Eu me chamo Gabriela e nasci em Belo Horizonte em uma família humilde, porém muito unida. Minha mãe, Marta, era cozinheira em uma pequena pensão do centro da cidade; era uma mulher de mãos fortes, pele marcada pelo calor dos fogões, mas um sorriso sempre presente e olhos cheios de ternura. Foi ela quem me ensinou o valor da culinária, muito além de preparar refeições, mas de fazer da comida um ato de amor e respeito. Apesar da pobreza, minha mãe repetia uma lição que nunca esqueci: a comida é uma forma de amor. Mas cuidado, minha filha, não
se ama quem não respeita você. Essa frase ficou gravada dentro de mim e, ironicamente, anos depois eu me veria subjugada por um homem que não soube respeitar nem a minha pessoa, nem o meu trabalho, nem a minha vontade de crescer e florescer no mundo. Aos 18 anos, comecei a trabalhar como assistente de cozinha em pequenos restaurantes. Meu sonho era abrir um negócio próprio. Com o pouco dinheiro que eu ganhava, matriculei-me em um curso de administração noturno; meu objetivo era ter meu próprio restaurante. Eu queria oferecer ao mundo um lugar onde a comida fosse servida com
amor, com ingredientes frescos, com temperos familiares; um lugar onde ninguém precisasse engolir ofensas junto com o arroz e o feijão. Foi nesses anos de esforço que conheci Santos. Ele era um vendedor carismático; estava em um evento de negócios onde eu servia petiscos gourmet. Tinha um sorriso cheio de lábia e falava sobre o futuro com uma confiança invejável. Parecia o homem ideal; apoiava minha carreira, elogiava meus pratos, afirmava admirar minha dedicação. Após cerca de dois anos de namoro, nos casamos. Com o tempo, no entanto, o homem carinhoso e compreensivo deu lugar a um controlador mesquinho. Ele
começou a menosprezar minhas conquistas e a me tratar como se minha função na vida fosse apenas agradá-lo. Sua mãe, Cecília, nunca gostou de mim e fazia questão de deixar isso claro em cada palavra venenosa que saía de sua boca. Rubi, uma conhecida que se aproximara de nós após o casamento, se revelaria muito mais que uma amiga dele: uma amante dissimulada. Meu casamento se tornou uma prisão e minha casa uma cozinha onde eu não cozinhava mais por prazer, mas por obrigação, até que um dia essa engrenagem cruel que mantinha o meu silêncio se quebrou, e eu,
Gabriela, veria a oportunidade de dar uma lição àqueles que sempre me humilharam. Minha vingança seria servida fria, com o mesmo tempero agridoce que eles haviam espalhado pela minha vida. Esta é a história daquele dia do último desprezo que suportei. A partir daquele instante, tudo mudaria. Acordei naquela manhã com a cabeça cheia de planos. Eu tinha uma viagem de negócios agendada para dali a dois dias. Seria algo importante: um congresso de gastronomia empresarial em São Paulo, onde eu esperava fazer contatos, conhecer fornecedores e, quem sabe, até encontrar um investidor. Já estava tudo pago: a passagem de
ônibus; eu optara por um ônibus confortável, com poltronas reclináveis, e a hospedagem em uma pequena pousada próxima ao evento. Eu me preparara para esse encontro há semanas, reunindo documentos, preparando um material impresso sobre meu projeto de restaurante, ensaiando meu pitch como se fosse um discurso de formatura. No entanto, enquanto terminava meu café da manhã, um simples pão com manteiga, café com leite e uma banana, Santos surgiu na cozinha. Ele não tinha o hábito de acordar cedo, a não ser que quisesse algo específico de mim. Quando entrou, senti imediatamente um peso no ar; seus olhos estavam
duros, a boca crispada. Parecia pronto para alguma afronta. Suspirei internamente, tentando manter a serenidade. “Gabriela,” ele disse, arrastando a cadeira e sentando-se à mesa sem pedir licença, “nós precisamos conversar.” Eu sabia que qualquer conversa com ele significava ordem velada, voz firme e suave. “Diga, Santos.” Estava com os cotovelos na mesa, aproximando-se mais de mim sem um terço. “Você não vai mais viajar, entende? Desmarque o que você tiver agendado. Cancele a passagem. Esqueça esse congresso. Preciso de você aqui.” Meu corpo gelou. Aquela viagem era um investimento no meu futuro; eu não estava disposta a ceder tão
facilmente. Tentei argumentar: “Santos, essa viagem não é passeio; é trabalho. Sabe o quanto me preparei e como isso é importante para meu projeto. Não posso simplesmente cancelar.” Antes que eu terminasse, ele bateu a palma da mão com força na mesa. A xícara de café balançou, meus nervos também. “Cale a boca, Gabriela.” A agressividade em sua voz fez meu coração disparar. “Minha mãe, a senhora Cecília, e minha amante, a senhorita Rubi, chegam em uma hora. Quero um frango ao molho do jeito que minha mãe gosta e você vai preparar. Caso contrário, já sabe: ou você sai
desta casa agora mesmo ou a gente divorcia. Daí você vai embora com uma mão na frente e outra atrás, sem um centavo, sem nada.” A menção tão descarada da amante, o uso do nome da sogra de forma orgulhosa, como se eu devesse me curvar diante delas, foi como um soco no estômago. Eu sempre soube da ligação de Santos com Rubi, mas ele nunca fora tão explícito. Aquilo era humilhação pura e direta; ele queria me dobrar, me ver como uma empregada doméstica submissa, disposta a acatar as ordens, mesmo sabendo que aquela afronta escancarava a traição. A
raiva subiu à minha garganta, mas eu a engoli. Havia um fogo dentro de mim queimando, mas segurei. Lembrei-me de minha mãe, Marta, e das suas palavras: “Não se ama quem não respeita você.” E eu não amava mais aquele homem. Não havia respeito, não havia parceria; havia apenas uma relação de poder onde ele se achava dono do meu destino. Permaneci em silêncio por alguns segundos, deixando o ar pesado pairar entre nós. Seus olhos me mediam, esperando minha rendição. Então respirei fundo, fiz um sorriso irônico disfarçado de conformidade e disse: “Muito bem, Santos, se é isso que
você quer, é…” Isso que terá. Vou preparar seu frango ao molho, pode confiar em mim. Surpresa e raiva iluminavam seu rosto; ele esperava resistência, talvez gritos, choros, alguma cena dramática. Mas, em vez disso, recebeu minha aparente tranquilidade. Ele não fazia ideia do que se passava na minha cabeça naquele momento. Eu, Gabriela, já não era mais a mesma mulher submissa de antes; naquele instante, algo dentro de mim se partiu, ou melhor, algo dentro de mim finalmente se libertou. A Gabriela que sonhava com um restaurante, com uma carreira brilhante, com respeito e reconhecimento, estava cansada de ser
pisoteada. Aquela era a última humilhação que eu suportaria calada. Fui até a pia, lavando minha xícara e a louça do café da manhã. Santos ficou me observando, talvez desconfiado da minha tranquilidade. Virei-me para ele e joguei um pano de prato sobre o ombro; deixei a voz sair mais suave do que eu esperava. — Preciso ir ao mercado comprar o frango fresco; voltarei logo. Enquanto isso, arrume a sala, por favor. Ou melhor, não precisa; eu mesma arrumo mais tarde. Ele não respondeu, apenas levantou-se e saiu em direção ao escritório improvisado que tínhamos no corredor. Ouvi a
porta se fechar e soltei um longo suspiro. A cozinha ainda estava silenciosa; o relógio na parede marcava algo em torno de oito da manhã, o que significava que eu tinha não mais que uma hora até a chegada da senhora Cecília e da senhorita Rubi. Uma hora era tempo suficiente; tempo suficiente para planejar, para executar, para reverter anos de humilhações em um ato de justiça doméstica. Peguei minha bolsa e saí em direção à rua. Não iria apenas ao mercado; eu tinha outra parada planejada: o casebre de Dona Zilda, uma velha amiga de infância que agora vendia
ervas e especiarias em uma feirinha ali perto. Era uma mulher sábia, discreta, que conhecia o poder de certas plantas. Eu precisava de algo especial, algo que não matasse ninguém, mas que fizesse Cecília e Rubi se lembrarem para sempre de que não se brinca com quem domina a cozinha. Eu serviria um prato à altura do desrespeito deles. A caminho da feira, pensei nos detalhes do meu plano. Sabia que não poderia escapar sem deixar alguma mensagem; Santos jamais entendia as coisas com sutileza. Eu precisaria deixar um bilhete, algo que marcasse meu adeus. Sim, eu pretendia partir daquela
casa, não sem antes ver a expressão daqueles três ao experimentarem o banquete que tanto esperavam. Essa seria minha despedida e minha vingança: fria, calculada, mas não cruel ao ponto de prejudicar a saúde de forma grave; apenas o suficiente para causar desconforto, lembrá-los de sua arrogância, uma lição, não um crime. Pensei na frase final a que deixaria anotada no bilhete: "Agora você aprendeu que a vingança é um prato que se come frio." Era tão clichê; porém, tão apropriada. Sorri sozinha na calçada, misturando-me ao vai e vem de pessoas anônimas. Ninguém imaginaria o que estava por acontecer.
Enquanto caminhava, o vento da manhã balançava meus cabelos como se me acariciasse. Senti-me, pela primeira vez em anos, no controle da minha própria história. A feira livre ficava a poucos quarteirões de casa. Passei em frente à padaria, onde, tempos atrás, eu comprava pãezinhos quentinhos antes de iniciar meu dia de trabalho em cozinhas alheias. Naquele tempo, eu era jovem, cheia de esperança, recém-saída da adolescência; sonhava com meu restaurante pequeno, aconchegante, com luz amarelada, mesas de madeira e toalhas floridas. Lembrei-me de minha mãe, Marta, que me ensinara não apenas a cozinhar, mas a entender as nuances dos
temperos, a sentir o ponto certo do sal, a temperar a carne com dedos leves e firmes, a amassar uma massa com carinho, como se fosse a pele macia de um bebê. Enquanto andava, meu pensamento voltava à minha infância e juventude. Eu via o rosto da minha mãe, o sorriso sincero, os cabelos presos num coque desalinhado. No final do dia, ela não estava mais aqui; partira há alguns anos. O câncer a levou depressa, e eu senti que parte de mim havia morrido com ela. Na noite em que ela se foi, segurou minha mão e disse baixinho:
— Não deixe que ninguém apague sua luz, minha filha. Você é forte; você merece o melhor. Palavras que hoje me pareciam um chamado à ação. Por que eu deixei Santos apagar minha luz? Por que aceitei que a senhora Cecília me tratasse como uma empregada sem valor? Talvez a necessidade de construir uma família, a insegurança, o medo da solidão. Talvez eu tenha acreditado nas promessas doces do início, achando que seu mau humor seria passageiro. Mas a verdade é que eu abri mão da minha voz muitas vezes, tentando preservar a paz. Uma paz falsa, comprada à custa
da minha dignidade. O sol começava a esquentar e a feira estava cheia. O aroma de frutas, verduras e temperos me envolveu de imediato. Senti uma pontada de nostalgia. Meu primeiro trabalho, aos 18 anos, foi ajudar na cozinha de um restaurante que dependeda dessa feira. Eu vinha cedo, escolhia tomates maduros, alfaces crocantes, pimentões coloridos; conhecia cada vendedor pelo nome. Hoje, tantas voltas a vida deu e eu retornava à feira para um propósito bem diferente: buscar as ervas da vingança. Procurei pela barraca de Dona Zilda; não foi difícil encontrar. Era um pequeno espaço cheio de potinhos de
vidro, saquinhos de pano, flores secas penduradas. Um perfume forte de anis e cravo escapava dali. Dona Zilda era uma mulher de pele morena, enrugada pelo sol, sorriso largo e voz cantada. Ao me ver, abriu os braços. — Gabriela, minha menina! Há quanto tempo não a vejo por aqui! — disse ela, o olhar curioso e brilhante como estampa de folheto. Entrei na história toda, mas eu precisava ser sincera o suficiente para que ela entendesse o que eu procurava. — Olha, Dona Zilda, eu preciso de umas ervas especiais, algo que, quando misturado numa comida, cause um... Desconforto
temporário, nada grave, sabe? Só umas cólicas, uma dor de barriga, quem sabe um suorzinho frio, só o suficiente para dar uma lição em umas pessoas que me ofenderam. Comida ruim, um castigo leve, nada que leve ninguém ao hospital, entendeu? Ela me olhou com surpresa e depois balançou a cabeça com um sorriso de canto de boca. Quando jovem, eu lembrava de ouvir que dona Zilda sabia preparar chás medicinais para quase tudo: dor de cabeça, insônia, má digestão. Também sabia quais plantas causavam pequenos desconfortos. Ela, entretanto, era uma boa pessoa, não faria nada sério contra as de
vontade. Precisava entender o que se passava. Minha menina, eu não aprovo a violência, mas conheço seu olhar. Quem é cozinheira como nós entende o poder da cozinha. A comida é um elo sagrado. Se você quer causar um desconforto, deve ter seus motivos, mas me prometa algo: não machuque ninguém de verdade. Isso pode sair do controle. A senti emocionada por ver que ela ainda me considerava uma espécie de "nós". Ao falar "cozinheira como nós", expliquei-a, ainda que superficialmente: não se preocupe, Dona Zilda, eu só quero que eles entendam que eu não sou uma empregada sem valor,
que não podem me humilhar. É mais um ensinamento do que uma maldade. Depois disso, vou embora daquela casa; só preciso deixar um lembrete para que nunca mais me subestimem. Zilda revirou uns potinhos, observou umas folhagens secas, pegou um pequeno saco de juta, abriu e mostrou-me um punhado de folhas verdes já secas, com um aroma meio amargo. "Isso aqui é folha de arruda, misturada com outras ervas de efeito laxante e ligeiramente irritante para o estômago. Não vai matar ninguém, só vai dar uma sensação bem desagradável, mas cuidado na dosagem: uma pitada no molho já vai ser
o suficiente." Peguei o saquinho, agradeci e entreguei-lhe o dinheiro. Ela colocou a mão sobre a minha e disse: "Gabriela, a gente precisa ensinar uma lição, mas não se esqueça: o seu caminho está adiante; não perca tempo com gente ruim por muito mais tempo. Ensine o que tem de ensinar e siga sua estrada." Assenti com o coração mais leve. Aquela frase era um lembrete importante. Eu estava ali para acertar as contas, sim, mas o mais importante era me libertar. Ao sair da feira, guardei o saquinho no fundo da bolsa e fui em direção ao mercado. Precisava
do frango fresco, bem gordo, para o tal banquete que Cecília e Rubi esperavam. Atravessando a rua, passei em frente a uma banca de jornais e vi as manchetes do dia: notícias sobre a economia, esportes, política... Nada parecia importar. Minha mente estava focada no que aconteceria dentro de alguns minutos. Em menos de meia hora, Cecília e Rubi estariam lá: a senhora Cecília, sempre altiva, nariz empinado, voz dura; Rubi, com seus falsos sorrisos, seus cabelos arrumados com perfeição, seu perfume caro; ambas esperando um almoço digno de uma anfitriã dedicada. Mal sabiam que o tempero daquele frango não
seria exatamente o que esperavam. Entrei no mercado, peguei um frango inteiro, frutas e legumes. Eu ia fazer um prato aparentemente elaborado, mas com um tempo demasiadamente salgado e, claro, uma pitada das ervas de Dona Zilda. Além disso, pensava em deixar tudo pronto rapidamente, arrumar minhas malas e estar fora da casa antes mesmo do primeiro suorzinho frio aparecer nas testas daquelas mulheres. Ao sair do mercado, olhei o relógio no meu celular: restava pouco tempo. Com passos rápidos, retornei para casa. Enquanto caminhava, lembrei novamente de minha infância, do tempo em que eu admirava minha mãe fazendo a
janta, falando sobre respeito e amor na cozinha. Agora, eu serviria algo que não era amor, mas sim um aviso. Talvez, se minha mãe estivesse viva, ela diria para eu ter cuidado, para eu não me rebaixar ao nível deles, mas também não se calaria diante do desrespeito. Minha mão suava contra a sacola do mercado, meu coração batia forte. Eu não estava apenas planejando uma vingança; estava, na verdade, me libertando. Naquele momento, compreendi o que significava crescer: crescer é deixar para trás aqueles que não nos respeitam e confiar na nossa capacidade de recomeçar do zero, se preciso.
E eu estava pronta para isso. Chegando em casa, vi que Santos ainda estava no escritório, provavelmente fazendo alguma ligação ou mexendo no computador. Eu não disse nada; fui direto para a cozinha. Encanei a pia de inox, a tábua de corte de madeira, as facas penduradas numa barra magnética. Era hora de preparar o tal frango. Primeiro, eu o limparia com cuidado, retiraria qualquer pena remanescente, temperaria... O desconforto. O molho seria grosso e salgado, forte no paladar, algo impossível de ingerir sem notar que havia um desequilíbrio. Mas eles comeriam, pois a fome e a expectativa do banquete
e do poder que exercem sobre mim fariam com que tentassem engolir aquilo, mesmo com estranheza. Enquanto cortava o frango, senti um frio na barriga. Era nervosismo; eu estava fazendo algo arriscado, mas ao mesmo tempo meu peito se enchia de força. Nenhuma dessas pessoas me faria chorar mais uma vez. Ao terminar de limpar a carne, liguei o fogo, coloquei a panela no fogão, acrescentei óleo, cebola, alho. O cheiro da refoga começou a subir. Era irônico: aquele mesmo cheiro que tantas vezes me dera prazer em cozinhar agora me servia como arma. Mexi a panela, adicionei água, as
ervas da discórdia, deixei ferver. Agora era só aguardar. Logo eles chegariam e eu estaria pronta para minha saída triunfal. Olhei para a porta da cozinha, para o corredor, e senti que aquela casa já não era mais minha. Minha vida começaria em outro lugar, longe de Santos, de Cecília e de Rubi. Eu veria o sol nascer livre, podendo finalmente me dedicar ao meu sonho. Sorri, confiante, determinada. Já estava na hora de mostrar meu valor. O relógio marcava algo em torno de 10 para as 9 da manhã; eles chegariam a qualquer momento enquanto o frango... Cozinhava no
molho. Eu sentia a necessidade de dar o toque final ao meu plano. Não apenas a comida seria adulterada; havia também o fator psicológico. Eu queria que eles soubessem que eu não era mais a Gabi submissa. Não era apenas uma travessura infantil; era uma declaração de independência. Abri o armário e peguei um saleiro grande, do tipo que uso quando preciso de sal em quantidade maior. Derramei sobre o frango uma porção generosa, sabendo que isso tornaria quase impossível comer sem fazer caretas. Depois, peguei o pequeno saquinho com as ervas que Dona Zilda me vendera. Com cuidado, esmigalhei
as folhas secas entre os dedos, espalhando-as sobre o molho em fervura branda. O vapor subiu, trazendo um aroma estranho, um pouco amargo. Não era algo que alguém notaria de imediato, mas ao ingerir aquele caldo, certamente sentiriam o desconforto. Dona Zilda havia dito que uma pitada seria suficiente. Usei uma pitada um pouco mais do que o mínimo. Eu queria um efeito notável, não um desconforto leve demais. Mexi a panela, provei um tico do caldo na ponta da colher. Meu rosto se contraiu com o excesso de sal; era horrível, perfeito! Eles jamais esqueceriam esse sabor. Satisfeita, apaguei
o fogo e deixei a panela tampada, permitindo que o molho incorporasse bem o tempero e as ervas. Em seguida, subi as escadas até o quarto, peguei minha mala, que já estava quase pronta. Eu tinha planejado sair de casa de qualquer forma, mesmo antes desse incidente, mas não tão cedo. Só que agora eu não tinha mais nada a perder. Abri o guarda-roupa e retirei algumas roupas, meus documentos e alguns pertences pessoais. Deixaria para trás móveis, utensílios e lembranças ruins; não fazia questão de nada além da minha liberdade. Coloquei tudo na mala e fiquei olhando ao redor
o quarto onde dormi tantas noites, onde derramei tantas lágrimas silenciosas enquanto Santos roncava ao meu lado, sem jamais se importar com meus sentimentos. Eu não sentia saudade, não sentia apego; só a necessidade de me afastar. Peguei um bloco de notas e uma caneta, sentei na beira da cama e comecei a rascunhar o bilhete que deixaria para Santos. Queria algo impactante que deixasse claro que eu não era sua empregada, nem seu objeto, nenhum capacho. Agora você aprendeu que a vingança é um prato que se come frio. Aproveite o banquete! Escrevi essas linhas lentamente, desfrutando de cada
palavra, como um feitiço final. Finalize o bilhete, dobrei-o e deixei em cima do criado-mudo. Era o suficiente. Ouvi as vindas da sala principal; abrindo pelas janelas, dava para ver que o carro de Santos não estava mais ali. Provavelmente ele foi buscar a mãe e a amante no ponto de táxi ou algo assim. Desci as escadas com a mala na mão. A sala estava vazia, mas ouvi o som de risadas no corredor. Reconheci a voz estridente de Cecília, sempre teatral, se lamentando do calor ou de alguma outra coisa; a voz de Rubi, doce demais, como se
cada sílaba fosse envolta em açúcar; e Santos, com um tom de orgulho e arrogância, anunciando que o almoço estaria pronto em breve. Pare, cheguei na porta da cozinha. Cecília, uma senhora alta, magra, com cabelos cinzentos penteados em um coque apertado, entrou com Rubi, uma jovem de cabelos longos e escuros, corpo esbelto, vestindo um vestido vermelho vivo, maquiagem impecável. Ao vê-las, lembrei de um par de cobras deslizando pelo meu território. Rubi sorriu para mim, um sorriso falso, como se dissesse: "Fui eu que conquistei seu marido, e você não pode fazer nada." Mal sabia ela que, naquele
dia, eu não só podia, como faria algo. “Gabriela, minha querida, espero que seu frango ao molho esteja divino,” disse Cecília, a sogra. Sua voz tinha um tom de comando, não de pedido. “Sim, Gabriela, estou com uma fome! O dia será longo, muitos planos, não é, Santos?” disse Rubi, olhando para Santos com um ar de cumplicidade. Santos cruzou os braços e me olhou como se eu fosse um objeto que agora deveria confirmar sua eficiência. “Ela vai servir agora mesmo, Gabriela. Não vai deixá-las esperando, vai?” Eu respirei fundo, mantendo o sorriso mais inocente do mundo. Fechei a
cara por um segundo, mas logo retornei à expressão neutra. Queria deixar uma pequena aura de nervosismo, mas a aparência estava ótima, enganosa como um lobo em pele de cordeiro. Coloquei a travessa na mesa de jantar. Eles se sentaram. Cecília pegou o garfo e a faca, experimentou um pedaço de frango com ar de entendida. Rubi fez o mesmo. Enquanto Santos me olhava, esperando que eu servisse algo mais, entretanto, antes que eles tomassem o primeiro gole d'água, anunciei: “Espero que aproveitem! Foi feito com todo o meu carinho. Com licença, estou com um pouco de dor de cabeça.
Vou para descansar.” A desculpa da dor de cabeça soava conveniente; não queria estar presente quando as caretas começassem. Não queria ver a cena do desconforto físico. Deixaria que sentissem sozinhos a ardência no estômago, a transpiração repentina, mas antes de subir totalmente, parei no meio da escada e olhei para trás, observando-os. Santos já cortava um pedaço grande de frango, Rubi colocava um punhado de molho no prato, Cecília mordiscava a carne com um olhar desconfiado. Aquilo era delicioso! Satisfeita, entrei no quarto, peguei minha mala e me dirigi ao banheiro, trancando a porta. Pelo buraco da fechadura, poderia
ouvir alguma coisa. Minha intenção era esperar apenas alguns minutos, tempo suficiente para eles engolirem algumas garfadas. Depois, eu sairia pela porta dos fundos da casa, deixando apenas o bilhete no criado-mudo do quarto principal. Havia uma janela no banheiro para o quintal, e de lá eu podia planejar minha saída. Sentei, ouvindo primeiro as vozes de Santos e Rubi. “Está um pouco...”, Santos gritava meu nome do andar de baixo. Foi quando ouvi: “Gabriela! Que porcaria é essa? Está salgado demais!” A voz de Santos soava irritada. Sorri sozinha, abraçando minha mala. Respondi. Em seguida, ouvi uns murmúrios, um
som de talheres sendo colocados na mesa com força. Cecília reclamava que estava suando; Rubi dizia que o gosto era péssimo, que tinha algo estranho. Santos ficava mais irritado; a confusão estava armada. Era o momento de partir. Abri a janela do banheiro, passei a mala cuidadosamente. A caída não era grande, apenas 1 m até o jardim. Desci com cuidado e pisei na grama molhada pelo orvalho matutino. Meu coração batia rápido; a adrenalina corria nas minhas veias. Eu estava livre, finalmente. Atravessei o jardim, saí pelo portão lateral que não estava trancado. Antes de virar a esquina, olhei
uma última vez para a casa: podia ouvir vozes ao longe, gritos de raiva, choramingos. Não sentia pena; sentia alívio. Aquela sensação de leveza me envolveu. Eu era livre a partir de agora; minha vida era novamente sem humilhações, sem ordens, sem servidão. Eu sabia que precisaria me reorganizar, talvez procurar um lugar para ficar, contar com a ajuda de uma amiga, mas nada disso me assustava mais do que continuar vivendo naquele inferno. Que eles engolissem sua arrogância temperada com a vingança que deixei para trás. E assim, enquanto o sol subia no céu, me afastei daquele cenário de
desrespeito para sempre. Caminhei algumas quadras tentando me distanciar da casa. Logo encontrei um pequeno ponto de ônibus, sentei-me em um dos bancos de metal, a mala apoiada nos pés. Olhei para a rua movimentada, pessoas indo e vindo, carros, bicicletas, caminhões. Eu era apenas mais uma na multidão, e isso me trazia uma estranha sensação de segurança. Ninguém sabia o que eu acabara de fazer, ninguém poderia me julgar. Ali, era apenas mais uma mulher com uma mala, talvez indo para a rodoviária, talvez para a casa de uma amiga. Ninguém imaginava que há poucos minutos eu deixara para
trás uma prisão. Pensei no meu próximo passo. Eu tinha algumas amigas, mas uma em especial: Paula. Sempre me dissera: "Se um dia você precisar de ajuda, não hesite." Paula era colega do curso de administração que eu havia feito, trabalhava em um escritório contábil e morava sozinha em um pequeno apartamento no bairro vizinho. Se alguém me ofereceria um sofá para passar a noite, seria ela. Peguei o celular na bolsa e procurei o número. Não queria ir para a rodoviária imediatamente, pois não sabia bem para onde ir e talvez precisasse de alguns dias para me organizar. Disquei
o número; o telefone tocou algumas vezes antes de Paula atender. — Alô? — Paula, sou eu, a Gabriela. Tudo bem? — Gabi, quanto tempo! Estou no trabalho, mas posso falar. — O que houve? Sua voz está estranha. Respirei fundo, tentando manter a compostura, não queria chorar nem dramatizar. Conte expus a ela, de maneira resumida, o que acontecera naquela manhã: a proibição da minha viagem, a imposição do almoço, a presença da amante e da sogra, e minha decisão de abandonar tudo. Não entrei em detalhes sobre o tempero especial, mas deixei claro que estava indo embora de
casa. — Meu Deus, Gabriela! Você está bem? Onde você está agora? — Estou em um ponto de ônibus, preciso de um lugar para ficar, pelo menos por alguns dias, até eu me organizar. Posso ir para o seu apartamento? Paula não hesitou. — Claro que pode! Eu tenho uma chave extra. Vá até lá; se você chegar antes de mim, peça ao zelador para abrir. Vou ligar para ele agora e avisar. Hoje saio do trabalho cedo e a gente conversa, não se preocupe. Agradeci emocionada; era bom saber que não estava sozinha. Agradeci a Deus, ao universo, à
vida por me dar uma amiga assim. Desliguei o telefone e senti uma espécie de alívio: eu tinha para onde ir, não precisava vagar pela cidade sem rumo. Peguei o próximo ônibus que me levaria até o bairro de Paula. Enquanto o ônibus se deslocava pelas ruas, observei a paisagem urbana: prédios, lojas, pessoas apressadas. Pensei no quanto minha vida mudara em questão de horas. Pela manhã, eu era uma mulher subjugada, prestes a perder uma viagem importante por causa do machismo do marido. Agora eu era uma fugitiva do lar, mas uma fugitiva com liberdade. Não sabia o que
o futuro me reservava, mas sabia que não voltaria atrás. A viagem foi rápida. Desci em frente ao prédio de Paula, um edifício de aparência simples, com uns seis andares. O zelador, um senhor chamado Arnaldo, já estava me esperando na portaria. Ele me reconheceu da festa de aniversário de Paula há alguns anos. — Dona Gabriela! Entre, a dona Paula pediu que eu entregasse essa chave. É a chave do apartamento dela, número 203. Disse Arnaldo, com um sorriso acolhedor. Agradeci e subi as escadas, pois o elevador estava quebrado. O apartamento de Paula era pequeno, mas aconchegante: uma
sala com um sofá-cama, uma mesinha de centro, uma cozinha americana integrada, dois quartos, um dela e um pequeno escritório que ela usava às vezes. Deixei minha mala no canto da sala e me sentei no sofá. O silêncio do lugar me fez refletir sobre tudo o que acontecera. Afinal, o que eu ganhara com aquela vingança? Satisfação, sem dúvida. A certeza de que Santos, Cecília, e Rubi não sairiam impunes de seu abuso moral. Mas também um vazio: eu não tinha mais casa, não tinha mais certeza do meu caminho. Teria que recomeçar. Por outro lado, eu não estava
mais algemada; podia fazer meu próprio destino. Agora, decidi que precisava retomar meu plano de crescimento profissional. Aquela viagem para o congresso em São Paulo era importante. Por que não ir? Santos não me queria lá, mas agora eu era livre. Precisava rever se ainda podia pegar o ônibus, se eu ainda tinha o bilhete ou se poderia comprar outro. Talvez, porém, eu devesse esperar um pouco, colocar minha vida em ordem primeiro, conseguir um novo emprego. Minha mente fervilhava de ideias, mas eu sabia que, seja lá o que eu escolhesse, seria por minha conta e risco, sem ninguém
me impedindo. Fiquei. Ali, pensando e olhando pela janela, era quase meio-dia quando ouvi o barulho da chave girando na fechadura. Paula entrou carregando uma bolsa e alguns papéis. Ao me ver, largou tudo e correu para me abraçar. "Gabi, meu Deus! Que situação! Você está bem, minha amiga?" Chorei um pouco no ombro dela, não de tristeza, mas de alívio. Conta a história com mais detalhes, omitindo apenas a parte das ervas; eu não queria que Paula me julgasse mal. Disse apenas que coloquei sal em excesso e estraguei o almoço de propósito, deixando um bilhete antes de ir
embora. Paula me ouviu atenciosamente, sem me interromper, apenas acariciando meus cabelos. "Você fez bem. Não podia continuar naquela situação. O Santos é um babaca, e sua sogra e essa amante são duas canalhas. Você merece coisa melhor, Gabi. Aqui em casa você pode ficar o tempo que precisar." Agradeci, secando as lágrimas, e perguntei sobre os sofás da cama. "Posso dormir aqui?" "Claro! Mas se quiser, pode usar o quarto de hóspedes. Eu tenho um colchonete muito bom, mais confortável do que o sofá." "Obrigada, Paula! Você não sabe como isso significa muito para mim." Passamos o resto do
dia conversando. Paula me incentivou a retomar a ideia do restaurante, a tentar um empréstimo bancário ou a conversar com investidores. Disse que me apresentaria um amigo dela que trabalhava em um banco e poderia aconselhar sobre linhas de crédito. Senti um sopro de esperança; minha vida não tinha acabado, pelo contrário, estava só começando. A noite chegou e, enquanto cozinhávamos algo simples para o jantar — massa com molho de tomates frescos e manjericão —, pensei na ironia de estar novamente no fogão, mas agora cozinhando por prazer entre amigas e não sob coerção. O cheiro do molho de
tomate me trouxe lembranças de minha mãe, Marta. Como eu queria que ela estivesse viva para ver minha libertação! Talvez, de algum lugar, ela estivesse me observando com orgulho. Após o jantar, tomei um banho quente, vesti roupas confortáveis e me deitei no colchão no pequeno quarto de hóspedes. Paula foi assistir televisão na sala, respeitando meu espaço. A noite estava silenciosa, apenas com o som distante do trânsito. Fechei os olhos e tentei dormir; minha mente, porém, ainda não estava pronta para o descanso. Visualizei a expressão de Santos ao provar o frango salgado. Imaginei Cecília suando frio, com
dor de barriga, correndo para o banheiro, Rubi desesperada, procurando água para tirar o gosto horrível da boca. O trio perfeito da arrogância, tendo uma lição merecida: uma pena, sem violência grave, apenas um lembrete de que eu não era uma marionete. Sorri no escuro. A vingança estava feita e agora meu futuro me pertencia. Fechei os olhos e me permiti descansar, finalmente livre. Acordei no dia seguinte com a luz do sol entrando pela fresta da janela. Paula já havia saído para o trabalho, mas deixara um bilhete na mesa da cozinha: "Fique à vontade, Gabi! Tem frutas, pão
e café. Qualquer coisa, me ligue." Senti-me acolhida. Tomei um banho, vesti uma roupa simples e preparei um café da manhã leve. Enquanto saboreava o pão com manteiga, tentei pensar no que faria a seguir. Eu tinha algum dinheiro guardado; não muito, mas o suficiente para me manter por algumas semanas enquanto procurava oportunidades. Ainda não sabia se tentaria ir ao congresso de gastronomia, mas aquilo parecia mais distante agora. Talvez eu pudesse procurar um emprego em um restaurante mais sofisticado e, aos poucos, construir capital para abrir o meu próprio. A ideia de ter meu restaurante ainda ardia dentro
de mim; esse sempre fora meu sonho. Após o café, liguei o celular e vi algumas mensagens. Havia ligações perdidas de Santos, o que me fez rir sozinha. Ele devia estar furioso. Não respondi, claro. Várias mensagens, algumas agressivas, outras implorando para eu voltar; isso só provava o desespero dele. Senti também de conhecidos, pois Santos estava espalhando mentiras; eu não estava preocupada com ninguém. Eu poderia começar a procurar um espaço para alugar ou, ao menos, estudar a possibilidade, mas sem pressa. Precisava de coragem para sair daquela casa. Agora, precisava de calma para organizar minha vida. Assim, passei
a manhã arrumando minhas coisas, separei documentos, organizei minhas roupas em gavetas vazias que Paula me cedeu e li alguns cadernos de receitas que trouxe comigo. Eram cadernos antigos, com anotações da minha mãe: receitas de pães caseiros, molhos, temperos, doces; cada página era uma memória. Suspirei emocionada ao reler a letra dela, meio tremida nos últimos anos de vida, mas sempre carinhosa nas observações: "acrescentar mais açúcar se estiver amargo; servir com um sorriso, o prato fica melhor com um elogio à pessoa que vai comê-lo." Aquele era o tipo de ensinamento que minha mãe me transmitira: culinária como
um ato de amor, não como um instrumento de dor. Ontem eu tinha usado a comida como forma de vingança, algo que ela provavelmente não aprovaria, mas eu precisava disso para me libertar. Agora, daqui para frente, eu queria voltar a fazer da culinária um gesto de carinho e arte, não de revanche. Mais tarde, peguei meu celular e decidi ligar para a rodoviária. Ainda faltava um dia para a viagem que eu havia programado antes de toda essa confusão com a esposa de Santos ou algo assim. Agora eu ia como Gabi, empreendedora independente. Ao desligar o telefone, me
senti animada; iria ao congresso, conhecer pessoas, apresentar minhas ideias, quem sabe conseguir um sócio investidor. Pensei no que vestir, quais materiais levar e se seria necessário imprimir mais cartões de visita. Eu tinha alguns guardados; esse seria meu primeiro passo como mulher livre, seguindo meu próprio caminho. Paula voltou à tardinha, cansada do trabalho, mas feliz em me ver motivada. Conversamos sobre o congresso; ela me incentivou a ir e disse que tudo o que eu precisava era ter confiança. À noite, fomos a um barzinho próximo. Pedi uma cerveja gelada e brindamos à minha liberdade. Paula me contou
fofocas do trabalho e eu ri. Sentindo-me humana novamente, não uma criada submissa, no entanto, a paz não duraria muito. Ao voltar para casa, já à noite, encontrei no meu celular uma mensagem de áudio de Cecília, a sogra maldita. O número era dos Santos, mas a voz era dela, estridente, reclamando: "Gabriela, você está pensando o quê? Nós passamos mal, precisamos de um médico! Você nos envenenou! Isso é um crime, sua vagabunda! Volte aqui agora, senão eu chamo a polícia!" Apaguei a mensagem imediatamente, sem responder à ameaça. Era vazia; eu não havia envenenado ninguém, apenas salgado demais
e usado ervas laxantes. Difícil provar que foi intencional, a não ser que assumissem que me obrigaram a cozinhar e me humilharam. Eles não teriam coragem de levar isso adiante, sabia disso. Além do mais, se quisessem denunciar, o fariam. Eu não tinha medo; talvez fosse até uma libertação completa eu denunciar o abuso moral, a traição, a coação. Eles não iam querer publicidade negativa; eram covardes. Desconectei o celular para não mais ouvir ameaças, disse a Paula que estava tudo bem. Ela se preocupou um pouco, mas confiei que Cecília e Santos não fariam nada de concreto; não tinham
provas e não queriam escândalo. No máximo, tentariam me amedrontar. Antes de dormir, arrumei minha bolsa com o material do congresso: um caderno de anotações, canetas, cartões. Eu queria causar uma boa impressão. Minha ideia era simples: um restaurante de comida caseira com ingredientes frescos, conceito sustentável, valorização de produtores locais, ambiente acolhedor. Era uma extensão do que minha mãe havia me ensinado e, agora, sem Santos para diminuir meus sonhos, eu poderia voar. Deitei na cama e dormi tranquilamente. Acordei bem cedo, antes do sol nascer, tomei um banho rápido, vesti uma roupa social simples e confortável: calça de
alfaiataria, camisa de algodão, um blazer leve, tênis ao invés de salto, pois eu valorizava o conforto. Dei um beijo na testa de Paula, que ainda dormia, e deixei um bilhete agradecendo por tudo. Saí com a mala e a bolsa rumo à rodoviária. Peguei um táxi na rua. O motorista, um senhor de cabelos brancos, me cumprimentou com educação. Olhei para a cidade acordando, as luzes dos postes ainda acesas, o céu clareando aos poucos. Me senti grata por estar viva, livre, correndo atrás dos meus sonhos. Cheguei à rodoviária, comprei um café forte e um pão de queijo,
esperei o ônibus encostar na plataforma, entrei no ônibus e me acomodei na poltrona. Fechei os olhos por um instante, ouvindo o ronronar do motor. Minha mente voltou à cena do dia anterior: o frango salgado, a expressão de desprezo no rosto de Santos, a arrogância de Cecília e a falsidade de Rubi. Foi tudo ontem, mas parecia uma vida atrás. Agora eu estava longe, em outra direção. Não sabia o que me aguardava em São Paulo, mas tinha a sensação de que, ao menos, eu estava no caminho certo. O ônibus partiu e, com ele, uma parte do meu
passado ficava para trás. A vingança já tinha sido servida; agora era hora de saborear minha liberdade. A viagem até São Paulo durou cerca de 8 horas. Era um trajeto relativamente longo, mas tranquilo. Fui ouvindo música, olhando pela janela as cidades passarem, os campos, as rodovias. Tive tempo para refletir sobre meu futuro. O congresso de gastronomia empresarial seria um evento de três dias, repleto de palestras, workshops, degustações. Seria uma oportunidade de apresentar meu projeto a outros profissionais, quem sabe encontrar um investidor. Chegando à rodoviária do Tietê em São Paulo, notei a diferença de ritmo da cidade.
Tudo era mais rápido, mais intenso. Peguei um táxi até a pousada onde eu ficaria hospedada. Era uma pousada simples, mas limpa e organizada. O quarto tinha uma cama confortável, um armário e uma pequena escrivaninha, perfeito para descansar e me preparar para o evento no dia seguinte. Segui para o centro de convenções onde o congresso aconteceria, vestida com meu melhor sorriso e minha apresentação na pasta. Me inscrevi para as palestras, participei de uma oficina sobre marketing para restaurantes e conversei com pessoas de diferentes áreas: chefs, sommeliers, proprietários de bistrôs, gerentes de hotéis. Todos pareciam compartilhar um
amor genuíno pela boa comida e pelos negócios bem conduzidos. Me senti no lugar certo. Durante o almoço, servi-me em um buffet variado com saladas, carnes, massas. A conversa fluía nas mesas compartilhadas. Contrei um pouco da minha história para uma chefe de cozinha vinda do Rio de Janeiro, omitindo a parte da vingança, claro. Concentrei-me em dizer que eu estava me libertando de um casamento ruim e que, agora, buscava realizar meu sonho. Ela me encorajou, dizendo que o mercado gastronômico valorizava ideias autênticas e que haveria espaço para mim, desde que eu fosse persistente. Mais tarde, enquanto circulava
pelos estandes, notei um empresário de aparência séria, mas sorriso simpático, conversando com dois jovens. Eles apresentavam um projeto de food truck e o empresário dava dicas sobre onde estacionar, como abordar clientes. Tive a sensação de que aquele homem era um investidor experiente. Respirei fundo e, quando os jovens saíram, aproximei-me: "Boa tarde, desculpe interromper. Meu nome é Gabriela e tenho um projeto de restaurante focado em culinária caseira e sustentável. Posso lhe apresentar minha ideia se tiver um minuto?" Ele me olhou de cima a baixo, avaliando, mas não de forma arrogante. Estendeu a mão: "Prazer, sou o
senhor Alberto Fernandes. Tenho interesse em novos empreendimentos na área. Pode falar." Apresentei meu conceito: um restaurante pequeno com cardápio sazonal, priorizando ingredientes locais e orgânicos, ambiente familiar, cursos de culinária abertos à comunidade, valorização da história por trás de cada prato. O senhor Alberto pareceu genuinamente interessado, fazendo perguntas sobre custos, público-alvo, localização. Respondi com calma, tentando transmitir segurança. Ao final, ele disse: "Gostei da sua proposta. Vou analisar melhor. Deixe-me seu contato, quem sabe possamos marcar uma reunião mais detalhada após o congresso." Meus olhos brilharam, troquei cartões com ele e agradeci pela atenção. Aquilo já era um
grande passo. Voltei para a pousada naquela noite. Noite. Sentindo-me, eu havia saído de um casamento opressor e, em poucos dias, encontrava-me apresentando meu sonho a um possível investidor. A vida parecia estar finalmente tomando o rumo que eu sempre quis. No entanto, à noite, após o jantar, quando estava descansando na cama do quarto da pousada, vi que tinha uma mensagem no celular. Era de um número desconhecido. A curiosidade me fez ouvir: era Rubi. A voz dela, suave mas claramente irritada, dizia: “Gabriela, eu não sei o que você pensa que fez, mas aquilo foi inacreditável. Você nos
humilhou na frente da senhora Cecília. Ela passou mal o dia inteiro, acusando Santos de ter estragado a refeição. Foi um caos total na casa. Santos está fora de si. Você acha que isso acabou? Ele prometeu ir atrás de você. Cuidado.” Desliguei a mensagem e revirei os olhos. Eu estava a quilômetros de distância, num hotel em São Paulo. O que Santos poderia fazer? Além disso, eu não temia mais suas ameaças. Se ele tentasse algo, eu chamaria a polícia. Ele não tinha nenhum poder sobre mim agora, principalmente após o que ocorreu. Ainda assim, a ameaça me incomodava
um pouco. Saber que Santos estava furioso e considerando ir atrás de mim gerava certa tensão, mas não permitiria que isso estragasse meu momento. No dia seguinte, continuei no congresso. Assistia a palestras sobre gestão de equipes, branding, planejamento de cardápios. Cada conteúdo reforçava minha convicção de que eu poderia, sim, ter meu restaurante. Ao final do segundo dia, encontrei o senhor Alberto novamente. Ele estava acompanhado de uma mulher elegante, a senora Helena, sua sócia. Entrei e aproveitei para reafirmar meu interesse. Helena me olhou com gentileza e disse: “Gabriela, o senhor Alberto me contou sobre sua ideia. Parece
muito interessante. Eu estou sempre em busca de novos talentos e abordagens diferenciadas. Poderia nos enviar por e-mail uma apresentação mais detalhada, com projeções financeiras e de público?” “Claro, tenho tudo isso preparado. Mando hoje mesmo." Combineri de enviar o material, trocamos e-mails. Senti um frio na barriga; era minha chance. Eu tinha a sensação de que, se tudo corresse bem, poderia encontrar neles os parceiros ideais para tornar meu sonho realidade. Passei a noite preparando um arquivo PDF bem organizado com o plano de negócios, fotos ilustrativas de como imaginava o ambiente, até um protótipo de cardápio. Quando terminei,
já era madrugada, mas enviei assim mesmo. Acordei com uma resposta cordial: “Recebemos seu material, vamos analisar com carinho e entraremos em contato.” Meu coração deu um salto. Independente do resultado, eu sentia que estava no caminho certo. Após o terceiro e último dia do congresso, peguei minhas coisas e voltei para Belo Horizonte. Não queria abusar da hospitalidade de Paula, mas ela mesma me disse que eu poderia ficar o tempo que quisesse. Agradeci. Agora, precisava pensar no meu próximo passo. Talvez já começasse a procurar um ponto comercial para o restaurante, caso Alberto e Helena se interessassem de
fato, ou, se não desse certo com eles, procurar outro investidor. Não desistiria fácil. Durante a viagem de volta no ônibus, pensei novamente em Santos, Cecília e Rubi. Será que ainda estavam com raiva? Provavelmente. Porém, agora isso era irrelevante. Minha vida não gravitava mais ao redor deles. Eu era um satélite livre para orbitar onde quisesse. Cheguei à casa de Paula. À noite, ela me recebeu com um sorriso e perguntou como foi o congresso. Conte tudo. Radiante, brindamos com uma taça de vinho, celebrando minhas conquistas e minha coragem de ter partido. Paula elogiou minha atitude: “Gabi, você
é um exemplo. Muita gente se submete a relacionamentos tóxicos por medo. Você não só saiu, como saiu com estilo, deixando claro que não seria humilhada.” Ri do comentário. Um dia, quando tudo estivesse mais estável, talvez eu contasse a ela sobre a erva laxante, por hora deixaria esse detalhe apenas na minha memória. O importante era o presente e o futuro. Quando me deitei para dormir, senti uma paz profunda. Eu não estava mais presa, não vivia mais com medo da ira de Santos ou das ofensas de Cecília. Não precisava mais aturar a hipocrisia de Rubi. Eu era
Gabriela, filha de Marta, aprendiz da vida, cozinheira em busca do meu próprio restaurante, dona do meu destino. Os dias seguintes foram dedicados a pesquisas e planejamento. Eu sentava-me à mesa da sala de Paula com meu laptop, pesquisando pontos comerciais para alugar, fornecedores locais, estudos de viabilidade. Mantinha contato por e-mail com o senhor Alberto e a senora Helena, que haviam prometido avaliar meu projeto. Não queria ser insistente, mas mandei uma mensagem educada, após alguns dias, perguntando se precisavam de algo mais. A resposta veio rápida: eles estavam gostando da proposta, mas precisavam discutir internamente. Isso era um
bom sinal. Enquanto isso, eu continuava procurando outras opções, já que não dependia exclusivamente deles. Conversei com Paula sobre minhas ideias. Ela sugeriu falar com um amigo que trabalhava no banco para ver possibilidades de financiamento. Achei uma boa ideia. Certa manhã, enquanto eu organizava meus arquivos no laptop, meu celular tocou. O número do chamador me pareceu familiar; era o número antigo da casa onde eu morava com Santos. Atendi com o coração acelerado, mas tentando manter a calma. “Alô, Gabriela, precisamos conversar.” Era a voz de Santos, seca, imperativa. Senti uma onda de indignação. Ele realmente achava que
poderia continuar me dando ordens? Por outro lado, uma parte de mim queria ver até onde ele iria. Respondi com frieza: “Não temos mais nada para conversar. Acabou. Eu não vou voltar.” “Você acha que pode simplesmente sair assim e nos humilhar? O que você fez foi inaceitável, o frango estava intragável, minha mãe e Rubi passaram mal. Você fez isso de propósito!” Eu sorri diante da obviedade da pergunta, mas não deixaria a confissão escapar. “Eu servi o que vocês pediram. Se não gostaram, paciência. E sim, eu fui embora porque não aceito mais ser tratada como empregada submissa.
Você me ameaçou, desrespeitou meu trabalho. Minha viagem? Agora lide com as consequências.” Consequências. Ele bufou do outro lado da linha; dava para imaginar sua face vermelha de raiva. Tentou parecer ameaçador: "Volte agora, Gabriela, ou eu juro que te farei se arrepender. Tenho fotos suas, vou espalhar coisas sobre você, dizer que me roubou dinheiro. Você não sabe com quem está lidando!" Revirei os olhos; era patético. Ele não tinha nada contra mim. Nunca roubei dinheiro, não havia fotos comprometedoras; ele estava blefando, tentando me assustar. Respirei fundo e respondi calmamente: "Santos, você já perdeu. Não tenho medo das
suas ameaças. Pode fazer o que quiser. Lembre-se que eu também posso denunciá-lo por coação, por abuso psicológico. Não sei se você quer esse tipo de exposição. Além do mais, a Senhora Cecília não vai querer um escândalo, não é?" Houve um silêncio do outro lado; ele provavelmente estava analisando minha resposta. Não era tão fácil me chantagear. Por fim, ele disse: "Isso não vai ficar assim," e desligou. Fiquei olhando para o celular, sem saber se ria ou se me irritava. Escolhi rir; era um homem covarde que se alimentava do medo que causava. Agora, sem medo, ele não
tinha poder sobre mim. Contei a Paula sobre a ligação. Ela ficou indignada, disse que, se ele insistisse, era melhor eu registrar um boletim de ocorrência. Concordei; por enquanto, ele só estava blefando, mas, se insistisse, eu tomaria providências legais. No dia seguinte, recebi um e-mail do Sr. Alberto. Ele e a senhora Helena queriam uma reunião presencial. Poderíamos marcar um encontro na semana seguinte em um café para conversar pessoalmente sobre o projeto; era um passo gigantesco. Confirmei imediatamente, sugerindo horários. Passei o restante da semana preparando tudo para a reunião: refinei meus números, preparei uma apresentação em PowerPoint,
selecionei possíveis locais para o restaurante, calculei custos de reforma, equipe inicial, fornecedores. Pensei no cardápio piloto; pratos simples, mas marcantes: frango ao molho, por exemplo, mas, desta vez, feito com amor e equilíbrio, não com ira e vingança. Imaginei minha mãe sorrindo. Chegou o dia da reunião; vesti-me elegantemente, mas sem exageros: uma saia lápis preta, uma blusa clara, brincos discretos. Fui ao café combinado; cheguei 10 minutos mais cedo. O Senhor Alberto e a Senhora Helena chegaram pontualmente, cumprimentaram-me com sorrisos. Pedi um café para todos. Eles começaram elogiando minha apresentação, dizendo que era coerente e mostrava um
bom entendimento do mercado. A senhora Helena perguntou sobre meu envolvimento pessoal com a cozinha; contei da minha mãe, da minha experiência em restaurantes, do curso de administração. O Senhor Alberto gostou de saber que eu tinha certa vivência prática, não era apenas teoria. Então, eles propuseram algo: queriam investir, mas não todo o valor. Sugeriram uma sociedade onde eu entraria com parte do capital, que poderia ser financiado, e eles com outra parte. Teríamos um contrato detalhado, metas de lucro, prazos para retorno. Eu achei a proposta justa; não era um conto de fadas, mas um negócio real, com
riscos e benefícios compartilhados. Combinamos de eu enviar mais informações, cotações de aluguel de um ponto específico que eu estava namorando. Se tudo desse certo, fecharíamos o acordo em breve. Sai do café radiante, com vontade de pular de alegria. Paula mal acreditou quando contei; abraçamos, rindo e chorando ao mesmo tempo. Nos dias seguintes, enviei mais documentos, fiz visitas a dois pontos comerciais e conversei com proprietários. Um dos locais ficava em um bairro boêmio da cidade, cheio de bares e restaurantes, mas com uma pegada mais tranquila. A casa tinha uma varanda charmosa, ideal para meu conceito de
comida caseira em um ambiente acolhedor. Durante esse processo, minha cabeça raramente voltava a Santos e à vingança; era passado. A última vez que pensei nisso foi quando, ao entrar numa loja de utensílios de cozinha, vi uma panela semelhante à que usei para preparar o frango salgado. Sorri sozinha, lembrando do bilhete que deixei: a vingança era um prato que se come frio. Eles entenderam o recado. Uma noite, ao chegar ao apartamento de Paula, encontrei-a animada. Ela havia conversado com um conhecido, um advogado que poderia me ajudar a formalizar o contrato da sociedade. Tudo estava conspirando a
favor. Senti-me grata à vida, ao universo, à minha mãe. Mesmo diante da dor e da humilhação, eu soube encontrar o meu caminho. E Santos mandou mais uma mensagem ameaçadora, dizendo que eu me arrependeria. Deixei-o no vácuo; palavras vazias. Se ele insistisse, eu trataria com a lei. Agora, eu tinha um propósito maior. Com um caderno na mão, comecei a desenhar o logotipo do meu futuro restaurante: algo simples. Talvez o nome "Marta's", em homenagem à minha mãe, ou "Raízes Caseiras". Ainda não tinha decidido, mas gostava da ideia de homenagear minha mãe. Era por ela que eu tinha
amor à culinária, era por ela que eu sabia o valor do respeito. Passei o lápis no papel, imaginando o letreiro na fachada. Respirei fundo, absorvendo a felicidade do momento. Aquela semente que minha mãe plantou em mim anos atrás agora brotava num solo fértil, livre das ervas daninhas do desrespeito. A formalização do negócio levou algumas semanas. Nesse tempo, acertei detalhes com o Senhor Alberto e a Senhora Helena. Eles gostaram do ponto que sugeri; o proprietário do imóvel estava disposto a fazer um contrato de aluguel de longo prazo, o que nos dava segurança. Eu entraria com uma
quantia menor, obtida através de um empréstimo bancário orientado pelo amigo da Paula, enquanto os investidores colocariam uma quantia maior, mas exigiriam uma participação nos lucros. Era um acordo justo; eu teria autonomia para a parte culinária, a seleção do cardápio e a gestão do dia a dia, enquanto eles contribuiriam com a experiência em negócios e o aporte financeiro. O nome do restaurante seria "Sabores da Marta", em homenagem à minha mãe: um nome simples, mas cheio de significado. Ao escolher o nome, lembrei-me das palavras dela: "A comida é uma forma de amor." Sim, e eu serviria amor
ali todos os dias, com o contrato assinado e as chaves. Do imóvel em mãos, começou a fase de reformas. Era uma casa antiga, precisando de uma pintura, modernização da cozinha, adequação de instalações elétricas e hidráulicas. Contratei um arquiteto indicado por Helena, e juntos definimos um ambiente rústico e aconchegante, com mesas de madeira, luminárias de vidro colorido, toalhas floridas e um balcão aberto para a cozinha, de modo que os clientes pudessem ver a preparação dos pratos. Enquanto as obras avançavam, comecei a selecionar fornecedores. Queria produtores locais de frutas e legumes, queijo de fazendas próximas, pães artesanais
de padarias da vizinhança. A cada encontro com fornecedores, eu sentia a satisfação de estar construindo algo meu, algo verdadeiro. Ao mesmo tempo, Paula continuava sendo minha base de apoio; nós nos tornamos uma espécie de família improvisada. Ela adorava perguntar como estavam as obras, as contratações, o cardápio. À noite, assistíamos a filmes antigos, ríamos de propósito. Senti um calafrio, mas ri. Foi meu último antes de partir. Eu pensando: "Você quer fazer cozinhar um instrumento de revanche." Não julgo, entendo o contexto. Mas agora você está usando a culinária para criar, construir algo. É como se tivesse reencontrado
seu verdadeiro eu, sem precisar pisar em ninguém. Suas palavras me emocionaram; era verdade, eu havia usado a cozinha como arma, mas aquilo foi um ponto final em um ciclo de abusos. Agora, inaugurava um ciclo novo, onde a comida seria novamente amor, partilha, respeito. Você tem razão, Paula, acho que precisava fechar um ciclo para abrir outro. Agora vou cozinhar para alimentar, não para punir. Ela sorriu, levantando a taça de vinho em um brinde silencioso. As semanas passaram. A reforma dos Sabores da Marta seguiu o cronograma. Contratei dois cozinheiros auxiliares, um ajudante de limpeza, uma garçonete e
um garçom. Entrevista pessoas que se alinhavam com o conceito do restaurante, que entendiam que ali eu servia mais do que comida; eu servia uma experiência afetiva. Treinei-os com paciência, ensinando receitas e falando sobre a importância da apresentação e do atendimento cordial. No dia da inauguração, estava nervosa. O Senhor Alberto e a Senhora Helena estariam presentes, além de alguns amigos, inclusive Paula, que me apoiou desde o início. Eu havia divulgado o restaurante nas redes sociais, contado a história da inspiração na minha mãe, feito algumas fotos do ambiente. Não esperava uma multidão, mas sim um público interessado
em comida de qualidade e alma. Ao abrir as portas, o cheiro de temperos, ervas frescas e pão saindo do forno encheu o salão. Clientes começaram a chegar, curiosos; alguns, vizinhos, outros atraídos pelas redes sociais. Eu estava na cozinha, preparando uma das entradas, um creme de abóbora com especiarias servido com torradas de pão integral, quando o primeiro pedido saiu. Senti uma adrenalina gostosa. Era real, era meu restaurante. Paula entrou na cozinha sorrindo, segurando o celular; tinha lágrimas nos olhos. "Gabi, o lugar está cheio! As pessoas adoram a decoração. Estão dizendo que o cheiro está maravilhoso! Você
conseguiu!" Senti um nó na garganta, agradeci e voltei a me concentrar nos pratos. O jantar prosseguiu sem problemas. Recebi elogios, abraços. A garçonete retornava com sorrisos no rosto, dizendo que os clientes estavam encantados. Ao final da noite, quando fechei as portas, sentei-me em uma das mesas vazias, exausta, mas feliz. Paula, Alberto e Helena sentaram comigo. "Parabéns, Gabriela! Foi uma noite incrível", disse Helena, tocando minha mão. "Os clientes elogiaram bastante a comida e o ambiente. Você começou com o pé direito", disse Alberto. Agradeci, emocionada; a vontade era de chorar de felicidade. Paula me abraçou, sussurrando: "Você
merece. Nunca duvide da sua força." Àquela altura, Santos, Cecília e Rubi pertenciam a um passado distante. Eu não esperava notícias deles, não sentia mais raiva, apenas indiferença. O que importa agora é meu presente e meu futuro. Aprendi que a liberdade não tem preço; pagamos com coragem, às vezes com lágrimas, mas vale a pena. Nos meses seguintes, os Sabores da Marta consolidou-se. Clientes fiéis apareciam toda a semana, elogiando o tempero caseiro, o aconchego, o sorriso da equipe. Eu me sentia plena fazendo o que amava, honrando a memória da minha mãe e escrevendo minha própria história. Certa
tarde, enquanto cortava legumes na cozinha, lembrei-me da frase final que deixei no bilhete para Santos: "Agora você aprendeu que a vingança é um prato que se come frio." Naquele momento, eu não precisava mais de vingança; apenas de viver minha vida em paz. A vingança era um capítulo que me libertou, mas a vida verdadeira estava nos capítulos que escrevia agora, com amor, tempero e respeito. Depois de alguns meses de funcionamento do restaurante, eu estava tão envolvida no trabalho que raramente pensava no passado. Vivia ocupada, planejando novos pratos, organizando eventos temáticos, estabelecendo parcerias com produtores locais. A
vida fluía em um ritmo gostoso; apesar do cansaço do empreendedorismo, o sucesso dos Sabores da Marta era modesto, porém crescente, e isso me enchia de orgulho. Certa manhã, ao checar minhas redes sociais, deparei-me com uma mensagem privada no Instagram. Era de um perfil estranho, sem foto; provavelmente um fake. A mensagem dizia: "Quero falar com você, é importante." Eu quase ignorei, mas a curiosidade me fez perguntar: "Quem é?" A resposta veio rápida: "Sou Rubi. Preciso te contar algo sobre Santos." Meu coração acelerou. "Rubi, o que essa mulher queria agora?" Havia meses que não ouvia falar deles.
Pensei em ignorar; minha vida estava ótima, sem aquela negatividade, mas uma parte de mim pensou: "Por que ela está me procurando? Ela sabe que não temos mais nada em comum." Decidi ouvir. "Por que eu deveria te ouvir?" Rubi escreveu de volta: "Porque Santos perdeu o emprego, endividado, brigou com a Senhora Cecília e fala em se vingar de você. Preciso avisar." Suspirei fundo, sentindo uma pontada de ansiedade. Eu estava feliz; não queria esse fantasma do passado assombrando minha vida, mas ao mesmo tempo não podia ignorar. Se ele realmente estivesse ameaçando, seria prudente ficar alerta. Mandei outra
mensagem: "Diga o que quiser, mas seja breve." Rubi contou que, após... Minha partida e aquele almoço desastroso: a relação entre Santos e Cecília ficou estremecida. Cecília culpou Santos por ter deixado a situação chegar a esse ponto, dizendo que ele havia humilhado a esposa (no caso, eu) a ponto de provocar uma atitude tão extrema. Ruby também se voltou contra Santos, dizendo que não queria ser vista como cúmplice de maus-tratos. A casa se tornou um campo de batalha de acusações. Além disso, Santos perdeu o emprego devido a mudanças na empresa. Sem mim para administrar as finanças domésticas,
as contas se acumularam. A senhora Cecília, cansada, voltou para a casa de uma irmã no interior, deixando Santos sem apoio. Ruby rompeu o caso extraconjugal, dizendo que não queria um homem falido e encrencado. Ou seja, ele estava sozinho, afundando em dívidas e rancor. Ele culpa você por tudo, escreveu Ruby, está obcecado, dizendo que você o envenenou, que destruiu a vida dele, que vai fazer você pagar. Eu acho que ele está desequilibrado, por isso estou avisando. Relendo a mensagem, senti pena e também uma espinha. Santos está colhendo o que plantou. A ideia de um homem rancoroso
e desesperado atrás de mim não era algo a que eu precisasse me expor. Agradeci a Ruby pela informação, apesar de não confiar nela totalmente. Não sabia se ela tinha segundas intenções; era melhor ficar de sobreaviso. Desliguei o celular e contei a Paula sobre a mensagem. Ela me aconselhou a ir à delegacia e registrar um boletim de ocorrência, só para ter algo documentado, caso Santos aparecesse. Concordei. Fui no dia seguinte, contei minha história à policial que me atendeu; ela orientou a manter distância, registrar tudo e, se Santos aparecesse, chamar a polícia. Voltei ao restaurante com uma
sensação incômoda; não queria aquela sombra rondando meu presente, mas não deixei isso me paralisar. Continuei minha rotina normalmente. Contratei mais um cozinheiro, aumentei o cardápio e organizei uma noite de degustação de vinhos. O restaurante prosperava e eu me recusava a viver com medo. Algumas semanas depois, ao fechar os Sabores da Marta à noite, notei um carro parado do outro lado da rua, com faróis apagados. Tive um mau pressentimento e pedi ao garçom João que me acompanhasse até o ponto de táxi. Ele estranhou, mas aceitou. Enquanto andávamos, o carro seguiu lentamente. Quando entrei no táxi, o
carro partiu em outra direção. Seria Santos? Talvez fosse só minha paranoia, mas me mantive alerta. Avisei Paula sobre o ocorrido; ela pediu que eu pernoitasse no restaurante, mas isso não fazia sentido. Eu tinha um lar agora, e com o sucesso do restaurante já havia alugado meu próprio apartamento. Embora Paula e eu continuássemos amigas próximas, decidi instalar câmeras de segurança no restaurante e contratar um porteiro noturno, só por precaução. A última coisa que queria era dar chance ao acaso. A vida seguiu. Os Sabores da Marta tornou-se um ponto de referência na vizinhança; clientes elogiavam a comida,
o atendimento e o ambiente. Recebíamos críticas positivas em blogs gastronômicos, o retorno financeiro começava a surgir, e eu conseguia pagar meu empréstimo com disciplina. Alberto e Helena estavam satisfeitos e até sugeriram uma expansão futura, o que me deixou entusiasmada. Certa noite, ao fechar o restaurante novamente, tomei cuidado ao sair. Desta vez, estava sozinha. Avistei o mesmo carro parado mais adiante. Quando me aproximei, a porta se abriu e Santos saiu. O coração disparou, mas mantive a calma; ele parecia abatido, mais magro, a barba por fazer, roupas amarrotadas. Mesmo assim, seus olhos brilhavam de raiva. Fiquei parada,
mantendo distância. — O que você quer, Santos? — perguntei, com a voz firme, mas não agressiva. Ele caminhou em minha direção, parando a alguns metros. O sorriso que surgiu em seu rosto era amargo. — Você acabou com a minha vida, Gabriela. Tenho dívidas, ninguém me ajuda. Ruby me largou, minha mãe não quer saber de mim... Tudo por sua culpa! — Minha culpa? Você me humilhou, me proibiu de trabalhar, me tratou como lixo. Eu apenas me libertei. — Você destruiu sua própria vida com sua arrogância e falta de respeito. Não sou sua babá, não sou responsável
por suas escolhas. Ele fechou os punhos, seu rosto ficando vermelho. — Você me envenenou! Foi por sua causa que Cecília e Ruby ficaram doentes, que tudo desmoronou. — Você acha que não sei? Quem vai acreditar em você, Santos? Você acha que a polícia vai achar o quê se você disser que eu te envenenei? Vai ter que contar o que você fez comigo antes. Além disso, elas passaram mal por um excesso de sal. Quem sabe um tempero estragado? Você não tem provas de nada. Ele parecia confuso, sem resposta. O homem não sabia lidar com a minha
firmeza. Antes, eu me encolhia de medo; agora, eu o enfrentava de cabeça erguida. — Vai embora, Santos. Reconstrua sua vida, se for capaz, mas não ouse me ameaçar. Já registrei ocorrência contra você; qualquer passo em falso e chamo a polícia. Santos hesitou. Parecia um animal acuado, sem saída. Murmurou algo inaudível, virou-se e entrou no carro, partindo sem olhar para trás. Fiquei ali, tremendo de adrenalina, mas orgulhosa por não ter recuado. Quando cheguei em casa, relatei o incidente a Paula por telefone. Ela disse que eu fiz bem; ainda que Santos tentasse algo, agora eu estava preparada.
Caso insistisse, tomaria medidas legais mais firmes; não mais permitiria que ele estivesse na minha vida. Depois daquela noite, nunca mais o vi. Talvez ele tenha compreendido seu recado; talvez tenha encontrado outro rumo. Para mim, pouco importava. O que importava era que eu estava livre, e livre continuaria. Passaram-se alguns meses desde o último encontro com Santos. Minha vida seguiu em frente, cada vez mais sólida e satisfatória. Os Sabores da Marta crescia, e aos poucos minha equipe e eu nos tornamos uma família. A garçonete que contratei, Luana, dizia que amava trabalhar ali, onde a comida tinha alma.
João, o garçom, orgulhava-se de conhecer os clientes pelo nome e saber seus pratos preferidos. Meus cozinheiros, Marina e Pedro, adoravam criar variações de receitas tradicionais. Sempre mantendo o toque caseiro, a comunidade local abraçava o restaurante. Às vezes, organizávamos pequenas feirinhas gastronômicas na calçada, convidando produtores de queijo, doceiros e hortelões, criando um ambiente de troca e valorização do pequeno produtor. Era exatamente o que eu sonhara: eu tinha um lugar no mundo, um propósito. Paula continuava ao meu lado, torcendo por mim, aconselhando quando eu precisava. Alberto e Helena estavam satisfeitos com os resultados financeiros e comentaram sobre
a possibilidade de abrir uma filial em outro bairro no futuro. Tudo era tão diferente da vida que eu levava antes: subjugada, insegura; agora eu me sentia plena, capaz, feliz. No fim de tarde, sentei-me em uma mesa próxima à janela, observando o movimento da rua. Pensei na minha mãe, Mara; como ela ficaria feliz em ver o que eu construí! Sorri, imaginando sua voz: "Minha filha, você conseguiu! Segue firme, cozinhe com amor." "Sim, mãe, estou cozinhando com amor a cada prato, a cada dia, oferecendo às pessoas um pedaço de mim e da nossa história." Lembrei-me também do
passado: Santos, Cecília, Rubi, o ódio, a humilhação. A vingança foram capítulos dolorosos, mas necessários. A vingança serviu para eu me libertar, romper as correntes. Não tinha orgulho de ter usado a cozinha como arma, mas entendi que aquele ato extremo me ajudou a encontrar a coragem para partir. Agora a cozinha era novamente um templo de amor, não de rancor. Naquela noite, fechei o restaurante cedo; era o aniversário de Paula e eu organizara um pequeno jantar para ela e alguns amigos. Servi um risoto de cogumelos, uma salada de folhas verdes com azeite aromatizado e, de sobremesa, pudim
de leite, uma das minhas especialidades. Acendemos velas, cantamos parabéns, brindamos à nossa amizade e às conquistas da vida. Ao provar o pudim, Paula comentou: "Esse pudim me lembra o da sua mãe. Lembro quando você fez a receita dela na época do curso de administração; era tão bom!" Sorri emocionada: "Usei a mesma receita. Minha mãe dizia que o pudim tinha que ser leve, doce na medida e feito com paciência. Acho que herdei a mão dela para doces." Rimos emocionadas; aquela cena contrastava fortemente com as lembranças amargas do passado. Não havia lugar para a dor ali, somente
para a celebração. Mais tarde, ao lavar a louça da pequena confraternização, pensei na frase que usei no bilhete: "Agora você aprendeu que a vingança é um prato que se come frio." De certa forma, Santos aprendeu essa lição, mesmo que nunca admitisse; ele provou do seu próprio veneno. Eu, porém, segui em frente. A vingança foi um marco, não um destino; meu destino era outro: construir, amar, crescer. Fui dormir naquele dia com a alma leve, grata por tudo, despedi-me da raiva, do medo, da insegurança. Não precisava mais deles. Eu era dona de mim, do meu, da minha
felicidade; nada nem ninguém poderia tirar isso de mim novamente. Certa manhã, algumas semanas depois, recebi um e-mail do senhor Alberto. Eles analisaram a ideia da filial e acreditavam ser viável; queriam minha aprovação para começar a pesquisar locais e fazer um estudo inicial. Meu coração se encheu de orgulho; deixei claro que adoraria expandir, desde que mantivéssemos a essência do restaurante: comida caseira, ingredientes locais, ambiente acolhedor. Ele concordou plenamente. Mais tarde, durante o almoço, um casal de idosos entrou nos sabores da Marta. Pareciam um pouco tímidos, olhando a decoração. Levantei-me e os cumprimentei: "Boa tarde, sejam bem-vindos!
Já conhecem o nosso cardápio?" A senhora, de cabelos brancos e sorriso doce, respondeu: "Não, minha querida, é nossa primeira vez. Ficamos curiosos com a proposta. Disseram que aqui a comida lembra a da vovó." "Isso é verdade," sorri comovida. "Tentamos chegar perto. Nossos pratos são simples, feitos com cuidado e carinho. Espero que gostem." Eles se sentaram e eu mesma servi um caldinho de feijão de cortesia. Agradeceram, provaram, fecharam os olhos saboreando. Vi o sorriso de satisfação no rosto deles. Esse era o tipo de coisa que fazia tudo valer a pena: eu oferecia mais do que comida;
oferecia lembranças, conforto, um abraço no paladar. Ao final da refeição, eles vieram me agradecer, dizendo que, por alguns instantes, sentiram-se transportados ao passado, à cozinha da mãe deles, ao calor do fogão à lenha. Meu peito se encheu de emoção; esse era meu objetivo, minha missão: servir amor em forma de prato. Fechando o restaurante, naquela noite, parei na porta de entrada, olhando para dentro: a luz suave, as mesas, a cozinha reluzindo de limpeza. Pensei no caminho percorrido para chegar ali: a menina pobre, filha de cozinheira, que aprendeu a valorizar cada tempero; a jovem que trabalhou duro,
estudou, amou e foi ferida, mas não desistiu; a mulher que enfrentou a opressão, planejou uma vingança amarga para se libertar e depois seguiu adiante, transformando dor em força. A vida era feita de capítulos e eu encerrara aquele em que era subjugada. Agora, vivia um capítulo de realização, rodeada de pessoas boas, oferecendo o que tenho de melhor ao mundo. Minha mãe estaria orgulhosa e eu, Gabriela, estava em paz comigo mesma. Caminhei pela rua até chegar em casa, sentindo o ar fresco da noite. Cada passo me lembrava que eu era livre. Ao virar a esquina, uma frase
ecoou na minha mente: "A verdadeira vitória está em conquistar sua liberdade e felicidade." Era isso! Eu havia conquistado a minha liberdade e agora, ao invés de vingança, servia amor em cada prato. Entrei no meu apartamento, deixei a bolsa na cadeira e me olhei no espelho. Vi uma mulher forte, serena, capaz. Sorri; a vingança estava atrás de mim, a liberdade ao meu lado. E assim finalizo minha história com a certeza de que nunca mais aceitarei menos do que mereço. O banquete da minha vida agora é de paz, respeito e saborosas conquistas. Gostou do vídeo? Deixe seu
like, se inscreva, ative o sininho e compartilhe! Obrigada por fazer parte da nossa comunidade. Até o próximo vídeo!