Nenhuma imagem foi tão simbólica do sofrimento dos migrantes internacionais quanto esta. O menino sírio Alan Kurdi, de apenas três anos, foi encontrado sem vida numa praia da Turquia em setembro de 2015. Ele morreu afogado, com a mãe e o irmão, depois do naufrágio do bote que usavam para tentar chegar à Europa.
Estavam em um grupo que fugia da guerra civil e da violência do grupo autodenominado Estado Islâmico na Síria. O retrato da morte de Alan não apenas deu um rosto para a massa de refugiados que cruzavam o mar Mediterrâneo em busca de uma nova vida. Também acordou a comunidade internacional para um dos mais graves problemas sociais do início do século 21.
Eu sou Camilla Veras Mota, da BBC News Brasil, e este é mais um vídeo da série 21 notícias que marcaram o século 21. Nele, falamos do drama da imigração forçada. Um problema que continua aumentando em escala enquanto a guerra na Ucrânia, os persistentes conflitos em várias partes do mundo, a pobreza extrema e as catástrofes climáticas expulsam cada vez mais pessoas de suas terras.
Em maio de 2022, pela primeira vez na história passou de 100 milhões o número de pessoas forçadas a deixar suas casas – algo que a agência de refugiados da ONU chamou de um “marco inacreditável”. É o equivalente a quase metade da população brasileira. A crise mais recente é no coração da Europa – e já é uma das maiores das últimas décadas.
Desde que a Rússia iniciou o bombardeio da Ucrânia, em 24 de fevereiro, um terço da população ucraniana precisou fugir, segundo estimativas da ONU. Uma parte delas conseguiu voltar, mas a maioria, não. Cinco milhões de ucranianos foram para países vizinhos, como a própria Rússia, a Polônia e a Moldávia, e sete milhões estão deslocados dentro do território ucraniano.
Essa crise foi marcada por cenas de desespero e sofrimento nas fronteiras, mas também por demonstrações de solidariedade e acolhimento aos ucranianos refugiados. Esse centro de boas-vindas no País de Gales é um bom exemplo. Mas os imigrantes nem sempre recebem boas-vindas.
Muito pelo contrário. Em um momento de ascensão do nacionalismo, da proteção do mercado de trabalho e de discussões sobre identidade nacional, muitos governos e cidadãos não veem com bons olhos a entrada de imigrantes em seus territórios. Donald Trump chegou à Presidência dos Estados Unidos em 2016 prometendo um controle imigratório muito mais rígido das fronteiras terrestres americanas.
O muro foi parcialmente construído, e outras políticas polêmicas ampliadas por Trump na Presidência incluíam centros de detenção para crianças migrantes, onde elas ficavam separadas de seus pais e em situação precária. Mesmo no governo anterior, de Barack Obama, os Estados Unidos haviam registrado um número recorde de deportações de imigrantes. E hoje, sob Joe Biden, a tentativa de passar pela fronteira continua caótica e perigosa, omo mostra o episódio em que 50 pessoas morreram dentro de um caminhão no Texas.
Também na Europa a imigração divide opiniões. O fluxo de pessoas partindo em perigosas viagens pelo mar Mediterrâneo começou a crescer particularmente em 2011, na onda da Primavera Árabe – a revolta contra regimes autocráticos no mundo árabe. Em 2013, a ilha de Lampedusa virou o retrato da crise europeia.
Começou a receber milhares de imigrantes não só do Oriente Médio, mas de países africanos onde parte da população sofria perseguições, violência e fome. A ilha foi visitada pelo papa Francisco, que homenageou os mortos nas trágicas jornadas pelo mar Mediterrâneo e criticou o que chamou de indiferença do mundo diante dos imigrantes. O auge da crise foi em 2015, quando ocorreu a mais grave tragédia em décadas: o naufrágio de um barco superlotado perto da costa da Itália, que deixou estimados 700 mortos.
Naquele ano, a então chanceler Angela Merkel abriu as portas da Alemanha para dezenas de milhares de imigrantes da Síria que haviam passado antes por outros países da União Europeia. A política foi celebrada por defensores dos direitos dos migrantes, mas fez políticos favoráveis ao controle migratório subirem o tom do discurso. As críticas e protestos aumentaram depois de um grave incidente no Réveillon de 2015 na cidade de Colônia, quando cerca de 80 mulheres disseram ter sido atacadas por homens que aparentavam ser imigrantes.
No ano seguinte, Merkel sofreu uma derrota simbólica nas eleições regionais em seu reduto eleitoral, o Estado de Meckleburg-Vorpommern. O partido da então chanceler, a União Democrática Cristã, ficou em terceiro lugar, atrás do partido de extrema direita e anti-imigração Alternativa para a Alemanha, o AfD. O avanço do AfD foi considerado um retrato do clima hostil a imigrantes que ganhava espaço em partes da Europa.
Merkel conseguiu se reeleger e foi sucedida pela centro-esquerda quando deixou o poder no fim do ano passado, mas o AfD ainda ocupa um espaço até então inédito na política alemã e tem hoje 80 das 736 cadeiras do Parlamento alemão. Crises migratórias nas fronteiras também levaram a políticas mais linha-dura em países como Itália, Hungria e Belarus. Na Hungria, o premiê Viktor Orbán, famoso por adotar uma postura firme contra a imigração, disse em julho que, ao contrário da Europa Ocidental, os húngaros não são um povo de raça mista.
O comentário foi duramente criticado pela União Europeia, por grupos judaicos e por acadêmicos, além de ser considerado racista – algo que Orbán negou. Em 2021, o premiê manteve seu apoio a uma lei húngara que criminaliza advogados e ativistas que ajudem pessoas a solicitar refúgio no país. A lei foi considerada irregular pela Corte de Justiça da União Europeia, por estar em desacordo à legislação conjunta do bloco.
Na Itália, o endurecimento aconteceu principalmente sob Matteo Salvini, que declarou recentemente que “a Europa estava começando a perceber os perigos da imigração ilegal”. Desde então, algumas leis italianas foram revisadas para dar mais garantias legais a quem busca refúgio. E Salvini virou réu da Justiça italiana, acusado de impedir um navio de imigrantes de desembarcar na Sicília em 2019.
Mas o maior exemplo foi visto no Reino Unido, com o Brexit, o processo de saída da União Europeia, aprovado em um plebiscito em 2016. Uma das principais plataformas dos defensores do Brexit era conter a liberdade de movimento de pessoas vindas de outros países da Europa. Ou seja, conter a imigração.
Fora do bloco, o Reino Unido teria a independência para criar suas próprias políticas migratórias. E a mais recente delas é alvo de enorme controvérsia, tanto política quanto jurídica. Em abril de 2022, o governo britânico anunciou que refugiados que entrassem no Reino Unido por botes ou caminhões irregulares seriam enviados para Ruanda, no centro-leste da África, sem passagem de volta.
Segundo o governo, o objetivo é desencorajar esses migrantes de fazerem as perigosas rotas pelo Canal da Mancha entre a Inglaterra e a França. O número de pessoas nessas jornadas bateu recorde em 2021. Em Ruanda, eles podem em teoria pedir seu status de refugiado, para ficar no país africano ou em outros lugares.
A proposta, é claro, despertou bastante resistência interna e externa. Um voo inicial com 37 imigrantes estava previsto para decolar do Reino Unido para Ruanda em junho, mas virou alvo de uma batalha legal até ser cancelado. Até o momento em que eu gravo este vídeo, porém, o governo britânico mantém a defesa desse projeto.
Mesmo diante de duras críticas da ONU. Algumas das crises citadas por Filippo Grandi recebem pouca atenção do noticiário. Estou falando de países como Mianmar, Burkina Faso, República Democrática do Congo e Etiópia, países afetados por longos conflitos e extrema pobreza.
Outro ponto importante é que a maioria dos refugiados são recebidos em países em desenvolvimento, e não em países ricos. Os quatro países que mais abrigam refugiados no mundo são Turquia, com 3,8 milhões de sírios, iraquianos e afegãos, Colômbia, com 1,8 milhão de venezuelanos, Uganda, com um milhão e meio de pessoas da República Democrática do Congo e Paquistão, com um milhão e meio de afegãos. Depois vem a Alemanha, com 1 ponto 3 milhão de refugiados.
O aquecimento global vai aumentar a escala desse desafio. A ONU já usa o termo refugiados do clima para descrever as pessoas, em geral extremamente pobres, que se veem forçadas a deixar seu lugar de origem por causa de secas prolongadas, enchentes, deslizamentos, escassez de água e comida e outros eventos extremos. Desde 2010, segundo a organização, emergências climáticas têm forçado, em média, 21 milhões e meio de pessoas por ano a se mudarem.
Os custos econômicos e humanos, é claro, são enormes. E as consequências para a população global também. Em alguns países ricos com taxa de fecundidade em declínio, a imigração já responde hoje por uma parcela maior do aumento populacional do que os nascimentos.
Dados da ONU mostram que, entre 2000 e 2020, a imigração para esses países ricos fez a população crescer em 80,5 milhões. Já o número de novos nascimentos — descontadas as mortes — responde por 66,5 milhões. Sob esse aspecto, alguns analistas defendem a imigração como uma forma de esses países absorverem mão de obra jovem, para se contrapor ao aumento da população idosa e dos custos de saúde e previdência social.
Algo que, é claro, levanta muitos debates sobre políticas migratórias, combate à xenofobia e, também, identidade. A gente viu um pouco disso aqui no Brasil, em especial na fronteira com a Venezuela, palco de uma das maiores crises migratórias das últimas décadas. Segundo cálculos da agência de refugiados da ONU, a combinação de violência, insegurança, escassez de comida e serviços básicos havia forçado 6 milhões de venezuelanos a deixar seu país até outubro de 2021.
O auge dessa crise foi em 2018. Muitos vieram para cá para o Brasil em busca de oportunidades e de sobrevivência. A cidade de Pacaraima, em Roraima, fica na fronteira e foi descrita como um vulcão em erupção.
Moradores brasileiros, frustrados com a crise, atacaram os imigrantes. Mas eles continuaram a vir. De volta ao caso do menino Alan Kurdi, a BBC entrevistou o pai dele em 2016, um ano depois da tragédia na costa turca.
Abdullah foi o único do círculo familiar a sobreviver ao naufrágio. Essa entrevista foi há seis anos mas os desafios mencionados por Abdullah Kurdi continuam valendo. Ele recusou ofertas de asilo e se mudou para o norte do Iraque com a irmã, para estar mais perto do local onde seus filhos e sua mulher foram enterrados.
Por hoje eu fico por aqui, e você pode ver mais vídeos da nossa série na playlist 21 notícias que marcaram o século 21. Obrigado e até a próxima.