pra gente registrar um boletim de ocorrência contra seu filho. O rostinho dela ficou triste na hora. Ai, seu Gerson, precisa mesmo fazer isso? Ele já deve estar arrependido. merda, ela ainda defendendo aquele desgraçado. Tive que respirar fundo para não soltar um palavrão. Dona Áuria, o que ele fez
é crime, abandono de incapaz. Se não denunciarmos, ele pode fazer isso com outra pessoa ou até voltar para tentar de novo com a senhora. Ela baixou a cabeça, olhando pro café, como se ali tivesse a resposta de todos os problemas do mundo. E depois continuei tentando ser mais gentil. Vamos procurar o CRAS, o centro de referência especializado de assistência social. Eles têm como ajudar em casos assim, encontrar um abrigo adequado pra senhora. Um asilo, o senhor quer dizer. Ela falou baixinho e aquilo doeu até em mim. Um lugar temporário, corrigi até a gente conseguir uma
solução melhor. Terminamos o café, agradecemos a dona Elsa, paguei a conta e voltamos pro caminhão. O dia estava nublado, mas pelo menos a chuva tinha dado uma trégua. Carreguei dona Áurea de volta paraa cabine, dobrei a cadeira de rodas, que não dobrava direito de tão enferrujada, e coloquei na carroceria dessa vez para dar mais espaço na cabine. Liguei o motor e saímos dali. A estrada estava molhada, com algumas poças grandes, mas nada que eu não pudesse lhe dar. Dirigia devagar, com cuidado redobrado. Tinha uma carga preciosa comigo agora. Não tínhamos andado nem 30 km quando
o caminhão começou a falhar. Primeiro foi só uma engasgada leve que dava para ignorar. Depois foi piorando. O motor começou a ratear, perder força. Que é essa agora? Resmunguei, dando leves tapinhas no painel, como se isso fosse resolver. Olhei pro marcador de combustível. Tanque cheio. Não era isso. Estávamos numa subida íngreme dessas que parecem que nunca vão acabar. O brutos começou a perder mais força e logo estava quase parando. Consegui encostar no acostamento antes que o motor morresse de vez. "O que foi, seu Gerson? Quebrou?", dona Áuria perguntou preocupada. "Acho que sim, dona Áurria. Pera
aí que vou dar uma olhada." Desci do caminhão na chuva fina que começava a cair. Abri o capô e olhei aquele motor enorme, procurando o problema. Poderia ser um milhão de coisas. Bomba d'água, bomba de combustível, vela, cabo de vela, filtro entupido, sensor do A4 era um caminhão velho, tinha suas manhas. Voltei pra cabine encharcado. Acho que é a bomba injetora. Vou ter que chamar um mecânico. O problema é que naquela serra sem sinal de celular, chamar um mecânico era quase impossível. E mesmo que conseguisse, ia demorar horas até alguém chegar. Tem uma caixa de
ferramentas no compartimento lateral. Vou tentar resolver. Eu mesmo falei mais para me animar do que por acreditar que conseguiria. Quando saí de novo, o céu desabou. Não era mais uma chuvinha, era uma tempestade filha da com trovão, relâmpago e tudo mais. Em segundos, fiquei encharcado até a alma. Abri a caixa de ferramentas e comecei a futucar o motor. Tirei tampa, olhei mangueira, conferi o nível do óleo, limpei filtro. Nada. O Brutos não queria pegar de jeito nenhum. E eu ali debaixo daquela chuva brutal, xingando todos os santos do céu, com as mãos todas sujas de
gracha e óleo. Depois de quase meia hora naquele inferno, voltei pra cabine. Estava parecendo um cachorro molhado, pingando água em todo canto. Dona Áuria me olhou assustada. Pelo amor de Deus, seu Gerson, o senhor vai ficar doente desse jeito. Pior que não consigo identificar o problema. falei frustrado. Vou ter que esperar alguém passar e pedir ajuda. O problema é que naquele trecho, com aquela chuva podia demorar horas até aparecer outro caminhão. E mesmo que aparecesse, nem todo mundo para para ajudar. A estrada endurece o coração da gente. A chuva aumentou ainda mais, se é que
isso era possível. A água caía em cascatas pelo para-brisa. Os limpadores mal davam conta e o vento começou a ficar forte, balançando o caminhão como se fosse de papel. É tempestade de verdade", comentei, olhando preocupado pro céu, cada vez mais escuro. "Dessas que derruba a árvore causa deslizamento." Dona Áuria percebeu minha preocupação. Eu tava nervoso para pensando que tinha uma idosa doente sob minha responsabilidade e a gente estava preso num caminhão quebrado no meio de uma tempestade numa estrada quase deserta. Foi quando ela fez algo que me surpreendeu, colocou aquela mãozinha enrugada em cima da
minha e apertou de leve. Calma, moço. A gente só precisa esperar a tempestade passar. Olhei para ela incrédulo. Era ela quem estava me acalmando. A velhinha que 24 horas atrás estava abandonada numa cadeira de rodas na beira da estrada que tinha sido largada pelo próprio filho para morrer. Era ela quem dizia para eu ter calma. Naquela hora entendi que dona Áurea era muito mais forte do que aparentava. Por fora parecia um passarinho frágil, mas por dentro tinha a resistência de um carvalho centenário. A vida deve ter jogado tanta merda nela que uma tempestade e um
caminhão quebrado não eram nada. A senhora tem razão falei, me sentindo meio ridículo por estar nervoso enquanto ela estava tão calma. É só esperar. O senhor é caminhoneiro há quanto tempo? Ela perguntou claramente, tentando me distrair. 40 anos, dona Áurria. Comecei com 21. E nunca estrada antes? Ah, já quebrei muito. Já fiquei três dias num posto esperando peça. Já tive que empurrar caminhão na subida. Já dormi embaixo do caminhão consertando diferencial. Isso faz parte. Então o senhor já passou por coisa pior, não é? E sobreviveu a todas elas. Aquela lógica simples dela me acalmou. Ela
tava certa. Eu já tinha passado por tanta merda na estrada que um caminhão quebrado na chuva era fichinha. Tem um ditado que minha avó dizia, ela continuou olhando a chuva pela janela. Depois da tempestade vem a bonança. minha mãe dizia exatamente a mesma coisa. Deve ser coisa de velho. Esse otimismo teimoso que não morre nunca. Passamos mais duas horas naquele caminhão parado, com a chuva castigando sem piedade. Conversei com dona Áurea sobre tudo. Minha vida na estrada, os lugares que conheci, as cargas que já transportei. Ela me contou da vida dela como costureira, dos vestidos
que fez, das noivas que vestiu. Era um papo gostoso daqueles que a gente só tem com gente mais velha, cheia de histórias. Finalmente o milagre aconteceu. Vi pelo retrovisor um caminhão enorme se aproximando. Era um Volvo FH novinho, daquele stop de linha. Saí na chuva acenando feito um doido para ele parar. O cara parou. Era um caminhoneiro mais novo que eu. Devia ter uns 40 anos. Parou, saiu na chuva também e veio na minha direção. Qual o problema, companheiro? perguntou, olhando pro meu Scania velho. Acho que é a bomba injetora, mas não tenho certeza. O
motor não quer pegar de jeito nenhum. Ele deu uma olhada rápida e concordou com a cabeça. É a bomba mesmo. Tá fedendo a diesel. Deve ter dado uma pan no sistema. Quer que eu te reboque até o próximo posto? Tem o cabo. Quase beijei aquele maluco. Seria uma mão na roda, irmão. Quando ele olhou para dentro da minha cabine e viu dona Áurria, fez uma cara de surpresa. Essa é sua mãe? Não, é uma senhora que tava abandonada na estrada. Tô levando ela pra cidade para conseguir ajuda. Ele olhou para mim, depois para ela e
de volta para mim. Vi ali um respeito novo naqueles olhos. É por isso que ainda acredito em gente", ele disse, sorrindo. "Vamos, vou te puxar até o posto. Tem um mecânico bom lá." Com a ajuda dele, conseguimos engatar o cabo de reboque e seguimos lentamente pela estrada ensopada. Dona Áuria estava assustada com a situação, um caminhão puxando o outro na chuva em estrada de serra, mas não reclamou nenhuma vez. naquela cabine balançando, sendo rebocados a 20 km porh, eu percebi que ela, mesmo frágil, era firme como rocha, uma mulher que já tinha sofrido tanto na
vida, que tinha sido abandonada pelo próprio filho, mas que ainda assim conseguia sorrir, ter fé, acreditar em dias melhores. A tempestade continuava lá fora, mas dentro da cabine eu tinha encontrado uma calmaria que não conhecia antes. Chegamos nesse posto maior depois de quase 2 horas sendo rebocados naquela estrada ensopada. O caminhoneiro que nos ajudou, um cara chamado Marcos, ficou lá até ter certeza que a gente estava bem instalado. Chamou o mecânico, explicou a situação e ainda deu 50 paus pro meu diesel antes de seguir viagem. Tem gente boa nesse mundo, viu? Nem todo filho da
é filho da O mecânico era um coroa magrelo com cara de poucos amigos chamado Seu Neco. Olhou pro motor do brutos por uns 5 minutos sem falar nada, resmungando sozinho. Aí olhou para mim com aquela cara de quem vai dar notícia ruim. É a bomba injetora mesmo. Falou, cuspindo um cuspe amarelado no chão. Vou ter que pedir a peça na capital. Chega só depois de amanhã, se tiver sorte. que pariu. Dois dias parado ali com a carga de frango que precisava ser entregue e dona Áurea esperando socorro. Me bateu um desespero Não tem outra solução,
não, seu Neco. Nem conserto provisório. Conserto provisório em bomba injetora? Tá me achando com cara de mágico, é? Ele riu aquela risada seca de quem já viu muito caminhoneiro desesperado. Relaxa que eu chamo a transportadora e explico a situação. Eles mandam outro caminhão buscar a carga. É mais barato para eles que perder tudo. Ele tava certo, claro. Mas e dona Áurea? Ela não podia ficar ali parada esperando dois dias por um caminhão que nem era dela. Eu tinha uma missão agora. Enquanto o Neco ligava pra transportadora, voltei pra lanchonete, onde tinha deixado dona Áuria tomando
um chazinho. Ela estava lá conversando com a garçonete como se fossem amigas de longa data. Impressionante como ela fazia amizade em qualquer lugar. E aí, seu Gerson? Vai demorar muito?", ela me perguntou quando sentei na frente dela. "Vai, dona Áuria. A peça só chega depois de amanhã." O rostinho dela murchou na hora. Ai, meu Deus. E agora? Eu tô atrapalhando sua vida, não é? Se não fosse por mim, o senhor já teria dado um jeito. Que isso? A senhora não tá atrapalhando nada. Falei meio sem jeito, porque na real tava atrapalhando sim. Mas que culpa
ela tinha? O negócio é o seguinte. Vou ligar paraa polícia daqui mesmo, explicar a situação da senhora e depois a gente vê como faz. Liguei paraa delegacia de Bom Jardim da Serra. atendeu um delegado chamado Torres, que ouviu toda a história com uma paciência surpreendente. Quando terminei de explicar, ele suspirou fundo. Olha, seu Gerson, infelizmente não é a primeira vez que isso acontece por aqui. A serra virou ponto de abandono de idosos. É uma covardia sem tamanho. E o que a gente faz? Perguntei. O ideal seria a senhora vir até aqui e registrar o BO
presencialmente, mas como vocês estão atolados aí, vou mandar uma viatura buscar ela. Pode ser? Aí a gente cuida de tudo por aqui. Fiquei aliviado. A polícia ia vir buscar dona Áurria, cuidar da papelada, encontrar um abrigo adequado para ela. Tudo certo. Minha parte estava cumprida. Eu tinha feito o que qualquer ser humano decente faria. Resgatei ela, dei abrigo, comida e agora tava passando para quem realmente podia ajudar. Minha missão estava cumprida, certo? Voltei pra mesa e contei pra dona Áurea o que tinha acontecido. Ela ouviu tudo em silêncio, com aqueles olhinhos baixos fitando a xícara
de chá já fria. "Então, a polícia vai me levar?", Ela perguntou numa vozinha tão fraca que mal deu para ouvir. É, dona Áurea. Eles vão cuidar da senhora, registrar a queixa contra seu filho, encontrar um lugar adequado. Um asilo, né? Ela interrompeu agora me olhando direto nos olhos, com uma tristeza tão profunda que me cortou o coração. "Um lar para idosos." Corrigi, tentando soar mais positivo. Temporário até resolver tudo. Ela ficou em silêncio por um tempo, depois pegou minha mão por cima da mesa. A mão dela era tão pequena, tão enrugada, com veias azuis saltando
por baixo da pele fina. Seu Gerson, o Senhor me salvou. Nunca vou esquecer isso. Obrigada por tudo. que pariu, parecia que ela estava se despedindo, como se nossa história chegasse ao fim ali. E por algum motivo bizarro, isso me incomodou para Foi quando comecei a pensar de verdade no que estava acontecendo. O que eu tô fazendo com essa senhora na boleia? Por que me importo tanto? Por que não consigo simplesmente entregar ela pra polícia e seguir minha vida? Sentado ali, olhando para aquela senhora frágil que me agradecia como se eu fosse um herói, comecei a
questionar tudo. Minha vida na estrada, minhas escolhas, o homem que eu tinha me tornado. Lembrei do meu filho, Denis. Quando ele era pequeno, eu quase não ficava em casa, sempre na estrada, sempre com a desculpa do trabalho, do sustento, do dinheiro. Mas a verdade é que eu fugia. fugia da responsabilidade, do compromisso diário, das coisas pequenas e simples que fazem uma família. Quando Denis tinha uns 8 anos, teve uma apresentação na escola. Ele ia fazer o papel principal numa peça de teatro. Ensaiou semanas, decorou todas as falas. No dia eu prometi que estaria lá, mas
apareceu um frete extra, uma grana boa e eu aceitei. Não fui. A Marinette me contou depois que ele ficou o tempo todo olhando pra porta do ginásio, esperando me ver. Cada vez que alguém entrava, os olhos dele brilhavam, até que entendeu que eu não ia aparecer. Ela disse que nunca tinha visto tanta decepção no rosto de uma criança. Essa lembrança doía até hoje e tantas outras parecidas: aniversários perdidos, natais por telefone, formaturas que eu só vi por foto. Eu abandonei meu filho, não fisicamente como o Júnior fez com dona Áura, mas emocionalmente, talvez tão grave
quanto. Olhei novamente para dona Áurea e vi nela todos os idosos que conheci na vida e não dei a devida importância. Minha mãe que morreu enquanto eu estava na estrada. Meu pai que enterrei as pressas para poder voltar pro trecho. Tios e tias que nem lembro mais o rosto. O que eu tô fazendo com essa senhora na boleia? Pensei de novo e a resposta veio clara como água. Talvez fosse Deus me dando uma chance de consertar alguma coisa, de fazer diferente dessa vez, de cuidar de alguém quando ainda dava tempo. Dona Áura, falei de repente,
interrompendo o silêncio que tinha se instalado entre nós. A senhora não precisa ir com a polícia agora, se não quiser. Ela levantou os olhos, confusa. Como assim? Meu caminhão vai ficar no conserto por dois dias. Depois disso, eu posso levar a senhora pessoalmente até a delegacia. ou até um lugar melhor. Não precisa ser agora com pressa. O senhor não vai se incomodar de ficar comigo mais uns dias? Ela perguntou. E havia uma esperança tão grande naquela voz que me emocionou. Incomodo nenhum, dona Áura, pelo contrário. Liguei de volta pro delegado Torres e expliquei a situação.
No começo, ele ficou meio desconfiado, mas depois entendeu. Pediu meus dados completos, número da CNH, placa do caminhão, tudo para registrar. disse que se precisássemos de qualquer coisa, era só ligar. Quando desliguei, dona Áurea estava sorrindo de um jeito que iluminava o rosto todo, como se tivesse ganhado um presente inesperado. Passei o resto do dia resolvendo a questão da carga. A transportadora mandou outro caminhão. Transferimos os frangos congelados e pronto. Devolvi a nota fiscal, expliquei sobre o defeito mecânico e eles até foram compreensivos. Me disseram para voltar paraa base quando o caminhão tivesse consertado. Quando
voltei pro posto, encontrei dona Áurea tricotando. Isso mesmo, tricotando. A garçonete tinha arrumado agulhas e linha para ela em algum lugar e lá estava ela, com as mãozinhas trabalhando rápido, como se nunca tivessem parado. A cena era tão bonita, tão normal, que quase esqueci que dias antes ela estava abandonada para morrer. "O que a senhora tá fazendo?", perguntei curioso. "Uma touquinha de bebê", ela respondeu sem tirar os olhos do trabalho. "Para vender, assim ajudo a pagar as despesas por aqui." merda, a velha tinha sido abandonada, quase morreu de frio, tava desabrigada. E a primeira coisa
que pensou foi em como ganhar uns trocados para não ser peso para ninguém. Isso que é dignidade, Não precisa se preocupar com isso, dona Áuria. A gente dá um jeito. Mas eu gosto de tricotar, ela disse, sorrindo. Mantenha as mãos ocupadas e a cabeça limpa. Notei que ela estava diferente, mais animada, mais viva. Não parecia mais aquela velhinha assustada da beira da estrada. Era como se ter alguém que se importava tivesse dado um novo fôlego para ela. Naquela noite, depois que deixei ela instalada no mesmo quartinho dos fundos do posto, fiquei um tempão sentado na
boleia do caminhão, olhando as estrelas que tinham aparecido depois da tempestade e pensando na vida. Eu não sabia se aquilo era só uma carona ou se era uma missão. Não sabia se estava apenas ajudando uma idosa ou salvando alguma coisa em mim mesmo. Só sabia que, pela primeira vez em muito tempo, sentia que estava fazendo algo que realmente importava. No dia seguinte, antes mesmo do sol nascer, já tava de pé. Fui até a lojinha do posto e comprei um monte de revista de palavras cruzadas, linha de tricô, umas guloseimas que achei que dona Áurea ia
gostar, até um radinho portátil para ela ouvir os programas sertanejos que eu sabia que os velhos adoram. Quando entreguei tudo aquilo para ela no café da manhã, os olhos dela encheram d'água. Seu Gerson, o senhor não precisava. Que nada, dona Áuria. É só pra senhora passar o tempo enquanto a gente espera o caminhão ficar pronto. Ela pegou o radinho com cuidado, como se fosse feito de ouro. Faz tanto tempo que não ouço música. Naquele momento, soube que tinha tomado a decisão certa. Às vezes, a vida coloca a gente em situações que parecem um desvio no
caminho, mas, na verdade, são atalhos pro realmente importa. Os dois dias que passamos naquele posto esperando a peça do caminhão, foram uma lição do para mim. Juro que aprendi mais coisa nesse tempo com dona Áurea do que nos 40 anos rodando por esse Brasil. A gente estabeleceu uma rotina tranquila. De manhã tomávamos café juntos na lanchonete. Ela sempre acordava antes de mim, já toda arrumadinha, como se fosse sair pra missa. O cabelo branquinho, penteado com cuidado, as roupas simples, mas sempre limpas e bem passadas. Ela passava com as mãos mesmo esticando no colchão. Durante o
dia, eu ficava zanzando pelo posto, ajudando o Neco na oficina, só para passar o tempo, conversando com outros caminhoneiros que paravam por ali. De vez em quando ia ver como dona Áurea tava. Geralmente a encontrava tricotando, ouvindo o radinho ou conversando com as funcionárias do posto. Todo mundo já tinha se apaixonado por ela. A velhinha tinha esse dom, sabe, de fazer as pessoas gostarem dela. Numa dessas tardes, enquanto ela tricotava e eu tentava consertar o rádio do caminhão, ela me soltou uma bomba. Seu Gerson, o senhor tem filhos? A pergunta me pegou de surpresa. Até
então a gente tinha falado de tudo menos disso. Era como se tivéssemos um acordo silencioso de não tocar em feridas abertas. Tenho um só, o Denis, respondi meio travado. E vocês se dão bem? Respirei fundo. Era hora de ser sincero. Não, a gente não se fala há anos. Ela continuou tricotando, sem levantar os olhos do trabalho. O senhor fez com ele o que o meu filho fez comigo? A pergunta foi direta no estômago, tipo soco de boxeador. Me deu até um embrulho nas tripas. Minha vontade foi negar na hora, dizer que jamais faria algo assim,
que era completamente diferente. Mas era mesmo? Não fisicamente, dona Áurria. Nunca abandonei ele numa estrada. Mas de outros jeitos, talvez. Sim. Ela finalmente me olhou sem julgamento nenhum nos olhos. Só uma curiosidade genuína. Como assim? E foi aí que desabafei. Contei tudo. Como fui um pai ausente sempre na estrada, como perdi momentos importantes da vida dele. Como escolhi o trabalho acima da família. Como deixei o casamento desmoronar por negligência, como fui embora quando o Denise mais precisava de uma figura paterna? como ele cresceu me vendo mais em foto do que pessoalmente. Eu era jovem e
burro, expliquei. Achava que ser pai era só pagar as contas, botar comida na mesa. Nunca entendi que criança precisa do pai presente, nem que seja só para jogar bola no domingo. E o senhor nunca tentou consertar isso? Ela perguntou com aquela simplicidade que só os velhos têm. Como se consertar um relacionamento quebrado fosse fácil que nem trocar pneu. Tentei sim. Quando me dei conta do estrago, já era tarde. Ele já era adolescente revoltado, já me odiava. Tentei me aproximar, mas cada tentativa parecia piorar tudo. Até que um dia ele disse que não queria mais me
ver, que eu não era pai de verdade, só um cara que aparecia de vez em quando para estragar o clima da casa. Dona Áurea balançou a cabeça compreensiva. Sabe, seu Gerson, meu finado marido era assim também. Motorista de ônibus, vivia na estrada. Nossos filhos cresceram praticamente sem pai. Mas a diferença é que quando ele ficou doente no final da vida, ele conseguiu se reaproximar deles. Pediu perdão, explicou que fez o que achou melhor na época. Alguns perdoaram, outros não. Mas pelo menos ele tentou, sabe? E o Júnior, ele perdoou o pai. Ela sorriu tristemente. Não,
o Júnior nunca perdoou. Talvez por isso ele me trate assim hoje. A gente repete o que viveu, mesmo sem querer. Aquilo me atingiu em cheio. Me perguntei se o Denis, quando fosse pai, seria ausente como eu fui, se a mágoa dele seria passada adiante, como uma herança envenenada. "A senhora acha que eu devia tentar falar com ele de novo?", perguntei, me sentindo de repente como um menino pedindo conselho paraa mãe. O que o senhor tem a perder? O pior que pode acontecer é ele não querer falar. E isso já é a situação atual, não é?
Mais uma vez, a lógica simples e direta dela me pegou desprevenido. Ela tava certa, claro. Que merda eu tinha a perder? Já tinha perdido tudo mesmo. Naquela noite tentei ligar pro Denis. O número antigo não existia mais. Tentei achar ele no Facebook, mas minha conta estava tão abandonada que nem lembrava a senha. Acabei ligando para minha ex-cunhada, a irmã da Marinete, e implorando pelo contato do meu filho. Ela ficou toda desconfiada, achando que eu estava bêbado ou louco, mas acabou passando. Mandei uma mensagem simples: "Filho, é o pai. Sei que você não quer papo comigo
e tá certo. Só queria dizer que tô pensando em você e que se um dia quiser conversar, tô aqui. Ele não respondeu. Pelo menos não naquele dia. Mas o visto apareceu, então pelo menos ele leu. No segundo dia de espera, aconteceu algo surpreendente. Eu e dona Áurea estávamos jantando na lanchonete do posto quando a dona Elsa veio toda animada contar que tinha tido uma ideia. Dona Áura, a senhora disse que era costureira, não é? E que gostava de bordar. Sim, minha filha. Fiz isso a vida toda. Pois olha só, minha irmã tem uma lojinha de
artesanato em Bom Jardim. Ela vende essas coisas feitas à mão, crochê, tricô, bordado e tá sempre precisando de mais peças. Quem sabe a senhora não podia fazer umas coisas para ela vender. Os olhos da velha brilharam como se tivessem acendido duas lanternas por dentro. Mas será que alguém ainda se interessa por essas coisas feitas à mão? Hoje tá tudo na máquina na China. Pelo contrário, dona Elsa continuou. Tá na moda de novo. O pessoal da cidade grande paga caro por peça artesanal, principalmente os turistas que passam por aqui para ir pra serra. E assim, em
questão de horas, dona Áurea tinha um trabalho. Dona Elsa trouxe um monte de linha, agulha, tecido e a velhinha começou a produzir que nem uma fábrica. paninho de prato bordado, gorro de lã, sapatinho de bebê. Parecia que tinha voltado 20 anos no tempo, cheia de energia. Foi nesse segundo dia também que comecei a procurar uma solução definitiva para dona Áurria. Não podia simplesmente levá-la pra delegacia e deixar que a jogassem num asilo qualquer. Não depois de tudo que tínhamos vivido juntos. Ela merecia algo melhor, mais digno. Comecei a fazer ligações, perguntar por aí. Falei com
o delegado Torres de novo, com a assistente social da cidade, com uma enfermeira que tinha parado no posto e todos diziam a mesma coisa. Asilos públicos eram lotados com fila de espera e os particulares eram caros para caramba. Foi quando a enfermeira me deu uma dica. Tem uma casa de repouso pequena aqui perto em Urubissi. É da dona Conceição, uma senhora que adaptou a própria casa para cuidar de idosos. Ela cobra mais barato porque não é empresa. É um trabalho meio de coração mesmo. Tem só uns 10 idosos lá e ela cuida bem. No mesmo
dia consegui o telefone da tal dona Conceição. Era uma senhora de uns 65 anos, enfermeira aposentada, que explicou que realmente mantinha um lar para idosos na casa dela. Era tudo regularizado, com alvará da prefeitura e tudo mais. O valor era bem menor que outros lugares e ela garantia que os idosos eram tratados como família. "Mas ela precisa de cuidados especiais por causa da cadeira de rodas?", dona Conceição perguntou. Sim, mas ela é bem lúcida e se vira bastante sozinha. Só precisa de ajuda para tomar banho, essas coisas. É, isso não é problema. Tenho experiência com
cadeirantes. Se quiser, pode trazer ela para conhecer o lugar. Se ela gostar, e se a gente combinar no valor, pode ficar. Marcamos de ir lá no dia seguinte, quando o caminhão estivesse pronto. No fundo, eu tava na dúvida se estava fazendo a coisa certa. Afinal, eu mal conhecia a dona Áuria. Ela tinha aparecido na minha vida há apenas quatro dias, mas já sentia uma responsabilidade enorme por ela, como se não fosse apenas uma senhora que encontrei na estrada, mas uma missão que recebi. Naquela noite, contei pra dona Áurea sobre a casa de repouso. Expliquei como
era, quem era a dona Conceição, quanto custava. Ela ouviu tudo em silêncio, olhando pela janelinha do quarto pros faróis dos caminhões que passavam na rodovia. "O senhor acha que é um bom lugar?", ela perguntou finalmente. "Parece que sim, dona Áurea. Melhor que um asilo público, com certeza. Lá a senhora vai ter atenção, cuidado. Vai poder continuar fazendo seu artesanato." "E quanto custa por mês?" "R$200." Ela fez as contas rápido. Minha aposentadoria é de 600 e pouco. Não dá. Os primeiros meses eu ajudo, dona Áura, depois a gente vê. Com seu artesanato, a senhora pode complementar.
Ela me olhou com aqueles olhos que pareciam ver através da alma e eu soube que ela tinha entendido tudo, que eu estava me oferecendo para pagar por um lugar para ela, que por algum motivo estranho, eu não conseguia simplesmente me despedir e seguir minha vida. Seu Gerson, posso fazer uma pergunta? Claro. Por que o senhor tá fazendo tudo isso por mim? O senhor nem me conhece. Era uma pergunta simples, mas a resposta era complicada para Por que eu tava fazendo tudo aquilo? Nem eu mesmo sabia direito. Acho que talvez, sei lá, dona Áura, talvez eu
precise ajudar alguém para me sentir melhor comigo mesmo. Ou talvez a senhora me lembre minha mãe. Ou talvez seja só porque a senhora é um ser humano e merece dignidade. Ela sorriu satisfeita com a resposta sincera. Seja qual for o motivo, obrigada. No outro dia, a peça finalmente chegou. Seu Neco instalou tudo em algumas horas. E por volta das 2as da tarde, o bruto estava roncando de novo, pronto pra estrada. Paguei a conta, agradecia a todo mundo do posto e ajudei dona Áurea a subir na cabine novamente. "A senhora tá pronta para conhecer sua nova
casa?", perguntei enquanto ajustava seu cinto de segurança. "Tô com um pouquinho de medo", ela confessou, "mas confio no Senhor. Dirigimos por mais uma hora até chegar em Urubice. A casa de dona Conceição ficava num terreno grande, com jardim na frente, todo florido. Era uma casa simples, mas bonita, bem cuidada, pintada de azul claro. Tinha rampa de acesso, corrimãos, tudo adaptado para cadeirantes. Dona Conceição nos recebeu na porta. Era uma senhora robusta, de cabelos grisalhos e rosto amável. Nos mostrou toda a casa, os quartos pequenos mais limpos, a sala de TV, a cozinha grande, onde todos
faziam as refeições juntos, o quintal com horta e algumas galinhas. Os outros idosos estavam na sala assistindo televisão, uns mais lúcidos, outros nem tanto. Mas todos pareciam bem cuidados, limpos, alimentados. Não tinha aquele cheiro característico de asilo, de desinfetante misturado com urina. Era cheiro de casa mesmo, de comida caseira no fogão. Dona Áurea observava tudo com atenção, fazendo perguntas, conhecendo os outros moradores. Uma velhinha chamada Lourdes logo se aproximou dela, mostrando um crochê que estava fazendo. Em minutos, as duas já estavam conversando como velhas amigas. Quando terminamos o tour, perguntei para dona Áuria o que
ela tinha achado. "É um lugar bom", ela disse pensativa. "As pessoas parecem felizes aqui. A senhora quer ficar?" Ela hesitou, olhando pela janela pro jardim lá fora. Depois me olhou com aqueles olhos profundos. "Se eu puder, quero te ver de vez em quando." Engoli em seco. Tinha um nó do tamanho do mundo na minha garganta. Claro, dona Ária. Sempre que eu passar por esse lado de Santa Catarina, venho visitar a senhora. Acertei tudo com dona Conceição. Deixei três meses pagos adiantado, mais um extra para comprar roupas novas e material de artesanato para dona Áurea. Deixei
meu telefone, meu endereço de e-mail, tudo para caso precisassem entrar em contato. Quando chegou a hora de me despedir, dona Áurea segurou minha mão forte. Nunca reclamei da vida. Mas naquela noite chorei calado. Nem percebi que estava chorando até sentir as lágrimas molhando minha camisa. Ela não chorou, só sorriu aquele sorriso sem dente que já tinha se tornado tão familiar para mim, e disse: "Deus lhe pague, seu Gerson. O Senhor é um homem bom. Saí dali com o coração mais leve e mais pesado ao mesmo tempo. Tinha cumprido minha missão, mas também tinha criado um
vínculo que não sabia bem como lidar. Naquela noite, quando voltei pro caminhão e liguei o motor, o silêncio na cabine era ensurdecedor. Senti falta do barulho das agulhas de tricô batendo, da voz mansinha dela contando histórias, até do radinho tocando modão sertanejo que ela gostava. Percebi então que na boleia a gente aprende mais que na escola. A estrada tinha me ensinado a ser duro, a desconfiar, a seguir em frente sem olhar para trás. Mas dona Áuria tinha me ensinado algo mais importante, que nunca é tarde para abrir o coração e fazer diferente. Já faz quase
um ano desde que encontrei dona Áurea naquela curva da serra do Rio do Rastro. Um ano que a minha vida mudou completamente. Quem diria que um velho caminhoneiro rabugento como eu ainda podia mudar, né? Mas foi o que aconteceu. Hoje eu passo por lá sempre que posso. No começo era só quando tinha frete para aqueles lados. Depois comecei a dar meus pulos, a pegar cargas que passassem perto de Urubici, mesmo que não fosse o melhor frete. Às vezes faço um desvio de 100, 200 km só para poder passar lá e ver como ela tá. Isso
teria sido impensável pro antigo Gerson. Desvio de rota, perder tempo e diesel. Jamais. Mas esse Gerson novo faz essas loucuras, sim. E não me arrependo nem um pouco. A primeira vez que voltei lá depois de deixar ela na pousada foi uns 20 dias depois. Tava com o cu na mão, para ser sincero. E se ela não tivesse se adaptado? E se o casal não estivesse tratando ela bem? E se ela tivesse ficado doente? Mil preocupações na cabeça. Quase passei direto de tanta insegurança. Quando cheguei na pousada, nem acreditei no que vi. Dona Áuria estava sentada
numa área coberta que eles tinham improvisado como atelier. Tinha uma mesinha de costura adaptada para cadeira de rodas, várias linhas coloridas, retalhos, uma máquina de costura antiga e ela lá costurando com uns óculos de leitura na ponta do nariz, toda concentrada. Quando me viu, quase caiu da cadeira de tanta alegria. Seu Gerson, o senhor veio mesmo. Parecia que tinha passado um ano, não 20 dias. Ela me mostrou o chalé dela, todo adaptado, como prometido. Não era nenhum luxo, mas era confortável, limpo, aconchegante. Tinha rampa na entrada, banheiro com barras de apoio, pia mais baixa. Tinham
até colocado umas prateleiras mais baixas para ela alcançar as coisas sem precisar de ajuda. E o trabalho, dona Áurea? Tá dando conta? Ai, seu Gerson, eu tô feliz demais. Tenho feito tanta coisa. Olha aqui. E me mostrou as cortinas novas que tinha feito paraa pousada com um bordado delicado nas beiradas, umas toalhas de mesa com ponto cruz, colouxas de retalho que pareciam obra de arte. A velha era boa mesmo no que fazia. A Marlene já recebeu três encomendas de hóspedes que viram meu trabalho e quiseram igual", ela contou toda orgulhosa. Uma senhora de Florianópolis encomendou
um enxoval de bebê inteiro. Aquela felicidade dela era contagiante. Dava para ver que ela tinha encontrado não só um lugar para morar, mas um propósito. Já tinha feito amizade com os funcionários da pousada, com os hóspedes regulares, até com o pessoal do posto de saúde onde ia para controlar a pressão. Nesse primeiro reencontro fiquei só 2 horas. Tinha que seguir viagem, entregar a carga, mas prometi que voltaria e voltei. No mês seguinte já tava lá de novo. Na segunda visita, levei uns presentinhos. Nada demais. umas linhas de costura diferentes que tinha comprado numa loja de
artesanato em São Paulo, uns docinhos de padaria que ela tinha comentado que gostava, uma manta mais quentinha pro inverno que estava chegando. Ela ficou toda sem jeito com os presentes, mas dava para ver que tinha gostado. Não precisava se incomodar, seu Gerson. O senhor já fez tanto por mim. Que incômodo! Nada, dona Áuria. É o mínimo. Foi nessa segunda visita que fiquei sabendo das novidades sobre o filho dela, o desgraçado do Júnior. A polícia tinha localizado ele, nem foi difícil. continuava morando no mesmo lugar em Lauro Müller. Quando confrontado, primeiro negou tudo. Disse que a
mãe estava mentindo. Depois, encurralado com as evidências, admitiu e começou a chorar, dizendo que estava desesperado, que não dava conta, que a esposa ameaçou largar dele se a sogra continuasse lá. Um monte de desculpa esfarrapada. O delegado Torres ligou para dona Áurria, explicando a situação. Perguntou se ela queria dar continuidade ao processo criminal contra o filho. Sabe o que essa santa mulher respondeu? Que não, que só queria que ele fizesse tratamento psicológico e prestasse serviço comunitário num asilo para aprender a valorizar os idosos. A senhora tem um coração muito grande, dona Áuria", falei impressionado com
tamanha bondade. "Não é coração grande, seu Gerson, é que não consigo desejar mal para ninguém, muito menos pro meu filho. O que ele fez foi horrível, mas ele é meu filho ainda, sangue do meu sangue. Essa capacidade dela de perdoar me deixava de queixo caído. Eu, que guardo rancor até de fiscal de posto que me multou há 15 anos atrás, não conseguia entender como alguém perdoa uma atrocidade daquelas, mas talvez seja isso que a torna especial, esse coração enorme que não guarda mágoa. As visitas foram ficando mais frequentes. A cada dois meses, pelo menos, eu
dava um jeito de passar por lá. Às vezes ficava só algumas horas. Às vezes conseguia passar à noite na pousada. Antônio e Marlene, os donos, já me tratavam como da família. Sempre tinha um quarto disponível para mim. Sempre recusavam quando eu tentava pagar. "Você trouxe nossa melhor costureira", dizia Marlene. "É o mínimo que podemos fazer e dona Áuria?" Essa então só ficava melhor com o tempo. Parecia rejuvenecer a cada visita minha, a pele mais corada, o olhar mais vivo, até a postura na cadeira de rodas mais ereta. O trabalho e o ambiente acolhedor tinham feito
milagres por ela. Numa dessas visitas, já no sexto mês morando lá, ela me mostrou algo que tinha feito especialmente para mim. Um estofado novo pro banco do meu caminhão, todo bordado à mão com motivos de estrada, volantes, caminhões, placas de rodovia e no meio bem grande ela tinha bordado Gerson e Áurea do trecho e do coração. quase chorei ali mesmo na frente dela, mas segurei. Homem velho não chora, né? Pelo menos era o que eu achava antes. Para o senhor nunca esquecer da velhinha que encontrou na estrada, ela disse enquanto me entregava o presente. Sempre
que sentar no banco, vai lembrar que ainda existe gente boa nesse mundo. Gente boa como se ela não fosse a própria definição de bondade, como se ela não tivesse me ensinado mais sobre ser gente boa que qualquer outra pessoa na minha vida. Conforme as visitas se acumulavam, ia percebendo que algo tinha mudado dentro de mim. Não era só a preocupação com dona Áurea, era algo mais profundo, um jeito novo de ver o mundo, de tratar as pessoas. Comecei a parar mais vezes para ajudar outros motoristas com problemas na estrada. Comecei a conversar mais com os
colegas nos postos, a ouvir suas histórias, a me importar. E o mais incrível aconteceu cerca de ito meses depois que encontrei dona Áurria. Recebi uma mensagem do Denis, meu filho, curta, seca, mas que valeu mais que ouro. Pai, se a oferta ainda estiver de pé, acho que a gente podia conversar. Não preciso nem dizer que respondi na hora. Marquei de encontrar com ele em São Paulo, onde ele morava agora. Consegui um frete para lá na mesma semana e fui. Almoçamos num restaurante simples perto do trabalho dele. Foi estranho, desconfortável, cheio de silêncios. Ele estava diferente,
claro. Não era mais o moleque que eu lembrava. Era um homem feito, com algumas entradas na testa igualzinho às minhas na idade dele. A conversa foi entrando nos eixos aos poucos. Ele contou da vida dele. Tinha se formado em engenharia, trabalhava numa empresa de logística. Olha só, não caiu longe do caminhão. Era casado fazia 5 anos e tinha uma filha de três, minha neta, que eu nem sabia que existia. Quando chegou a minha vez de falar, de repente comecei a contar sobre dona Áurria. Falei como a encontrei, como decidi ajudar, como minha vida tinha mudado
desde então. Eu, que nunca fui de falar muito, me vi despejando toda a história e, pela primeira vez, viu filho me olhando com algo diferente nos olhos. Não era mais mágoa ou indiferença, era respeito. No fim do almoço, ele me convidou para conhecer minha neta. Se você quiser, sem pressão. No domingo seguinte, fui na casa dele. Conheci a Maria Clara, minha netinha, uma costelinha de anjo com os mesmos olhos do pai, que são os mesmos olhos meus. Conheci a Samara, minha nora, uma moça séria, mas educada. Passamos a tarde juntos, meio sem jeito ainda, mas
dando um passo de cada vez. Quando contei paraa dona Áurea sobre esse reencontro, na minha visita seguinte, ela chorou de alegria. Viu, seu Gerson? Deus escreve certo por linhas tortas. O Senhor me ajudou e isso abriu o caminho para se reaproximar do seu filho. Talvez ela estivesse certa. Talvez tudo estivesse conectado de alguma forma que a gente não entende. Ou talvez fosse só a vida dando mais uma chance para quem decide fazer diferente. Hoje, praticamente um ano depois, minha vida é outra. Não que eu tenha deixado de ser caminhoneiro. Continuo na estrada com o velho
brutos roncando, mas agora tenho pontos de parada, que são verdadeiros portos seguros. A casa do meu filho em São Paulo, onde vou pelo menos uma vez por mês ver minha netinha e a pousada em Urubissi, onde dona Áurea me espera com um sorriso banguela e histórias para contar. Na última vez que passei por lá, levei a Maria Clara comigo. Foi a primeira vez que ela viajou na boleia com o vovô. Queria que ela conhecesse dona Áurria, a senhora que sem saber ajudou a reconectar nossa família. As duas se deram tão bem que parecia que se
conheciam há anos. Dona Áuria ensinou Maria Clara a dar os primeiros pontos de bordado e a menina ficou fascinada. Quando estávamos indo embora, dona Áuria me chamou de lado e falou baixinho: "Nunca se esqueça, seu Gerson. As melhores coisas da vida acontecem quando a gente para para ajudar alguém. E é isso que levo comigo agora em cada viagem, em cada trecho. Se você é filho, cuida da tua mãe. E se você é da estrada como eu, nunca ignora um ser humano na beira do caminho. Pode ser que você ache uma alma companheira, como eu achei.
O estofado que dona Aurea bordou para mim tá lá, banco do brutos. Todo dia sento em cima dele e lembro da lição que aprendi. A estrada pode ser dura e solitária, mas também pode te levar pros lugares e pessoas mais incríveis se você tiver coragem de parar e olhar de verdade. Nunca mais passei reto por alguém precisando de ajuda. Nunca mais fechei os olhos paraa dor alheia. A cabine do meu caminhão, que já foi minha prisão solitária, agora é um espaço onde carrego não só frete, mas memórias, esperanças e lições. Como dona Áurea diz sempre,
que me despeço dela. Vá com Deus, seu Gerson, e volte logo, que a vida é curta demais pra gente ficar longe de quem a gente gosta. E é isso que eu faço. Vou, volto e sigo em frente, levando comigo a certeza de que nunca é tarde para fazer diferente, para ser melhor, para abrir o coração. Mesmo um velho caminhoneiro cascudo como eu pode aprender isso. Basta encontrar um anjo na beira da estrada para te mostrar o caminho.