O Brasil é um país com mobilidade social? Praticamente nenhuma, segundo este estudo. As famílias de baixa renda vivem aprisionadas à própria condição de pobreza.
Demorariam gerações para sair de onde estão – com o risco de conseguirem em algum momento uma subida pouco estável. A desigualdade é a barreira mais evidente. Essa que o olho às vezes vê.
Uns com muito, no cerco de privilégios; outros com quase nada, e acesso restrito a instrumentos de ascensão. Na análise de especialistas ouvidos pela DW, é importante entender as raízes dessa realidade para romper com ela. O problema é que entre entender e mudar, eles reconhecem, há um abismo gigante.
Se você, brasileiro, não for de uma família com posses, ou que acumulou alguma riqueza ao longo dos anos, dificilmente vai atingir rápido uma renda média – ou subir na vida, como a gente fala. É o que sugere o texto que eu mostrei ali no início. É da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico, a OCDE.
No Brasil, quem nasce assim, cresce assim e tem grandes chances de ser sempre assim (mostra cenas de pobreza). É uma máxima que historicamente vem sendo reafirmada em pesquisas. Um relatório do Fórum Econômico Mundial já colocou o Brasil entre os países mais difíceis para ascensão social.
O jornal francês Le Monde chegou a comparar a desigualdade brasileira a um sistema de castas. A OCDE fez um cálculo ainda mais profundo para saber o tamanho do desafio das gerações futuras. Não é pequeno não.
Vamos, primeiro, dar uma olhada nas observações da OCDE? O estudo fala sobre uma coisa que se chama mobilidade social, como eu disse há pouco. O nome resume o significado: é a possibilidade de pessoas de um determinado grupo circularem entre diferentes classes socioeconômicas.
Ou seja, elas podem melhorar ou piorar de vida, dependendo do acesso à educação e trabalho, por exemplo. No caso do Brasil, esse movimento está debilitado no sentido ascendente – para não dizer quase impossível para os mais pobres. Eles mal conseguem sair do lugar.
Andam sobre uma espécie de “piso pegajoso”, como descrito no texto da OCDE. O Marcelo Neri, diretor do FGV Social na Fundação Getúlio Vargas, vai mais longe. Compara o fenômeno a uma estrutura de castas, em que a hereditariedade determina o destino de cada um.
Você tem uma sociedade dividida em castas. E são castas fixas. Não existe trânsito das pessoas.
Quem está embaixo sobe e quem está em cima pode cair, etc. É uma sociedade bastante congelada na sua estrutura. Os brasileiros, em geral, parecem ter consciência disso.
Tanto que a pesquisa relata que seis em cada dez pessoas acreditam que esforço não basta para ganhar mais dinheiro. Como se a pobreza fosse a sombra do próprio corpo, perseguidora, inseparável. Em certa medida, eles têm razão.
Olha só a conclusão dos pesquisadores: crianças nascidas numa família brasileira entre as 10% mais pobres demorariam 9 gerações para chegar à classe média. Bem mais que em outros países. No ranking da OCDE dá para ver direitinho a nossa posição.
Estamos entre os últimos, atrás da Colômbia – e empatados com a África do Sul. No topo: nações mais ricas, como Dinamarca e Noruega, onde a mudança de classe se daria em duas, três gerações. Coincidência ou não, lugares com altos Índices de Desenvolvimento Humano, como mostra esse gráfico da ONU.
Eu disse coincidência por força de expressão. Mas ela talvez seja o fator menos importante, na opinião de especialistas. É que o IDH, esse conjunto de parâmetros sobre a qualidade de vida, é sim um indicador decisivo.
Quanto mais alto, mais bem cuidada e escolarizada é uma população, o que abre portas para emprego e renda. Quer dizer, existe em primeiro lugar uma política. Políticas educacionais muito efetivas são os primeiros lugares no ranking de proficiência estão nos países nórdicos.
Então, uma educação onde as pessoas de fato aprendem. São todos países que têm uma forte o Estado de bem-estar social, um estado no qual há políticas públicas fortes de saúde, educação, assistência social e, ao mesmo tempo, essas políticas elas se baseiam em sistemas tributários progressivos que taxam de uma forma significativa a riqueza e o patrimônio. O Jefferson é coordenador de Justiça Social e Econômica na Oxfam, uma organização que também serviu de fonte para as análises apresentadas pela OCDE.
E que coloca o investimento em educação como um elemento chave. Seria essa a maior negligência do Brasil? O maior motivo da pobreza ser uma prisão?
Para responder, a gente precisa explicar um pouco melhor as variáveis desse estudo da OCDE. Como ele chegou à conclusão de que os brasileiros mais pobres demorariam 9 gerações para superar uma situação de pobreza extrema. Bom, foi analisando três pilares da mobilidade social: saúde, educação e emprego.
Segundo a OCDE, nas duas décadas passadas, o Brasil conseguiu combinar bem crescimento econômico com desenvolvimento social. Por exemplo, com programas de transferência de renda, mais oportunidades de acesso à educação e geração de emprego. Mas tomou uma rasteira da sucessão de crises iniciadas em 2014, sobre as quais a gente falou neste vídeo aqui (geração perdida).
Ela interrompeu esse ritmo ascendente. Ao mesmo tempo, o documento, com data de 2018, pondera que o cenário positivo escondia uma “sujeira embaixo do tapete”. Até aquele ano, mesmo com aumentos seguidos de gastos na educação (sobe gráfico), o acesso a creches continuava complicado para a população mais pobre.
E a qualidade do ensino estava ruim na comparação com outros países. Houve até progressos em termos de educação no Brasil, desde um nível muito baixo, etc. Mas, por exemplo, a produtividade do trabalhador brasileiro, que vai determinar o nível de e a distribuição de renda no futuro, ela está bastante estagnada.
O que os especialistas interpretam a partir disso – e que o estudo da OCDE também mostra – é que a mobilidade social no Brasil é um conceito complexo. Foge dos clichês. A educação por si só não bastaria para fazer alguém sair da classe E, D e subir para A.
Porque ficariam faltando outras coisas básicas de subsistência: saneamento, que metade dos brasileiros não têm. . .
moradia adequada. . .
e por aí vai. Sem contar que educação é um termo amplo. E o Brasil, de acordo com a própria OCDE, vem concentrando forças no ensino superior.
Deixando descoberta a educação básica. Eu falo assim de um modo generalista, claro. Mas se for para ser mais específico: o fato é que o governo brasileiro investe em educação básica um terço do dinheiro que nações mais desenvolvidas colocam no mesmo setor.
Então você investir em educação, principalmente em investir educação básica, tem um efeito progressivo. É um investimento do Estado que vai afetar mais diretamente as pessoas mais pobres, em maior vulnerabilidade e, por sua vez, vai gerar maior benefício nesse estrato social, inclusive benefício de aumento de renda das futuras gerações futuras. A gente está focado no estudo da OCDE, que por sua vez leva em consideração a renda.
Uma palavra que você ouviu bastante até agora. Mas eu ainda não mencionei os números de cada faixa de forma prática. Neste gráfico aqui, fica mais fácil de visualizar.
Uma família de baixa renda, que ocupa o último lugar nesta tabela de classificação, sobrevive com menos de mil reais por mês. Enquanto o orçamento familiar mensal na classe A chega a quase 22 mil. O debate do nosso vídeo é: ir de um ponto a outro – com ou sem paradas – é possível?
Conceitualmente, sim! Quem sabe até extrapolar. Os bons exemplos existem.
Vocês podem, inclusive, compartilhar aqui nos comentários, caso conheçam algum. Mas as histórias de sucesso, de quem atravessou essa fronteira, são exceção. Não a regra.
É justamente o que a OCDE diz – e que os pesquisadores ouvidos pela nossa reportagem confirmam. E tem mais uma coisa: a subida de classe, quando ela acontece, pode ser temporária. Nesse trecho do texto, a explicação: “No Brasil, a mobilidade do grupo de baixa renda é acompanhada por um alto nível de recorrência de períodos de baixa renda.
Por exemplo, por causa do emprego instável. O aumento pode, portanto, não durar, e as pessoas podem facilmente voltar à pobreza. ” Está vendo?
Essa volatilidade também ajuda a empurrar o Brasil para o fim do ranking da OCDE. Ou seja, a pessoa pode até conseguir aumentar a renda – só que não é algo sustentável. Por situações diversas.
Que dizem respeito às diferentes circunstâncias que cercam os brasileiros, especialmente em situação de pobreza. Essa baixa mobilidade intergeracional se reflete, por exemplo, em termos ligados à diversidade. Então, por exemplo, o Brasil, que foi o último país do mundo ocidental a abolir a escravatura, boa parte dos negros brasileiros estão ainda na baixa renda.
A fala do pesquisador ilustra como a divisão de classes no Brasil esbarra na questão racial. E isso é confirmado em pesquisas. Segundo o IBGE, negros são 75% entre os mais pobres no Brasil; brancos, 70% entre os mais ricos.
O que nos faz lembrar de um outro fato lamentável: a concentração de renda nas mãos de poucos. Um outro fator que afasta o brasileiro pobre da mobilidade social. A gente tem, por exemplo, no caso do Brasil, as pessoas com 1% de maior renda concentra quase 40 vezes mais renda do que a média dos 50% de mais pobres no país.
Então é uma concentração muito alta. Então, como a concentração de renda, ela também implica numa concentração de poder político. Você acaba criando condições que impedem a formação de políticas que desfaçam esse cenário.
Pode parecer que o que estamos discutindo diz respeito unicamente à parcela pobre da população brasileira. Só que não é bem isso não. Segundo um relatório apresentado no Fórum Econômico Mundial em 2020, o mesmo que eu citei no início do vídeo, quando a mobilidade melhora, melhoram as possibilidades de crescimento econômico de um país inteiro.
Uma coisa está atrelada à outra. Além do simples fato do avanço social que isso representa. .
. que entra na conta. Mas como já falamos muito do problema.
. . E a solução?
Bom, o passado recente do Brasil, citado inclusive pelo estudo da OCDE, é uma prova de que dá para melhorar a mobilidade social. Com dificuldades, atropelos, sim, mas dá. Nas primeiras décadas deste século, 25 milhões de pessoas escaparam da pobreza.
O mercado de trabalho foi dinamizado, como os próprios pesquisadores avaliaram. A pandemia é um capítulo à parte, porque aprofundou desigualdades. E precisamos ter em mente que as referências, os dados da OCDE, são anteriores a ela.
O que não invalida a nossa reflexão. Só torna mais importante até. Especialmente para enxergarmos uma saída, uma luz no fim do túnel.
E, para a OCDE, ela existe. Tanto que o nome do estudo, apesar de mencionar um elevador quebrado, explica como promover a mobilidade social. A organização aponta três caminhos para tornar as mudanças que a gente viu anos atrás mais abrangentes.
Vão soar talvez óbvios. Mas é aquela coisa. O óbvio tem hora que precisa ser dito.
No caso do estudo, escrito: gastar com mais eficiência o dinheiro do contribuinte, melhorar acesso a ensino profissionalizante, e promover uma reforma tributária para financiar políticas públicas de inclusão social. E essas políticas têm que ser financiadas principalmente também por meio de impostos que sejam mais gravosos que pessoas de mais alta renda, né? Que é justamente aquilo que Dinamarca, Noruega, Finlândia e Espanha fazem.
Eu acho que é um problema, acima de tudo, de eficiência e de equidade. Porque o pior é que o Brasil não é um país que gasta pouco na área social, comparado com países de nível similar de renda. O Brasil gasta até mais em termos sociais, tributa mais.
Então a gente tem uma certa estrutura que que lembra um pouco dos países nórdicos no volume de gastos e de impostos. Não é igual, mas é mais parecida do que outros países. No entanto, é uma estrutura ineficiente.