Herança social

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VideoSaúde Distribuidora da Fiocruz
Uma doença antiga, estudada e negligenciada. O Rio de Janeiro é uma das capitais com mais casos de t...
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O local da favela pode ser bonito, mas além da falta de higiene, às vezes, há perigo de desabamento. Felizmente a favela carioca é algo que tende a desaparecer de nossa realidade. O Governo Federal, através da CHISAM, vem ajudando as autoridades estaduais a resolver o problema.
O lema é "demolir para construir". Cara, essa casa está quase caindo na nossa cabeça. Se vocês olharem para o teto… Olha como o teto está!
Todo rachado. Aqui já caiu um pedaço do teto. Ali de vez em quando cai uns pedaços… cai aqui na nossa cabeça.
Hoje, no Rio de Janeiro, uma das capitais que mais tem tuberculose resistente. É uma das cidades que tem uma mortalidade inclusive de tuberculose grande. Ela é uma doença bastante antiga.
Conhecida e estudada, mas foi durante muito tempo uma doença negligenciada. A pessoa que tem tuberculose é uma pessoa muito fragilizada. Extremamente fragilizada socialmente, individualmente, psicologicamente.
Por que para algumas pessoas a tuberculose é hereditária? Parece… Ah! As pessoas são mal informadas.
Mas, isso é só a falta de informação? Essa é fácil de responder: A hereditariedade é a condição social. Quer dizer, se você vai pegar essas pessoas pobres daqui… a geração anterior, os pais eram pobres, os avôs eram pobres, os tataravôs, provavelmente, eram escravos.
Aonde a tuberculose está instalada, são cidades com elevado adensamento populacional, com grau de urbanização grande. Onde se produz riqueza, mas a riqueza não é distribuída de forma igual. Alvorada lá no morro Que beleza Ninguém chora Não há tristeza Ninguém sente dissabor O sol colorido é tão lindo É tão lindo E a natureza sorrindo Tingindo, tingindo Alvorada… Alvorada lá no morro Que beleza Sim, eu tive tuberculose duas vezes.
Eu nem morava aqui. Morava lá no morro do Cantagalo quando eu tive a primeira tuberculose. O pai do meu neto teve tuberculose e está em tratamento até hoje.
A última vez, eu fui dada como curada… em maio de 1968, mas só tive alta em março de 1969. O problema da tuberculose, no geral, não é o diagnóstico. Uma vez que a tuberculose pulmonar… tem sintomas bastante característicos.
Tosse por mais de três semanas, prostração, sudorese noturna, febre vespertina. Além da moradia, se é ventilado ou não. A questão da tosse contínua, de semanas.
São os sintomas mais gritantes que a gente pergunta. E se já foi ou já teve algum parente TB. Mas também tem esses vizinhos que falam: "Olha, tem uma pessoa ali que está tossindo muito" "Tem uma pessoa ali que está acamada.
Está doente, está de cama " E aí a gente vai lá ver o que está acontecendo. E quando você tem alguém doente, comprovadamente doente, você tem que iniciar o tratamento. Porque isso é que vai, para aquela pessoa e para os que estão à sua volta, no seu convívio, é que vai interromper a transmissão.
Todos os agravos, todas as doenças têm… pra classificar em três, que a gente gosta, uma tríade de questões. Tem um componente social, tem um componente genético, de predisposição genética. E tem um componente psíquico da própria pessoa.
E isso varia de acordo com o agravo. No caso da tuberculose, o componente social é extremado. Pode ser que indivíduos, ás vezes, de classe média pegue tuberculose.
Mas a difusão da doença ocorre e se propaga muito maior, onde você tem condições precárias de vida. A transmissão do bacilo da tuberculose se dá principalmente pela tosse quando se tem um beco que mal passa uma geladeira. Essa eu sempre achei uma boa medida para você desconfiar onde é que está o bacilo de Koch.
Onde é o reino dele? Ele reina! É um paraíso, esses lugares.
Casas onde moram famílias enormes, numerosas. Moram mal. Moram num lugar pequeno e estreito, que não tem janela, que não tem… Não se respira dentro daquele ambiente.
Passa a noite tosse, tosse, tosse, tosse. Então, tudo é uma nuvenzinha. Então, o risco daquelas outras pessoas se contaminarem é enorme.
Só o nível de renda não explica a produção de tuberculose. Se a gente fizer uma análise em nível nacional, a gente vai perceber o seguinte: que provavelmente os territórios, eu digo, os municípios mais pobres, eles vão ter menos tuberculose Então, é a pobreza dos lugares mais ricos que está sendo mais atingida pela tuberculose nesses anos todos. Essas casas aqui estão todas condenadas.
Você pode ver, vou até tirar essas coisas daqui, porque a qualquer hora essa parede pode cair. Caiu tudo ali… Fui eu que botei essa escora aqui, e é pesada pra caramba. Mas já faz um tempo legal que ela está aí.
E já faz uns 10 anos ou mais que nós moramos aqui, né, véia? Quinze… então. Tinha febre, tosse.
Tossia muito. Muita febre. Sei lá, eu fiquei com medo porque eu já tive outra vez.
Eu fiquei com medo, porque meu irmão morreu disso. Meu primo morreu disso. Então, eu fiquei meio assim, receoso.
Esse conjunto de situações e principalmente essa coisa do barraco fechado, do bequinho estreito, muito juntinho, sem água encanada, com vala na porta, com barraco escuro, muito fechado, situação financeira muito ruim, alimentação não era das melhores, eu sendo mais frágil, acabei sendo infectada duas vezes. Então tem outra coisa, uma coisa é o metabolismo biológico a outra é o metabolismo social. Pra gente falar de metabolismo social, eu gosto de usar a imagem que é a seguinte: Quando vai fazer uma análise de tuberculose num determinado local, você não pode olhar isso como um retrato.
Você tem que olhar isso como um filme. Um filme no sentido de que ali tem movimento e ali tem história. As linhas de subúrbio também não satisfaziam as condições mínimas de conforto e segurança.
Trens tomados de assalto pelos passageiros, carros absurdamente superlotados. E dizer que esse mesmo povo contribui com impostos para que se cubram déficits ferroviários de ordem de 50 bilhões de cruzeiros. Essa variável densidade está estritamente relacionada com a produção da tuberculose.
Porque, quando maior a taxa de contato social no lugar onde você tem o bacilo circulando, numa condição onde os indivíduos tem pouca alimentação. Tem um desgaste muito grande, porque não é só a alimentação. Você tem o desgaste do ônibus cheio, do trem lotado É o desgaste do dia a dia.
Aí, é o desgaste físico mesmo. Depois, já recentemente, um sobrinho teve tuberculose. Mas aí, já em Manguinhos.
E a situação é a mesma. Ele mora numa casa de vários andares, mas que os cômodos são pequenos, o bequinho é estreito. A gente consegue tocar um lado e outro das paredes do beco.
E a janela da casa da avó dele dá de cara com a parede da casa do vizinho da frente. Então, eu consigo perceber os mesmos determinantes. O trabalho da ACS é fundamental.
O ACS é uma pessoa fundamental atualmente no setor saúde. Você é morador de lá, as pessoas já estão acostumadas com você. Você bate ali na porta todos os dias, você conversa.
E é uma construção mesmo. Você ali todo dia batendo, conversando. Como é que você está?
Ele te vendo ali. Você, querendo ou não, é uma referência, porque ele te vê lá. A Silvana passava aqui.
Aí eu fui no posto. Fui lá no posto e… e lá eu fiz os exames. Aí constatou que eu estava com tuberculose mesmo Levava o medicamento, via ele tomar Ele tomava.
Eu conversava um pouco com ele. Perguntava se estava tudo bem. Se ele estava tendo alguma reação ao medicamento, que é comum.
Não, não. Mal nenhum. Não senti nada.
Normal, como se eu estivesse tomando um comprimido para dor de cabeça. Essas coisas assim, não fez mal nenhum. Inicia com quatro comprimidos dependendo do peso, dependendo da avaliação da médica.
E tudo de graça. Seis meses gratuitos. De alguma forma a equipe percebe ou tem uma sensibilidade pra perceber que pessoa é aquela que tende ao abandono.
Duas semanas que ele está tomando a medicação, ele já se sente bem melhor. Aquilo que ele sentia de ruim, ele já não sente mais. E aí é uma longa conversa para dizer que ainda tem cinco meses pela frente.
Espera-se que 5% das pessoas por alcoolismo, por aquilo ou por aquilo outro, abandonem. No entanto, a Organização Mundial da Saúde afirma que, além de 5% de abandono, ela diz que o serviço de saúde é que está abandonando as pessoas. Então, inverte-se a equação.
Ora, aqui nós temos taxa de abandono até de 40%. Eu não acredito em controle de doença sem solidariedade, num sentido ampliado. Uma saúde pública que seja solidária.
Que seja menos biologicista e que seja mais solidária, no sentido de se articular politicamente com outros setores, com a sociedade civil pra produzir soluções que dê oportunidade de defesa da vida. Por quê, o que está acontecendo? As pessoas, ao invés de ter oportunidade de defesa da vida, elas estão sendo culpabilizadas pela doença Tem uma parte de responsabilidade individual sim, mas neste caso ela é muito pequenininha.
Ela pode fazer muito pouco pra gente pensar a produção da doença num nível coletivo. Mais de 50 novos conjuntos residenciais foram erguidos proporcionando condições melhores à 35 mil famílias antes marginalizadas e vivendo em condições inumanas. Agora, vida nova sem favela.
Não há como pensar no controle da tuberculose sem uma política realmente séria de habitação. São as soluções provisórias que as políticas públicas, que o Governo sempre dá, o Estado dá ao problema das favelas. Essas soluções são sempre provisórias.
Vai cantar! Vai cantar! Vai cantar!
Vai cantar! Não é a toa que a gente fala do CHP2 que era pra ser provisório, e o "P" de CHP virou permanente Eles vão, tiram o pessoal dali e botam no aluguel social. Aí, é interditado pela Defesa Civil mas eles não derrubam.
Alguns derrubam, outros deixam. Como tem alguns aqui que não cabe a gente falar de A e B… voltou pra própria casa. Recebeu da Prefeitura e voltou pra própria casa.
A gente sabe que aqui no PAC, com processo de remoção, você entra em CHP2, no Parque João Goulart… é cenário de guerra, até agora. Várias casas abandonadas! Muitas casas estão sendo reocupadas.
É um sentimento de incapacidade muito grande porque a gente não tem governabilidade pra mexer nessa questão social. Social e ambiental, porque as condições em que eles vivem são precárias. Então, isso atrapalha até a questão de saúde.
A pessoa se curou. Teve cura, teve alta por cura. Voltou pra sua casa e lá estava a mesma condição e ela volta a se reinfectar.
Mas se ele tivesse uma casa melhor, ele teria mais condição de resistir. Na verdade esse povo precisa de socorro, de ajuda. Entendeu?
Se numa família, todo mundo o morador, por exemplo, vê que na sua família todo mundo teve tuberculose, ele vai ter essa percepção de que é hereditário. Na verdade, são as condições de vida, a desigualdade que está se reproduzindo ali. E o que de fato é hereditário é a situação social.
A pobreza é hereditária. Por isso que precisa de políticas públicas, para intervir. Porque não é uma política só de saúde que vai responder a isso A gente sabe disso.
A gente sabe que são necessárias outras políticas. Políticas voltadas para habitação, políticas voltadas pro saneamento. Se você não tiver… vamos dizer… se você não começa a trabalhar todos os lados… isso não avança.
Hoje, quando meu sobrinho teve TB a gente conseguiu lidar com mais liberdade com ele, de falar do assunto e de tratar dele, do que quando foi comigo. Eu fiquei debaixo de muito preconceito. Mas ainda tem!
As pessoas ainda tem medo de admitir que estão infectadas. Agora, a gente tem que olhar pro território não como um território como só um conjunto de condições físicas mas como um conjunto de condições históricas. Que foram produzidas historicamente em função de uma escolha de como a cidade se organiza, de como você se apodera desse território.
Como é que você distribui melhor a habitação ou não habitação. Como que você cria injustiças sociais. Eu diria o seguinte a tuberculose, pra mim, junto com a hanseníase são doenças que são indicadores importantes de iniquidade.
Iniquidade no sentido de que, olha, isso não era mais para existir. Tudo que mostramos a vocês até agora não dissemos nunca que o Brasil é um paraíso. Temos muito o que corrigir e assumimos essa verdade, com a consciência de quem sabe como são graves os problemas.
O que se fez nesses 11 anos, responde pelo que se pode fazer daqui por diante, por brasileiros como estes que vivem nesse tipo de habitação que a todos nós deve envergonhar. Cujo direito a uma vida melhor preocupa de fato a todos nós, porque somos todos responsáveis. Por isso, quase metade dos investimentos do Segundo Plano Nacional de Desenvolvimento visa a elevação do homem brasileiro.
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