Uma menina de rua salvou um milionário que atravessava a rua sem prestar atenção, mas o que aconteceu com ela deixou o milionário em lágrimas. Pedro e Clara cresceram em um vilarejo pequeno, daqueles onde todo mundo conhece todo mundo. Era um lugar tranquilo, com ruas de terra cercadas por campos verdes e árvores grandes que davam sombra para as crianças brincarem durante as tardes quentes. As casas eram simples, com paredes de tijolo aparente e telhados de barro, mas havia um charme especial em cada canto do vilarejo. E, no meio desse cenário, estavam Pedro e Clara, inseparáveis
desde que se conheciam por gente. Eles moravam na mesma rua e isso facilitava tudo. Logo cedo, antes mesmo de aprenderem a amarrar os próprios sapatos, já estavam lado a lado explorando cada canto do vilarejo. Pedro era o mais destemido; sempre liderava as aventuras, sugerindo que eles subissem nas árvores mais altas ou procurassem tesouros enterrados no terreno baldio do senhor Arnaldo. Clara, por outro lado, era mais cautelosa, mas isso não significava que ela ficava para trás. Quando Pedro inventava alguma ideia maluca, ela franzia o nariz, bufava um pouco e dizia: “Tá bom, mas se der errado,
a culpa é sua.” E lá iam os dois. As risadas deles ecoavam pelas ruas, especialmente nos fins de tarde, quando o sol ia caindo e a luz dourada deixava tudo mais bonito. Tinha um campo de girassóis atrás da casa do seu Zé e era lá que eles passavam a maior parte do tempo, correndo, brincando de esconde-esconde ou só deitando no chão para olhar as nuvens. Clara sempre inventava formas engraçadas para as nuvens. “Olha ali, Pedro, um coelho!” E Pedro, que nem sempre enxergava as mesmas coisas, respondia: “Ah, Clara, isso tá mais para uma galinha com
asas gigantes.” Quando chovia, eles não ficavam dentro de casa como outras crianças; adoravam sair correndo na chuva, pisando nas poças, sentindo a água escorrer pelo rosto. Claro que depois levavam broncas das mães por entrarem em casa encharcados e sujando tudo, mas nenhuma bronca durava muito tempo, porque era impossível ficar bravo com aqueles dois por muito tempo. O vilarejo também tinha um pequeno rio que ficava a poucos minutos de caminhada de onde moravam. Nos dias mais quentes, Pedro e Clara costumavam ir até lá para molhar os pés na água gelada. Pedro adorava jogar pedrinhas e tentar
fazê-las quicar na superfície; nunca foi muito bom nisso, mas Clara ria toda vez que ele errava. “Você precisa de mais prática,” dizia, enquanto ela mesma conseguia fazer a pedra pular duas ou três vezes antes de afundar. Tinha também o cachorro do senhor João, o Max, que adorava seguir os dois a todo lado. O Max era um viralata grande, mas muito carinhoso; ele era praticamente o terceiro membro da dupla. Sempre que eles saíam para explorar, lá estava Max, abanando o rabo e pulando ao redor deles. Uma vez, Pedro jurou que Max tinha farejado um tesouro de
verdade. Passaram a tarde inteira cavando um buraco no quintal da Dona Maria. No fim, tudo o que encontraram foi uma velha panela enferrujada, mas aquilo foi de risadas por semanas. Clara tinha um cantinho especial, uma árvore enorme na entrada do vilarejo, onde penduraram um balanço improvisado com tábua. Ela dizia que aquele era o melhor lugar do mundo, porque podia ver quase tudo: as casas, o campo de girassóis, até o rio, se esticasse o pescoço suficiente. Pedro sempre empurrava o balanço para ela e Clara adorava sentir o vento bagunçando os cabelos enquanto subia e descia. Às
vezes, ela fechava os olhos e imaginava que estava voando. Apesar de serem inseparáveis, Pedro e Clara não concordavam em tudo. De vez em quando, como toda amizade de verdade, vez ou outra discutiam por causa de um carrinho de madeira que Pedro tinha construído. Clara queria pintá-lo de azul; Pedro insistia que vermelho era melhor. O dia inteiro até que decidiram: “Metade de cor tá bom assim?” perguntou Pedro, e Clara respondeu com um sorriso: “Tá perfeito!” As festas do vilarejo eram os momentos mais animados para eles. Sempre tinha uma fogueira, música ao vivo e aquelas comidas deliciosas
que todo mundo trazia de casa. Pedro adorava correr ao redor da fogueira, tentando puxar Clara para dançar. “Eu não sei dançar!” ela sempre dizia, meio sem jeito, mas Pedro não ligava; ele apenas segurava a mão dela e girava, rindo, até que os dois caíssem na grama, ofegantes de tanto rir. O que era mais bonito na amizade deles é que, mesmo tão novos, sabiam que podiam contar um com o outro para qualquer coisa. Se Pedro machucava o joelho subindo em alguma árvore, Clara estava lá para limpar o machucado com um paninho que sempre carregava no bolso.
Se Clara tinha medo de alguma coisa, como na vez em que um trovão forte balançou as janelas da casa, Pedro aparecia para segurar sua mão e dizer: “Não precisa ter medo, eu tô aqui.” Todo mundo no vilarejo sabia que Pedro e Clara eram inseparáveis; onde um estava, o outro estava também. Eles eram como duas metades de um mesmo coração, vivendo uma infância cheia de momentos simples, mas tão felizes que pareciam mágicos. Mesmo sem saber, estavam construindo memórias que ficariam para sempre gravadas neles. O que eles tinham era único e qualquer um que os visse sabia
que aquela amizade não era só coisa de criança; era especial. Quando Pedro completou 17 anos, a vida no vilarejo parecia seguir o mesmo ritmo de sempre, mas algo entre ele e Clara estava diferente. Não foi algo que eles decidiram ou conversaram; foi como se, de repente, a forma como olhavam um para o outro tivesse mudado. Clara, com 16 anos, ainda tinha aquele jeito espontâneo e teimoso de infância, mas Pedro agora via de outro jeito, e Clara também reparava que Pedro não era mais só o garoto desajeitado que a fazia rir até a barriga doer. Naquele
verão, Pedro... Estava mais alto, o rosto começava a ganhar traços mais maduros e o cabelo bagunçado parecia combinar com a maneira descontraída dele. Clara implicava, como sempre: “Você tá se achando só porque cresceu uns centímetros, hein?” Mas Pedro não respondia; com isso, ele só sorria de canto, deixando-a ainda mais sem graça. Clara também tinha mudado; os olhos dela brilhavam de um jeito diferente, e Pedro parecia não conseguir desviar o olhar quando ela estava por perto. Tudo começou a ficar claro quando Clara pediu ajuda a Pedro para consertar uma roda de bicicleta. “Tá toda torta, dá
para arrumar?” perguntou, jogando o cabelo para trás enquanto segurava a bicicleta com uma das mãos. Pedro, sem pensar, respondeu: “Eu posso tentar, mas não garanto.” Ele tinha consertado aquela roda como se fosse a coisa mais normal do mundo, mas o que o pegou de surpresa foi o jeito como Clara olhou para ele depois. Não era só gratidão; era um olhar diferente que fez Pedro ficar com as palavras entaladas na garganta. A coisa ficou ainda mais óbvia durante a festa junina do vilarejo. Era tradição, todo ano: fogueira, música, barracas de comida e uma dança que ninguém
podia evitar. Pedro sempre tinha sido meio desajeitado para dançar, mas naquele ano, quando alguém chamou Clara para a quadrilha, Pedro sentiu um nó no estômago. Sem pensar, se adiantou e disse: “Ela vai dançar comigo.” Clara ficou vermelha na hora, mas aceitou a mão dele sem reclamar. Durante a dança, iram como sempre, mas havia algo nos gestos, na maneira como os olhos deles se encontravam, que não dava para disfarçar. Depois disso, os dois começaram a passar mais tempo sozinhos. Eles iam até o balanço de corda ou campo de girassóis, como sempre fizeram, mas agora havia um
silêncio diferente entre eles. Não era desconfortável, mas era como se ambos estivessem esperando que algo acontecesse. Uma tarde, enquanto Clara estava sentada no balanço e Pedro a empurrava, ela perguntou do nada: “Você acha que as coisas vão mudar quando a gente crescer?” Pedro parou de empurrar. “Por que você tá perguntando isso?” ele quis saber, tentando esconder o nervosismo na voz. Clara olhou para ele com um sorriso meio triste: “Eu só fico pensando. E se um dia a gente parar de se ver? E se nossas famílias decidirem separar a gente?” Pedro não soube o que dizer.
Ele sabia que os pais dos dois não aprovavam nem amizade, quanto mais o que estava começando a surgir entre eles. Mas naquele momento, Pedro tomou coragem e disse: “Enquanto depender de mim, isso nunca vai acontecer.” Foi naquela mesma tarde, enquanto o sol se punha, que algo inesperado aconteceu. Clara desceu do balanço e, sem aviso, deu um beijo rápido no rosto de Pedro. “Só para você lembrar do que prometeu,” ela disse, rindo nervosa. Pedro ficou paralisado por um segundo, mas depois pegou na mão dela e a puxou para perto. Foi a primeira vez que os dois
se beijaram de verdade: um beijo tímido e meio desajeitado, mas que parecia ter o peso do mundo inteiro para eles. Depois daquele dia, nada foi mais igual. Eles começaram a se ver com mais frequência, mas agora tinham que tomar cuidado; as famílias estavam ficando cada vez mais desconfiadas. A mãe de Clara vivia perguntando: “Por que você passa tanto tempo com o Pedro? Esse menino só vai te levar para o mau caminho!” E o pai de Pedro também não ajudava: “Você devia parar de gastar tempo com o namorico e se concentrar no trabalho.” Apesar das dificuldades,
Pedro e Clara sempre arrumavam um jeito de se encontrar. Às vezes era no meio da noite, com Pedro jogando pedrinhas na janela dela para avisar que estava esperando. Outras vezes, eles se encontravam perto do rio, longe dos olhares curiosos do vilarejo. Clara tinha o hábito de levar Pedro para os campos de girassóis, dizendo que aquele era o único lugar onde ela se sentia livre. “Você passa a maior parte do tempo brigando comigo,” brincava ele, e Clara respondia com um sorriso: “É porque você merece.” Com o passar do tempo, o sentimento entre eles só cresceu. Era
algo novo, mas ao mesmo tempo parecia que sempre esteve ali. Pedro gostava de proteger Clara, mas também de ouvir as ideias dela, de compartilhar seus sonhos. Clara adorava como Pedro a fazia rir, mas também como ele se preocupava com ela de um jeito que ninguém mais fazia. Eles sabiam que as coisas não seriam fáceis, que o mundo em volta deles parecia estar sempre tentando separá-los, mas o que sentiam um pelo outro era mais forte do que qualquer barreira, e enquanto estivessem juntos, nada parecia impossível. A situação em casa estava insustentável. A mãe de Clara já
tinha dado um ultimato: “Ou você para de se encontrar com aquele garoto, ou eu mesma dou um jeito nisso.” O pai de Pedro não era mais sutil: “Você acha que pode sustentar uma família brincando de amor? Acorda, moleque! A vida não é como você pensa.” Mas o que ninguém parecia entender é que Pedro e Clara não estavam brincando; o que sentiam era sério. Era forte, e eles estavam dispostos a fazer qualquer coisa para ficarem juntos. “E se a gente fosse embora daqui?” Pedro disse, olhando para Clara com os olhos cheios de preocupação. Era tarde da
noite, e eles estavam sentados perto do rio, longe de tudo e de todos. Clara riu de nervoso. “Embora para onde? A gente não tem nada, Pedro!” Mas, no fundo, aquela ideia ficou martelando na cabeça dos dois. O plano começou a ganhar forma numa noite em que Clara apareceu na janela do quarto de Pedro com os olhos inchados de tanto chorar. “Minha mãe disse que vai me mandar para a tia na cidade grande. Disse que é para eu aprender a ter juízo.” Pedro sentiu o estômago revirar. Eles sabiam que, se Clara fosse embora, não teriam como
se ver. De longe, um do outro, a gente. Pedro disse decidido. Clara ficou olhando para ele como se estivesse esperando que ele mudasse de ideia, mas Pedro estava sério. "Vamos, Clara, pegamos o primeiro ônibus e começamos do zero, só a gente. A gente pode fazer isso." Clara não respondeu de imediato; ficou olhando para ele como se estivesse tentando medir se ele realmente acreditava naquilo. "E se der errado?" Ela perguntou com a voz baixa. Pedro segurou as mãos dela. "E se der certo?" Ele respondeu. Naquela mesma noite, os dois começaram a se preparar. Não tinham muito
para levar. Clara colocou algumas roupas em uma mochila velha e pegou um colar que era da avó, o único objeto que tinha valor sentimental para ela. Pedro juntou umas poucas economias que tinha guardado depois de trabalhar na colheita de milho com o pai. Não era muito, mas era o suficiente para as passagens. Eles combinaram de se encontrar na rodoviária antes do amanhecer. Pedro chegou primeiro, com o coração disparado. Ele olhava para os lados, esperando ver Clara aparecer a qualquer momento, mas o tempo passava e ela não vinha. Por um segundo, pensou que ela tinha desistido,
que tinha ficado com medo ou que a mãe tinha descoberto. Então, no meio da luz fraca do amanhecer, ele viu Clara correndo pela rua, segurando a mochila com força. Quando chegou perto, ela estava sem fôlego, mas com um sorriso determinado no rosto. "Achei que você tinha desistido," Pedro disse aliviado. Clara apenas respondeu: "Nunca." Eles subiram no ônibus juntos, sem olhar para trás. Clara encostou a cabeça no ombro de Pedro enquanto o ônibus começava a se mover, e ele sentiu o peso de tudo que estavam deixando para trás. Era assustador, mas ao mesmo tempo tinha algo
de libertador naquilo. A viagem parecia interminável; a paisagem mudava, mas Pedro e Clara quase não falavam. Era como se estivessem guardando as palavras para mais tarde, para quando realmente precisassem. Quando finalmente chegaram à cidade, foram recebidos por um caos que não estavam acostumados: o barulho, as pessoas, os carros; era tudo novo e um pouco assustador. Eles começaram a andar sem rumo, tentando encontrar um lugar para ficarem. Acabaram encontrando uma pensão simples, quase escondida numa rua estreita. O dono, um senhor com cabelos brancos e um sorriso cansado, olhou para eles com desconfiança, mas acabou aceitando o
pouco dinheiro que tinham. O quarto era pequeno, com paredes descascadas e uma janela que quase não abria, mas para Pedro e Clara era o começo de tudo. Naquela primeira noite, sentados no chão do quarto, eles finalmente falaram sobre o que tinham feito. Clara estava nervosa. "E se eles vierem atrás da gente?" Pedro balançou a cabeça. "Eles não vão, e mesmo que venham, não podem nos separar; a gente tá junto agora, é o que importa." Os dias seguintes foram difíceis; o dinheiro acabou rápido e Pedro precisou ir procurar trabalho. Ele passou horas andando pela cidade, batendo
de porta em porta, até que conseguiu um emprego como ajudante em uma oficina mecânica. Não era o que ele sonhava fazer, mas era honesto, e o dono da oficina, um homem chamado Antônio, parecia disposto a ensinar tudo o que sabia. Enquanto isso, tanto os pais de Clara quanto os de Pedro, ao descobrirem que os filhos haviam fugido, não demonstraram nenhuma preocupação. Eles apenas disseram que se escolheram viver essa loucura. "Ainda bem que foi longe dali." O tempo passou e eles seguiram suas vidas sem demonstrar preocupação com o paradeiro dos filhos. Enquanto isso, Clara ficou responsável
por cuidar do pequeno espaço que agora chamavam de lar. Ela se esforçava para manter o lugar arrumado e fazia o melhor que podia com o pouco que tinham. Às vezes, Pedro voltava da oficina e a encontrava tentando cozinhar algo novo, mesmo sem muita prática. "Tá parecendo mais sopa do que arroz," Pedro brincava, e Clara respondia com um olhar falso de indignação: "Quero ver você fazer melhor." Apesar de tudo, eles estavam felizes. Pela primeira vez, podiam ser quem realmente eram, sem olhares de reprovação, sem pressões ou julgamentos. Era uma felicidade simples, construída nos pequenos momentos: no
jantar improvisado, nas risadas depois de um dia difícil ou no conforto de saber que, mesmo longe de casa, tinham um ao outro. Eles sabiam que o caminho seria longo e cheio de desafios, mas também sabiam que tinham feito a escolha certa. Aquela fuga não era só uma forma de escapar dos problemas; era o primeiro passo para construírem a vida que sempre sonharam juntos. A vida de Pedro e Clara começou a entrar em um ritmo. Não era uma vida fácil, mas era a vida que eles tinham escolhido. Pedro continuava trabalhando na oficina, onde já tinha aprendido
o suficiente para ganhar a confiança de Antônio, o dono. Ele agora mexia em motores sozinho e, de vez em quando, até recebia gorjetas dos clientes, o que ajudava muito. Clara, por outro lado, tinha começado a costurar em casa. Com um pouco de paciência e alguns retalhos que conseguiu na loja de tecidos da esquina, ela começou a fazer pequenos reparos, e logo os vizinhos começaram a aparecer pedindo ajuda. Eles viviam apertados, mas havia felicidade na simplicidade. À noite, depois do jantar, que ainda era mais sopa do que qualquer outra coisa, os dois ficavam sentados na cama
pequena, rindo de histórias do passado ou planejando o que fariam no futuro. "Um dia a gente vai ter uma casa de verdade, com um quintal e uma horta," Clara dizia, sonhadora. Pedro apenas sorria e concordava; ele gostava de ver como os olhos dela brilhavam quando falava do futuro. Então, um dia, Clara começou a notar algo diferente. Ela se sentia cansada mais rápido do que o normal e, às vezes, o cheiro de comida a deixava enjoada. No começo, ela achou que era o estresse ou a rotina puxada, mas as semanas passaram e os sintomas só aumentaram.
que numa manhã, enquanto estendia roupas no varal improvisado que tinham montado perto da janela, ela sentiu uma tontura tão forte que precisou sentar. Pedro estava saindo para o trabalho e correu até ela. — Clara! O que foi? Você tá bem? Ela olhou para ele com um sorriso fraco. — Eu acho que a gente precisa conversar. Naquela noite, sentados no chão do quarto, com as luzes apagadas e apenas um abajur aceso, Clara deu a notícia. — Pedro, eu acho que tô grávida. Ele arregalou os olhos, primeiro em surpresa, depois em preocupação. — Você tem certeza? —
perguntou, tentando processar a informação. Clara balançou a cabeça. — Não completamente, mas sinto que sim. Pedro ficou em silêncio por um momento, olhando para o chão. Não era o tipo de notícia que ele esperava; a vida já era tão difícil, e agora trazer uma criança ao mundo parecia assustador. Mas quando ele olhou para Clara novamente, viu algo nos olhos dela. Não era medo, era esperança, e naquele momento, Pedro decidiu que, acontecesse o que acontecesse, eles dariam um jeito. No dia seguinte, com o pouco dinheiro que tinham, foram até uma pequena clínica no bairro. A enfermeira
que os atendeu era uma mulher gentil que confirmou que Clara já sentia. — Parabéns! Vocês vão ser pais! — ela disse, sorrindo. Pedro olhou para Clara, e os dois se deram às mãos. Eles não disseram nada, mas o olhar que trocaram dizia tudo: estavam juntos nessa. A gravidez não foi fácil. Clara continuava trabalhando, costurando para ajudar nas despesas, mas os enjoos e o cansaço às vezes a deixavam esgotada. Pedro fazia o possível para aliviar o peso; começou a fazer pequenos bicos nos finais de semana, entregando encomendas de bicicleta para um mercado próximo. Ele queria economizar
o máximo que pudesse antes do bebê chegar. Mesmo com todas as dificuldades, havia momentos de pura alegria. Uma vez, quando Clara estava no sétimo mês, Pedro chegou em casa com um embrulho desajeitado. — O que é isso? — ela perguntou, curiosa. Pedro sorriu e abriu o pacote, revelando um pequeno cobertor de lã. — Eu vi na loja e pensei que o bebê ia gostar — ele disse, um pouco sem jeito. Clara ficou olhando para o cobertor com lágrimas nos olhos. — Vai ser o cobertor mais bonito do mundo! — ela disse, abraçando Pedro com força.
Quando chegou o grande dia, foi de surpresa. Clara estava em casa, terminando de costurar uma peça para entregar, quando sentiu uma dor forte que a fez parar no meio do trabalho. — Pedro! — ela gritou, segurando a barriga. Ele estava na oficina, mas, por sorte, um dos vizinhos ouviu e correu para ajudar. Minutos depois, Pedro chegou esbaforido e sem fôlego. Encontrou Clara sentada na cama, ofegante. A ida até o hospital foi uma correria; era um lugar simples, sem muitos recursos, mas a equipe foi atenciosa. Pedro ficou do lado de fora da sala de parto, andando
de um lado para o outro como se estivesse pisando em brasas. Ele ouvia os sons vindos lá de dentro e sentia o coração quase sair pela boca, até que, de repente, o choro de um bebê ecoou pelo corredor. Uma enfermeira apareceu na porta, segurando um pequeno embrulho nos braços. — Parabéns, papai! É uma menina! Pedro ficou paralisado por um segundo, até que a enfermeira colocou a bebê em seus braços. Ela era tão pequena, com os olhos fechados e o rostinho lindo. Para Pedro, era a mais perfeita que ele já tinha visto. Quando entrou no quarto,
Clara estava exausta, mas sorrindo. — Você tá bem? — ele perguntou, sentando ao lado dela. Ela apenas olhou para o bebê nos braços dele e disse: — Ela tá bem. É o que importa. Eles decidiram chamá-la de Sofia. O nome veio de um sonho que Clara teve durante a gravidez, em que segurava uma criança com aquele nome, que significa "sabedoria". — Acho que ela vai ensinar muita coisa pra gente. A chegada de Sofia mudou tudo. A vida de Pedro e Clara já era difícil, mas agora que eles tinham um propósito maior, cada choro de madrugada,
cada fralda trocada, cada sorriso banguela que Sofia dava fazia tudo valer a pena. Eles não tinham muito, mas tinham um ao outro e agora tinham Sofia, e isso era mais do que suficiente. Sofia tinha acabado de completar um ano quando Clara começou a perceber que algo estava errado. Não foi uma coisa repentina, mas pequenos sinais que no começo ela tentou ignorar. Primeiro foi o cansaço que não passava, mesmo depois de dormir bem. Depois vieram os hematomas que apareciam sem motivo. Ela achava estranho, mas dizia para si mesma que provavelmente era só porque andava exausta, cuidando
de Sofia e ajudando Pedro com as contas. Só que o tempo foi passando e as coisas pioraram. Ela começou a ter febres frequentes, daquelas que deixam o corpo pesado, como se cada movimento fosse uma batalha. Uma tarde, enquanto estava na cozinha preparando algo para Sofia, Clara sentiu uma tontura tão forte que precisou se apoiar na pia. Pedro, que tinha acabado de chegar do trabalho, largou tudo e correu até ela. — Clara, o que tá acontecendo com você? Você tá pálida! Clara tentou disfarçar. — Não é nada, Pedro. Deve ser só o calor. Mas ele não
acreditou. Já fazia dias que estava preocupado. Pedro era observador, e o sorriso de Clara, aquele sorriso que ele amava, estava diferente; parecia cansado, apagado. Naquela noite, enquanto Sofia dormia, Pedro insistiu: — Você precisa ver um médico, Clara. Isso não é normal. Ela tentou argumentar, mas ele não deixou. — Pensa na Sofia. Ela precisa de você bem. No dia seguinte, Clara foi até um posto de saúde. A médica que a atendeu era jovem e simpática, mas ficou séria quando começou a fazer as perguntas e os exames. Clara respondeu tudo, tentando não demonstrar nervosismo, mas o coração
batia acelerado. A médica pediu um exame de sangue e disse que os resultados sairiam em poucos dias. Pedro tentou acalmá-la enquanto esperavam. — Vai ser só uma… Deficiência de vitamina ou algo assim, ele dizia, tentando soar confiante, mas Clara percebia que ele também estava nervoso. Quando os resultados finalmente saíram, o telefone tocou e era a médica pedindo que Clara fosse até o consultório para conversar. O tom de voz dela deixou Clara inquieta. — Será que é sério? — perguntou a Pedro, segurando Sofia no colo. Pedro colocou a mão no ombro dela. — Não importa o
que for, vamos enfrentar juntos. No consultório, a médica explicou com calma, mas nada podia amenizar o impacto das palavras que Clara ouviu: leucemia. Clara ficou em choque; era como se o mundo ao redor dela tivesse parado de girar. Ela mal conseguia ouvir o que a médica dizia sobre tratamentos e exames adicionais; tudo que vinha à mente era Sofia. Como ela ia cuidar da filha? Como ia contar para Pedro? Quando Clara saiu do consultório, Pedro estava esperando do lado de fora, andando de um lado para o outro. Assim que viu o rosto dela, ele soube que
não era uma boa notícia. — O que foi, Clara? — Ela tentou falar, mas as palavras não saíam. Então, com os olhos cheios de lágrimas, ela simplesmente disse: — Eu tô doente, Pedro, muito doente. Pedro segurou as mãos dela, tentando entender. — O que você quer dizer com isso, doente? — Clara respirou fundo e explicou, tentando segurar as lágrimas: — É câncer, Pedro, leucemia. Ele ficou em silêncio por um momento, como se estivesse tentando processar a informação. Então, sem hesitar, abraçou-a com força. — A gente vai dar um jeito, Clara. Você não tá sozinha nisso.
Os dias seguintes foram os mais difíceis que já tinham enfrentado. Clara precisou fazer mais exames e os médicos explicaram que o tipo de leucemia que ela tinha era agressivo. O tratamento precisava começar o mais rápido possível; ela teria que fazer quimioterapia, o que significava que ficaria ainda mais fraca antes de começar a melhorar, se é que melhoraria. Pedro fazia o possível para ser forte por Clara e Sofia. Ele continuava trabalhando na oficina, mas agora chegava em casa mais cedo para ajudar com as tarefas e cuidar de Sofia. Ele se tornou o alicerce da casa, mesmo
quando, por dentro, sentia o peso do medo e da incerteza. Clara tentou manter uma rotina normal, pelo menos no início. Ela continuava brincando com Sofia, lendo histórias para ela antes de dormir e costurando quando conseguia, mas o tratamento começou a cobrar seu preço. O cabelo que Pedro tanto adorava mexer começou a cair em tufos; as náuseas eram constantes e os dias bons se tornaram cada vez mais raros. Havia momentos em que Clara se sentia tão exausta que tudo o que conseguia fazer era olhar para Sofia e se perguntar se ela estaria presente para ver a
filha crescer. Uma noite, enquanto Pedro dava banho em Sofia, Clara desabafou: — E se eu não conseguir, Pedro? E se eu não estiver aqui para ela? — Pedro parou o que estava fazendo, pegou Sofia no colo e foi até Clara. — Você vai lutar, Clara, e eu vou lutar com você. A gente não vai desistir. Mas, no fundo, ambos sabiam que o futuro era incerto. Pedro começou a fazer bicos extras para pagar as despesas médicas, mesmo que isso significasse trabalhar até tarde da noite. Ele nunca reclamava, mas Clara sabia que ele estava se esgotando. Mesmo
assim, havia momentos de esperança, como na vez em que Pedro chegou em casa com uma pequena boneca de pano que tinha comprado para Sofia. — Olha, Clara, a gente tá bem. Pode não ser muito, mas estamos juntos. Isso é o que importa. A luta contra a doença uniu ainda mais a família, mas também trouxe uma nuvem de medo constante. Cada consulta, cada exame era um lembrete de que a vida de Clara estava por um fio e, mesmo assim, ela continuava lutando por Pedro, por Sofia, pela pequena família que eles tinham construído com tanto amor. O
quarto do hospital era simples, mas para Pedro parecia o lugar mais vazio do mundo. Clara estava deitada na cama, com os olhos fechados, respirando devagar. O som da máquina que monitorava os batimentos cardíacos era constante, um lembrete incômodo de que cada segundo ali importava. Pedro estava sentado ao lado dela, segurando a mão que agora parecia tão frágil. O tempo tinha passado rápido demais; parecia que há pouco eles estavam rindo juntos no balanço improvisado ou fazendo planos sobre o futuro. Agora, ele estava ali, tentando encontrar forças para aceitar o que parecia impossível: Clara estava indo embora.
A doença tinha avançado mais rápido do que qualquer um esperava; apesar de todos os esforços, a quimioterapia não funcionou como os médicos esperavam e o corpo de Clara, já tão desgastado, não conseguiu resistir. Nos últimos dias, ela foi levada ao hospital, onde os médicos disseram que tudo o que podiam fazer agora era deixá-la confortável. Pedro sabia que o fim estava próximo, mas isso não tornava as coisas mais fáceis. Ele não conseguia imaginar um mundo sem Clara, sem o sorriso dela, sem a maneira como ela fazia tudo parecer mais leve, mesmo nas situações mais difíceis. Sofia,
com apenas um ano de idade, estava no colo de Dona Martha, uma vizinha que tinha se tornado uma espécie de avó para a menina. Marta estava sentada em um canto do quarto, balançando Sofia suavemente, enquanto Pedro e Clara tinham aquele momento só deles. Clara abriu os olhos devagar; ela parecia cansada, mas ainda havia um brilho suave neles. — Pedro — a voz dela era baixa, mas ele ouviu claramente. Ele se inclinou, segurando a mão dela com mais força. — Tô aqui. Clara sorriu, um sorriso pequeno, mas cheio de amor. — Você tem que ser forte,
tá? Por ela, por nossa Sofia. Pedro sentiu um nó na garganta. Ele sabia que precisava ser forte, mas naquele momento tudo o que ele queria era desmoronar. — Eu não sei como vou fazer isso sem você — ele disse, a voz embargada. Clara respirou fundo. Como se estivesse juntando todas as forças que ainda tinha, você vai dar um jeito. Você sempre dá. Ela vai precisar de você mais do que nunca. Ela olhou para Sofia, que estava no colo de Marta, brincando com os dedinhos, sem entender o que estava acontecendo. — Clara, — Pedro começou, mas
não conseguiu terminar a frase. Ele queria dizer tantas coisas: que a amava, que não queria que ela fosse embora, que não sabia como continuar sem ela. Mas as palavras não saíam. Clara levantou a mão lentamente e tocou o rosto dele. — Eu sei, — ela disse, como se pudesse ler os pensamentos dele. — Eu também. Eles ficaram em silêncio por um momento, apenas olhando um para o outro. Pedro sentia como se o tempo estivesse parando, como se aquele instante pudesse durar para sempre. Mas o som da máquina no fundo não deixava esquecer que cada batimento
do coração de Clara era precioso. — Pedro, promete uma coisa? — ela perguntou, com dificuldade. Ele assentiu, sem hesitar. — Promete que vai dar tudo o que você puder para nossa filha? Que vai ser o pai que ela merece? — Eu prometo, — Pedro respondeu, com lágrimas escorrendo pelo rosto. — Mas eu não vou conseguir fazer isso sozinho, Clara. Eu preciso de você. Ela sorriu novamente, um sorriso cheio de ternura. — Eu sempre vou estar com vocês, em cada risada dela, em cada passo que ela der. Você vai me sentir. Pedro, não vai ser fácil,
mas você vai conseguir porque você é forte, porque você é o amor da minha vida. Pedro se inclinou e encostou a testa na dela. Ficaram assim por um momento, como se pudessem congelar aquele instante. Clara olhou novamente para Sofia. — Traz ela aqui, — ela pediu, e Marta se aproximou com a menina. Pedro pegou Sofia no colo e a colocou ao lado de Clara, que acariciou o rostinho da filha com dedos trêmulos. — Oi, minha pequena, — Clara disse, com a voz quase um sussurro. Sofia sorriu, sem entender o que estava acontecendo, e agarrou o
dedo de Clara com as mãozinhas. — Eu te amo, viu? Para sempre. Pedro teve que virar o rosto por um momento, tentando segurar o choro. Era uma cena tão bonita quanto dolorosa. Quando Sofia começou a cochilar no colo dele, Clara olhou para Pedro uma última vez. — Cuida dela e cuida de você também. Pedro assentiu, sem conseguir dizer mais nada. Clara fechou os olhos, mas ainda tinha um sorriso no rosto. O quarto ficou em silêncio, exceto pelo som constante da máquina, até que, de repente, ele parou. Pedro olhou para Clara, esperando que ela abrisse os
olhos de novo, que dissesse mais alguma coisa, mas ela não disse. Ela tinha partido. Pedro ficou ali, segurando a mão dela, enquanto as lágrimas caíam sem parar. Marta colocou uma mão no ombro dele, mas não disse nada; não havia palavras que pudessem aliviar aquele momento. Ele olhou para Sofia, que agora dormia tranquila, e sentiu um peso esmagador, mas, ao mesmo tempo, lembrou da promessa que tinha feito. Clara tinha confiado nele e ele sabia que precisava cumprir por ela, por Sofia, por tudo o que eles tinham construído juntos. Naquele instante, Pedro percebeu que o amor de
Clara nunca iria embora. Ele ainda estava ali, em cada parte da vida deles, e isso era o que o ajudaria a seguir em frente. Depois que Clara partiu, Pedro tentou ser forte. Ele queria honrar a promessa que fizera a ela. Queria ser tudo o que Sofia precisava, mas, conforme os dias se transformaram em semanas, ficou claro que o peso era maior do que ele conseguia carregar sozinho. Sofia ainda era tão pequena; ela mal conseguia entender o que tinha acontecido. Muitas vezes, Pedro a encontrava olhando para a porta, como se estivesse esperando Clara entrar a qualquer
momento. Era de partir o coração. Ele fazia de tudo para cuidar dela: preparava o mingau do jeito que Clara fazia, embalava Sofia nos braços até ela adormecer. Mas a dor dele era tão grande que, às vezes, parecia que ia sufocá-lo. A oficina, que antes era um lugar onde Pedro sentia que podia contribuir, agora parecia mais um fardo. Com Sofia, ele não podia trabalhar o mesmo tanto de antes; tinha que correr para casa no meio do dia para ver se ela estava bem, e as contas começaram a acumular. Pedro fazia o que podia, mas sempre parecia
que nunca era o suficiente. Dona Marta, a vizinha que tinha segurado Sofia no hospital no dia da despedida de Clara, começou a aparecer com mais frequência. Ela era uma senhora de cabelos grisalhos sempre amarrados em um coque, com olhos bondosos que pareciam entender mais do que ela dizia. Marta também tinha perdido pessoas na vida, então entendia a dor de Pedro. Ela chegava de manhã com uma panela de sopa ou uma garrafa de leite quente e ajudava a cuidar de Sofia enquanto Pedro tentava equilibrar o trabalho e o luto. Pedro era grato, mas sabia que não
era justo depender dela para tudo. Uma noite, depois de um dia particularmente difícil, Pedro sentou na beira da cama, com Sofia no colo. Ela estava dormindo com a cabeça apoiada no peito dele, e Pedro se sentia perdido. Ele olhou para a pequena e pensou em tudo o que Clara teria feito por ela, como ela teria encontrado forças que ele não conseguia encontrar. No dia seguinte, enquanto Dona Marta ajudava a alimentar Sofia, Pedro sentou na mesa da cozinha e começou a falar quase sem pensar. — Eu não sei o que fazer. Não sei se consigo cuidar
dela como ela merece. Marta parou o que estava fazendo e olhou para ele, surpresa. — Pedro, você está dando o seu melhor. Não tem por que se culpar. — Mas o meu melhor não é suficiente, — ele respondeu, com os olhos cheios de lágrimas. — Ela merece mais, merece alguém que consiga estar presente, que consiga dar a ela o cuidado que eu não consigo dar agora. Marta entendeu o que ele estava sentindo. que Pedro estava tentando dizer. Antes mesmo que ele terminasse, ela colocou a colher de lado e se aproximou, sentando-se ao lado dele. -
O que você quer dizer, Pedro? Ele olhou para ela com o coração pesado. - Eu tô pensando em deixar Sofia com você. Não porque eu quero, mas porque acho que é o melhor para ela. O silêncio tomou conta da cozinha por alguns instantes. Marta olhou para Sofia, que brincava com uma colher na mão, e depois voltou a olhar para Pedro. - Você tem certeza disso? Pedro balançou a cabeça, lutando contra as lágrimas. - Eu não tenho certeza de nada, mas eu sei que não quero que ela sofra. Eu sei que você pode dar a ela
um lar, Marta, um lugar onde ela possa ser feliz, mesmo que eu não consiga estar por perto. Marta suspirou. Era uma decisão difícil, tanto para ele quanto para ela, mas ela sabia que Pedro estava pensando no bem-estar da filha. Ela viu o amor dele por Sofia em cada gesto, em cada sacrifício que ele já tinha feito, e sabia que, no fundo, ele estava fazendo aquilo porque amava Sofia mais do que tudo. - Se você acha que isso é o melhor para ela, Pedro, eu vou cuidar dela como se fosse minha. Naquela noite, Pedro ficou acordado
até tarde, segurando Sofia e chorando em silêncio. Ele sabia que estava fazendo a coisa certa, mas isso não tornava a decisão menos dolorosa. No dia seguinte, ele arrumou as coisas de Sofia em uma pequena mochila. Não tinha muita coisa, apenas algumas roupinhas e o cobertor que ele e Clara tinham comprado antes dela nascer. Quando chegou a manhã, Pedro levou Sofia até a casa de Dona Marta. Era uma manhã fria, com o céu cinza e o ar gelado. Sofia estava enrolada em um casaco, dormindo nos braços de Pedro, sem saber o que estava acontecendo. Na porta
da casa de Marta, Pedro hesitou por um momento. Ele olhou para Sofia, para o rosto tranquilo dela enquanto dormia, e sentiu como se o coração fosse partir ao meio. Mas ele sabia que era o que precisava ser feito. Ele bateu na porta, e Marta abriu com um sorriso triste. - Você tem certeza, Pedro? Ela perguntou novamente. Ele apenas assentiu, sem conseguir dizer nada. Pedro entregou Sofia nos braços de Marta, mas não sem antes dar um último beijo na testa da filha. - Eu te amo, minha pequena. Sempre vou te amar, - ele sussurrou. - Cuide
dela como se fosse sua. Pedro disse a Marta, com a voz embargada. Marta segurou Sofia com carinho enquanto Pedro deu um passo para trás. Ele sabia que aquele seria o momento mais difícil da sua vida, mas também sabia que estava fazendo o que achava ser o melhor para a filha. Sem olhar para trás, Pedro se virou e começou a caminhar. Cada passo parecia mais pesado que o anterior. O som dos passarinhos, no fundo, era abafado pelo barulho do próprio coração, que parecia gritar para ele parar. Mas ele continuou andando porque sabia que era a única
forma de dar a Sofia uma chance de ter o futuro que ela merecia. Pedro nunca pensou que o silêncio pudesse ser tão doloroso. Depois de deixar Sofia aos cuidados de Dona Marta, ele voltou para casa, mas nada parecia o mesmo. O pequeno quarto, antes cheio das risadas e choros da filha, agora estava vazio. O berço que ele e Clara tinham improvisado estava lá, mas vazio. O cobertor que Clara tinha feito estava dobrado no canto. Pedro sentiu o peso do vazio em cada canto daquele lugar. Na primeira noite, ele não conseguiu dormir. Ficou sentado na beira
da cama, olhando para as mãos que pareciam tão inúteis agora. Ele tinha feito o que achava ser certo, mas por que então sentia como se tivesse perdido tudo? Na manhã seguinte, Pedro foi para a oficina. Antônio, o dono, percebeu que algo estava diferente. Pedro não falava muito, e a expressão no rosto dele era difícil de ignorar. Antônio tentou puxar conversa. - Tá tudo bem em casa, Pedro? Pedro olhou para ele e apenas balançou a cabeça. - Eu só preciso de um tempo. Antônio não perguntou mais nada, mas deu a Pedro um olhar compreensivo. Os dias
viraram semanas, e Pedro começou a se afastar de tudo. Ele trabalhava, mas não com a mesma energia de antes. Quando o expediente acabava, ele não ia para casa, ficava andando pelas ruas sem rumo, como se estivesse tentando fugir de algo. Ele passava na frente da casa de Dona Marta quase todas as noites, ficava parado do outro lado da rua, escondido na sombra de uma árvore, apenas para tentar ouvir algum som vindo de dentro. Às vezes, ele ouvia a risada de Sofia e sentia um misto de alegria e tristeza. Ela parecia bem, parecia feliz, mas Pedro
sentia a ausência dela como uma ferida aberta. Uma noite, Marta ouviu alguém do outro lado da rua. Ela abriu a porta e chamou por ele. - Pedro, você quer entrar? Pode ver a Sofia se quiser. Pedro hesitou. Ele queria, mais do que qualquer coisa, pegar Sofia no colo, abraçá-la e dizer que a amava, mas ele balançou a cabeça. - Não, Marta, é melhor assim. Ela precisa de estabilidade, e eu... eu não posso dar isso a ela agora. Marta tentou insistir, mas Pedro já estava se afastando. Ele sabia que, se entrasse naquela casa, seria ainda mais
difícil seguir em frente. Foi naquela noite que Pedro tomou uma decisão. Ele precisava sair dali, daquela cidade, aquelas ruas. Tudo era um lembrete constante do que ele tinha perdido. Ele precisava de um recomeço, de um lugar onde pudesse encontrar algum tipo de paz. Na manhã seguinte, Pedro foi até a oficina para se despedir de Antônio. - Obrigado por tudo, seu Antônio. O senhor foi mais do que um patrão para mim, foi como um pai. Antônio ficou surpreso. - Você vai embora, Pedro? Para onde? Pedro deu de ombros. Não sei, mas preciso ir. Aqui tá me
sufocando. Antônio respeitou a decisão, mas antes de Pedro sair, colocou algum dinheiro na mão dele para que você pudesse começar de novo, onde quer que vá. E se precisar de alguma coisa, você sabe onde me encontrar. Com uma mochila nas costas e poucas economias no bolso, Pedro foi para a rodoviária. Ele comprou uma passagem para a cidade mais distante que o dinheiro permitia. Enquanto esperava o ônibus, ficou olhando para a rua, como se estivesse esperando ver Clara ou Sofia aparecerem, de repente, dizendo que tudo isso não passava de um sonho ruim, mas elas não apareceram.
Quando o ônibus chegou, Pedro subiu sem olhar para trás. Ele sabia que, se olhasse, não teria forças para ir embora. Ele se sentou perto da janela e ficou observando a cidade desaparecer no horizonte. Cada quilômetro parecia levar um pedaço dele embora. Pedro não sabia o que o futuro reservava; não sabia se algum dia teria coragem de voltar. Tudo o que ele sabia é que estava deixando para trás a coisa mais importante da sua vida: a família que ele e Clara tinham construído. Mas, ao mesmo tempo, Pedro carregava uma certeza: ele tinha feito isso por Sofia,
para que ela tivesse uma chance de ter uma vida melhor, mesmo que isso significasse abrir mão de estar ao lado dela. E, enquanto o ônibus seguia seu caminho, Pedro segurava o colar que Clara tinha dado a ele antes de Sofia nascer. Era tudo o que ele tinha dela agora, além das memórias que pareciam tão distantes, mas ainda tão vivas em seu coração. A casa de Dona Marta estava cheia de vida. Sofia, com apenas anos, corria pelo quintal com a energia típica de uma criança que não conhece limites. Ela brincava com uma boneca de pano que
Marta tinha feito, inventando histórias e vozes enquanto saltava de um lado para o outro. Para Marta, o som das risadas de Sofia era um conforto, uma lembrança de que, mesmo em meio à dor, a vida continuava. Marta cuidava de Sofia com o coração aberto, tratando a menina como se fosse sua própria neta. Apesar de não ter filhos, sabia o que era amar incondicionalmente. Ela fazia o possível para dar a Sofia um lar cheio de carinho, mas, em silêncio, se preocupava com o vazio que a menina sentiria quando crescesse e começasse a fazer perguntas sobre Pedro.
Pedro não dava notícias desde o dia em que deixou Sofia com Marta. No começo, ela esperava que ele aparecesse em uma dessas noites, batendo na porta com um sorriso triste, pedindo para ver a filha. Mas os dias viraram semanas e a ausência dele começou a pesar. Marta rezava todas as noites para que ele estivesse bem, onde quer que estivesse. Foi numa tarde comum que tudo mudou. Marta estava lavando roupa no tanque do quintal, enquanto Sofia brincava perto do canteiro de flores. De repente, ela ouviu um som vindo do portão; alguém chamava seu nome. Quando se
virou, viu Joaquim, o rapaz que trabalhava na venda do bairro. Ele parecia nervoso, segurando um envelope na mão. "Marta, é para você," ele disse, entregando o envelope com pressa. "O homem que trouxe isso pediu para eu ver logo. Disse que era urgente." O coração de Marta começou a bater mais rápido. Ela pegou o envelope, agradeceu a Joaquim e entrou na casa, limpando as mãos no avental. Sofia, percebendo que algo estava diferente, correu atrás dela. "O que foi, vovó?" Marta não respondeu. Sentou-se na cadeira da cozinha e abriu o envelope com cuidado. Dentro, havia uma carta
curta e formal. Assim que leu as primeiras linhas, levou a mão à boca, tentando conter o choque. "Comunicamos com pesar o falecimento de Pedro da Silva, ocorrido em..." Marta não conseguiu ler o restante. Seu coração apertou e ela sentiu uma dor profunda, como se estivesse revivendo a perda de Clara. Pedro tinha morrido; ele não estava apenas distante ou em silêncio, ele se foi. Ela tentou respirar fundo, mas as lágrimas começaram a rolar. Sofia, ao ver Marta chorar, se aproximou com a pureza de uma criança que não entende o que está acontecendo. "Tá tudo bem, vovó?"
Marta, você tá triste? Marta puxou Sofia para um abraço, segurando a menina com força. "Tá tudo bem, meu anjo. Tá tudo bem," ela disse, tentando esconder o que estava sentindo. Mas, por dentro, seu coração estava partido. A carta dizia que Pedro tinha sofrido um acidente de carro em uma estrada distante. O texto frio mencionava que ele estava trabalhando como motorista de entrega e que o veículo tinha capotado depois de derrapar na pista molhada. Ele não resistiu aos ferimentos. Marta passou o resto do dia em silêncio, tentando processar a notícia. Quando Sofia finalmente adormeceu naquela noite,
Marta sentou-se sozinha à mesa da cozinha, com a carta nas mãos. Ela pensava em Pedro, no jovem determinado que havia sacrificado tudo para garantir o bem-estar da filha. Ela sabia que ele tinha feito o que achava ser o certo, mas agora ele nunca mais teria a chance de voltar. Marta também pensava em Sofia. Como ela contaria a verdade para uma menina tão pequena? Como explicaria que o pai, que Sofia mal lembrava, agora estava realmente perdido para sempre? Depois de muito pensar, Marta tomou uma decisão: Sofia era apenas uma criança, inocente demais para carregar o peso
daquela notícia. Marta decidiu que, pelo menos por enquanto, não contaria nada. Ela guardaria a carta em uma caixa, junto com outros papéis importantes, e esperaria o momento certo. Nos dias que se seguiram, Marta tentou continuar com a rotina, mas era difícil. Cada vez que olhava para Sofia, sentia um aperto no peito. A menina era a imagem viva de Pedro, com os mesmos olhos cheios de curiosidade e a mesma energia contagiante. Mesmo com o luto, Marta encontrou forças em Sofia. Ela sabia que Pedro não... Gostaria que a tristeza tomasse conta da casa. Então, mesmo nos dias
mais difíceis, Marta sorria para Sofia, brincava com ela e abraçava-a com mais força do que nunca. Pedro pode ter partido, mas o amor dele por Sofia ainda estava ali, nos pequenos gestos que ele tinha deixado para trás. Marta prometeu a si mesma que faria de tudo para honrar esse amor, criando Sofia com todo o carinho e dedicação que ela merecia. A casa de Dona Marta era pequena, com paredes simples e um cheiro constante de bolo assando ou café fresco no ar. Era o tipo de lugar que fazia qualquer um se sentir acolhido, como se ali
o mundo fosse menos complicado. Para Sofia, aquela casa era o mundo inteiro. Desde que se entendia por gente, Marta era a figura que a fazia sentir segura. Sofia ainda era muito pequena para compreender o que tinha acontecido com seus pais; para ela, Marta era vovó Marta, a mulher que sempre estava lá para lhe dar abraços, fazer um mingau gostoso antes de dormir e cantarolar canções antigas enquanto costurava. Marta tinha seus próprios jeitos, e Sofia já sabia de cor os pequenos hábitos da avó. Toda manhã, a primeira coisa que Marta fazia era abrir as janelas para
deixar o sol entrar. Ela olhava para o céu, fazia o sinal da cruz e dizia: "Hoje vai ser um bom dia". E, na maioria das vezes, Sofia acreditava que seria mesmo. A rotina das duas era simples, mas cheia de momentos especiais. Sofia adorava brincar no quintal que Marta transformou em um pequeno refúgio; tinha um pé de jabuticaba que Sofia achava mágico. Ela passava horas debaixo da árvore, colhendo as frutinhas pretas e colocando-as direto na boca, manchando os dedos e as bochechas. Marta ria e dizia: "Sofia, você tá parecendo um monstrinho todo lambuzado". Quando Sofia ficou
um pouco maior, começou a ajudar Marta com pequenas tarefas na casa. "Você é minha ajudante oficial", Marta dizia, entregando à menina um paninho para tirar pó dos móveis. "Sofia, tarefa séria!" Mesmo que, às vezes, acabasse brincando mais do que ajudando, Marta sabia que Sofia precisava de momentos para ser apenas uma criança. Aos domingos, elas iam juntas até a pracinha do bairro, onde Sofia brincava com outras crianças enquanto Marta ficava sentada no banco, observando com um sorriso no rosto. De vez em quando, Marta comprava um algodão doce para Sofia, que ficava toda animada, com os olhos
brilhando de felicidade. Uma das tradições favoritas de Sofia era a hora da história. Todas as noites, antes de dormir, Marta se sentava na beira da cama com um livro nas mãos. "Qual você quer hoje?" ela perguntava, mesmo já sabendo que Sofia escolheria sempre o mesmo: o conto da menina que conversava com as estrelas. Era uma história simples, mas Sofia nunca se cansava de ouvi-la. "Você acha que as estrelas podem ouvir a gente, vovó Marta?" Sofia perguntava, com os olhos arregalados de curiosidade. Marta sorria e respondia: "Eu tenho certeza que podem, minha pequena. Então, quando você
quiser, pode contar seus segredos para elas." Os dias eram tranquilos, mas também cheios de desafios. Marta não tinha muito dinheiro, e isso significava que elas precisavam viver com o básico. Mas Sofia nunca sentiu falta de nada, porque Marta sempre dava um jeito de transformar o pouco em muito. Quando não podiam comprar brinquedos novos, Marta fazia bonecas de pano ou inventava jogos com coisas que já tinham em casa. Uma vez, no aniversário de Sofia, Marta organizou uma festa improvisada no quintal, convidou algumas crianças da vizinhança, fez um bolo simples e pendurou balões feitos de papel colorido
que ela mesma cortou. Para Sofia, foi o melhor aniversário do mundo; ela corria pelo quintal cheia de alegria enquanto Marta observava de longe, com os olhos cheios de orgulho. Mesmo com toda a felicidade, Marta sabia que, em algum momento, Sofia faria perguntas difíceis. Às vezes, a menina olhava para fotos antigas na estante e perguntava: "Quem é esse, vovó Marta?" Marta sempre desviava a conversa com um sorriso: "Alguém muito especial". Sofia não insistia, mas Marta sabia que um dia precisaria contar a verdade. Por enquanto, Sofia vivia na inocência da infância, e Marta fazia de tudo para
protegê-la do que era duro demais para entender. Em vez disso, ela enchia os dias com brincadeiras, risadas e amor. Havia uma noite em particular que ficou marcada na memória de Marta. Depois de um dia cheio de brincadeiras, Sofia subiu no colo dela, enquanto as duas estavam sentadas na varanda. O céu estava claro, cheio de estrelas. Marta apontou para uma delas e disse: "Tá vendo aquela estrela bem brilhante? É a estrela da sua mamãe." Sofia olhou para o céu com curiosidade e perguntou: "E o papai? Ele também tem uma estrela?" Marta respirou fundo e apontou para
outra. "Claro que tem! Tá vendo aquela ali? Eles estão lá em cima, cuidando de você, mesmo de longe." Sofia deu um sorriso e encostou a cabeça no peito de Marta. "Eu acho que eles gostam de você, vovó Marta, porque você cuida de mim muito bem." Marta sentiu um nó na garganta, mas sorriu e abraçou Sofia com força. "Eu tenho certeza que eles gostam, minha pequena, e eu vou cuidar de você para sempre, até o dia em que você não precisar mais de mim." Aquela noite ficou gravada no coração de Marta. Ela sabia que não podia
substituir Pedro ou Clara, mas também sabia que daria tudo de si para que Sofia tivesse uma infância feliz, e, por enquanto, isso era o que mais importava. O dia começou como qualquer outro; a luz da manhã entrava pelas janelas da pequena casa de Dona Marta, iluminando o chão de madeira desgastado. Sofia, agora com 9 anos, estava na cozinha tentando preparar um café da manhã surpresa para Marta. Era uma tentativa desajeitada, mas cheia de amor. Carinho, ela mexia a colher na tigela de massa com seriedade enquanto se esticava para alcançar os ingredientes no armário. No quarto,
Marta ainda estava deitada. Sofia achava que ela estava dormindo mais do que o normal, mas não quis incomodá-la. "Ela merece descansar", pensou. O dia anterior tinha sido cansativo, com visitas de vizinhos e um bolo que Marta tinha feito para uma amiga do bairro. Sofia queria que, ao acordar, a avó se surpreendesse com o café da manhã preparado por ela mesma. "Vovó!" Marta chamou. Sofia, da cozinha, não houve resposta. Ela esperou um pouco, mas o silêncio era ensurdecedor. Marta sempre acordava cedo, abrindo as janelas e começando o dia com um sorriso. Sofia limpou as mãos no
avental improvisado e foi até o quarto. A porta estava aberta, e a menina entrou devagar. Marta estava deitada de lado, com uma expressão serena. "Vovó!", Sofia chamou, se aproximando. Ela colocou a mão no ombro da avó e a balançou levemente. "Acorda! O café tá quase pronto!" Mas Marta não se mexeu. Por um momento, Sofia não entendeu o que estava acontecendo. Ela olhou para o rosto da avó e percebeu que algo estava errado. Marta não estava respirando; o corpo dela estava frio ao toque. "Vovó!", Sofia chamou de novo, a voz ficando mais alta. "Vovó, acorda, por
favor!" O desespero tomou conta da menina. Ela tentou balançar Marta mais forte, gritou o nome dela, mas sabia, no fundo, que sua avó não iria acordar. Sofia sentiu as lágrimas começarem a cair, e o mundo pareceu desabar ao seu redor. Depois de algum tempo, os vizinhos ouviram os gritos e correram para a casa. Dona Helena, a vizinha mais próxima, entrou e encontrou Sofia chorando ao lado da cama de Marta. Com cuidado, ela tirou a menina de lá e tentou acalmá-la. "Ela se foi. Sofia, foi descansar com Deus", disse Dona Helena, segurando a menina no colo.
Sofia não entendia como isso podia ter acontecido. Marta era tudo para ela, era sua família, seu refúgio. Sem ela, o que seria de Sofia? Nos dias que se seguiram, os vizinhos organizaram o velório. Sofia estava lá, segurando uma boneca de pano que Marta tinha feito para ela, enquanto as pessoas ofereciam condolências e lembravam de como Marta era bondosa e amorosa. Sofia ficava em silêncio, sentindo-se perdida. Depois do enterro, as coisas ficaram ainda mais difíceis. Sofia ouviu os adultos conversando, achando que ela não estava prestando atenção. "Ela não tem família", um deles disse. "Vai ter que
ir para o orfanato." A palavra "orfanato" ficou ecoando na cabeça de Sofia. Ela não queria ir para um lugar desconhecido, longe da casa onde tinha crescido, longe das memórias de Marta. Naquela noite, enquanto todos dormiam, ela tomou uma decisão. Com uma mochila pequena, Sofia pegou algumas roupas, a boneca que Marta tinha feito e o cobertor que sua mãe havia deixado antes de morrer. Ela não sabia para onde iria, mas sabia que não podia ficar ali. Antes de sair, ela foi até o quarto de Marta uma última vez. Ficou parada na porta, olhando para a cama
vazia. "Eu vou ficar bem, vovó", sussurrou, como se Marta ainda pudesse ouvi-la. "Eu prometo." Sofia saiu pela janela dos fundos e começou a andar pelas ruas do bairro. O silêncio da noite era assustador, mas ela estava determinada. Passou por lugares que conhecia bem, mas não olhou para trás; não queria chorar de novo. Depois de algumas horas, Sofia chegou à praça central da cidade. Era um lugar que ela e Marta costumavam visitar durante o dia, mas à noite parecia diferente. Os bancos estavam vazios e as luzes dos postes iluminavam o chão de pedra. Sofia escolheu um
canto escondido atrás de uma árvore grande e se encolheu ali, enquanto segurava a boneca e o cobertor. Sofia olhou para o céu estrelado e lembrou das histórias que Marta contava sobre as estrelas e sobre como elas olhavam pelas pessoas que amávamos. "Você tá lá em cima agora, né, vovó?", ela sussurrou, mesmo com medo e frio. Sofia não voltou atrás; sabia que a vida dali para a frente seria difícil, mas também sabia que Marta tinha lhe ensinado a ser forte. Naquela noite, enquanto o sono finalmente a alcançava, Sofia decidiu que faria o possível para se virar
sozinha. Afinal, era isso que Marta teria esperado dela: coragem, mesmo quando tudo parecia perdido. Enquanto isso, bem distante da realidade em que Sofia se encontrava, um milionário chamado Henrique vivia uma das piores fases de sua vida. Henrique era o tipo de homem que as pessoas costumavam invejar. Ele tinha tudo o que muitos sonhavam: uma carreira de sucesso, uma conta bancária cheia e uma casa que parecia mais um palácio. Mas quem olhasse mais de perto perceberia que Henrique vivia em silêncio, um vazio que nenhum dinheiro ou status podia preencher. Três anos antes, ele tinha perdido tudo
o que realmente importava: Helena, o amor da sua vida, estava grávida do primeiro filho do casal. Era uma fase de sonhos e planos para o futuro. Henrique passava as noites ao lado dela, escolhendo nomes, discutindo a decoração do quarto do bebê e rindo dos pequenos caprichos de Helena. "Hoje eu quero sorvete de baunilha e batata frita", ela dizia com um sorriso, e Henrique sempre saía para buscar, sem reclamar, porque o que mais importava para ele era vê-la feliz. Mas o que deveria ser o dia mais feliz da vida de Henrique se transformou em seu pior
pesadelo. Durante o parto, complicações inesperadas surgiram. A equipe médica lutou, mas não conseguiu salvar Helena nem o bebê. Henrique recebeu a notícia no corredor do hospital, de um médico que olhava para ele com um semblante pesado, mas profissional. "Sinto muito, senhor Henrique", foi tudo o que ele conseguiu dizer. O mundo de Henrique desmoronou ali. Ele não chorou de imediato, não gritou; apenas ficou parado, encarando o chão, como se alguém tivesse apagado todas as luzes. da sua vida depois do enterro, a casa que antes era cheia de risos e conversas se tornou insuportavelmente silenciosa. O quarto
que ele e Helena haviam preparado com tanto carinho ficou trancado. Henrique não tinha coragem de entrar ali, de ver as paredes pintadas de azul claro e os pequenos móveis que nunca seriam usados. Os amigos tentaram ajudar, mas ele se afastou de todos; recusava convites, ignorava telefonemas e se jogava no trabalho como uma forma de evitar o sofrimento. Mas nem mesmo longas horas no escritório conseguiam afastar a dor. Henrique passava noites em claro, sentado no sofá da sala, encarando a lareira apagada enquanto segurava um dos vestidos de Helena ou uma roupinha que tinham comprado para o
bebê. Aos poucos, ele começou a se transformar em alguém que não reconhecia mais; o Henrique sorridente e carinhoso deu lugar a um homem frio e distante. Ele mantinha as aparências no trabalho, mas aqueles que conviviam com ele sabiam que algo estava errado. Certa vez, um de seus funcionários mais antigos, o senhor Álvaro, tentou puxar uma conversa. "Henrique, com todo respeito, você precisa de ajuda. Não pode continuar assim." Henrique apenas balançou a cabeça. "Eu estou bem, Álvaro. Só preciso de tempo." Mas ele sabia que não estava bem; o problema era que ele também não sabia como
ficar. Os dias se transformaram em semanas e as semanas em meses. Henrique desenvolveu uma rotina que era quase mecânica: ele acordava cedo, ia para o escritório, passava o dia todo enterrado em relatórios e reuniões e voltava para casa tarde da noite, onde jantava sozinho e bebia uma taça de vinho antes de dormir. Era uma existência vazia, mas de certa forma ele achava que merecia aquilo. Henrique também tinha se fechado para qualquer tipo de relacionamento. Quando amigos ou conhecidos tentavam apresentá-lo a alguém, ele rejeitava educadamente. "Não estou pronto", dizia. Mas no fundo, sabia que nunca estaria.
Para ele, não havia outra Helena nem outro futuro que ele pudesse imaginar. O que doía mais eram as datas importantes: o aniversário de Helena, o dia em que eles deveriam estar comemorando o nascimento do filho. Cada uma dessas datas era como um lembrete cruel do que ele tinha perdido. Henrique passava esses dias em casa, desligando o celular e evitando qualquer contato com o mundo. Uma vez, numa noite particularmente difícil, ele se viu diante do quarto trancado. Pegou a chave com as mãos trêmulas e abriu a porta. O cheiro de tinta fresca ainda estava lá, mesmo
anos depois. Ele entrou e se sentou na cadeira de balanço ao lado do berço. Ficou ali por horas, segurando um ursinho de pelúcia, enquanto as lágrimas escorriam silenciosamente. Mesmo cercado de luxo e conforto, Henrique vivia como uma sombra de si mesmo. Ele tinha construído uma vida perfeita aos olhos dos outros, mas por dentro era um homem quebrado, preso em um passado que não conseguia superar. O que Henrique não sabia era que sua vida estava prestes a mudar de uma forma que ele nunca poderia imaginar. Alguém entraria em seu caminho para trazer de volta um pouco
de luz à escuridão que o consumia. A manhã era como qualquer outra na cidade; o trânsito estava barulhento, cheio de buzinas e conversas apressadas nas calçadas. Henrique andava distraído, os olhos presos na tela do celular. Enquanto atravessava a rua, ele não tinha notado o sinal de pedestres piscando em vermelho. No mesmo momento, Sofia estava sentada na calçada, observando o movimento. Ela tinha 13 anos e, apesar da vida difícil nas ruas, ainda era dona de uma coragem que surpreendia a quem a conhecia. Vestia uma blusa velha, maior do que seu tamanho, e segurava sua inseparável boneca
de pano. Os olhos de Sofia eram atentos, sempre analisando o mundo ao seu redor. Foi então que ela viu o que estava prestes a acontecer: um ônibus vinha em alta velocidade e Henrique estava parado bem no meio do caminho. Ele parecia tão perdido em seus próprios pensamentos que nem percebeu o perigo. Sofia nem pensou; o instinto foi mais rápido que qualquer coisa. Ela se levantou, largando a boneca no chão, e correu na direção dele. "Ei, sai daí!" gritou, mas Henrique não ouviu. Sem hesitar, Sofia o empurrou para fora do caminho. O impacto foi suficiente para
salvar Henrique, mas Sofia não conseguiu sair a tempo; o ônibus não a atingiu diretamente, mas o reflexo do impacto a jogou com força no chão. Ela bateu a cabeça e ficou imóvel por alguns segundos, que pareceram uma eternidade. Henrique, que até então não sabia o que estava acontecendo, finalmente olhou para trás e viu a cena. Ele viu Sofia caída no asfalto e algo dentro dele mudou naquele instante. Sem pensar duas vezes, ele correu até ela. "Sofia, ei garota, você tá me ouvindo?" A voz de Henrique tremia e ele percebeu que mal sabia o que fazer.
Ele se ajoelhou ao lado dela, tentando verificar se ela estava respirando. Por sorte, ela abriu os olhos, embora estivesse visivelmente confusa e com dor. As pessoas ao redor começaram a se aglomerar. "Alguém chama uma ambulância!" Henrique gritou, segurando a mão de Sofia. Ele podia sentir o coração acelerado dela e aquilo o deixou ainda mais ansioso. Enquanto esperavam o socorro, Sofia murmurou algo. Sua voz era quase um sussurro: "Você tá bem?" Henrique piscou, sem acreditar. "Você salvou minha vida e ainda tá perguntando se eu tô bem? O que você tava pensando, garota?" Sofia tentou sorrir, mas
a dor era evidente. "Eu só não queria ver você morrer." Quando a ambulância chegou, Henrique fez questão de ir junto. Ele segurou a mão de Sofia o tempo todo, como se tivesse uma necessidade desesperada de garantir que ela não o deixaria. Enquanto os paramédicos a examinavam, Henrique percebeu o quanto ela era jovem, mas com um olhar que carregava uma história pesada. O hospital tinha aquele cheiro forte de desinfetante, o som constante de máquinas e passos apressados. Enfermeiros pelos corredores era um ambiente que Henrique conhecia bem demais e que odiava. Cada canto daquele lugar trazia lembranças
que ele preferia enterrar. Ele evitava hospitais desde a morte de Helena e do bebê, mas naquele momento, sentado ao lado da cama de Sofia, ele não tinha outra escolha. Ela estava tão pequena e frágil naquela cama de lençóis brancos, com um curativo na testa e os braços cheios de arranhões. Apesar disso, Sofia parecia tranquila; era como se ela já estivesse acostumada a situações difíceis, como se enfrentar adversidades fosse parte da rotina. Henrique, por outro lado, estava um completo desastre por dentro. Ele tinha salvado centenas de vidas em sua carreira como empresário, ao investir em ONGs
e ajudar causas sociais, mas nunca tinha se sentido tão impotente. Cada vez que olhava para Sofia, a culpa batia com força: "Se eu não estivesse tão distraído, se eu tivesse prestado atenção". Ele balançava a cabeça, tentando afastar os pensamentos. De repente, Sofia abriu os olhos. Henrique estava tão perdido nos próprios pensamentos que levou um susto quando a ouviu falar: — Você tá aí ainda? — Claro — respondeu, tentando parecer mais calmo do que realmente estava. — Onde mais eu estaria? Sofia deu um sorriso pequeno, mas era o tipo de sorriso que parecia carregar uma força
invisível: — Achei que você já tivesse ido embora; é o que as pessoas fazem. Henrique engoliu seco. Ele sabia que aquela frase carregava mais do que ela deixava transparecer. — Eu não sou as outras pessoas — disse, tentando garantir, mesmo que soasse estranho. — Tá — respondeu Sofia, meio desconfiada, mas sem discutir. Uma enfermeira entrou no quarto para verificar os sinais vitais de Sofia. Ela sorriu para Henrique, claramente surpresa ao vê-lo ali. Era difícil não notar o contraste entre o homem de terno caro, sentado desconfortavelmente na cadeira de hospital, e a menina com roupa simples,
que claramente não tinha casa para voltar. Depois que a enfermeira saiu, Henrique olhou para Sofia novamente. Ela estava brincando com a pulseira de identificação no pulso, como se fosse um acessório qualquer. — Por que você fez aquilo, Sofia? Por que me salvou? Ela parou, pensou por um momento e deu de ombros: — Você parecia precisar de ajuda, e eu tava lá. Simples assim. — Simples assim? — Henrique repetiu, incrédulo. — Você quase morreu. — Mas eu não morri — ela respondeu com a tranquilidade de alguém que já tinha aceitado o perigo como parte da vida.
Henrique não sabia como responder; era como se a lógica dela fosse algo que ele não conseguia contestar. — Você não devia estar sozinha na rua — ele finalmente disse. — Cadê sua família? Por que você tá vivendo assim? Sofia hesitou. Ela olhou para ele com aqueles olhos grandes, como se estivesse decidindo se podia confiar nele. — Minha avó morreu — disse finalmente. — Ela era minha única família. Desde então, eu me viro sozinha. A simplicidade com que ela disse aquilo o atingiu como um soco no estômago. Nenhuma criança devia falar sobre se virar sozinha como
se fosse algo normal. Henrique sentiu um peso no peito, algo que ele não sabia como explicar. — Quantos anos você tem? — ele perguntou. — 13. — 13?! Apenas 13 anos e já tinha passado por mais coisas do que muitas pessoas enfrentam em uma vida inteira. Henrique respirou fundo, tentando manter a calma. Ele queria dizer algo que fizesse diferença, mas nenhuma palavra parecia suficiente. Enquanto o dia avançava, Henrique ficou ao lado dela. Pediram comida para o almoço, e Henrique percebeu que Sofia comia rápido, como se estivesse acostumada a guardar o máximo de energia possível, porque
nunca sabia quando teria outra refeição. Ele tentou não demonstrar, mas aquilo o incomodou profundamente. A cada conversa, Henrique descobria mais sobre a vida dela. Sofia não reclamava de nada; ela falava sobre a rua, as pessoas que conhecia e até das coisas engraçadas que presenciava. Mas, por trás de cada história, Henrique via uma realidade que ela tentava esconder. Sofia tinha vivido uma infância que era qualquer coisa menos fácil. No final da tarde, um médico entrou no quarto com o prontuário na mão. Ele explicou que Sofia estava estável e poderia ter alta no dia seguinte, mas precisava
de cuidados. — Ela tem um responsável? — o médico perguntou, olhando para Henrique. Henrique congelou por um momento. — Eu... — Ele não sabia como responder. Ele não era parente dela, mas também não tinha como dizer que não era nada. Afinal, aquela garota tinha arriscado a própria vida por ele. — Sim — ele disse, depois de uma longa pausa. — Eu sou o responsável. Sofia levantou uma sobrancelha, surpresa. Mas, em vez de contestar, ela apenas observou Henrique, tentando entender o que aquilo significava. Quando o médico saiu, Henrique olhou para Sofia: — Você não vai voltar
pra rua, entendeu? Não depois disso. Sofia riu de leve: — Você nem me conhece. Por que tá se importando tanto? — Porque você se importou comigo — ele respondeu com sinceridade. Ela o encarou por um momento, como se estivesse tentando decidir se ele estava falando sério. — Tá bom — ela disse, finalmente. — Mas não pense que eu vou ficar parada; eu ajudo com as coisas. Henrique sorriu. — Combinado. Naquela noite, enquanto Sofia dormia, Henrique ficou olhando para ela. Ele sabia que a vida dele estava mudando de um jeito que ele não tinha planejado. Mas,
pela primeira vez em anos, isso não parecia algo ruim. A notícia veio como um soco no estômago. Até então, tudo parecia estar melhorando. Henrique e Sofia estavam se adaptando à nova dinâmica: ele, que por tanto tempo viveu isolado, agora tinha alguém para dividir os dias e os silêncios; e Sofia, que antes vivia sem saber o que era um lar, finalmente tinha encontrado um lugar onde se sentia segura. Mas, de repente, o mundo deles desabou. Sofia começou a sentir dores na barriga e nas costas. No início, ela disfarçava, tentando não preocupar Henrique. — Não é nada;
só um mau jeito — ela dizia, mesmo quando ficava claro que as dores estavam piorando. Mas Henrique conhecia bem... Aquele comportamento, ele via no rosto dela o mesmo que Helena tentava esconder nos dias antes do parto. Ele não quis esperar, levou Sofia para o hospital, onde ela foi submetida a uma série de exames. Henrique ficou o tempo todo ao lado dela, andando de um lado para o outro na sala de espera, com o coração disparado. Ele sabia que algo estava errado, mas não estava preparado para ouvir o que o médico diria: "O rim direito de
Sofia está em falência", o médico começou, enquanto Henrique sentava na cadeira à sua frente. "Ela tem uma condição renal grave que está avançando rápido. Vamos precisar de um transplante o quanto antes." Henrique piscou, tentando absorver as palavras. "Transplante", ele repetiu, como se a palavra fosse estrangeira. "Sim", confirmou o médico, "é a única solução. Sem o transplante, ela vai precisar de diálise constante para sobreviver, mas mesmo assim, o tempo é curto." Henrique sentiu o chão sumir, olhou para Sofia, que estava deitada na cama, sem entender completamente o que estava acontecendo, e sentiu um desespero que não
sentia desde que tinha perdido Helena. Ele não podia perder Sofia também. "O que eu preciso fazer?" ele perguntou, a voz firme, apesar do medo. O médico explicou que precisaria de um doador compatível e que o tempo seria crucial. Henrique não hesitou. "Eu quero ser testado", ele disse, sem pensar duas vezes. O processo começou imediatamente. Henrique passou por exames de compatibilidade enquanto Sofia ficava no hospital recebendo tratamento para estabilizar sua condição. Ele a visitava todos os dias, tentando esconder a ansiedade. "Você vai ficar bem, Sofia", ele dizia, segurando a mão dela. "Eu prometo, você não precisa
ficar aqui o tempo todo." "Henrique", Sofia dizia, tentando ser forte, "eu já estou acostumada com isso." "Não", ele respondeu, balançando a cabeça. "Você não precisa estar acostumada com nada disso, e eu não vou a lugar nenhum." Dias depois, os resultados chegaram: Henrique era compatível. O médico explicou os riscos do procedimento, especialmente considerando a condição cardíaca que Henrique havia desenvolvido nos últimos anos. "Eu não vou mentir, Sr. Henrique", o médico disse. "O transplante é seguro, mas no seu caso há riscos devido à sua saúde pré-existente. Podemos tentar encontrar outro doador, mas isso pode levar tempo e
Sofia não tem muito." Henrique nem precisou pensar. "Eu vou fazer isso. Não importa o risco." "Henrique, isso é sério", insistiu o médico. "Você está colocando sua vida em perigo." "E o que mais eu posso fazer?", Henrique respondeu, a voz ficando mais alta. "Ela salvou minha vida sem pensar duas vezes, agora é minha vez." Quando contou a Sofia, ela ficou em choque. "Você vai fazer o quê?" "Vou doar meu rim para você", Sofia, Henrique disse calmamente, como se fosse a coisa mais simples do mundo. "Mas e se algo der errado? E se você ficar doente por
minha causa?" Henrique sorriu, um sorriso pequeno, mas cheio de significado. "Você acha que vou ficar parado e deixar você sofrer? Nem pensar." Sofia ficou em silêncio, os olhos marejados. "Eu não mereço isso." "Merece sim", ele respondeu. O dia da cirurgia chegou mais rápido do que ele esperava. Ele estava sentado na sala de espera do hospital, vestindo aquele avental verde claro que sempre parecia desconfortável. O ambiente estava silencioso, exceto pelo som abafado de passos e o zumbido baixo das máquinas. Henrique olhava para o relógio de parede com uma mistura de ansiedade e determinação. Sofia já estava
na sala de preparação quando a levaram. Ela olhou para ele com olhos cheios de medo, mas Henrique deu um sorriso encorajador. "Você vai ficar bem", ele disse. "Eu prometo." Henrique, no entanto, sabia que não era tão simples. O médico tinha sido claro: devido à sua condição cardíaca, a cirurgia era um risco significativo para ele. Mesmo assim, ele estava decidido; não importava o que acontecesse com ele. O importante era que Sofia tivesse a chance de viver. Logo, uma enfermeira entrou e o chamou. "Sr. Henrique, está na hora." Ele respirou fundo e se levantou. Seu corpo estava
pesado, mas sua mente estava focada. Antes de sair, olhou pela última vez para a sala onde Sofia estava sendo preparada e murmurou para si mesmo: "Por ela, sempre por ela." Na sala de cirurgia, o ambiente era frio e iluminado por luzes fortes. Henrique deitou-se na mesa e sentiu o coração disparar quando os médicos começaram a colocá-lo nos equipamentos. Um anestesista explicou o procedimento, mas Henrique mal ouvia; ele estava perdido em pensamento sobre Sofia. "Você está pronto, Sr. Henrique?", o médico perguntou, com um tom calmo. Henrique assentiu. A anestesia começou a fazer efeito e tudo ficou
escuro. Enquanto isso, em outra sala, Sofia também estava sendo preparada. Apesar de toda a dor que estava sentindo nos últimos dias, o medo da cirurgia parecia maior. Ela sabia que o transplante era sua única chance, mas o que realmente a incomodava era o que poderia acontecer com Henrique. Ela não conseguia esquecer o momento em que ele disse que estava disposto a arriscar tudo por ela. "Por que?", ela havia perguntado. "Por que você faria isso por mim?" Henrique tinha olhado diretamente nos olhos dela e respondido: "Porque você merece, e porque eu te amo como se fosse
minha filha." Essas palavras tinham ficado com ela. Sofia nunca teve alguém que dissesse algo assim para ela, e agora esse mesmo homem estava colocando a própria vida em risco para salvá-la. As horas seguintes foram tensas. As duas cirurgias começaram ao mesmo tempo, com equipes médicas dedicadas para cada um deles. O processo de retirada do rim de Henrique foi mais complicado do que o esperado. Durante o procedimento, o monitor cardíaco começou a mostrar sinais de irregularidade. "Pressão está caindo", disse um dos médicos, a voz tensa. "O coração está instável," outro respondeu. "Vamos precisar estabilizá-lo." Os médicos
trabalharam rapidamente, ajustando medicamentos e verificando cada detalhe. "Henrique está inconsciente, mas..." Da cirurgia enant ISS, na outra, os médicos estavam transplantando o rim para Sofia. O órgão parecia responder bem, mas o corpo dela estava fraco devido ao avanço da doença. "Ela precisa se estabilizar rápido", disse um dos cirurgiões. O transplante foi um sucesso, mas o corpo dela está no limite. As duas equipes estavam conectadas por rádios, trocando informações em tempo real. Todos sabiam que aquele era um caso delicado, mas ninguém estava disposto a desistir. Horas se passaram até que, finalmente, os procedimentos foram concluídos. Sofia
foi levada para recuperação, ainda sedada, enquanto os médicos monitoravam cada pequeno detalhe. Henrique, por outro lado, continuava em estado crítico. "Ele não está respondendo como esperávamos", disse o anestesista. O coração de Henrique tinha parado por alguns segundos durante a cirurgia e, embora os médicos tivessem conseguido reanimá-lo, a condição dele ainda era preocupante. Ele foi levado para a UTI, onde permaneceu sob observação intensiva. Quando Sofia finalmente acordou, horas depois, a primeira coisa que ela perguntou foi: "E o Henrique? Ele tá bem?". A enfermeira hesitou antes de responder: "Ele está descansando, querida, está em boas mãos." Mas
Sofia sabia que aquilo era apenas uma forma de aliviar sua preocupação. Ela tentou se levantar, mas o corpo não respondeu. A exaustão da cirurgia era grande demais. Na UTI, Henrique estava inconsciente, ligado a vários aparelhos. Os médicos disseram que ele tinha ultrapassado o momento mais crítico, mas que o próximo dia seria decisivo. Na manhã seguinte, Henrique abriu os olhos pela primeira vez. Tudo estava embaçado, mas ele conseguiu distinguir as luzes e o som dos monitores ao seu lado. Uma enfermeira se aproximou rapidamente: "Bem-vindo de volta, senhor Henrique, você nos deu um susto", ela disse com
um sorriso gentil. Henrique tentou falar, mas a voz não saiu; ele apenas balançou a cabeça como se perguntasse: "E Sofia? Ela está bem?" A enfermeira disse, como se adivinhasse a pergunta: "O transplante foi um sucesso." Henrique fechou os olhos, sentindo um alívio profundo. Ele sabia que ainda tinha um longo caminho de recuperação pela frente, mas naquele momento nada disso importava. Sofia estava viva e isso era tudo o que ele precisava saber. Quando finalmente se encontraram, dias depois, Sofia estava em uma cadeira de rodas, ainda se recuperando, e Henrique estava deitado em sua cama de hospital,
visivelmente mais fraco, mas com um sorriso no rosto. "Você é maluco", ela disse, segurando a mão dele. "Eu sou", ele respondeu, rindo levemente. "Mas valeu a pena." Naquele momento, ambos souberam que tinham enfrentado algo extraordinário juntos. Não eram apenas sobreviventes de uma cirurgia de alto risco, eram sobreviventes da vida e agora tinham algo que ninguém podia tirar deles: a certeza de que eram uma família. Depois da cirurgia, o tempo parecia correr mais devagar para Henrique e Sofia. Ambos estavam se recuperando no hospital, cada um enfrentando os próprios desafios, mas unidos por algo maior do que
qualquer dor física. Henrique ainda estava fraco e os médicos insistiam que ele precisava de repouso absoluto. Sofia, por outro lado, começava a sentir os primeiros sinais de recuperação. O novo rim estava funcionando bem; embora ainda cansada, ela finalmente podia respirar sem o peso constante da doença. Os dois passaram boa parte dos dias no hospital conversando. Henrique, preso à cama, ouvia Sofia contar histórias sobre a vida na rua, sobre Dona Marta e até sobre a boneca de pano que sempre carregava. "Ela é minha melhor amiga", dizia Sofia, segurando o brinquedo já desgastado. "Mesmo quando eu não
tinha mais ninguém, ela estava lá." Henrique sempre ouvia com atenção, mas no fundo sentia um peso imenso no peito. Ele pensava em como a vida tinha sido injusta com Sofia, tirando dela tudo o que uma criança deveria ter. Ele pensava no que Clara e Pedro, os pais que Sofia mal conheceu, teriam desejado para a filha. E mais do que tudo, ele pensava no que Sofia significava para ele. Em uma manhã ensolarada, Henrique chamou Sofia para sentar ao lado de sua cama. Ele ainda estava pálido e mais magro, mas os olhos brilhavam com uma determinação que
Sofia não via há tempos. "Sofia", ele começou, segurando a mão dela. "Eu tenho pensado muito nesses últimos dias sobre tudo o que aconteceu, sobre você, sobre nós." Ela franziu a testa como se não entendesse para onde aquela conversa estava indo. "E o que você decidiu?" Henrique respirou fundo. "Eu quero que você seja oficialmente minha filha." O silêncio tomou conta do quarto por um instante. Sofia olhou para ele, surpresa, tentando entender se aquilo era real. "Você tá falando sério?" ela perguntou, a voz quase um sussurro. "Mais sério do que nunca", respondeu Henrique, com um sorriso pequeno.
"Eu sei que isso pode parecer estranho, mas você é família para mim. Sofia, sempre foi, e eu quero que você tenha um lar de verdade, algo que ninguém nunca possa tirar de você." Sofia ficou olhando para ele, como se tentasse processar o que estava acontecendo. Ela tinha passado tanto tempo sozinha, acostumada a se virar sem ninguém, que a ideia de ter alguém que quisesse ser seu pai parecia surreal. "Mas e se eu não for boa o suficiente? E se você mudar de ideia?" Henrique apertou a mão dela com mais força. "Ei, ouve aqui. Você é
mais do que suficiente e eu nunca vou mudar de ideia. Nunca." As lágrimas começaram a escorrer pelo rosto de Sofia, mas ela tentou escondê-las, virando o rosto para o lado. "Ninguém nunca me quis assim", ela sussurrou. "Pois agora alguém quer", Henrique disse, sem hesitar. O processo legal levou semanas, mas Henrique estava determinado a fazer tudo do jeito certo. Ele contratou advogados, passou por entrevistas com assistentes sociais e preencheu mais papéis do que achava ser possível. Durante todo esse tempo, Sofia o acompanhava, sem acreditar que aquilo estava realmente acontecendo. "Isso significa que vou ter o seu
sobrenome?" ela perguntou uma vez, enquanto esperavam em um escritório. "Significa sim," respondeu Henrique com um sorriso. "Você vai ser oficialmente Sofia Almeida." Sofia riu, mas havia uma emoção genuína em seus olhos; era mais do que um sobrenome para ela, era um sinal de que, pela primeira vez em anos, ela tinha um lugar ao qual pertencia. No dia em que a adoção foi finalizada, Henrique levou Sofia para comer pizza, algo que ela sempre dizia ser comida de gente rica. Ela ria enquanto segurava uma fatia enorme, tentando equilibrar o queijo derretido que ameaçava cair na mesa. "Isso
é o que fazem quando adotam alguém," ela brincou. "Pizza grátis!" "Não," Henrique respondeu, rindo. "Isso é só o começo; tem muito mais vindo por aí." Quando chegaram em casa naquela noite, Sofia olhou para Henrique com um sorriso tímido. "Então é isso, você é meu pai agora?" Henrique se ajoelhou para ficar na altura dela e disse: "Eu sempre fui, Sofia. Só demoramos para oficializar." Ela o abraçou com força e, naquele momento, Henrique sentiu que algo dentro dele finalmente tinha se curado. Ele não tinha mais o vazio que carregava desde a perda de Helena e do bebê.
Sofia não era apenas uma nova chance para ele; ela era a razão para continuar, a peça que faltava em sua vida. E Sofia, pela primeira vez, sentiu que tinha alguém que não iria embora; alguém que estava disposto a lutar por ela, não importava o que acontecesse. Ela não precisava mais ser a menina que vivia sozinha, se escondendo do mundo. Henrique sempre foi um homem movido por grandes ideias, mas fazia anos que ele não se sentia realmente inspirado para nada — até agora. Com Sofia ao seu lado, a vida dele começou a ganhar um propósito que
ia além de simplesmente seguir em frente. Ele não queria apenas criar Sofia e garantir que ela tivesse um futuro brilhante; ele queria fazer algo maior, algo que refletisse tudo o que eles tinham passado juntos. A ideia surgiu numa tarde, enquanto os dois caminhavam pela praça onde Sofia costumava ficar antes de o destino os unir. Ela apontou para um canto da praça, onde um grupo de crianças estava sentado, conversando e dividindo um pacote de biscoitos. Sofia ficou séria. "Eu conheço aquele grupo," ela disse. "Alguns deles estavam aqui quando eu morava na rua. A gente se ajudava
como podia, mas não é fácil. Henrique, você está sempre com fome, frio e com medo." Henrique olhou para ela, ouvindo cada palavra com atenção. Ele sabia que Sofia era forte, mas também sabia que aquelas lembranças eram difíceis. "Eles ainda estão aqui," ela continuou. "Nada mudou para eles. E sabe o que é pior? Mais crianças aparecem todo dia." Henrique ficou pensando nisso por horas. Depois que voltaram para casa, ele sentia uma inquietação, uma vontade de agir. Durante o jantar, enquanto Sofia contava sobre o que tinha aprendido na escola, ele interrompeu: "E se a gente fizesse alguma
coisa por eles?" Sofia parou de falar e olhou para ele, confusa. "Como assim?" Henrique respirou fundo. "Eu estou falando de criar um lugar para eles, um lugar onde possam comer, dormir, estudar, ter um pouco de esperança." Os olhos de Sofia se iluminaram. "Você está falando sério?" "Totalmente sério," respondeu Henrique. "Vou precisar da sua ajuda." Sofia sorriu. "É claro que eu vou ajudar. Eles são como eu fui; não dá para deixá-los lá." Nos meses seguintes, Henrique começou a trabalhar na ideia. Ele usou sua experiência como empresário para planejar tudo: orçamento, local, equipe. Mas ele sabia que
não podia fazer isso sozinho, então começou a reunir parceiros e buscar apoio. Conversou com antigos colegas, chamou advogados para entender os trâmites legais e até se encontrou com autoridades locais para discutir a ideia. Sofia era parte ativa de tudo. Ela ia com ele às reuniões, dava sugestões e contava sua própria história para convencer as pessoas da importância do projeto. "Eu sou a prova de que crianças de rua podem ter um futuro," ela dizia. "Mas só se alguém acreditar nelas." Depois de muita dedicação, eles encontraram um lugar perfeito: um prédio antigo com bastante espaço para salas,
dormitórios e até um pátio. Era simples, mas Henrique enxergava potencial. Ele investiu boa parte de sua fortuna pessoal para reformar o espaço e garantir que tudo fosse feito da melhor maneira possível. "Qual vai ser o nome do centro?" perguntou Sofia enquanto eles pintavam juntos uma das paredes do pátio. Henrique olhou para ela e sorriu. "Eu acho que você devia escolher." Sofia pensou por um momento e, com um sorriso tímido, disse: "Que tal Casa Estrela por causa das estrelas que a vovó Marta dizia que cuidavam da gente?" Henrique a sentiu emocionado. "Casa Estrela é perfeito." Quando
o centro finalmente ficou pronto, Henrique e Sofia organizaram uma grande inauguração. O evento foi simples, mas emocionante. Crianças de várias partes da cidade apareceram — algumas desconfiadas, outras cheias de curiosidade. Sofia estava lá para recebê-las, mostrando que aquele lugar era realmente delas. "Vocês não precisam ter medo," ela dizia. "Aqui é para vocês. É um lugar para recomeçar." O centro tinha tudo o que as crianças precisavam: dormitórios limpos, uma cozinha que servia refeições quentes, salas de aula com professores voluntários e até um pequeno espaço para brincadeiras. Henrique fez questão de contratar uma equipe qualificada, mas também
escolheu pessoas que tinham empatia e vontade de fazer a diferença. A Casa Estrela se tornou um símbolo de esperança na comunidade. Crianças que antes viviam nas ruas agora tinham a chance de sonhar com algo maior; algumas começaram a estudar, outras aprenderam habilidades práticas para conseguirem emprego, e todas encontraram um lar, mesmo que temporário. A Casa Estrela era mais do que um projeto; era uma forma de transformar a dor que ele carregava em algo positivo. Ele via em cada sorriso das crianças uma chance de redenção, uma prova de que o amor podia mudar vidas. E para
Sofia, a Casa Estrela era uma segunda família. Passava horas lá, ajudando as outras crianças, brincando com elas e compartilhando suas próprias experiências. "Se eu conseguir, vocês também conseguem", ela dizia. Uma noite, depois de um dia cheio de atividades no centro, Henrique e Sofia estavam sentados na varanda de casa. O céu estava cheio de estrelas, e Sofia olhava para elas com um sorriso sereno. "Você acha que a mamãe e o papai estão orgulhosos de mim?" ela perguntou baixinho. Henrique passou o braço ao redor dela. "Eu tenho certeza que estão, e não só eles. Qualquer pessoa que
te conheça teria orgulho de quem você é." Sofia encostou a cabeça no ombro dele e fechou os olhos. Naquele momento, ela sabia que tinha encontrado seu lugar no mundo, e Henrique sabia que finalmente estava fazendo algo que realmente importava. A praça onde tudo começou já não era mais a mesma. Não era apenas um lugar com bancos gastos e árvores cujas sombras abrigavam crianças em situação de rua. Aquele espaço, que antes carregava uma aura de abandono, agora era cheio de vida, riso e transformação. Tudo começou com uma conversa entre Henrique e Sofia. Eles estavam sentados em
um dos bancos da praça, observando as crianças brincarem no antigo parquinho enferrujado. Henrique notou como Sofia olhava para o lugar com um misto de nostalgia e tristeza. "Essa praça é importante para você, né?" ele perguntou, quebrando o silêncio. Sofia assentiu. "Foi aqui que eu aprendi a ser forte, mas também foi aqui que eu me senti mais sozinha." Henrique ficou pensativo. Ele já tinha feito muito com a Casa Estrela, mas sabia que podia fazer mais. E se aquela praça, que tinha sido um cenário de dor para tantas crianças, se transformasse em algo positivo? Naquela mesma semana,
Henrique começou a trabalhar no projeto de revitalização da praça. Ele conversou com autoridades locais, apresentou propostas e usou sua influência para garantir que a ideia saísse do papel. O plano era simples: transformar o espaço em um lugar onde as crianças e suas famílias pudessem se sentir acolhidas, seguras e, acima de tudo, felizes. As obras começaram alguns meses depois. Os trabalhadores chegaram cedo, removendo os velhos brinquedos enferrujados e limpando o terreno. Sofia acompanhava tudo de perto, opinando nas escolhas dos novos brinquedos e decidindo onde cada coisa ficaria. "Henrique, a gente precisa de balanços. Tinha um balanço
aqui antes, mas quebrou. Eu adorava!", ela disse com entusiasmo. "Balanços vão ser a primeira coisa que colocamos", respondeu Henrique com um sorriso. Eles também decidiram plantar mais árvores para aumentar as sombras e criar um espaço de convivência com mesas de piquenique e bancos novos. Henrique contratou artistas locais para pintar murais coloridos nas paredes ao redor da praça. As imagens retratavam cenas de amizade, sonhos e superação, uma verdadeira homenagem às crianças que haviam passado por ali. Uma das ideias mais emocionantes veio de Sofia: "E se a gente fizer uma espécie de mural de desejos? Algo onde
as crianças possam escrever ou desenhar o que sonham para o futuro." Henrique achou brilhante. Ele mandou construir uma grande parede de lousa, onde as crianças poderiam usar giz para expressar seus sonhos. Quando a reforma foi concluída, a praça era irreconhecível. O parquinho tinha escorregadores novos, balanços seguros e até uma casinha de brincar. O chão foi pintado com cores vibrantes, formando jogos e trilhas para as crianças seguirem enquanto brincavam. As árvores tinham flores, e os bancos eram decorados com mosaicos feitos por artistas da comunidade. Mas o que realmente chamava a atenção era a energia do lugar.
Crianças riam alto, corriam de um lado para o outro, e pais se sentavam nas mesas para conversar e compartilhar momentos. O espaço, que antes parecia carregado de tristeza, agora transbordava alegria. Henrique e Sofia decidiram organizar um evento de inauguração. Foi uma tarde inesquecível. A praça estava cheia de gente, com barracas de comida, música ao vivo e apresentações das próprias crianças da Casa Estrela. Sofia, que geralmente preferia ficar longe do centro das atenções, subiu no pequeno palco improvisado e fez um discurso: "Essa praça já foi um lugar difícil para mim", ela começou com a voz emocionada.
"Mas agora ela é um símbolo de esperança, um lugar onde ninguém precisa se sentir sozinho. E eu espero que todo mundo que passar por aqui sinta o mesmo." As palavras de Sofia arrancaram aplausos calorosos, e Henrique, que estava no meio da plateia, não conseguiu esconder o orgulho. Ele sabia que aquela praça não era apenas um projeto; era um marco que representava tudo o que eles tinham superado e tudo o que ainda podiam alcançar. Nos meses seguintes, a praça se tornou o coração da comunidade. Além de ser um espaço para brincadeiras, ela começou a receber eventos
regulares organizados pela Casa Estrela: oficinas de arte, jogos, contação de histórias. Tudo feito para engajar as crianças e criar um senso de pertencimento. O mural de desejos se tornou um dos destaques. Ele estava sempre cheio de desenhos coloridos e mensagens simples, mas poderosas, como "Quero ser professora", "Meu sonho é ter uma casa" e "Só quero ser feliz." Henrique e Sofia frequentemente paravam para ler as mensagens, e cada uma delas os motivava a continuar. Para Henrique, a praça era um lembrete de que as mudanças mais importantes começam em pequenos passos. Ele nunca imaginou que um simples
espaço público pudesse impactar tantas vidas ali. E para Sofia, a praça era mais que um lugar; era um símbolo de que não precisava definir quem ela era. Quando o sol começava a se pôr, Henrique e Sofia frequentemente voltavam à praça, sentados em um dos bancos, observavam as crianças brincando e rindo. "Você fez tudo isso acontecer", Henrique disse. "Não", ele respondeu com um sorriso tranquilo, "a gente fez isso acontecer juntos." E ali, sob as cores quentes do pôr do sol e cercados pela alegria daquelas crianças, tudo fazia sentido. Crianças, ambos sabiam que tinham encontrado algo que
o dinheiro nunca poderia comprar: propósito. Henrique nunca imaginou que sua vida tomaria aquele rumo; ele, um homem que já tinha tudo e perdeu tudo, agora se via como parte de algo maior do que si mesmo. Sofia, uma garota que passou pelas piores adversidades, encontrou nele um lar e um pai. Juntos, eles se tornaram uma família. Improvável, inquebrável, os diálogos eram movimentados, cheios de risadas, desafios e momentos que pareciam simples, mas significavam o mundo para os dois. Sofia, com sua personalidade determinada e o coração enorme, estava sempre aprendendo coisas novas; ela adorava a escola e fazia
questão de contar cada detalhe para Henrique no jantar. "Hoje, eu tirei nove na prova de História", dizia, segurando o papel com orgulho. "Só nove", brincava Henrique, fingindo decepção. Sofia revirava os olhos, mas ria. "Ah, claro! Por você, era o melhor aluno do mundo, né?" "Melhor aluno? Não", ele respondia com um sorriso no rosto, "mas definitivamente o mais charmoso". Essas brincadeiras eram comuns entre eles. Henrique adorava ver o quanto Sofia tinha crescido desde o dia em que a conheceu; ela não era mais a menina assustada que vivia nas ruas, agora era confiante, cheia de sonhos e
sempre disposta a ajudar quem estivesse ao seu redor. Em um final de semana ensolarado, enquanto os dois estavam na cozinha preparando panquecas, Sofia era responsável pela massa e Henrique pela bagunça. Ela fez uma pergunta que o pegou de surpresa: "Henrique, por que você nunca se casou de novo?" Ele parou por um momento, com a espátula na mão; era uma pergunta que ele já esperava ouvir algum dia, mas não sabia como responder de forma simples. "Bem", ele começou, olhando para a frigideira, "eu acho que, depois de perder sua mãe e seu irmão, ficou difícil imaginar começar
tudo de novo". Sofia ficou em silêncio, processando as palavras. Então, com um sorriso pequeno, disse: "Mas você começou comigo". Henrique olhou para ela surpreso, com a sabedoria que vinha daquela garota de apenas 13 anos. Ele sorriu e bagunçou o cabelo dela. "Você tem razão, Sofia, comecei sim, e foi a melhor decisão da minha vida". Os finais de semana eram os momentos favoritos deles; sempre encontravam algo para fazer juntos. Às vezes, iam até a praça que revitalizaram, onde Henrique observava com orgulho as crianças brincando enquanto Sofia liderava jogos e contava histórias para os mais novos. Outras
vezes, ficavam em casa assistindo a filmes que Sofia escolhia. Henrique já tinha visto mais animações do que jamais imaginou, mas ele secretamente adorava cada uma delas. Certa noite, enquanto assistiam a um filme no sofá, Sofia perguntou: "Você acha que somos uma família estranha?" Henrique franziu a testa. "Por que você acha isso?" "Porque, sei lá, não é como uma menina de rua virar filha de um empresário que nem você". Henrique pensou por um momento antes de responder: "Sabe, Sofia, família não é sobre o que parece certo para os outros; é sobre o que faz sentido pra
gente, e para mim você é minha filha e eu sou seu pai. Isso basta". Sofia sorriu e encostou a cabeça no ombro dele. "Você é meio brega, sabia?" "É o que dizem", respondeu ele, rindo. Com o passar do tempo, a relação deles só ficou mais forte. Henrique fez questão de estar presente em todos os momentos importantes da vida de Sofia, seja em apresentações escolares, competições esportivas ou simples tarefas de casa. Ele sempre dizia: "Você me salvou, Sofia, e agora é minha vez de estar aqui por você". Sofia, por sua vez, nunca parava de se surpreender
com o quanto Henrique estava disposto a dar por ela; ele não era apenas um pai, mas também um amigo, um mentor e alguém que ela sabia que nunca abandonaria. Uma noite, enquanto ambos estavam sentados no quintal de casa, olhando para as estrelas, Sofia quebrou o silêncio. "Henrique, você acha que a gente vai sempre ser assim?" "Assim como?" ele perguntou, olhando para ela. "Felizes? Uma família?" Henrique respirou fundo e respondeu com sinceridade: "A gente vai enfrentar desafios, Sofia. Isso é inevitável, mas enquanto estivermos juntos, eu sei que vamos superar qualquer coisa". Sofia sorriu, sentindo-se mais segura
do que nunca. Eles eram uma família improvável: ele, um homem que pensou que nunca mais teria algo pelo que lutar; ela, uma garota que achava que estava destinada a enfrentar o mundo sozinha. Mas juntos, eles descobriram que a força de uma família não vem de laços de sangue ou de histórias perfeitas; ela vem do amor, do cuidado e da decisão de estar lá, mesmo quando é difícil. Henrique e Sofia nunca foram comuns, mas também nunca precisaram ser; eles eram únicos, e isso era mais do que suficiente.