Césio 137 em Goiânia: a cronologia do maior desastre radiativo do Brasil

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BBC News Brasil
A BBC reconstitui a linha do tempo do acidente radioativo com imagens de arquivo, entrevistas e o r...
Video Transcript:
Dois catadores de lixo encontram uma máquina em uma clínica abandonada e decidem desmontar o equipamento. Eles nem imaginavam, mas davam início ali ao que já foi considerado o pior desastre nuclear do mundo desde Chernobyl, um ano antes, e o maior acidente radioativo da história fora de uma instalação nuclear. Meu nome é Camilla Veras Mota e hoje eu vou voltar com você lá para setembro de 1987, o ano em que um pó radiante, com brilho azul bonito como glitter, causou uma tragédia sem precedentes.
Os dois homens, Wagner Pereira e Roberto Alves, retiraram a parte superior da máquina, que era uma unidade de radioterapia usada para tratamentos contra o câncer, e a levaram para casa em um carrinho de mão. Um relatório publicado um ano depois pela Agência Internacional de Energia Atômica registrou que aconteceu em seguida. Eu vou recontar essa história com a ajuda desses registros.
13 de setembro Wagner teve vômitos, atribuindo-os ao fato de ter comido manga com coco. 14 de setembro Wagner teve diarreia, tonturas e começou a ficar com uma das mãos inchadas. 15 de setembro Wagner procurou assistência médica.
Os sintomas foram diagnosticados como reação alérgica causada por alguma coisa que ele comeu. Eles usaram chaves de fenda para abrir a pesada caixa de chumbo. Dentro, havia um cilindro que continha 19 gramas de Césio 137, uma substância altamente radioativa.
Ele é usado no tratamento de câncer e fica protegido por chumbo dentro do equipamento. No tratamento, uma espécie de janela se abre no interior da máquina, para que o paciente receba uma dose controlada daquela radiação. Os homens venderam a cápsula para um ferro velho, propriedade de Devair Ferreira.
18 de setembro Ferreira entrou na garagem e notou um brilho azul emanando da cápsula. Achou bonito o que via e pensou que aquilo poderia ser um pó valioso, como uma pedra preciosa, ou mesmo algo sobrenatural. Durante os três dias seguintes, vários vizinhos, parentes e conhecidos foram convidados para ver a curiosa cápsula.
21 de setembro Um amigo de Devair Ferreira o visitou e, com a ajuda de uma chave de fenda, extraiu alguns fragmentos do material raro, do tamanho de grãos de arroz, que se desintegravam facilmente e viravam pó. Ferreira distribuiu pedaços para a família. Houve vários casos de pessoas que esfregaram o pó o radioativo sobre a pele, como fariam com brilho usado na época do Carnaval.
24 de setembro Ivo Ferreira, irmão de Devair, levou alguns fragmentos para casa e eles foram colocados na mesa, durante a refeição. Sua filha de 6 anos, Leide das Neves Ferreira, os tocou enquanto comia, assim como outros familiares. 28 de setembro A essa altura já tinha muita gente doente e todas dividiam os mesmos sintomas: diarreia, vômitos, febre alta e queda de cabelo.
A primeira pessoa a suspeitar que a cápsula com pó brilhante estaria por trás disso foi Maria Gabriela Ferreira, mulher de Devair, dono do ferro velho. Sueli de Moraes, uma vizinha que também foi contaminada, contou à BBC o que aconteceu. Vamos ouvir a entrevista que ela deu a Thomas Pappon.
"A Maria Gabriela pegou esse aparelho que continha o Césio e levou para a vigilância sanitária. Como não tinha ninguém na vigilância, ela deixou lá. Isso foi numa terça-feira.
Dentro de um saco, deixou lá. Quando foi na segunda-feira que o técnico vem. " Já haviam se passado 15 dias desde o início da contaminação.
No hospital, os médicos começaram a considerar a hipótese de envenenamento por radiação. Pediram ao físico Walter Mendes Ferreira que examinasse o dispositivo. Ele pediu emprestado um detector de radiação de uma Agência Federal de Prospecção de Urânio e se dirigiu ao escritório de saúde.
"Quando cheguei à Vigilância Sanitária, aproximadamente uns 80 metros, eu não conseguia mais medir, e eu achei que o detector estava com algum defeito. Eu retornei à oficina e pedi novamente ao geólogo chefe, dizendo o seguinte para ele: 'Eu quero um detector que esteja calibrado e que esteja funcionando adequadamente'. Ele diz o seguinte: 'Acho que o senhor não sabe medir'.
Eu falei: 'Sei medir sim'. E ele pegou um novo, com certificado de calibração, e eu voltei. No mesmo ponto, ele deu a mesma coisa: ele saturava a medida.
Significava o seguinte: eu estava na presença de um campo de radiação muito forte ou os dois detectores estavam equivocados. Mendes Ferreira conta que viu um bombeiro saindo do posto de saúde carregando o cilindro, a fim de jogá-lo no rio. "Ele ia saindo com esse cilindro e ele ia jogar no Rio Capim Puba.
Falei: 'Pelo amor de Deus, não faça isso! Deixa eu verificar o que é primeiro'. Evaquei a Vigilância Sanitária e perguntei aos dois veterinários que receberam esse cilindro: 'quem trouxe esse material aqui?
'. 'Não, foi uma senhora do ferro velho aqui no centro da cidade'. Fui até o ferro velho e nas proximidades já havia sinal de contaminação verificando do outro lado.
O instrumento já não conseguia medir. Estava todo contaminado. " No total, mais de 110 mil pessoas foram examinadas.
Verificou-se que 249 delas tinham níveis expressivos de material radioativo em seus corpos. Entre as fontes de contaminação, o cachorro da família Ferreira, Sheik. Veja nessa reportagem da BBC da época: Centenas de pessoas com níveis leve de contaminação tiveram de permanecer em abrigos especiais.
Sueli de Moraes, que hoje é presidente da associação de vítimas, passou 3 meses em um deles. Ela lembra que era preciso tomar banho com água, vinagre e sabão de coco, além de trocar de roupa a cada meia hora. "E tomava um remédio azul da prússia, que eram uns 10 ou 20 comprimindos por dia, dependendo do grau da contaminação.
O vinagre, sabão de coco, lixa de lixar pé, para passar nos pés e tirar a contaminação. O pé era o mais contaminado, porque a gente andou. Foi assim 3 meses.
Era um alojamento. Ninguém via ninguém. Nem televisão a gente podia ver, para não saber das notícias de fora".
A primeira pessoa a morrer foi Leide das Neves Ferreira, a menina de 6 anos que brincou com o pó brilhante e até engoliu um pouco do material. Tanto ela quanto sua tia, Maria Gabriela Ferreira, morreram de septicemia e sepse, infecções generalizadas, um mês após a exposição ao Césio. Seu enterro em Goiânia ficou longe de ser um assunto pacífico de família.
A vizinha Sueli de Moraes diz que quando os caixões chegaram ao cemitério, as pessoas começaram a atirar pedras e tijolos tentando impedir o sepultamento. "O corpo dela chegou no cemitério e o povo começou a apedrejar. Eles arrancavam meio-feio e jogavam no caminhão para não ser enterrado".
"As pessoas, antes de serem enterradas, antes de falecer, todas elas foram descontaminadas Elas não tinham nenhuma contaminação. Fizeram por precaução, à época, enterradas num caixão de chumbo para evitar pânico generalizado e, ao contrário, isso gerou o pânico generalizado na cidade, de que ia contaminar cemitério, essa coisa pública, e não era verdade. É muito complicado".
As outras duas vítimas fatais foram homens que trabalhavam no ferro velho. Incrivelmente, os catadores de lixo Wagner Pereira e Roberto Alves sobreviveram, assim como o proprietário do ferro velho Devair Ferreira. Muitas outras vítimas foram salvas pelo tratamento que receberam no hospital.
Foram demolidos o ferro velho e dezenas de casas. Centenas de objetos, de refrigeradores, sofás, o pavimento de ruas inteiras, veículos e até mesmo árvores e animais foram destruídos e descartados como lixo nuclear. O desastre em Goiânia produziu cerca de 6 mil toneladas de resíduos, recolhidos e enterrados em um centro especialmente preparado a 20 quilômetros da cidade.
Em 1996, 5 pessoas ligadas à clínica que havia sido abandonada a máquina de radioterapia foram condenadas a 3 anos e 2 meses de prisão por homicídio. A pena foi reduzida depois a serviços comunitários. Quatro pessoas morreram por causa do desastre.
Esse é o número oficial de mortes considerado pela Secretaria de Saúde do Estado de Goiás que tem hoje centenas de vítimas cadastradas para receber acompanhamento no centro de assistência aos radioacidentados Leide das Neves Ferreira, fundado no ano seguinte para atender a população afetada. Mas a associação de vítimas do Césio 137 estima que o acidente tenha causado dezenas de mortes e contaminado ou irradiado mais de mil pessoas, incluindo militares, bombeiros e profissionais de saúde que entraram em cena para remediar o acidente. Que tenham ficado então lições desse desastre para o Brasil e para o Mundo.
Se você gosta de história, assina o nosso canal que muitas outras estão vindo por aí. Tem essa aqui na tela também sobre Ricardo Trajano, que foi o único passageiro a sobreviver a um acidente aéreo da Varig na França. E temos também nosso documentário sobre os sons esquecidos dos Pracinhas brasileiros da FEB na Segunda Guerra Mundial.
A BBC News Brasil tinha um correspondente de guerra que gravou as vozes e as músicas desses soldados. Confere aqui se você ainda não viu. Até mais!
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