Hoje, nós entramos no capítulo 6 de São Lucas, na altura em que começa o chamado Sermão da Planície.  O capítulo 6 nos dá conta de que Jesus sobe à montanha para orar; ali, escolhe quem serão os seus 12 apóstolos, seus 12 enviados.  Depois, ele desce da montanha. 
Enquanto ele está descendo, vai para um lugar plano.  A impressão que dá é como se fosse a última parte da base da montanha, para falar com as pessoas que ali se juntavam para estar com ele: muitos dos seus discípulos, uma grande multidão de gente de toda a Judeia, de Jerusalém e do litoral de Tiro e de Sídon.  É muito interessante que aqui aparecem como dois grupos: os discípulos e a multidão. 
E, ao mesmo tempo, a multidão aparece como que dividida em dois grupos: de um lado, o pessoal que é da Judeia e de Jerusalém; ou seja, pode ser, para São Lucas, uma imagem da Igreja dos judeus, a igreja vinda do Judaísmo, e do outro lado, do litoral de Tiro e Sídon, cidades muito importantes daquela região, cana pagã.  Ou seja, São Lucas pode estar aqui fazendo uma menção à igreja que vem dos pagãos; portanto, é como se, diante do Senhor, estivesse a sua igreja inteira.    Então, o lecionário pula os versículos 18 e 19, que são versículos também muito simples. 
Fala das pessoas que vieram para ser curadas, outros para serem libertadas de espíritos malignos; e que uma força, um poder, uma "dunamis", é um tema recorrente em São Lucas, saía do Senhor e curava todos.  E aí diz o versículo 20: "Levantando os olhos para os seus discípulos, disse. .
. " É interessante essa construção, né?  "Levantando os olhos para os seus discípulos.
" Por quê?  A impressão que o texto dá é que Jesus desce a montanha para perto da base, aí vê as pessoas para serem curadas e libertas.  Então, ele desce, cura, etc. 
As pessoas vão se dispersando, vão sendo tocadas por ele.  Então, ele se volta para os discípulos que continuam na base da montanha.  Por isso o texto diz: "Levantando os olhos", não teria muito sentido levantar os olhos para baixo, né? 
Levanta os olhos e diz aos discípulos.  Esse detalhe é muito importante porque, no Evangelho de São Mateus, o texto mais ou menos paralelo, que é o do Sermão da Montanha, é dirigido a todos; mas, no Evangelho de São Lucas, é dirigido aos discípulos.  Isso faz diferença porque, embora as bem-aventuranças em São Lucas sejam mais resumidas, elas são mais fortes. 
Elas são menos, digamos assim, românticas; elas são mais duras, como nós veremos.   Esse gênero de bem-aventurança é um gênero conhecido fora e dentro da Bíblia.  Existem estudos, por exemplo, sobre esse gênero literário no Egito, na Grécia, e, obviamente, dentro da própria Escritura. 
A leitura de hoje, a primeira, é um gênero de bem-aventurança porque ele diz: "Maldito o homem que confia no homem".  Então, ou seja, ele proscreve o homem que crê, que coloca sua confiança no homem, mas ele diz: "Bendito o homem que confia no Senhor".  Bem-aventurado, feliz, é a mesma coisa. 
O Salmo primeiro é um Salmo de bem-aventurança: "Feliz é todo aquele que não anda conforme o conselho dos perversos", etc.  E, no versículo 4: "Mas bem outra é a sorte dos perversos. " É um gênero que existe na Bíblia. 
Por exemplo, no livro do Apocalipse, nós temos sete bem-aventuranças ao longo do texto, né?  "Bem-aventurado aquele que vê e ouve as palavras dessa profecia. " "Bem-aventurados os que não passaram pela segunda morte.
" "Bem-aventurados", etc.  Ou seja, é um gênero comum.  E o que quer dizer esse gênero? 
Ele não quer lançar uma palavra de mal-agouro, uma maldição, e nem quer lançar uma palavra de bom-agouro ou uma palavra de sorte, uma torcida, uma espécie de intervenção para mudar a dinâmica da situação.  Não é uma espécie de constatação.   E a coisa interessante é que, diferentemente de São Mateus, São Lucas vai contrastar cada bem-aventurança. 
Em São Lucas, são quatro, com quatro ais, ou quatro, como dizem alguns, malaventuranças.  E todas essas quatro relações são muito interessantes quando vistas na perspectiva dos discípulos de Jesus.  Ou seja, ele está falando para os seus alunos, para aqueles que vão dar continuidade à sua obra. 
Ele está falando com aqueles com quem ele forma como mestre das suas almas.  Então, ele começa e diz assim: "Bem-aventurados vós, os pobres, porque vosso é o Reino de Deus. " Isso contrasta com o que ele diz depois: "Ai de vós, ricos, porque já tendes a vossa consolação.
" O que o Senhor está querendo dizer aqui?  Por que ele está dizendo para os seus discípulos que os pobres é que são felizes, os pobres é que vão num bom caminho, porque eles vão ter o Reino de Deus, enquanto que os ricos estão num mau caminho, porque a consolação deles já lhes foi dada?  O que isso quer dizer, do ponto de vista, digamos, programático da missão? 
Ele está falando para aqueles que serão os seus missionários.    Há muitos modos de ler isso; eu escolho um dentre os muitos possíveis.  O que Jesus possivelmente está falando em cada uma dessas bem-aventuranças é sobre o lugar privilegiado que aquele que é excluído tem como um observador objetivo da história. 
O que eu quero dizer com isso?  Um pobre, ele não está implicado nas dinâmicas de poder; ele não está, por assim dizer, influenciado ou influenciando nas relações de importância e, por isso, ele é capaz de enxergar a vida desde a sua perspectiva real, ou seja, a luta real pela sobrevivência.  O que realmente importa? 
Todos nós sabemos o quanto a riqueza é capaz de idiotizar uma pessoa.  Aliás, não precisa nem ser rica; a pessoa pode até receber um prêmio, dizendo: "Nossa, que coisa maravilhosa!  Que coisa fantástica!
" Até que, depois, ela cai das nuvens.  A famosa pegadinha que fizeram uma vez, né?  É de anos atrás. 
De um brinde pelo milésimo comprador de um supermercado: um recebeu a passagem para Disney, outro para não sei aonde, para Paris, e a terceira recebeu para Osasco e ficou chocada, né?  O primeiro prêmio, uma visita a Osasco.  Ou seja, vejam, a riqueza é capaz de idiotizar uma pessoa! 
Ela se sente poderosa, ela se sente importante, ela acha que tem significado na medida em que as pessoas a vão aplaudindo.  Ela vai se considerando alguém que realmente tem algo a dizer.    Aí você tem a classe artística que todo mundo quer falar; todo mundo é filósofo, todo mundo é teólogo, todo mundo tem uma opinião relevante. 
Aí se liga a televisão e fica escutando aquele "monte" de bobagens, aquela besteira assim.  Ninguém sabe de nada, não leu meia dúzia de livros na vida.  Eu não tenho o que dizer, mas tá todo mundo fingindo uma importância que não tem.   
Agora, quando a vida já te tirou tudo, você é pobre, você já sabe que não tem importância mesmo.  Você olha para esse espetáculo e isso não te impressiona.  Você sabe que não é isso, não é sobre isso. 
Você sabe o que uma pessoa é capaz de fazer, por exemplo, para manter a sua vida subsistente.  Você sabe o que uma pessoa é capaz de fazer nas situações extremas, e exatamente por isso você entende o que é o Reino de Deus.  Porque o Reino de Deus não acontece na mentira, no fingimento. 
O Reino de Deus mesmo acontece na realidade.  É quando você vê a bondade genuína, a bondade genuína de alguém que diz assim: “Olha, eu só tenho isso aqui para comer, mas assim, vamos dividir. ” Aí você vê o Reino de Deus.  
Eu tô doente, mas você também tá precisando, então aqui eu vou cuidar de você.  Aí é Reino de Deus.  “Eh, você tá desorientado, oprimido, etc.
, estamos juntos.  Vamos aqui, eu tô deprimido, mas eu vou te ajudar. ” Isso aqui é Reino de Deus. 
É nessa hora que você vê a verdade da condição humana, sem máscaras, sem disfarces, sem maquiagens, sem palhaçada.  Bem-aventurados vós que agora chorais, porque havereis de rir.  Ao contrário, ai de vós que agora rides, porque tereis luto e lágrimas.   
É, eu pulei um. . . 
Depois eu volto.  O que é chorar?  Chorar é tomar posse da minha própria dor. 
Isso exige coragem e exige humildade.  Uma pessoa que precisa encenar pro mundo que tá tudo bem, que tá tudo ótimo, então ela vai pro Instagram, posta sempre coisas lindas sobre a vida dela, alegres, felizes, e ela gosta.  E hoje em dia todo mundo tá meio assim. 
Antigamente isso era uma doença só, e da mídia e etc. , mas hoje não.  Hoje é uma doença que se popularizou.   
Uma pessoa que vive assim, rasgando seda ou querendo transparecer uma felicidade, uma alegria totalmente artificial, é doida.  Ela não tá bem.  Há uma dissonância na cabeça dela. 
Isso traz consequências; o boleto uma hora chega.  Ao contrário, o homem livre é o homem que é capaz de chorar, chorar pelas suas dores, porque ele reconhece as suas dores.  E quando eu me aproprio das minhas dores eu consigo entender melhor as dores do outro. 
Por exemplo, quem nunca passou por um luto familiar tem dificuldade de entender o luto familiar dos outros, especialmente se essa pessoa que não passou por um luto familiar passou por um luto que ela fingiu não passar.  Então ela vai impor a tarefa de um fingimento pro outro.   Não, feliz é quem chora mesmo, tá doendo, grita e tá mal, fala, pecou, vai lá e diz logo tudo. 
Não gasta energia escondendo, não se camufla.  Porque é aí que o Reino de Deus acontece.  Eu consigo enxergar a dor real. 
Eu consigo ver que a existência nossa é efêmera; a existência nossa não é nada.  Nós somos frágeis.    Bem-aventurados vós que agora tendes fome, porque sereis saciados. 
Embaixo, ai de vós que agora tendes fartura, porque passareis fome.  Por que quem tem fome é feliz?  Porque quem tem fome mesmo é muito grato por aquilo que ele tem. 
O pessoal diz, né, que o melhor tempero é a fome.  Dizem por aí, ou ao menos antigamente se dizia.    Então, o que acontece? 
Uma pessoa que tem fartura não valoriza o que ela tem.  Agora, uma pessoa que realmente não tem e que recebe, essa pessoa é grata pelo pão.  Essa pessoa é grata; ela recebe com ação de graças, ela consome com ação de graças. 
Mas não só isso, ela enxerga aonde existe fome real.  Ela enxerga aonde existe necessidade real e ela faz sua a fome real que ela encontra em qualquer área da vida.    Eh, vocês vejam como é estreito o horizonte de consciência de alguém que resolveu se descuidar na vida e que, por exemplo, não vai ao supermercado e não sabe o preço das coisas, ou não precisa pagar uma conta. 
Por que que adolescente é tudo meio bobão?  Não paga conta, não valoriza, ele não sabe o que é passar fome, né?  No sentido de que, como ele não dispende esforço naquilo, ele esbanja. 
Pra ele tá tudo bem.  Ao contrário, quando eu vou pra realidade, eu vejo como a vida é dura.  É duro viver em 2025; não é para amadores. 
Você tem que dar seus pulos, tem que dar o seu salto, você tem que fazer acontecer; você tem que tirar de onde não tem, você tem que inventar mil modos.    Pois é, esse aqui tá enxergando a vida, ele sabe como as coisas são.  Bem-aventurados sereis quando os homens vos odiarem, pulsarem, vos insultarem, amaldiçoarem o vosso nome por causa do Filho do Homem. 
Alegrai-vos!  Nestes dias, utai, porque será grande a vossa recompensa no céu; porque era assim que os antepassados deles tratavam os profetas.  Embaixo, ai de vós quando todos vos elogiam; era assim que os antepassados deles tratavam os falsos profetas. 
Ou seja, Jesus conclui que os verdadeiramente felizes são os perseguidos e os deixados de lado, aqueles que estão no ostracismo, os excluídos.  Por quê?  Estes aqui, se forem sábios, perceberão que essa é a maior liberdade que existe: a liberdade de não precisarem representar um papel neste circo em que os homens gostam de se apreciarem mutuamente. 
Ele pode ser livre; ele pode deixar fluir nos seus exotismos; ele pode ser autêntico naquilo que fala, não está preocupado em se encaixar em nenhuma bolha, em nenhuma caixinha.  Ele fala com o coração na mão, como quem diz a verdade mais profunda do seu ser, e é sincero.  Não é alguém que tem um discurso estandarizado, um discurso que já vem pronto, porque ele representa não a si, não as suas impressões reais, mas as opiniões que interessam a esse ou aquele grupo, etc.   
Ser perseguido, ser deixado de lado, também é muito bom, porque eu me torno um observador lúcido da comédia social.  Eu estou do lado de fora, não estou implicado em nada; eu posso ver, eu posso observar.  Essa é a posição do discípulo. 
Essa é a posição que o discípulo tem que ter: ele não pode ser alguém que está tão fascinado com as dinâmicas humanas que perde a lucidez.  Ele se implicou, por exemplo, em um tipo de viés e, pronto, ele já navega naquilo completamente vedado a qualquer outra percepção.  Não tem mais senso autocrítico. 
O discípulo tem que ser alguém que se alegra por ver a vida como ela realmente é, ao invés de estúpidas distrações.    Seus queridos irmãos, São Paulo nos diz na segunda leitura que, se Cristo não ressuscitou, a nossa fé não tem nenhum valor.  E se é para esta vida que nós pusemos a nossa esperança em Cristo, de todos os homens, nós somos mais dignos de pena. 
De fato, se a ressurreição não existe, se Deus não venceu e se Ele não vencerá realmente essa vida, essa vida é muito pior do que parece.  Mas hoje é domingo, nós estamos aqui para celebrar a vitória de Deus, a vitória da verdade sobre a mentira, a vitória da realidade sobre a ficção, a vitória da vida sobre a morte, a vitória de Cristo sobre o pecado.  Portanto, a nossa esperança não está depositada nesta vida, e aquele que entendeu isso não espera ser excluído; ele mesmo, psicologicamente, se autoexclui. 
Não os peço que os tires do mundo, disse Jesus, mas que os livres do maligno.  Que o Senhor nos conceda essa grande liberdade interior que nos faça estar na posição real de quem observa tudo e sabe que unicamente aquilo que importa é o que está para além daquilo.