Curadoria - Mario Sergio Cortella

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Escola Digital
Video Transcript:
A curadoria, ela não é uma instância de depósito de arquivo, em que você encerra, reclui e aquilo fica ali, no dia que alguém precisar, vai se buscar a informação. Não, a finalidade da curadoria é tornar disponível para as pessoas e, por isso, pessoas e instituições têm uma tarefa decisiva hoje, de serem curadores daquilo que nos importa. É interessante porque a expressão "cur", ela tem um radical latino que significa "cuidar".
Da onde vem, por exemplo, "curar", da onde vem alguém que cuida por nós, um pró-curador. Alguém que cuida a nosso favor, isto é, toda pessoa que é capaz de curar alguém no sentido de ajudá-lo, de ferir aquilo que está ferido, de modo que ele deixe de ser um ferimento e, portanto, construir ali uma outra relação. Daí que é a ideia de curadoria é alguém que cuida.
Alguém que cuida do quê? Do conhecimento, da informação, e não cuida como o zelador que guarda e tranca. Cuida no sentido de proteger, de disseminar, de aumentar o acervo, de fazer com que as pessoas tenham a ele acesso.
Não é algo, portanto, recluso, a percepção de curadoria é muito mais a orientação de disponibilidades do que, de fato, a construção de locais onde você encerra aquele tipo de circunstância. Nisso, a era da curadoria é aquela em que nós temos tantas informações, que é necessário que algumas pessoas, algumas instituições, elas sejam capazes de nos auxiliar, exatamente, nessa seleção. Aliás, a palavra critério é uma palavra que vem, para nós, da agricultura.
Ela significa "separação". "Criterium", no grego antigo, é separar o joio do trigo. Separar o feijão da pedra, separar o que serve daquilo que não tem utilidade.
Por isso, a construção de critérios e, ao mesmo tempo, o acúmulo e a guarda guiada do acervo das informações é que é, no meu entender, a tarefa mais decisiva da curadoria. Todo aluno e toda aluna, sem dúvida, são curadores, afinal de contas, Paulo Freire, quando escreveu na "Pedagogia do Oprimido" um subtítulo que até hoje é mal-interpretado por alguns, esse subtítulo é "ninguém educa ninguém, ninguém se educa sozinho". Os homens e as mulheres, as pessoas se educam reciprocamente em uma relação mediatizados pelo mundo, Paulo Freire não queria dizer que não há educação, ele queria dizer que ninguém é só educador e ninguém é só educando.
Cada um e cada uma de nós, se educa reciprocamente, nós nos educamos. Daí, que é claro, um aluno e uma aluna são, para mim, como foram em toda a minha trajetória, e continuam sendo, curadores, não só do meu conhecimento, da minha informação, mas também das minhas dúvidas, das minhas dificuldades, das minhas agonias, daí que há uma reciprocidade de curadoria. Aliás, só é um bom ensinante, quem for um bom aprendente.
E o aprendente é aquele que busca, com outros e outras, procurar. Eu quero até acrescentar algo que gosto, a palavra "curdo" do idioma latino, vai gerar para nós uma expressão deliciosa, que é "curiosidade". Curiosidade, uma pessoa curiosa é aquela que procura, que vai atrás, não para deixar longe, mas para trazer para ela, para ir até perto.
É diferente do fofoqueiro, mas é curioso. A formação docente, que muitas vezes foi apenas de modo reiterativo, como sendo uma função, meramente reiterativa ou reprodutiva, na qual não havia tanto território para inovação, para criação, em que você pega uma criança que aos 5, 6 anos de idade, por exemplo, está na profusão de perguntas com a curiosidade exacerbada e aí, em vez de fazer com que isso tenha segmento, a coloca sentada só para responder e quieta boa parte do tempo, sem que a curiosidade tenha mais lugar, assim dizendo que "criança é muito curiosa", "por que que você quer saber tanta coisa? ".
Isso, colocando como um dano, ao invés de ser exatamente um patrimônio, é algo que reinventa nosso modo de ser professor ou professora. Isto é, não cabe mais a mim apenas ser alguém que reproduz aquilo que já está disponível, especialmente nas plataformas digitais. Se você observa, cabe a mim, isso sim, seduzir e encantar as pessoas para que elas sejam capazes de, naquela condição, ter acesso a essa informação de uma outra maneira, de um outro modo que possa dar conta, sem que ela se torne mera reprodutora daquilo que fala.
Há duas coisas muito importantes como atitudes, como valores de formação pedagógica. Primeiro, de um lado, nós sermos capazes de estilhaçar a informatofobia. Isto é, o pânico em relação ao mundo digital, como se ele fosse, por exemplo, substitutivo da atividade docente, quando ele é, em grande medida, com o uso adequado, algo poderoso para incrementar, para valorizar nossa atividade no campo da formação de pessoas.
Em segundo lugar, afastar a informatolatria, que é a adoração do mundo tecnológico, supondo que ele, em si, terá capacidade de fazê-lo. Claro que tecnologia não é só ferramenta. Ela é também criadora de um modo de refletir, de pensar, de um modo de olhar o mundo.
Às vezes, nos tira a capacidade de prestar atenção na paisagem. Há pessoas, hoje, que ficam o tempo todo, quando dirigem numa estrada, olhando, agora, para o painel do carro e não notam mais o mundo. Há outras pessoas, que elas acabam tendo tanto horror em relação ao mundo da tecnologia, especialmente na sala de aula, que ela afasta aquilo como sendo uma estrutura satânica.
Para usar o hebraico antigo, satã, o adversário. Não o é, ao contrário. Por isso, uma escola digital é aquela que acolhe as novas formas das plataformas, entendendo que elas não são excludentes e que nós temos que nos formar para elas.
E essa formação, ela servirá para que a gente tenha relevância e, portanto, que nós sejamos capazes de exercer curadoria sob a nossa própria atividade e não apenas nos colocamos, nós, docentes, como curadores dentro de uma sociedade contemporânea. O que vale é que eu seja capaz de ter curadoria sob mim mesmo, ou sob mim mesma, e ser capaz de olhar, daquilo que está a minha frente, o que que eu seleciono como adequado para minha prática e aquilo que às vezes é mera forma de enfeite, mera pirotecnia. Tem muita coisa no mundo tecnológico que é pirotecnia e serve para umas luzinhas piscarem, as coisas correrem para lá e para cá, isso é ilusório.
Tecnologia, se ela for destinada à magia, isso é outra coisa. Aí, faz parte da ilusão. Mas eu gosto quando ela é colocada no concreto, por isso, o último conselho, desde Descartes, lá do século XVII, quando ele dizia que o filósofo, que é minha atividade, o filósofo é alguém que tem pé de chumbo e asas.
Tem pé de chumbo e asas. E quem trabalha com a escola digital tem que ter pé de chumbo e asas. Tem que ser capaz de voar e tem que ser capaz, também, de manter o pé no chão quando é necessário.
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