MENINO 23 | Da Escravidão ao Nazismo no Brasil

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Ato de Linguagem
Este Ato de Linguagem faz a análise do documentário brasileiro "Menino 23 - Infâncias Perdidas no Br...
Video Transcript:
Eu cresci achando que nazismo do Brasil era uma  coisa surreal, algo completamente fora de contexto. Quando eu vi aquela suástica, eu já imaginava  que alguma coisa de errado tinha acontecido nesse local. Por mais forte que o racismo seja  na sociedade brasileira, a ideia da democracia racial ainda faz parte do nosso imaginário, e mesmo que a gente entenda que o conceito é uma falácia, de alguma forma, ainda alimentamos a ilusão de que somos um povo cordial, alegre e não  violento.
Eles vieram de trêm aquela coisa toda, até  a gente achava uma aventura, uma coisa bonita, né? Por isso, me identifiquei com o historiador Sidney  Aguilar quando ele se demonstrou tão chocado com o fato de que, em 1933, a tradicional família  Rocha Miranda cujos herdeiros eram abertamente nazistas e integralistas tenha levado 50 meninos negros de um orfanato no Rio de Janeiro para serem escravizados em fazendas no interior de São  Paulo com a total conivência da sociedade Mas, será que isso é realmente tão surpreendente assim? Suásticas nazistas no interior do Brasil?
Transferências de grupos grandes de crianças negras? Aquilo era muito estranho. Revoltante é, sem dúvida.
Mas a  gente ainda devia ficar surpreso com esse tipo de coisa? Integralistas e nazistas foram aqueles vistos como adequados a gerir a vida de 50 crianças. Eu acho que não.
Principalmente no Brasil do início do século 20, quando a escravidão havia  sido abolida tão pouco tempo. Imagine! Para nós, seria como se a abolição tivesse acontecido na década de 70, como se todas essas pessoas que defendem a ditadura militar hoje em dia, ao invés disso, estivessem defendendo a escravidão.
Anda! Fiquem sonhando com o passado! E o que é que a escravidão tem a ver com o nazismo?
Em termos  ideológicos, muita coisa. Eu diria que a ideologia nazi-fascista foi construída sobre os alicerces expostos da recém derrotada ideologia escravocrata. Sendo assim.
a gente pode se perguntar: Quais eram  as colunas desse alicerce? Para começar, tem a noção de que existem seres humanos inerentemente superiores a outros. Depois, a ideia de que essa superioridade é justificada cientificamente por uma hierarquia biológica que divide a humanidade em raças ou seja, o racismo, assim como o processo de bestialização e objetificação daqueles para os quais esse racismo é direcionado.
É verdade  que essa ideia de superioridade existe desde que  o mundo é mundo. No entanto, ela sempre havia sido justificada por fatores culturais ou de costume. A partir do século 18, com a Revolução Industrial, foi  que a ciência começou a ser usada para justificar a exploração de um povo por outro, o que coincidiu com o auge da escravidão dos africanos nas  Américas.
Até aquele momento, a escravidão havia sido justificada como esforço civilizatório, ou seja, os europeus estariam fazendo um favor aos povos escravizados, já que em África eles viveriam como selvagens, enquanto do outro lado do Atlântico, eles viveriam como cristãos. No entanto, a noção de que os escravizados seriam seres inerentemente inferiores por conta de sua biologia se provou uma ideia muito mais poderosa e de acordo com seu tempo, o que deu origem a pseudociência da frenologia, postuladora da concepção de que a forma do crânio era o que determinava  as faculdades mentais e a personalidade de um indivíduo. Apesar de ser rapidamente descreditada  por falta de evidências empíricas, a frenologia deixou sua marca e serviu de sustentação teórica para o Ensaio sobre a Desigualdade das Raças Humanas, texto publicado em 1855 de autoria de um dos mais  influentes teóricos do racismo científico, o conde Arthur de Gobineau.
Eu só trago excrescência intelectual à tona pelo fato dela ter sido uma das principais influências da eugenia na Alemanha nazista, praticar que veio a ser fundamental para a consolidação da ideologia da pureza racial que desembocou nada mais nada menos que no Holocausto durante a segunda guerra mundial. A eugenia, por sua vez, é a utilização de práticas e políticas de controle social com a intenção de melhorar as qualidades genéticas, físicas e mentais, das gerações futuras. Você pode fazer testes de genéticos, testes químicos, físicos.
Pode testar a dor. Influenciada pelo darwinismo social, buscava a  evolução da espécie através da seleção artificial. Eugenia é aquele paradigma da normalidade, não é?
Que diz que o diferente é anormal. Com esse objetivo em mente, o Partido Nazista proíbiu casamentos ou mesmo relações sexuais, entre indivíduos considerados arianos e não arianos, pessoas com problemas mentais ou doenças contagiosas. Eles também impuseram a esterilização compulsória de pessoas com doenças hereditárias, a castração daqueles que eram considerados delinquentes sexuais, além do puro e simples extermínio daqueles que não se encaixavam em seus ideais raciais.
No Brasil, a eugenia se manifestou no incentivo da imigração europeia e na proibição da imigração de não brancos, em um esforço para promover o embranquecimento da população e a higienização da sociedade. As teorias eugenistas estavam tão impregnadas na sociedade que foram incluídos no texto da Constituição de 34 que definia como responsabilidade do estado brasileiro fomentar a educação eugênica. De certa forma, eugenia e higienismo se fundiram em terras brasileiras, no momento histórico em que  as elites tentavam industrializar e modernizar o país, o que na cabeça deles significava diluir  a influência e a presença da população negra  em sua dinâmica social.
Sociedades eugênicas começaram a se multiplicar, promoveram congressos, encontros, simpósios competições. As crianças que sistematicamente venciam estes concursos tinham características definidas pelos eugenistas como características superiores. Portanto, assim que nos libertamos do engodo que a ideia da democracia racial, fica óbvio e ululante que os acontecimentos narrados no documentário não só eram aceitos pela sociedade brasileira como também eram prováveis de acontecer, ainda mais quando o contexto histórico  era tão favorável.
Nós tivemos um Partido Nazista brasileiro com dezenas de milhares de membros. O segundo maior Partido Nazista fora da Alemanha. O título do documentário "Menino 23" se refere  ao número atribuído pelos Rocha Miranda a Aluízio Silva, um dos 50 meninos escravizados nas  fazendas da família.
Não ganhava nada? Não, não. .
. era só a comida e mais nada. No período de dez anos em que viveram sob o regime de trabalho forçado, sem remuneração, sem o direito à educação ou de ir e vir, os meninos eram chamados através de seus respectivos números.
Todo mundo era numerado? Era nunerado. O que evidencia um outro aspecto  compartilhado entre a ideologia da escravidão e o nazi-fascismo, a bestialização e objetificação daqueles indivíduos entendidos como inferiores.
Ora, todos sabem que a supressão do nome próprio  e a atribuição de um número alguém serve para desumanizar e despir a pessoa de identidade própria facilitando o processo de controle e extração de valor de um determinado indivíduo. Depois da lavoura vinha aquela cocheira de novo. Cuidar dos cavalos.
Acabamos os cavalo, ia cuidar dos carneiros lá na grama. Além disso, atribuição de números a pessoas faz referência a marcação do gado, cavalos e outros  animais vistos como recurso econômico e força de trabalho, ou seja, coisas, objetos passivos à espera de um sujeito que possa utilizá-los ao contrário de seres vivos dotados de agência e autonomia. Chovesse ou não chovesse, tinha que ir.
Foi exatamente isso que os nazistas  fizeram com judeus nos campos de concentração e que os sistemas prisionais até hoje fazem com seus detentos. A gente falava um pro outro: e agora? Como é que nós faz?
A gente tem que dar um jeito de fugir. Mas, o tutor já tinha uma parede de  cachorro preparado para isso Por sua vez, os senhores escravocratas não se referiam aos  negros escravizados por números, mas trocavam seus nomes africanos por nomes cristãos, além do sobrenome pela referência da região onde haviam sido capturados: Mina, Cabinda, etc. No entanto, os africanos escravizados e seus descendentes não foram menos bestializados e objetificados  por causa disso, pois tinham, literalmente, o status jurídico de propriedade privada e como tal tinham de ser considerados menos que um ser humano, um animal, ou, pior, uma coisa.
É daí que vem o termo mulato que faz referência a mula, animal de carga, força de trabalho bruta, assim como o costume racista de se referir a negros como macacos ou gorilas, animais selvagens, instintivos, despossuídos de racionalidade, da mesma forma não é de se espantar que na Alemanha nazista os  judeus fossem frequentemente comparados a ratos piolhos e outros tipos de animais associados  à sujeira e as doenças contagiosas. Isso não quer dizer que quando falamos da ideologia  do nazismo ou do fascismo no Brasil estamos falando necessariamente da ideologia da escravidão,  apenas que elas pro vende o mesmo modo de pensar e agir, assim como de simbologias e arquétipos  compartilhados. Como no início do século 20 já não era mais possível defender a escravidão  dos negros como uma alternativa econômica e social viável, a segunda melhor opção para as elites brancas eram as ideologias nazi-fascistas.
Falar o quê, né? Pais escravocratas, filhos fascistas. Diante disso ouso dizer que toda e qualquer experiência brasileira inspirada no nazi-fascismo descambará inevitavelmente para um acirramento das questões raciais ligadas ao negro ou mesmo o reaparecimento de práticas do tempo da escravidão.
Portanto, a lição que Sidney nos deixa, depois de tudo, é a coisa mais importante, não só do documentário, como também desse vídeo. Saber que isso tudo parecia muito natural para época é o mais revoltante. Aquilo foi aceito socialmente.
De repente, podemos estar naturalizando, como fizeram nossos ancestrais das décadas de 1920 e 30, sem que sequer percebamos os acontecimentos. Você tem inveja dessas famílias aqui, você tem inveja disso aqui também. O afrodescendente mais leve lá pesava 7 arrobas , não fazem nada, eu acho que nem para procriador serve mais.
Você é macho na periferia. Aqui, você é um bosta. Aqui é Alphaville, mano.
Fui, mais uma vez, no museu do holocausto.  Nós podemos perdoar, mas não podemos esquecer. Muito obrigado por sua atenção. 
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