Queridos irmãos, nós, no domingo passado, começamos a meditar. O Sermão da Montanha, aqui no Evangelho de São Lucas, é chamado de Sermão da Planície, justamente porque, ao invés de o senhor fazê-lo numa montanha, ele o faz numa planura. E, na semana passada, eu comentava essas quatro bem-aventuranças e mostrava como elas nos colocam numa posição privilegiada, no sentido de que aquele que é pobre, aquele que tem fome, aquele que chora, aquele que é perseguido se torna um observador privilegiado da história, não está implicado nos processos de intercâmbio emocional.
A consequência disso, e eu diria até o objetivo daquilo que foi dito antes, está nessa segunda sessão deste sermão que nós lemos hoje no evangelho e que se centra sobre o mandamento da caridade. Em outras palavras, quando nós estamos por demais misturados nos processos humanos, quando nós estamos implicados emocionalmente em [música], tudo chega a ser impossível amar. Por quê?
Porque o jogo de carência, desprezo, [música] revide, sentimento de injustiça, ao mesmo tempo o desejo de vingança, de dar o troco, são muito fortes. Vejam, por exemplo, numa família: quando as pessoas são muito intensas, o excessivo amor às vezes produz excessivas brigas. E é muito mais complicado você conseguir, por exemplo, perdoar alguém quando você está no meio de um conflito emocional.
Você está implicado na situação. É muito simples: basta pensar, por exemplo, numa briga de casal; às vezes, uma das partes está tão alterada, está tão desesperada emocionalmente que alguém que está de fora consegue ter mais sensatez e é capaz de aconselhar, é capaz de dizer: "Olha, calma, não é tudo isso. Tá doendo tanto porque ele apertou num calo, ele pegou numa ferida.
Calma, não é tudo isso. " Ou seja, essa posição das bem-aventuranças nos coloca numa espécie de posição de liberdade interior, em que nós paramos de nos implicar de maneira tão intensa nos processos de intercâmbio emocional e nos colocamos assim numa posição que eu chamaria de superioridade do amor. Ou seja, uma posição em que nós nos tornamos invulneráveis, sobre certo aspecto, para podermos usar de amor, bondade e misericórdia com todas as pessoas indistintamente, sem que nós nos sintamos afetados demais, sem que nós sintamos requeridos demais, sem que aquilo que talvez incomoda agora volte a nos incomodar.
Jesus havia dito que bem-aventurado, feliz é quem é perseguido. E aí ele conclui, começando essa sessão: "Amai os vossos inimigos. " É a conclusão.
Vejam, se aquele que me persegue é um bem-feitor, se ele me coloca numa posição privilegiada, como eu não o amarei? Agora, eu só posso amar o inimigo se eu realmente estiver nessa posição psicológica. Ou seja, se eu conseguir sair daquela dinâmica de amor e ódio e, de certo modo, de fora olhar aquela relação e dizer: "Bom, ele está tentando me fazer o mal, só que não vai dar certo.
A única coisa que ele consegue é me fazer o bem, portanto eu vou amá-lo. " Vejam que equilíbrio é preciso ter para pensar as coisas desse modo. Como é necessário que nós tenhamos realmente uma psique ajustada.
Porque esse sentimento de amor pelo inimigo só pode nascer a partir do momento em que eu não me vejo implicado na relação de inimizade. Ou seja, ele é meu inimigo, mas eu não sou inimigo dele. Ele pensa que me está fazendo mal, mas eu sei que a única coisa que ele pode me fazer é o bem, porque tudo concorre para o bem daqueles que amam a Deus.
E quanto mais ele me joga para fora, mais eu me coloco numa posição privilegiada para enxergar todo o jogo desde fora e desde o alto. Ou seja, eu me torno inatacável. Não tem jeito.
Então, a primeira coisa que me parece muito importante é que nós paremos com essa cantilena de nos sentirmos de fora. Porque se você se faz de vítima e diz assim: "Ai, todos me excluem! Ai, que ninguém me aceita!
Ai, que todos me rejeitam! " você não vai conseguir viver isso. Você só vai conseguir viver isso se você entender: "Nossa, graças a Deus que todo mundo me esquece, que ninguém quer me incluir nessas coisas.
Eu tô fora. Muito obrigado, Deus. Quanto mais, melhor!
" E assim eu amo, eu posso amar, eu tenho a liberdade do amor, porque eu não estou enrolado nesse intrincado de amor e ódio no qual as pessoas vivem habitualmente. Eu alcancei uma posição de independência e de liberdade no evangelho. Consequência de amar os inimigos, fazer o bem aos que nos odeiam, abençoar os que nos amaldiçoam e rezar por aqueles que nos caluniam são três atitudes.
Primeiro: fazer o bem a quem nos odeia. Ou seja, é a prova de que eu não estou dentro do joguinho. Isso é muito bom, gente!
Nós não conseguimos perceber a infantilidade que é, por exemplo, estar lá no seu trabalho, aí tem uma fulana que não gosta de você, que não olha na tua cara, aí você começa a pensar: "Ai, já que ela não olha na minha cara, eu também não vou olhar na cara dela. Já que ela me deu bom dia, eu também não vou dizer bom dia para ela. Já que ela me deu uma cotovelada, eu vou dar um cotovelada nela.
" Pelo amor de Deus! Isso é criancice! Falta liberdade interior!
Eu não vou entrar nesse jogo. Me deu uma cotovelada? "Deus te abençoe, tá tudo ótimo, tranquilo, não me atingiu, estou fora disso, não sou atacável interiormente.
" Eu estou numa posição de invulnerabilidade. Bem-dizei os que vos amaldiçoam. Isso tem muito mais a ver com falar bem daqueles que falam mal de você.
É difícil, porque a língua coça, né? E aí você quer criticar ainda mais uma pessoa que fala mal de você por aí. Mas que coisa maravilhosa quando eu não me deixo envolver por esse jogo, então eu digo: "Olha, eu vou falar bem; deixa eu falar mal, eu vou falar bem.
" Não vou entrar na disputa de quem é capaz de caluniar mais, de quem é capaz de difamar mais. Não, porque quando você realmente fala bem de quem fala mal de você, o que acontece é que, a longo prazo, quem fala mal de você percebe o ridículo em que está caindo. Porque de você ele só vai receber notícias boas.
Aí vai chegar para fulano e vai dizer: "Nossa, a fulana tá insuportável, é uma pessoa duas caras, é uma pessoa, não sei quê. " Aí o fulano que está escutando falou assim: "Poxa, mas ontem falei com Bin, falei tão bem de você. Nossa, fiquei impressionado como ele gosta de você!
" Não. Aquilo é mentira. Ah, é nó também.
Tá certo, cai no vazio essa história de que "chumbo trocado não dói"; é mentira, hein? Chumbo trocado mata. Não é verdade isso?
Rezar pelos que vos caluniam. . .
Você veja que Jesus vai por um caminho de interioridade: fazer o bem, falar bem e rezar. Porque, no fundo, só quando eu sou capaz de rezar pelas pessoas que me querem mal com amor é que, de fato, eu sou capaz de todo o resto. Nós todos deveríamos, diariamente, ter a nossa listinha de pessoas que implicam conosco e rezar com muito amor por elas, manifestando o nosso perdão e a nossa bondade diante de Deus.
Então, Jesus, mais uma vez, tira uma tríplice conclusão moral: ele diz: "Se alguém te der uma bofetada numa face, dá também a outra; se alguém te tomar o manto, deixa-o levar também a túnica; dá a quem te pedir, e se alguém tirar o que é teu, não o peças de volta. " Essas três atitudes parecem muito heroicas, parecem quase impossíveis humanamente, mas não são. Elas são apenas três atitudes de sabedoria.
Veja, se alguém te dá um tapa e você tiver o autocontrole de oferecer a outra face, quem bate, bate; a briga acabou. Agora, se você revida e começa a troca de agressões, o círculo vicioso da supressão, da destruição, não vai parar. É o círculo vicioso da lei de talião: olho por olho, dente por dente.
Então, sempre vai demandar uma vingança posterior. Chega o perverso, dá um tapa e você vai lá, dá um tapa nele. Aí ele diz: "Tá vendo, ele me deu um tapa; agora tenho que dar outro.
" Dá outro e isso não vai parar, não vai parar nunca. O que Jesus está dizendo aqui, traduzido em outras palavras, é o seguinte: desiste dessas brigas. Desiste.
Sabe quando nós temos aquela preguiça de entrar numa contenda? As pessoas estão querendo achar motivo, estão riscando a faca no chão, que nem fazia antigamente os cangaceiros, estão te desafiando. Mas você, como é um homem da paz, como é uma pessoa sensata, diz: "Nossa, eu não quero entrar nisso.
Ah, quer levar a capa? Leva a túnica, leva tudo, pega. Pode pegar.
" Eu me lembro de uma senhorinha, quando era criança. Uma senhorinha não alfabetizada. Naquela época, tinha umas desordens litúrgicas; os padres mandavam o povo rezar juntamente com ele a oração da paz, né?
E ela, na simplicidade dela, dizia assim: "Assim como o Senhor Jesus Cristo disse aos Vossos apóstolos: 'Eu vos deixo a paz, eu não dou a minha paz. '" Ela dizia isso: "Eu não dou a minha paz. " A gente tem que aprender a dizer isso: "Eu não dou a minha paz.
" Alguém quer brigar? Brigue sozinho. Comigo não; não estão me chamando para duelo.
Ah, meu querido, vai duelar com a sua sombra. Comigo não; eu estou na minha. Eu não dou a minha paz.
Eu não negocio a minha paz. Estou aqui em paz com Deus. O que vós desejais que os outros vos façam, fazei também vós a eles.
É a chamada regra de ouro, né? Trate os outros como você quer ser tratado. Isso, para nós, deveria ser também algo bastante evidente.
Só que, quando nós estamos envolvidos demais em conflitos, quando não temos a distância emocional e psicológica deles, isso se torna impossível. Porque nós sempre queremos que os outros sejam tratados dentro de uma medida ideal que nós temos na cabeça: exigimos mais, damos de menos. Veja, o evangelho requer de nós uma maturidade.
Então, Jesus faz três perguntas muito interessantes: ele diz: "Se amardes somente aqueles que vos amam, que recompensa tereis? " A melhor tradução seria: "Se amardes somente aqueles que vos amam, onde está a gratuidade? Cadê a gratuidade?
" Até os pecadores amam aqueles que os amam. "Se fazeis o bem somente aos que vos fazem o bem, onde tá a gratuidade? " Até os pecadores fazem assim.
"Se emprestais somente àqueles de quem esperais receber, que recompensa tereis? Onde está a gratuidade? " Até os pecadores emprestam aos pecadores para receber de volta a mesma quantia.
Ou seja, o que Jesus está nos convidando aqui é a colocar a magnanimidade da graça de Deus como um fator que altera as nossas relações. Veja, Deus nos perdoa gratuitamente. Todos nós aqui pecamos todo dia, mais de uma vez.
Aí, nós chegamos no fim do dia, fazemos um examezinho de consciência e dizemos: "Deus nos perdoa. " Será que alguém tem dúvida de que Deus nos perdoa? Tomara que não, porque isso seria pecado.
Ele nos perdoa. Agora, por que que Deus nos perdoa? Ele nos perdoa porque ele é infinitamente maior do que as nossas faltas.
Porque a grandeza do seu perdão, a grandeza da sua misericórdia, é infinitamente maior do que qualquer coisa que nós façamos. Ou seja, nós só podemos exercer bondade, amor, misericórdia, graça quando nós adquirimos uma magnanimidade. A nossa alma se torna grande.
Então, nós dizemos: "Olha, tanto faz, deixa isso para lá. Eu não quero nem pensar nesse assunto. Eu já perdoei de antemão.
" Aquele que tem uma alma magnânima, esse é capaz de exercer gratuidade nas suas relações. Ao contrário, quem não tem, quem é pusilânime, quem tem a alma pequena, vive sempre. .
. Cobrando por cada mesquinharia que lhe acontece, dizem que os leões não conseguem enxergar os insetos porque eles têm um olhar magnânimo e, por isso, são chamados Reis da Selva. Pois é, nós temos que ter essa magnanimidade.
Se nós ficarmos a vida inteira atrás de picuinha, gente, tem pessoas que são viciadas nisso, que adoram uma fofoca, adoram uma intrigazinha e que estão ali sempre atrás, sempre ouvindo, sempre escutando, sempre procurando tudo que é muito efêmero, desprezível, que não é nada. As pessoas acabam dando importância para aquilo e tal, e não sei o quê. Você vê que falou, que diz, que não sei o quê.
Seja magnânimo, tenha uma alma capaz de passar por isso, por cima de tudo isso, tranquilamente, que não fica o tempo todo parando para enxergar mosquitos. Ao contrário, amai os vossos inimigos. Mais uma vez, Jesus diz: "Fazei o bem e emprestai sem esperar coisa alguma em troca; então, a vossa recompensa será grande e sereis filhos do Altíssimo, porque Deus é bondoso também para com os ingratos e os maus.
" Ou seja, Deus trata todos com uma igualdade bastante escandalosa. Não é que a tempestade só cai na casa de quem não presta; não, cai na de todo mundo. Então vejam, Deus assim como não cria nenhum tipo de segmentação, de secessão entre os homens, de separação, nós também não podemos dividir a humanidade.
A riqueza de matizes é muito maior. "Se misericordiosos, como também o vosso Pai é misericordioso. " Isso em São Lucas tem um peso muito forte.
São Lucas, Evangelista da Misericórdia, basta lembrar, por exemplo, a parábola do filho pródigo, que nós iremos ler durante a quaresma. "Não julgais, e não sereis julgados; dai, e vos será dado. Uma boa medida, calcada, sacudida, transbordante, será colocada no vosso colo; porque com a mesma medida com que medirdes os outros, vós também sereis medidos.
" Ou seja, resumindo esse ensino final de Jesus nesse trecho do Evangelho, nós precisamos ter a atitude de um perdão obstinado, de uma misericórdia que está olhando sempre para frente, nunca para trás. Quando Ele diz "não julguem", o que Ele está querendo dizer é que vocês têm que ser pessoas que estão olhando tão para frente que não estão nem prestando atenção nessas minudências. Tenham um olhar grande, um olhar magnânimo, tenham uma alma realmente generosa e bondosa.
E vocês não vão se preocupar; as pessoas vão ofender vocês e vocês não vão nem perceber. Que maravilha você ter essa liberdade interior, né? Chega uma pessoa e fala assim: "Olha, queria te pedir desculpas pelo que eu fiz com você.
" O que você fez comigo? "Não, porque aquele dia, tal. .
. " Nossa, eu nem reparei! Se você não falasse, eu não saberia.
Quer dizer, alguém que está olhando numa direção tão mais alta que nem se dá conta de ofensas, de nenhum tipo de ataque. Tá. Para além disso, Jesus quer te levar além.
Ele quer te tirar desse sequestro de paixões tão pequenas, tão insignificantes. Nós precisamos crescer no Evangelho, queridos irmãos. Nós precisamos crescer para termos a maturidade, a superioridade do amor.
Vamos pedir perdão ao Senhor por sermos tão mesquinhos, tão pequenos; os nossos juízos, por sermos tão facilmente irritáveis, tão facilmente atingíveis, por as pessoas conseguirem acessar de modo tão fácil as nossas carências. Peçamos ao Senhor que Ele nos dê uma certa irritação com essa nossa infantilidade que nós temos, um certo abuso de nós mesmos, que nós olhemos e nos enojemos um pouco. Poxa, eu estou há tantos anos caminhando na palavra, mas eu ainda sou tão primário!
Eu tenho reações tão atávicas, tão brutas. E peçamos ao Senhor que Ele nos conceda um crescimento verdadeiro no amor, porque apenas um crescimento verdadeiro no amor é que nos permitirá estar numa posição real de liberdade. De outro modo, nós estaremos sempre debaixo do cativeiro das dificuldades que sempre existirão na convivência humana.
Que o Senhor nos liberte disso tudo e nos coloque numa posição de segurança, paz e invulnerabilidade, no amor da sua palavra.