Quem olha para o Brasil de hoje, um país essencialmente de carros e caminhões, cortado por rodovias, talvez não imagine, mas os trens foram o principal meio de transporte de cargas e passageiros por quase um século. Eles chegaram aqui no século 19, e em 1960 a malha ferroviária já se estendia por 38 mil quilômetros. Mas dali pra frente, começou a encolher.
Perdeu 8 mil quilômetros e há 50 anos patina no mesmo patamar. Mas por quê? Sou Camilla Veras Mota, da BBC News Brasil, e neste vídeo vou contar quatro momentos históricos que explicam a destruição das ferrovias no Brasil.
O primeiro é a crise do café. O produto é elemento central nos primeiros capítulos da história das ferrovias no Brasil – tanto ascensão quanto decadência. É a razão para a chegada das estradas de ferro no século 19: a primeira delas, a Estrada de Ferro Mauá, que começou a operar em 1854, levava nas suas locomotivas a vapor a commodity do Vale do Paraíba ao porto de Magé, na baixada fluminense, que, de lá, seguia de barco até a cidade do Rio.
Nessa época, o café era elemento central da economia brasileira, e respondia por quase 50% das exportações. A malha ferroviária foi aumentando com a expansão da atividade cafeeira e passou a deslocar também passageiros, que até então só conseguiam viajar longas distâncias com transportes movidos por tração animal. Esse é o centro da cidade de São Paulo nessa época, onde hoje é a Praça Antônio Prado – repara nas charretes e nos cavalos.
Pois é. Foi nesse contexto que a malha ferroviária chegou a quase 30 mil km de extensão na década de 1920, até que veio o baque da crise de 29. A quebra da bolsa de Nova York, nos Estados Unidos, na época o maior comprador de café brasileiro, e a Grande Depressão que se seguiu tiveram impacto direto sobre o Brasil.
Em um curto espaço de tempo, as exportações do café despencaram, assim como os preços. As ferrovias, que eram administradas pelo setor privado sob regime de concessão, passaram a transportar cada vez menos carga e viram sua rentabilidade despencar. Tem início, nesse momento, um período lento de decadência que culminaria na estatização das estradas de ferro mais de duas décadas depois.
Mas antes, outros dois fatores importantes entram em cena: o crescimento das cidades e a popularização do automóvel. O que nos leva ao segundo momento: o governo JK e o nascimento da indústria automobilística. Bom, o Brasil vive uma grande transformação depois de 1940.
A economia, até então baseada quase exclusivamente na agricultura, se volta cada vez mais para a indústria. A Companhia Siderúrgica Nacional (CSN) e a Vale do Rio Doce, são fundadas como estatais nessa época, em 1940 e 1942, respectivamente. Era a ditadura do Estado Novo, a última fase da Era Vargas, período de 15 anos em que Getúlio Vargas governou o país.
Essa mudança na matriz de crescimento catalisa um processo de migração das populações de áreas rurais para as cidades. As capitais ganham uma nova escala e vão inchando, um processo que tem como efeito colateral a diminuição da demanda por trens de passageiros em alguns trechos, entre cidades próximas, por exemplo. A política de industrialização continua com o presidente Juscelino Kubitschek, que assume em 1956 e elege a indústria automobilística como catalisador do seu plano de desenvolvimento.
O Plano de Metas de JK, que ganhou o slogan “50 anos em 5”, é frequentemente apontado como o início do chamado “rodoviarismo” no Brasil. Eu conversei com o professor de Engenharia de Transportes da Coppe/UFRJ Hostílio Xavier Ratton Neto, um veterano com bastante conhecimento sobre ferrovias no Brasil, e ele pontuou que esse movimento é complexo, cheio de nuances e explicado por uma combinação de fatores. Um deles é a própria natureza da indústria automotiva, que tem uma cadeia de produção longa, com efeito multiplicador na economia, e emprega uma mão de obra qualificada que até então não existia no país e que viria a se tornar um importante mercado consumidor.
Em paralelo, a construção das rodovias era menos custosa que as estradas de ferro, e o petróleo usado para produzir combustível ainda era muito barato. No pano de fundo, a Guerra Fria estreitava as relações entre Brasil e Estados Unidos. Na tentativa de barrar a expansão da influência da União Soviética no continente, os americanos firmaram acordos de cooperação técnica e de financiamento para investimentos com diversos países da América Latina, inclusive o nosso.
Assim, em 1956, foi criado o Grupo Executivo da Indústria Automobilística, e o Brasil, que até então só montava veículos, passaria a fabricar carros, caminhões e jipes, tendo como principal polo a região do ABC paulista. Com a produção de veículos nacionais, multiplicaram-se os quilômetros de rodovias. Só nos cinco anos de gestão JK, a malha rodoviária federal pavimentada foi multiplicada por três.
Já as ferrovias entravam os anos 1950 sucateadas. Além da redução da demanda de carga e passageiros, um outro fator contribuiu pro que o professor Ratton Neto chamou de “estado bastante acentuado de degradação física das estradas de ferro”: Muitas concessões já estavam no final, próximo da devolução, e não havia cláusula nos contratos que obrigassem as concessionárias a fazer investimentos ou devolver as ferrovias no estado em que pegaram. Guarda essa informação que ela é importante.
Bom, mas é nesse contexto que, em 1957, surge a Rede Ferroviária Federal, a RFFSA, estatal que passou a administrar 18 ferrovias que até então estavam nas mãos de diferentes empresas privadas. E é por isso que muitos historiadores dizem que o plano de metas de JK não era substituir as ferrovias pelas rodovias, mas integrar esses dois modais. Um deles é Welber Luiz dos Santos, do Núcleo de Estudos Oeste de Minas da Associação Brasileira de Preservação Ferroviária.
Ele diz que os primeiros relatórios da RFFSA traziam um projeto de modernização e unificação administrativa pra facilitar essa integração. Mas esses planos de recuperação e melhoria incluíam a desativação de uma série de linhas e “ramais” considerados deficitários. “Ramais” são o jargão do setor para os trechos secundários.
E aí entramos no terceiro momento, a extinção das linhas de passageiros. A lógica aqui, conforme o historiador Eduardo Romero de Oliveira, professor da Unesp, é que o mundo de meados do século 20 era completamente diferente daquele que, muitas décadas antes, havia norteado a construção de parte das ferrovias: o transporte de café, de açúcar, um mundo em que nem a legislação trabalhista existia ainda. O modelo de negócio das ferrovias tinha mudado, ele diz.
Com o avanço da indústria automobilística e a entrada do avião em cena, as ferrovias entraram em crise – não só no Brasil, mas em diversas outras regiões. Nos países em que as ferrovias foram mantidas para transporte de passageiros, isso aconteceu muitas vezes apesar da menor rentabilidade. Ou seja, foi uma decisão de política pública mesmo.
O Estado assumiu de vez o serviço dali pra frente. É o caso, por exemplo, dos Estados Unidos. A estatal Amtrak foi fundada em 1971 e faz até hoje a gestão das linhas de passageiros no país.
Também são estatais a alemã Deutsche Bahn, a espanhola Renfe e a francesa Société Nationale des Chemins de fer Français (SNCF), pra citar alguns exemplos. Aqui, as linhas de passageiros foram aos poucos desaparecendo no decorrer dos 30 anos seguintes – com exceção de alguns trechos urbanos que cruzavam as periferias e regiões metropolitanas e que operam até hoje. Eu conversei com o químico Ralph Mennucci Giesbrecht, que se declara um “fanático por ferrovias” e há mais de duas décadas pesquisa sobre elas e coleciona histórias que dão cor às estatísticas desse período turbulento.
Ele lembrou da desativação do ramal entre as cidades paulistas de São Pedro e Piracicaba em 1966, um ramal da Estrada de Ferro Sorocabana, que aliás pertencia ao governo de São Paulo, e não à RFFSA. Aqui um parênteses rápido: São Paulo cria em 1971 sua própria estatal de ferrovias, a Fepasa. Tanto RFFSA quanto Fepasa foram privatizadas no fim do anos 90, mas falamos disso daqui a pouco.
Pois bem. O prefeito de São Pedro ficou possesso com a decisão do governo na época e chegou a questionar o critério da baixa rentabilidade usado para justificar a extinção do ramal. Em um telegrama endereçado ao governador, ele diz o seguinte: “Deficit, se não levarmos em conta o bem coletivo, também dá a polícia, dão as escolas e todas as repartições mantidas pelo Estado.
O deficit do ramal é muito relativo, pois, não levando em conta o movimento das estações de Barão de Rezende, Costa Pinto, Recreio e Paraisolândia, a estação de São Pedro despachou este ano mais de 40. 000 toneladas de cana. Finalizando, aqui deixo minha desilusão por tudo e por todos” (reportagem do jornal O Estado de S.
Paulo de 30 de outubro de 1966). No mesmo 1966 foi desativada a Estrada de Ferro Minas-Bahia, imortalizada por Milton Nascimento e Fernando Brant na canção Ponta de Areia. Um dos últimos trechos a desaparecer foi o ramal entre Rio e São Paulo, que levava passageiros desde 1877.
O Trem Santa Cruz, que ia da Estação da Luz, em São Paulo, à Central do Brasil, no Rio, parou de circular em 1991. Ainda houve uma tentativa de retomada, em parceria com a iniciativa privada, em 1994, com o Trem de Prata, mas não durou muito. Em 1998, a ligação por trem entre as duas cidades foi extinta de vez.
E houve ainda o plano do trem bala entre as duas capitais, mas esse nunca chegou a ir pra frente de fato. Bom, e o transporte de carga? Vamos então ao quarto e último momento: a malha ferroviária como corredor de commodities.
No último ano do governo JK a extensão da malha ferroviária começa a diminuir e encolhe significativamente durante a ditadura militar, cerca de 8 mil km. Apesar dessa redução, que se deve em parte à desativação de linhas de passageiros de que a gente falou antes, ainda houve investimentos em ferrovias nesse período, pra compras de vagões, recuperação de alguns trechos e conclusão de outros. Mas esses investimentos não chegaram a integrar a malha nacional – as ferrovias não tinham uma interligação efetiva.
Aliás, muitas não tinham nem o mesmo padrão de bitola, que é o espaço entre um trilho e outro. Até hoje não existe padronização no Brasil – a maioria ainda tem a chamada bitola métrica, de um metro, hoje considerada ultrapassada. E também houve grandes projetos que ficaram pelo meio do caminho.
A Ferrovia do Aço, por exemplo, começou a ser construída em 73 com a promessa de ser entregue em mil dias, mas só foi inaugurada quase 20 anos depois, em 92, e com um porte muito mais modesto do que o projeto inicial. O Brasil mergulha em crise nos anos 80 e, no início dos anos 90, no governo Collor, a RFFSA, bastante endividada, é novamente concedida à iniciativa privada, por meio do Plano Nacional de Desestatização (PND). A Fepasa também foi privatizada mais ou menos na mesma época.
Lembra daquela questão das cláusulas dos contratos de concessão, de que a gente falou antes? Pois é, o professor Ratton Neto falou sobre isso, mas agora nesse novo contexto. A partir daí, as ferrovias passam a funcionar majoritariamente como corredores de transporte de commodities para exportação.
Hoje, quase metade da malha, 14 mil km, está nas mãos da Rumo Logística, e outros 2 mil km são administrados pela Vale. Cerca de 75% da produção de transporte ferroviário é minério de ferro e outros 10% a 12% são soja, segundo o professor Ratton Neto. Na avaliação dele, esse modelo de corredor de commodities subaproveita o potencial das ferrovias no Brasil.
As estradas de ferro poderiam ser mais utilizadas para transporte de bens industriais, por exemplo, de bobinas de ferro e cimento a automóveis, inclusive em trechos curtos, nos moldes das “short lines” dos Estados Unidos. O professor cita ainda a tendência de transporte de contêineres por ferrovias, que é mais recente e bastante rentável. Mas, pelo menos até o momento, não existe um plano nacional de transportes, de logística, que inclua essas questões e vá além das ferrovias como corredor de commodities.
Com isso eu fico por aqui. Muito obrigada e até a próxima!