Nunca fui um cara muito religioso. Sempre fui mais do tipo que acredita no que vê. Dirige o caminhão há quase 20 anos.
Já cruzei esse país de ponta a ponta mais vezes do que consigo lembrar. A estrada se tornou minha casa, o volante meu melhor amigo e a solidão minha companheira mais fiel. Foi numa terça-feira comum de março.
Eu estava voltando de Curitiba com uma carga de eletrônicos avaliada em quase meio milhão deais. Estava cansado para caramba. Já dirigia há umas 10 horas, parando só para abastecer e tomar um café para espantar o sono.
O céu estava nublado, aquele tipo de dia cinzento que parece que nunca vai acabar. E eu só pensava em chegar no próximo posto para descansar um pouco. Foi quando vi ele.
Um cara parado no acostamento com o braço estendido, pedindo carona. Normalmente eu nem pararia. A gente escuta cada história de assalto e sequestro na estrada que acaba ficando bem desconfiado.
Mas algo naquele sujeito me chamou a atenção. Não sei explicar direito, mas era como se ele tivesse algum tipo de aura ao redor, algo que me fez pisar no freio sem nem pensar direito. Quando parei o caminhão e abri a porta do passageiro, tive a sensação mais estranha da minha vida.
O cara era a imagem viva de Jesus Cristo, daqueles que a gente vê em quadros de igreja. Cabelo comprido castanho, barba bem aparada, olhos profundos e serenos. Vestia roupa simples, uma túnica branca meio surrada e uma mochila pequena nas costas.
"Precisa de ajuda, amigo? ", perguntei, tentando demonstrar o quanto estava impressionado com a aparência dele. Ele sorriu de um jeito que parecia iluminar todo o interior da cabine.
"Obrigado pela gentileza. Estou indo para São Paulo", respondeu com uma voz calma que, por algum motivo, me trouxe uma sensação de paz instantânea. Enquanto ele subia no caminhão, notei que suas mãos tinham calos, como se fosse um trabalhador braçal.
Meu nome é José. Ele disse, estendendo a mão para me cumprimentar. Hesitei por um segundo antes de apertar a mão dele.
Cara, eu juro que senti como se uma corrente elétrica leve tivesse passado pelo meu corpo. Não era desagradável. Pelo contrário, era como se toda a fadiga das horas de direção tivesse sido momentaneamente suspensa.
"Sou Roberto", respondi ainda tentando processar aquela sensação estranha. Voltei a dirigir, mas não conseguia parar de observar aquele sujeito pelo canto do olho. Havia algo nele que não era normal, algo que me deixava ao mesmo tempo fascinado e desconfiado.
Nos primeiros quilômetros, ficamos num silêncio meio constrangedor. Eu estava tentando formular perguntas na minha cabeça, querendo entender quem era aquele cara tão peculiar. Foi ele quem quebrou o gelo, perguntando sobre minha vida na estrada.
E não sei explicar porquê, mas comecei a contar para ele coisas que nunca tinha falado para ninguém. Falei da minha ex-mulher que me deixou depois de não aguentar mais a vida de esposa, de caminhoneiro, dos meus filhos que mal me reconhecem quando apareço em casa a cada dois meses das noites solitárias em postos de gasolina. Enquanto eu falava, ele apenas escutava com uma atenção que nunca tinha recebido de ninguém.
Não me interrompia, não julgava, só concordava com a cabeça e mantinha aquele olhar sereno, como se entendesse exatamente cada sentimento que eu descrevia. Em algum momento, percebi que tinha lágrimas nos olhos enquanto contava sobre a morte do meu pai, que aconteceu quando eu estava na estrada e não consegui chegar a tempo pro funeral. Normalmente eu me sentiria um idiota por me emocionar na frente de um estranho, mas com José parecia natural.
Ele colocou a mão no meu ombro e disse: "A dor só existe porque o amor existiu primeiro". Foi simples assim. Mas aquelas palavras pareceram penetrar direto na minha alma, como se ele tivesse descrito com precisão algo que eu tentava entender há anos.
A conversa fluiu por horas e quanto mais ele falava, mais eu me sentia confortável, como se estivesse conversando com um velho amigo que conhecia todos os cantos obscuros da minha vida e ainda assim me aceitava. Quando paramos para abastecer em um posto às margens da Rég Bitencur, convidei José para comer alguma coisa na lanchonete. Ele aceitou com aquele sorriso sereno que começava a parecer familiar para mim.
Sentamos numa mesa afastada e o cara do posto ficou encarando José como se tivesse visto uma assombração. Entendi perfeitamente a reação dele. Enquanto comíamos, José começou a falar sobre suas viagens, os lugares que conheceu, as pessoas que encontrou.
falava com uma sabedoria que não parecia pertencer a este mundo. Contou histórias sobre pescadores no Nordeste, índios na Amazônia, empresários em São Paulo, como se tivesse vivido mil vidas. As pessoas são essencialmente boas, Roberto.
Apenas esqueceram disso. Ele disse enquanto observava uma família discutindo na mesa ao lado. Aquela frase ficou martelando na minha cabeça.
Eu sempre fui do tipo desconfiado, achando que todo mundo só quer levar vantagem. Anos na estrada me ensinaram a não confiar facilmente, a sempre esperar o pior das pessoas. Mas enquanto escutava José falar, sentia algo mudando dentro de mim.
Era como se ele estivesse dissolvendo camadas de amargura que nem eu mesmo sabia que carregava. Voltamos para o caminhão e eu me sentia mais leve, mais esperançoso. Pela primeira vez em anos, pensei que talvez valesse a pena dar mais chances às pessoas, tentar enxergar o bem que José dizia existir em todos nós.
Enquanto dirigia pela noite que começava a cair, cheguei até a imaginar como seria reconectar com meus filhos, tentar uma aproximação com minha ex, talvez até mudar de profissão para algo que me permitisse estar mais presente na vida deles. O céu tinha escurecido completamente e a chuva começou a cair pesada, transformando a estrada num espelho preto que refletia os faróis dos carros. Normalmente essa condição me deixaria tenso, agarrado ao volante, mas a presença de José me trazia uma estranha tranquilidade.
A conversa continuou fluindo e em algum momento começamos a falar sobre fé. Contei para ele que minha mãe era super religiosa, me levava à igreja todo domingo quando eu era criança, mas que fui me afastando com o tempo. Deus nunca respondeu minhas orações.
Confessei sentindo uma pontada de culpa por falar isso para alguém que se parecia tanto com Jesus. Mas José não pareceu ofendido. Ele olhou pela janela, observando as gotas de chuva escorrendo pelo vidro, e depois de um tempo, respondeu: "Às vezes, as respostas vem de formas que não conseguimos reconhecer imediatamente.
Achei aquilo profundo, mesmo sem entender completamente o que ele queria dizer. O sono começou a pesar. Meus olhos ardiam depois de tantas horas na estrada.
José percebeu e sugeriu: "Por que não paramos para descansar? Você precisa dormir um pouco". Relutei no início.
Estava com o prazo apertado para entregar a carga, mas ele insistiu com uma preocupação que parecia genuína. De que adianta entregar a carga no prazo se você não chegar vivo? Aquilo fez sentido e acabei concordando.
Alguns quilômetros à frente, vi as luzes de um posto que tinha um pequeno restaurante anexo. Parei o caminhão num canto mais afastado, onde vários outros caminhoneiros também dormiam em suas cabines. Senti meu corpo relaxar assim que desliguei o motor.
José sugeriu que fôssemos comer algo antes de dormir. O restaurante estava quase vazio àela hora da noite, apenas um casal de idosos num canto e um caminhoneiro solitário no balcão. Pedimos o prato do dia e uma garrafa de água.
Durante o jantar, José começou a falar sobre perdão de uma maneira que nunca tinha ouvido antes. Não era aquele papo de igreja que já conhecia, era algo mais profundo, como se ele falasse de uma experiência vivida intensamente. O rancor é um veneno que você bebe esperando que o outro morra.
Ele disse enquanto partia um pedaço de pão. Aquela frase me atingiu em cheio, porque eu carregava tantos ressentimentos com minha ex, com meu chefe, que sempre me dava as piores rotas, com meu irmão que não me ajudou quando precisei. José continuou falando, mas sua voz começou a parecer distante, como se viesse de um túnel.
Minhas pálpebras pesavam cada vez mais. Estou muito cansado. Consegui murmurar antes de sentir minha cabeça pendendo para a frente.
O rosto de José foi a última coisa que vi antes de tudo escurecer. Lembro de ter pensado que havia algo diferente no olhar dele naquele momento. O sereno tinha dado lugar a algo que não conseguia identificar, mas estava cansado demais para me preocupar com isso.
Senti uma mão tocando meu ombro e depois nada. Um vazio completo, como se alguém tivesse desligado meu cérebro. Acordei com alguém me sacudindo.
Abri os olhos devagar, tentando entender onde estava. A luz do restaurante parecia forte demais, fazendo minha cabeça latejar. "Ei, amigo, você não pode dormir aqui.
Já estamos fechando", disse um homem de meia idade com avental, provavelmente o dono do lugar. Pisquei várias vezes, tentando afastar a névoa da confusão. Estava sentado numa cadeira com a cabeça apoiada sobre os braços cruzados na mesa.
O prato à minha frente estava intacto. Olhei em volta, desorientado. Que horas são?
Consegui perguntar minha voz saindo rouca e estranha. Quase 2as da manhã, respondeu o homem impaciente. Duas da manhã.
Tinha algo errado, muito errado. Comecei a lembrar dos últimos momentos antes de apagar. Eu estava jantando com José, conversando sobre perdão.
Josei olhei para todos os lados do restaurante vazio. Cadê o cara que estava comigo? perguntei, sentindo uma onda de pânico começando a subir pelo meu peito.
O dono do restaurante franziu a testa confuso. Que cara, você chegou sozinho e pediu um prato. Depois de alguns minutos, já estava dormindo na mesa.
Pensei que fosse apenas um caminhoneiro cansado e deixei você descansar, mas agora precisamos fechar. Aquilo não fazia sentido. Eu lembrava claramente de ter entrado no restaurante com José, de termos pedido juntos, de nossa conversa sobre perdão.
Será que tinha sonhado tudo aquilo? Levantei num salto, ignorando a tontura que me fez cambalear por um momento. Alguma coisa estava muito errada.
Corri para fora do restaurante, para o estacionamento onde tinha deixado meu caminhão. Meu coração parecia querer sair pela boca, enquanto meus olhos vasculhavam desesperadamente o local. Nada.
O espaço onde meu caminhão deveria estar estava vazio. Corri pelo estacionamento inteiro, olhando cada canto como um louco, mas não havia nem sinal do meu veículo. Voltei para o restaurante aos tropeços, agarrei o braço do dono que já estava trancando a porta.
"Meu caminhão! Alguém roubou meu caminhão! ", gritei, sentindo o desespero tomar conta de mim.
O homem me olhou assustado, provavelmente pensando que eu era algum maluco. "Calma, cara, você chegou a pé aqui, não vi caminhão nenhum. " Ele disse se afastando de mim com cautela.
"Como assim? Eu tinha certeza absoluta de ter estacionado o meu caminhão ali. Peguei meu celular no bolso para ligar para a polícia, mas aí veio outro choque.
Minha carteira havia sumido. Procurei freneticamente em todos os bolsos, mas não encontrei nada além do celular. dinheiro, documentos, cartões, tudo tinha desaparecido.
Foi então que a realidade me atingiu como um soco no estômago. José não era nenhum anjo, nenhum mensageiro divino. Aquele desgraçado tinha me drogado e roubado tudo.
Meu caminhão, minha carteira, a carga de meio milhão em eletrônicos. E o pior, tinha feito isso depois de ganhar minha confiança, depois de me fazer abrir meu coração como nunca tinha feito com ninguém. A sensação de traição era tão intensa que me faltava o ar.
Caí sentado no meio fio do estacionamento, sem saber o que fazer, como reagir. O dono do restaurante, vendo meu estado de desespero, acabou se compadecendo. Olha, eu não sei o que aconteceu com você, mas parece que te passaram a perna feio", disse ele, se aproximando com cautela.
Tenho uma delegacia a uns 2 km daqui. Se quiser, posso pedir pro meu sobrinho te dar uma carona até lá, quando ele vier me buscar. Assenti mecanicamente, ainda tentando processar o que tinha acontecido.
Como eu pude ser tão idiota? Tantos anos na estrada, sempre desconfiado de tudo e de todos. E bastou um cara com cara de santo aparecer para eu baixar completamente a guarda.
As palavras dele ecoavam na minha mente agora com um tom de escárnio. As pessoas são essencialmente boas. Que piada de mau gosto.
Enquanto esperava pela carona, liguei para meu patrão usando o celular do dono do restaurante, já que o meu estava sem bateria. Foi uma das ligações mais difíceis da minha vida. Como explicar que entreguei um caminhão caríssimo e meio milhão em mercadoria para um estranho que conheci na estrada?
Meu chefe gritou tanto que tive que afastar o telefone do ouvido. Ameaçou-me processar. Disse que eu nunca mais arrumaria emprego como caminhoneiro, que eu ia pagar cada centavo mesmo que levasse o resto da vida.
E o pior é que ele tinha razão. Eu tinha ferrado com tudo. A ida à delegacia foi outro pesadelo.
O policial que me atendeu mal conseguia esconder o desdém enquanto eu relatava o ocorrido. "Deixa ver se entendi", ele disse, olhando para mim por cima dos óculos. Você deu carona para um cara que parecia Jesus, se abriu com ele como se fosse seu terapeuta e depois ele te drogou e levou seu caminhão com toda a carga.
Dito assim, parecia ainda mais absurdo, mas era exatamente o que tinha acontecido. E como era esse tal de José? Continuou o policial.
Descrevi José em detalhes. O cabelo comprido, castanho, a barba bem aparada, os olhos serenos, as roupas simples. O policial rabiscou algumas coisas no relatório.
"Sabe, você não é o primeiro", ele comentou casualmente enquanto escrevia. Aquilo me pegou de surpresa. "Como assim não sou o primeiro?
" Ele suspirou, largando a caneta. Nos últimos seis meses, pelo menos cinco caminhoneiros foram roubados de forma parecida nesta região. Todos descrevem o mesmo Jesus que deu a eles algum tipo de revelação espiritual antes de sumir com os caminhões e as cargas.
É algum tipo de golpista profissional, provavelmente com conhecimentos de química para dopar as vítimas. Até agora não conseguimos pegar o cara. Ele parece evaporar no ar depois de cada golpe.
Senti uma mistura de alívio por não ser o único idiota a cair nesse golpe e raiva por saber que esse falsário continuava por aí enganando pessoas. Foi quando tomei uma decisão que mudaria minha vida daquele ponto em diante. Eu ia encontrar aquele falso Messias.
Não importava quanto tempo levasse, eu ia caçar aquele desgraçado e fazer justiça com minhas próprias mãos. Passei a noite inteira naquela delegacia, dando todos os detalhes que conseguia lembrar sobre José e sobre meu caminhão. No final, saí de lá de madrugada com uma cópia do boletim de ocorrência e a quase certeza de que a polícia não ia fazer muita coisa.
Caminhei sem rumo pela cidade desconhecida, uma cidadezinha do interior de São Paulo, cujo nome eu nem tinha prestado atenção quando parei. A humilhação e a raiva fermentavam dentro de mim a cada passo. Lembrei que tinha um amigo caminhoneiro, o Marcelo, que morava em Campinas há umas duas horas dali.
Consegui usar o celular de um frentista num posto para ligar para ele. Marcelo não hesitou em dizer que viria me buscar assim que amanhecesse. Enquanto esperava, sentado no banco de uma praça vazia, comecei a juntar os pedaços do quebra-cabeça, que era José.
Ele não era um golpista qualquer. O cara tinha estudado psicologia ou algo assim. sabia exatamente o que dizer para fazer as pessoas confiarem nele.
Pensei em todos os detalhes da nossa conversa, nas perguntas que ele fez, nos assuntos que abordou. Tudo parecia ter sido calculado para me fazer baixar a guarda. E eu, como um completo imbecil, caí na armadilha como um peixe faminto que não vê o anzol escondido na isca.
Mas havia algo mais que me incomodava, algo que não fazia sentido, porque ele se deu ao trabalho de ter toda aquela conversa profunda comigo, porque não simplesmente me dopou e roubou tudo na primeira oportunidade? Talvez ele realmente gostasse de brincar com as pessoas, de ver o quanto conseguia manipulá-las antes de dar o bote final. Quando Marcelo finalmente chegou por volta das 8 da manhã, eu estava acabado, sem dormir, sem comer direito, com a cabeça latejando.
No caminho para a casa dele, contei tudo. Ao contrário do policial, Marcelo não me julgou. "Poderia ter acontecido com qualquer um, Roberto", ele disse, tentando me consolar.
Mas ambos sabíamos que não era verdade. Não acontece com qualquer um, porque a maioria dos caminhoneiros não é idiota o suficiente para confiar em um estranho na estrada. Passei duas semanas na casa de Marcelo tentando juntar os cacos da minha vida.
Liguei pro seguro, mas como era eu quem estava dirigindo o caminhão quando ele foi roubado e não houve arrombamento ou violência? As chances de cobertura eram mínimas. Meu ex-patrão me ligava diariamente com ameaças cada vez mais criativas.
Meu nome certamente estava na lista negra de todas as transportadoras num raio de 1000 km. Eu estava quebrado, humilhado e com uma dívida gigantesca nas costas. Mas em vez de me afundar na depressão, aquela situação despertou algo diferente em mim.
Uma determinação obsessiva de encontrar José. Não era mais só pelo caminhão ou pelo dinheiro. Era por tudo que ele tinha tirado de mim.
Minha dignidade, meu sustento, minha confiança nas pessoas, até mesmo um lampejo de fé que eu nem sabia que ainda existia dentro de mim. E mais do que tudo, pelo fato de ele ter usado a imagem de algo sagrado para tantas pessoas para cometer seus crimes, isso me revoltava profundamente. Três meses se passaram.
Eu tinha transformado minha vida numa caçada implacável, aquele falso Messias. Usando as economias que tinha guardado para emergências, comprei uma moto usada e comecei a percorrer todas as estradas principais, onde caminhoneiros foram roubados. Falava com pessoas em post, lanchonetes à beira da estrada, hospedagens baratas.
Mostrava um desenho tosco que tinha feito de José. Perguntava se alguém tinha visto um homem com aquela aparência. Dormia no barato, comia mal, vivia praticamente como um nômade.
Marcelo me ligava preocupado, dizendo que eu estava obsecado, que precisava deixar a polícia cuidar disso, mas ele não entendia. Aquilo tinha se tornado pessoal demais. Em algum momento, parei de me importar com o dinheiro ou com o caminhão.
O que eu queria era olhar nos olhos daquele desgraçado novamente e perguntar porquê. Porque ele escolhia se disfarçar de uma figura que representava bondade e compaixão para fazer exatamente o oposto. Uma noite, enquanto tomava um café em um posto na rodovia Castelo Branco, ouvi dois caminhoneiros conversando sobre um profeta que estava aparecendo nas estradas da região oeste do estado.
Meu sangue gelou. A descrição batia perfeitamente. Um homem de cabelos compridos e barba que falava com sabedoria.
e tocava o coração das pessoas. Eles comentavam admirados sobre como ele tinha um dom para dizer exatamente o que as pessoas precisavam ouvir. Resistia ao impulso de me intrometer na conversa.
Em vez disso, segui discretamente um dos caminhoneiros até seu caminhão e perguntei mais detalhes, fingindo curiosidade. Ele me disse que o tal profeta costumava aparecer num determinado trecho da estrada, geralmente ao entardecer. Não precisei ouvir mais nada.
Na mesma noite me posicionei naquele local escondido numa área de descanso à beira da rodovia e esperei. Foi na terceira noite de espera que finalmente o vi. José estava parado no acostamento com o braço estendido, pedindo o garona exatamente como na primeira vez que o encontrei.
O mesmo cabelo, a mesma barba, o mesmo olhar sereno que agora eu sabia ser apenas uma máscara. Meu coração disparou no peito. Senti minhas mãos tremendo no guidão da moto.
Durante meses tinha imaginado esse momento, planejado o que faria, o que diria. Mas agora que ele estava ali, a poucos metros de distância, algo inesperado aconteceu dentro de mim. Um caminhão parou para ele.
Vi José se aproximar da porta do passageiro, conversando brevemente com o motorista. Então ele entrou no caminhão que logo arrancou sumindo na estrada. Eu deveria ter ligado a moto e seguido eles.
Deveria ter interceptado o caminhão, alertado o motorista, impedido mais um roubo. Era o que eu tinha planejado fazer durante todos aqueles meses, mas não consegui me mover. Fiquei ali paralisado, vendo o caminhão desaparecer no horizonte com aquele falso Messias a bordo.
E para minha própria surpresa, senti uma imensa sensação de alívio me invadindo. Percebi naquele momento que perseguir José tinha se tornado minha obsessão, minha razão de viver. Mas encontrá-lo não me devolveria nada do que perdi, nem o caminhão, nem o emprego, nem a dignidade.
Por alguma razão misteriosa que não consigo explicar até hoje, decidi deixá-lo ir. Não porque o perdoei. Nunca vou perdoá-lo pelo que fez comigo e com tantos outros, mas porque percebi que continuar aquela caçada só me destruiria ainda mais.
No dia seguinte, liguei para o número da Polícia Rodoviária e passei todas as informações que tinha sobre a localização e o modus operante de José. Se eles pegam o desgraçado ou não, já não era mais problema meu. Dei meia volta e segui para o sul, onde um primo tinha me arranjado um trabalho numa oficina mecânica.
Não era o que eu queria para minha vida, mas era um recomeço. E sinceramente, depois de tudo que passei, um recomeço era tudo o que eu precisava. E para finalizar, quero agradecer pela sua presença e te pedir que se inscreva para ajudar no crescimento do canal.
M.