Olá, eu sou Arthur Nestrovski. Tô aqui para conversar com vocês sobre a longa arte de Antonio Carlos Jobim e tenho aqui comigo ninguém menos do que Paula Morelenbaum, que cantou na banda com Tom Jobim durante uma década, enfim, consagrada cantora do repertório de Antonio Carlos Jobim. Querida amiga, é um privilégio termos a Paula conosco.
Tom Jobim como músico, como instrumentista e como compositor tem uma marca que nem sempre é presente mesmo em alguns dos maiores compositores da história da música. Ele tem uma capacidade de, ao primeiro segundo de música, se instaurar no espaço da vida. A presença de Tom Jobim é muito tocante e contundente desde o primeiro segundo.
Se vocês acham que eu estou exagerando, se eu fizer esses acordes. . .
Basta, né? Todo mundo não só reconhece que isso é o começo de Águas de Março. Não só isso, parece que se abre um mundo.
É o mundo que a gente está acostumado a associar ao universo musical de Tom Jobim. Mas ele se faz imediatamente presente em cada detalhe, em cada compasso. Podemos dar um outro exemplo.
Vim do norte, vim de longe De um lugar que já nem há Vim dormindo pela estrada Vim parar nesse lugar O cheiro é de cravo Minha cor, de canela A minha bandeira é verde-amarela Pimenta de cheiro, cebola em rodela Um beijo na boca, feijão na panela Gabriela Sempre Gabriela É uma loucura a gente escutar essa voz, que é a voz que a gente tem na memória desde que ouviu pela primeira vez. Gabriela está aqui conosco no estúdio. Bom, a gente ainda pode falar de uma coisa importante, vamos ver isso ao longo desses seis episódios.
Quando você olha as partituras do cancioneiro, quando toca no violão, toca no piano, quando canta, quando você começa realmente a estudar essas composições, cada uma - eu não exagero -, cada uma é uma aula de composição. As partituras do Cancioneiro Jobim ensinam muita coisa quando a gente se debruça sobre elas. Ele deveria estar na estante ao lado de Carlos Drmmond de Andrade, de Guimarães Rosa e de Clarice Lispector, para ficar em três autores de especial predileção do próprio Tom Jobim.
Pra começo de conversa, a abrangência da obra. É claro que Tom Jobim é tido e reconhecido nacional e internacionalmente como o grande compositor, o mestre da bossa nova, o pai da bossa nova. Isso não está errado, mas a verdade é a seguinte: a bossa nova, a enorme maioria dessas canções que se tornaram clássicos do cancioneiro não só brasileiro, mas mundial, a grande maioria foi composta num período muito restrito, mais ou menos entre 1958 e 1963.
São cinco anos de uma carreira de cinco décadas. Na verdade, a primeira composição registrada de Tom Jobim é de 1947, é a Valsa Sentimental, que ele escreveu só para piano. Ele tinha 20 anos de idade.
Mas que depois, na década de 80, ganhou uma letra, hoje bastante conhecida, de ninguém menos do que Chico Buarque. E essa valsa sentimental passou a ser conhecida como Imagina. Imagina Imagina Hoje à noite A gente se perder Imagina Imagina Hoje à noite A lua se apagar Vocês terão lembrado desta maravilha que é Imagina.
E Tom Jobim, é bom que se diga desde logo, era um compositor totalmente a essa altura, já enfronhado no repertório da canção popular brasileira, mas ele teve formação clássica e passou toda a adolescência e até aquela idade, aos 20 anos, ouvindo compositores como Debussy, como Ravel, como Stravinsky, pra não falar de Villa-Lobos, que sempre foi a sua principal referência. O homem que, pra ele, tinha inventado o Brasil em música. Isso está presente em toda a obra de Tom Jobim.
E esse trânsito entre a cultura popular e a cultura musical clássica, a cultura musical escrita, de partitura, de música de concerto, se dá de forma muito rica e muito natural em toda a obra de Tom Jobim. E é bom que se diga isso também desde o começo: Tom Jobim é um compositor tão extraordinário que a gente sempre pensa nele como compositor, mas ele, se fosse só letrista, também estaria consagrado no acervo da música brasileira. Talvez fosse bom a gente pelo menos mostrar uma canção em mais detalhe.
Escolhi uma canção que resume muito do que nós falamos aqui, mas podemos falar nela aqui como um exemplo do cruzamento entre a música de concerto e a música popular, da importância da letra, da poesia cantada nas canções de Tom Jobim, e do artesanato da composição. Esta canção que começa mimetizando o canto do próprio sabiá. Isso aqui é o sabiá-laranjeira, que canta exatamente assim.
E aí, Tom faz o quê? Uma escala muito usada pelos compositores impressionistas franceses. E aí, quando ninguém espera.
Vou voltar Sei que ainda vou Voltar para o meu lugar Foi lá e ainda lá Que eu hei de ouvir Cantar uma sabiá Cantar o meu sabiá Dá vontade só de ficar tocando as canções, né? Que coisa linda. É uma canção que na verdade é um choro, é uma espécie de choro lento, mas também tem várias características muito particulares.
Quer dizer, esse início, que parece realmente uma canção de concerto, mas depois desse choro, a canção na verdade tem. . .
Ela volta sobre si mesma várias vezes e ela tem três grandes partes. Ela sempre volta pra esse tema de três notas, só que em cada vez, em tonalidade diferente. Ela vai sempre voltando, mas ela volta pra um lugar diferente.
É um outro tom. Até que termina. Tudo e nada de te esquecer Aí vem uma coda.
Ela fica travada no final. Esses acordes que eu mostrei para vocês aqui. Ela trava.
Harmonicamente, ela trava. Vocês ouvem isso aqui? Ela fica parada, balançando entre esses dois acordes.
Ou seja: ela não chega a lugar nenhum. Isso é um de tantos exemplos, e nós vamos ver muitos ao longo desses encontros. Esse é um dos tantos exemplos da sofisticação do compositor Tom Jobim.
De encontrar, também, soluções harmônicas e melódicas que exprimem o que a letra está dizendo em versos. Vou voltar Sei que ainda vou Voltar Para o meu lugar Foi lá e é ainda lá Que eu hei de ouvir Cantar uma sabiá Cantar o meu sabiá Vou voltar Sei que ainda vou Voltar Vou deitar à sombra de uma palmeira que já não há Colher a flor que já não dá E algum amor Talvez possa encontrar Nas noites que eu não queria E anunciar o dia Vou voltar Sei que ainda vou Voltar Não vai ser em vão Que fiz tantos planos De me enganar Como fiz enganos De me encontrar Como fiz estradas De me perder Fiz de tudo e nada de te esquecer Pensem bem. Esse início é uma coisa solar, né?
É um intervalo ascendente, né? A música se abre. E aí?
Aí, a música cai. Ela começa com esse salto solar impressionante, depois ela se fecha. Bom, o natural seria você cantar: Felicidade, sim Tristeza não tem fim.