Uma pergunta que eu sempre vejo aqui na comunidade é a seguinte: como saber se a pessoa realmente é autista ou se ela só tem uma personalidade, um temperamento mais introspectivo? Bem, é sobre isso que nós vamos conversar aqui hoje. Para começar, é muito importante conhecer, então, a teoria da personalidade que é mais aceita hoje em dia.
Aqui, é a teoria dos cinco grandes fatores, ou o modelo Big Five, também conhecido assim. Esse modelo vai descrever e organizar os principais traços de personalidade que são encontrados dentro da população em geral. E é muito interessante porque esses traços são considerados relativamente estáveis ao longo da nossa vida.
Quando você reconhece as suas características ou seus traços de personalidade, você também começa a compreender melhor por que as pessoas são tão diferentes. Lembrando que, embora não mudem tanto ao longo da vida, nós só vamos falar de uma personalidade constituída depois da adolescência. É por isso que os transtornos de personalidade também não costumam ser diagnosticados antes dos 18 anos.
Dito isso, vamos ver quais são esses cinco grandes fatores da personalidade. Em inglês, eles costumam usar a palavra OCEAN para representar esses cinco grandes fatores. Essa palavra é formada pelas iniciais: Abertura a Experiência (em inglês, Openness), Conscienciosidade (que a gente não precisa traduzir, que é Conscientiousness), Extroversão (Extraversion), Amabilidade (Agreeableness) e Neuroticismo (Neuroticism).
Agora, então, vamos falar sobre cada um desses itens ou fatores de forma individualizada. Nós vamos ter a Abertura a Experiência como primeiro fator. Como o próprio nome já diz, esse fator vai descrever o seu grau de interesse ou gosto por novas experiências, por novas ideias, por novas emoções.
Então, as pessoas que pontuam mais alto nesse fator tendem a ser mais criativas, curiosas, imaginativas, mais receptivas a diferentes perspectivas e ideias. É aquela pessoa que não gosta de mesmice e ama aventura, porque o desconhecido geralmente não vai intimidá-las. Pelo contrário, é justamente sair da zona de conforto que atrai.
Claro, nós devemos muitas descobertas na nossa história a essas pessoas. Aliás, o mundo vem se transformando por causa delas, por causa desses seres humanos destemidos, como Alexandre, o Grande, e a australiana disléxica Jessica Watson, que também é fantástica. Ela foi a primeira jovem a dar a volta ao mundo.
Mas esse aspecto não é fundamental para que o diagnóstico seja feito; ou seja, algumas pessoas neurotípicas podem sim gostar de aventuras. E tem um detalhe: às vezes, as minhas clientes falam que gostam de aventuras, mas elas têm que ser aventuras programadas. O segundo fator é a Conscienciosidade.
Esse fator da personalidade, então, está relacionado à organização, à disciplina, à responsabilidade e à determinação para cumprir as suas metas e tarefas. As pessoas com alta conscienciosidade são geralmente muito meticulosas, confiáveis, e são pessoas muito trabalhadoras, às vezes autocontroladas. Então, é aquela criança que faz o dever de casa sem ninguém mandar.
Ela tende a ser muito pontual, faz as suas tarefas com muito capricho. Às vezes, em vez de procrastinadora, essa pessoa é bem organizada; ou seja, ela prepara tudo com antecedência, cumpre os prazos e vai se esforçar para alcançar os seus objetivos. Se esse fator estiver muito rebaixado, vamos ver que a pessoa pode ter baixa conscienciosidade, o que significa que ela pode ser mais desorganizada, mais impulsiva e menos motivada para cumprir as suas responsabilidades.
Novamente, aqui nós esbarramos nas alterações do neurodesenvolvimento. Por quê? Porque até onde as disfunções executivas, por exemplo, vão afetar a personalidade?
O que é um e o que é o outro? Mas saiu uma metanálise em 2018 indicando que as pessoas autistas tendem a ter baixa conscienciosidade, mas não é exatamente isso que eu vejo no consultório, porque as minhas alunas também costumam ser muito determinadas, muito cuidadosas, muito focadas nos objetivos delas, de terminar o doutorado, de fazer um trabalho difícil. Mas tem aqueles que realmente têm disfunções executivas.
Então, vamos passar ao próximo fator e ver a Extroversão. Esse fator se refere ao grau de sociabilidade, assertividade social e busca por contatos e interações. As pessoas extrovertidas são mais energizadas justamente por essas interações sociais.
Elas são comunicativas, sociáveis e geralmente são aquelas pessoas que buscam ser o centro das atenções, ou pelo menos são desinibidas. E aqui a gente tem que ter um cuidado, porque ser extrovertido não significa ser histriônico, e às vezes, principalmente no caso das mulheres, há essa confusão com transtorno de personalidade histriônica. Mas sim, as pessoas extrovertidas tendem a ficar mais à vontade com os holofotes e, por isso, podem ter uma composição de liderança.
Mas essa é uma outra questão: a personalidade não é um transtorno. As pessoas introvertidas, que vão estar no outro extremo desse espectro desse fator, são aquelas mais reservadas, as quietinhas, que preferem a solitude ou buscam interações sociais mais discretas e calmadas, em ambientes mais reservados. Geralmente, essas pessoas vão precisar de mais tempo sozinhas para recarregar as suas energias, e está tudo bem se não houver prejuízo.
Mais uma vez, não é transtorno. E aqui, novamente, pelos estudos, a tendência é de que as pessoas autistas sejam mais introspectivas, mas sim, existem grandes artistas, espectrais, humoristas, apresentadores de TV que se sentem energizados em contato com outros seres humanos. E nesse caso, então, pelo menos naquela situação programada, essas pessoas se dizem extrovertidas, ou talvez tenham construído uma máscara de extroversão.
Eu estou me lembrando de um caso em que uma menina, uma aluna minha, era muito literal. E aí, os colegas riam de tudo que ela falava em classe. Então, de forma inconsciente, até, ela se tornou a humorista, a palhaça da sala, e incorporou esse humor peculiar como um valor.
A questão é que a gente precisa ouvir muito, precisa escutar bem cada história. Para saber se é um traço de personalidade ou se é uma compensação para uma dificuldade que a pessoa tem, o quarto fator do Big Five é a amabilidade. Esse fator envolve uma disposição para cooperar, para fazer laços, para ser agradável com os outros, ter empatia, com paixão, vontade de ajudar.
As pessoas com alta amabilidade tendem a ser muito gentis, prestativas e confiáveis, e elas podem ter facilidade para perceber quais são os sentimentos das outras pessoas e as necessidades de quem está perto delas. Portanto, essas pessoas também costumam ter atitudes e palavras que confortam, né? Costumam ser efetivas nisso.
E como a própria palavra já diz, essas pessoas muito amáveis são aquelas que valorizam a harmonia social e que trabalham para o bem-estar geral da sua comunidade, às vezes do planeta mesmo. Mas e quando esse fator está rebaixado? O que nós vamos ver?
Bem, as pessoas com baixa amabilidade podem ser, sim, mais egoístas, mais competitivas, menos preocupadas com o impacto das suas próprias ações na vida dos outros, na vida da família ou dos colegas. Ou seja, no extremo da falta da amabilidade, nós temos pessoas mais narcisistas. Quanto ao autismo, pois é, sempre surge essa pergunta.
E sim, as pessoas autistas podem ter a tendência a apresentar comportamentos mais autocentrados, que não significa ser narcisista, não significa ter o transtorno de personalidade narcisista. Pelo contrário, às vezes o autista ou a autista é extremamente preocupado com causas sociais, ou a pessoa quer o bem-estar de todos e trabalha para isso de forma muito efetiva. Mas ter foco, por exemplo, pode evitar que essa pessoa autista deixe os outros falarem sobre o que eles gostam também.
Então a pessoa monopoliza o papo, né? Não tem um diálogo, não tem troca de turno. A inflexibilidade mental também pode dificultar a conexão com ideias e propostas diferentes, e às vezes a menina autista é vista como muito mandona porque ela quer organizar toda a brincadeira, por exemplo.
Um outro detalhe é que a sensibilidade aumentada pode também parecer um egoísmo. Por quê? Porque só você quer desligar o ar condicionado do escritório, só você quer baixar o volume da TV e só você pede à sua mãe para tirar a cebola de todas as receitas.
Quer dizer, a pessoa sensível também pode parecer mais egoísta porque ela precisa alterar o mundo para que ela sobreviva. Finalmente, o quinto fator do Big Five é o neuroticismo, e o neuroticismo se refere ao grau de instabilidade emocional, de ansiedade, preocupação, a tendência que a pessoa tem também a experimentar emoções negativas e preocupações. Então, quem pontua mais alto nesse fator tende a estar mais propenso a sofrer de ansiedade, depressão e irritabilidade, raiva, tristeza, hostilidade.
Ou seja, esse é o único fator que, se estiver acima da média, vai nos trazer dificuldades. O alto neuroticismo, no caso, significa ter uma personalidade menos resiliente, ou significa ter menos inteligência emocional, digamos assim, porque a pessoa mais pessimista já tem dificuldade realmente para regular as suas emoções e, obviamente, pode ter menos agilidade para sair das situações de estresse. Então, às vezes, fica ali naquele redemoinho cheio de problemas e não consegue resolver.
Já quem tem o neuroticismo mais baixo costuma ser mais leve, mais otimista. São aquelas pessoas que estão presentes em cada momento e, claro, por isso, elas tendem a ser mais resilientes. Nesse caso, você acha que as pessoas autistas costumam ter esse fator mais alto ou mais rebaixado?
Bem, de acordo com a metanálise que eu citei aqui, em 2018, esse é o único fator que tende a estar elevado nos autistas. Quer dizer, pelos estudos, a maior parte das pessoas diagnosticadas no espectro autista costuma ser pouco abertas a novidades, podem ser pouco determinadas, pouco motivadas para o trabalho, para os estudos, mas introspectivas, pouco empáticas e muito instáveis emocionalmente. O que você acha disso?
Bom, é importantíssimo, antes de mais nada, lembrar de um detalhe: mesmo que você tenha alguns fatores de personalidade rebaixados, isso não significa que você tenha um problema. Para que a pessoa seja dignificada com um transtorno, é preciso haver prejuízo na verdade, intensidade, frequência e prejuízo. Esse é o mantra da psicopatologia.
No caso do autismo, o profissional precisa verificar a presença de todos os itens do critério A, que fala da capacidade de comunicação e interação social. Esses três itens são: a falta de reciprocidade sócio-emocional, a dificuldade na comunicação verbal não verbal e na integração entre os gestos, a expressão facial e a fala, e a dificuldade para compreender os relacionamentos. Basicamente, é isso.
E também é necessário verificar a presença de pelo menos dois dos quatro itens do critério B, que fala dos comportamentos e interesses, por exemplo, restritivos e repetitivos. Esses quatro itens são: as estereotipias motoras e da fala, por exemplo, a inflexibilidade mental, os interesses muito específicos ou “fixações” e a hiper ou hiporreatividade aos estímulos sensoriais. Então, resumindo, nem tudo é autismo, obviamente, e nem toda pessoa tímida ou introspectiva vai ser autista.
Mas é o que tudo indica, sim, já que essas alterações do neurodesenvolvimento acontecem de forma precoce na vida, e elas podem ter um impacto na formação da personalidade das pessoas neurodivergentes. Mesmo assim, não dá para generalizar. Porque o que eu quero dizer com isso?
Eu quero dizer que o espectro, você já sabe, é muito colorido, multifacetado e quase sempre surpreendente. Ou seja, a gente precisa ouvir cada história e se deixar surpreender pelas características e habilidades de cada pessoa. E, se você quiser fazer um teste simples para ter uma ideia da sua pontuação do Big Five, eu vou deixar um link aqui na descrição do vídeo, porque assim você mata sua curiosidade.
E eu não sei se você já está sabendo, mas eu escrevi dois capítulos para o livro "Simplificando o Autismo". O livro está riquíssimo, e eu escrevi um capítulo sobre o espectro feminino. Claro que é meu tema principal, meu foco.
O segundo capítulo foi sobre a evitação extrema. Temos um vídeo aqui no canal sobre esse assunto; vou deixar nos cards. No livro, são mais de 50 autores que compartilham a sua experiência, justamente para nos ajudar a compreender melhor as cores do espectro.
E, se você quer adquirir o seu exemplar, é só clicar também no link que eu vou deixar aqui abaixo, nos comentários e na descrição. Agora, eu quero saber o que você achou dessa nossa conversa de hoje. Você já tinha tido essa preocupação sobre uma possível confusão entre os traços autísticos e os traços naturais da personalidade?
Conte aqui para a gente! Eu sei que esse assunto é muito mais longo, muito mais detalhado e muito mais complexo, porque, além dos grandes fatores de personalidade, temos os subfatores. Mas hoje foi um dia de dar uma pincelada básica nesse assunto para que a gente inicie a conversa.
E, se vocês quiserem, depois a gente pode, sim, se aprofundar nessa discussão. Então, por enquanto, um grande abraço e até a próxima quinta-feira! Tchau, tchau!