Salve cavaleiros, Thiago aqui e esse é o Impérios AD. Provavelmente você já ouviu falar que toda a história tem dois lados. E você já deve ter ouvido falar que isso nunca funcionou muito bem!
Só que quando o assunto é escravidão, esquece: É que uma conversa sadia sobre a origem da escravidão só não é mais difícil do que uma conversa sadia sobre a ORIGEM do comércio de escravos e como ele chegou aqui no Brasil. E é um assunto difícil mesmo, porque o máximo que muita gente aprendeu é que os portugueses invadiram a África raptaram os africanos e começaram a espalhar escravos pelo resto do planeta. E é isso aí só, acabou!
Mas a origem da escravidão africana e brasileira é uma engrenagem extremamente complexa, e entender essa origem evita simplificações ideológicas vazias, e nos ajuda a entender melhor como as mentes europeias e africanas da época funcionavam. Por isso, hoje vocês mesmos vão fazer a leitura dos documentos mais importantes sobre esse assunto de todo século XVI. Vocês mesmos vão poder ver como esses documentos nos dão detalhes importantíssimos e não deixam a menor dúvida sobre como funcionava e quem participava desse comércio durante todo século XVI.
Mas antes eu queria agradecer demais ao professor João Pedro Marques, doutor em história pela Universidade de Lisboa e um dos mais renomados especialistas na história da escravidão africana e portuguesa do mundo. E que me guiou por essas fontes primárias tão valiosas. E eu coloquei todas essas fontes aqui na descrição pra vocês.
Então agora você vai entender como esse comércio odioso funcionava, desde as suas origens, e como ele conseguiu alimentar o Brasil por tanto tempo. E foi com essas palavras na Bula Dum Diversas de junho de 1452 que o Papa Nicolau V autorizava os portugueses a conquistar e escravizar sarracenos e pagãos por onde passassem. E a sede de sangue pagão era tanta, que três anos depois o Papa emitiu uma outra bula confirmando a bula anterior, a Bula Romanus Pontifex que de novo dizia que os Portugueses podiam continuar maltratando os sarracenos, e isso, você já sabe, era um fado para os ouvidos portugueses da época.
Mas como tudo isso pode e já deve estar causando comichões agudos em muita gente no século XXI, aí vai um lembrete importante: essas bulas papais foram escritas há mais de 500 anos atrás, século XV, Europa. E um pouco de contexto pode ajudar a entender melhor o assunto: lá tava rolando um probleminha que tinha nome e sobrenome: Império Otomano. Desde o final do século XIII os turcos estavam fazendo uma arruaça na Europa, conquistando tudo, e depois que Constantinopla caiu em 1453, a configuração do mundo Ocidental mudou drasticamente, e entre as mudanças que mais afetaram os Europeus, foi o fim do fornecimento de escravos orientais, que agora estaria nas mãos dos muçulmanos.
Lembre-se disso, que é importante. Então, quando a Igreja e Portugal se aliam em uma guerra contra sarracenos e pagãos, era em um contexto extremo que exigia medidas extremas: os muçulmanos eram vistos como uma ameaça constante a fé e cultura europeia, invadindo e dominando grande parte do continente por séculos. Então, todas as bulas papais deixavam claro não uma guerra racial, mas uma guerra religiosa: cristianismo x paganismo.
Com essa autorização os portugueses e depois os espanhóis ganhavam direito legítimo de explorar e dominar as terras ao sul da África e depois a Leste e Oeste, como no famoso Tratado de Tordesilhas em 1494. E nessas navegações e descobertas ao sul, os europeus entraram em contato com novas etnias e territórios pela primeira vez: a África Subsaariana. E desses encontros inéditos, nenhum foi mais impactante que.
. . Toc toc.
. . O Reino do Congo.
. O primeiro contato entre Portugal e o Reino do Congo foi em 1482 com o navegador tuga Diogo Cão. E quando esses dois povos tão diferentes se encontraram pela primeira vez, o que que você acha que aconteceu hein?
Se você acha isso, você tá errado, ou então mentiram pra você esse tempo todo. Porque apenas 9 anos depois, em 1491, os dois reinos já estavam assim: E nesse clima de amizade e aprendizado o Rei do Congo se converte ao cristianismo e muda seu nome de Nkuwu Nzinga para João I. Mas foi seu filho e sucessor que levaria o cristianismo a todo o reino: Mvemba Nzinga, mais conhecido pelo seu nome cristão, Afonso I.
Aliás, se você acha que os portugueses enfiaram o cristianismo goela abaixo dos africanos, você tá errado! Ou mentiram para você esse tempo todo. Aliás, tentar a força contra o Congo seria uma jogada bem besta no início do século XVI, porque o Congo tinha uma população 2x maior do que a inteira população portuguesa da época, e obviamente esse contato com o Congo era feito por algumas poucas dezenas de portugueses, e só.
Afonso I, assim como o seu papai, aceitou Jesus de braços bem abertos como você vai ver daqui a pouco. Então, com a fé cristã e a língua portuguesa, Portugal e Congo criam um laço de amizade religiosa, política e comercial que duraria pacificamente por mais de um século entre os dois reinos. E essa amizade tornaria legal o comércio mais odioso da era moderna: o comércio de escravos.
Quando os portugueses chegam no Congo já encontram um sistema escravista em funcionamento, que era formado por povos conquistados e subjugados pelo reino africano. E quanto mais escravos um rei ou nobres tinham, maior o prestígio, poder e influência que eles exibiam. E foi do Congo que saíram os primeiros e grande parte dos escravos para o Brasil.
Aí surge uma pergunta que você sempre quis fazer, mas teve medo de perguntar: como esse comércio começou? A resposta está nas valiosas cartas trocadas entre ambos os Reinos, e que estão preservadas no acervo do Arquivo Nacional da Torre do Tombo em Lisboa, compiladas cronologicamente nos dois primeiros volumes da Monumenta Missionária Africana e na História do Congo, obra Posthuma do Visconde de Paiva Manso, e disponibilizadas digitalmente no Repositório da Universidade de Lisboa. Esses documentos estão entre as principais fontes de estudo usadas e citadas por especialistas no mundo inteiro, e seu valor histórico é incontestável.
Aliás, eu coloquei alguns estudos mais recentes sobre essas cartas na descrição também, pra expandir mais ainda o assunto. Reparem que no final de cada carta e documento consta inclusive a localização e a gaveta onde os originais estão guardados nos arquivos da Torre do Tombo, que pode ser útil para aqueles mais dedicados no assunto. A leitura desses documentos é primordial, porque lá estão as palavras dos próprios monarcas e seus agentes.
Lá, a história é contada por eles próprios, e por isso esses documentos são os mais seguros e imunes a qualquer inclinação ideológica moderna, para qualquer lado da força. Considerações feitas, agora é a hora de ver umas cartinhas bem antigas: Desde as primeiras cartas fica evidente o relacionamento amistoso entre os dois reinos: por exemplo, no “Manifesto do Rei do Congo a Todos os Nobres de seu Reino,” escrito em 5 de março de 1512, o Rei Afonso I do Congo agradece as armas dadas pelo rei de Portugal e as ‘considera como sendo as armas de Cristo,’ chamando o rei de Portugal de “fiel irmão em Cristo. ” Em outra carta enviada em 1515, Afonso I pede pedreiros e carpinteiros ao Rei Manuel I de Portugal para construção de uma escola no Congo.
Até aí, nada demais, apenas bons amigos cristãos fazendo negócios inocentes. Mas na carta de 5 março de 1516, o próprio Rei do Congo nos mostra uma outra face desse comércio: nessa carta enviada à Portugal, o monarca africano diz que enviava um navio carregado com 400 peças de escravos por meio de um capitão português, e que o havia tratado muito bem enquanto esteve lá. Depois, em 17 de Abril de 1517 o rei do Congo escreve uma carta sobre presentes que o Rei português enviava a ele.
Um mês depois o Rei Afonso escreve outra carta, mas dessa vez ele tá bem. . .
magoado. Ele reclama na carta que seus parentes foram a Lisboa aprender várias coisas interessantes, mas voltaram sem aprender nada. Eu me pergunto o que teria acontecido?
Depois em 26 de maio de 1517, o rei do Congo volta a falar de escravos: ele diz que queria comprar um navio português para transportar escravos sem pagar tributos. Depois, em 18 de janeiro de 1526, ele envia outra carta a Portugal agradecendo vários tecidos que recebeu do rei Português; em março do mesmo ano ele pede que Portugal envie 50 padres para seu reino. E assim os dois reinos seguiam: felizes, alegres e unidos até que de repente, o Rei do Congo Afonso I, escreve uma carta inesperada em 6 de julho de 1526: Pra justificar essa interrupção, ele diz na carta que muitos portugueses estavam negociando escravos e armas com vários senhores do Congo, e que muitos deles já estavam ficando muito poderosos e estavam se rebelando contra ele próprio.
E o que você acha que a coroa portuguesa fez hein? Se você pensou nisso, você não sabe de nada de novo, ou de novo mentiram pra você. Como eu disse antes, era simplesmente impossível para Portugal invadir e escravizar tanta gente num reino tão grande e forte como o Congo, principalmente contra a vontade dos nobres e monarcas.
Então, a coroa portuguesa não tinha outra opção além de aceitar o pedido e se virar. Mas poucos meses depois, em 18/10/1526 o Rei do Congo escreve uma nova carta a Portugal só que dessa vez ele estabelece uma lei para que todo comprador de escravo fosse primeiro diante de 3 oficiais de confiança da corte do Congo, e que os escravos seriam despachados apenas por eles. Ou seja, os negócios voltavam à mesa de novo, e era o próprio rei africano que ditaria as regras.
Só que Portugal já tinha dado um jeito no problema e esse jeito se chamava. . .
Angola! Só que para o Rei do Congo, só uma coisa era pior do que seus nobres ficando muito poderosos; era Angola ficando muito poderosa! E não importa se eram reinos ou nobres, quem negociava com os europeus alcançava um poder inimaginável para os padrões africanos.
Isso acontecia porque os portugueses tinham as melhores armas da época, como o arcabuz. Então o rei ou nobre que tinha o arcabuz, mandava geral. Aliás, lembra que o próprio rei do Congo disse que essas armas eram “enviadas pelo próprio Jesus?
” Então você imagina que o negócio era bom mesmo! Mas apenas 6 anos depois, algo surpreendente acontece: o próprio rei do Congo, Afonso I, o mesmo que tinha pedido para parar o comércio de escravos, agora pede que os portugueses voltem a comprar escravos com ele sem restrição nenhuma, contanto que parassem de negociar com Angola. A gente sabe disse por causa do Regimento do Feitor do Trato de São Tomé escrito em 2/08/1532, onde o Rei português proíbe o comércio com Angola a pedido do Rei do Congo, pois este lhe prometera “muitas vantagens e ampla liberdade comercial.
” Como ele próprio diz no texto original: “o Rei do Congo fará tantas vantagens nos resgates e despachos dos navios que forem ao seu reino que dará cada ano tanta quantia de escravos, cobre e marfim com que se possa fazer mais proveito. ” E isso, advinha só, era tudo que Portugal queria ouvir. E Afonso cumpriu mesmo a promessa, porque na carta de Manuel Pacheco a D.
João III escrita em 28/03/1536, o oficial cita que nos últimos 5 anos que esteve no Reino construindo um navio para o Rei do Congo, ele presenciou tantos navios carregados que não desceu abaixo de quatro a cinco mil peças de escravos em nenhum ano, e que números incontáveis morriam antes de embarcar. Ou seja, só entre 1531 a 1536 teriam saído do Congo de 20 a 25 mil escravos, e como a carta mostra. O Congo produzia tanta quantidade que muitos morriam antes de serem embarcados.
Do Congo, os escravos eram enviados para São Tomé, que funcionava como uma espécie de alfândega de escravos e de lá, por volta desse mesmo período, os primeiros escravos começaram a ser traficados para o Brasil. E os reis e nobres do Congo continuavam com o negócio a todo o vapor porque em 4/12/1540, o Rei Afonso I do Congo envia outra carta ao Rei D. João III de Portugal falando sobre as vantagens que o português poderia ter por continuar negociando com o Congo, e no corpo da carta cita que o Congo é o que mais favorece e sustenta os negócios portugueses como “abrindo feiras, almadias, caminhos, onde se resgatam as peças de escravos.
” No final da carta o Rei do Congo pede 5 mil cruzados com os quais resgatarão mais peças de escravos. ’ A corrida escravista financiada pela coroa portuguesa e executada pelo reino africano levaria o caos e guerra aos povos africanos que seriam conquistados, escravizados e comercializados em números inimagináveis. Mas enquanto isso, os mercadores portugueses de S.
Tomé continuavam negociando com Angola, e contra a ordem de Portugal, e isso deixou o então Rei do Congo D. Diogo muito irritado. Então, em 7 de maio de 1548 ele mandou fazer uma inquirição a ser apresentada ao Rei de Portugal D.
João III, sobre os prejuízos que o Congo estava tendo já que poucos navios portugueses estavam indo até seus portos buscar os escravos. E pra apoiar seus argumentos, ele ainda registra o depoimento de 8 Testemunhas. Na carta, ele relembra ao rei português como sempre havia no porto de Pymda, no reino do Congo, lugar de embarcação de muita soma de peças de escravos e escravas e no dito porto não haver navios em abastança para poderem levar todas as peças.
. . E que ‘os donos das ditas peças recebem e tem recebido muita perda por lhe morrerem muitas das ditas peças no dito porto.
’ E essa carta confirma com exatidão a carta que vimos de 28/03/1536 que já dizia que muitos escravos morriam nos portos, mostrando claramente que o suprimento de escravos era gigantesco nos portos do Congo. E novamente, o Rei de Portugal aceita o pedido do Rei do Congo, tanto que em 1553 ele envia um alvará proibindo os portugueses de negociarem com Angola, e inicia o documento se referindo ao monarca africano como “O Rei de Manicongo, meu muito amado e prezado irmão. ” E agora pra fechar e acabar com esse bombardeio de documentos, o então rei de Portugal D.
Sebastião, envia ao Rei do Congo uma carta em 18/10/1566, dizendo que mandava um piloto ao Congo com 2. 500 cruzados para compra de escravos. Na carta, o mesmo padrão de respeito continua entre ambos os reinos, onde o Rei português inicia o documento chamando o monarca africano de “Muito alto e muito excelente príncipe irmão” e continua: “eu Dom Sebastião, pela graça de Deus, vos envio muito saudar como aquele que muito amo e prezo.
” E com esse respeito e carinho as cartas seguem até o final do século XVI. Com todos esses documentos mostrados aqui, um aspecto fundamental fica evidente: havia uma cooperação ativa no comércio de escravos entre os Reinos do Congo e de Portugal, onde o Rei do Congo claramente mantinha o controle do comércio no seu reino e tinha suas regras aceitas e respeitadas pelos monarcas portugueses. E em todas as cartas analisadas e disponíveis durante praticamente todo o século XVI não há qualquer relato de guerra ou resistência violenta por parte de nenhum dos dois reinos, seja contra ou a favor da escravatura.
Novamente, o que há aqui é uma cooperação claramente amigável tanto em sentido religioso, político e comercial entre ambos os reinos. Apenas quando Portugal adota uma atitude expansionista na África a partir de 1620 é que a guerra é declarada entre os dois reinos, levando a derrota do Congo. Outro fator fica evidente ao analisar estes documentos: a origem da escravidão portuguesa nada tinha de racial; era vista como uma atividade puramente econômica, aliás para ambos os reinos.
Em nenhuma parte de qualquer dos documentos régios durante todo século XVI e XVII, e nem mesmo nas bulas papais do século XV, é possível ver qualquer justificativa racial para a escravidão africana, além da justificativa religiosa e econômica. E tem um detalhe importantíssimo que muitos ignoram e que confirma exatamente isso: há um consenso entre estudiosos que o conceito de “raça” não era nem mesmo compreendido nos séculos XV e XVI, ganhando significado real apenas no final do século XVIII. Aliás, quando alguém afirma que a escravidão negra foi introduzida por Portugal e que foi puramente racial, é no mínimo mal intencionado ou ignora completamente o contexto da época.
Principalmente porque séculos antes os muçulmanos já traficavam na África com números passando dos 10 milhões. E ainda tem aqueles guerreiros da justiça social que comparam a escravidão grega e romana com a Portuguesa. Mas só esquecem que entre esses impérios, existe uma pequena janela de tempo de.
. . mais de 1.
500 anos só. E você, logicamente, já deve imaginar que nesse pequeno espaço de tempo, alguma coisinha deve ter ficado bem diferente e que torna essa comparação no mínimo, bem besta. Então, como a gente viu, a análise de todas essas evidências documentais prova que a escravização africana e consequentemente a brasileira, foi originada em um sistema complexo político e econômico que contou INQUESTIONAVELMENTE com a participação ativa de chefes brancos e negros, portugueses e congoleses, ambos cooperando na captura, compra e venda de seres humanos.
Por isso, minimizar ou até retirar a participação de um ou de outro, é não tratar com responsabilidade um assunto que afetou a vida de tantos milhões de pessoas. E diante disso ainda surgem os defensores da captura de escravos através da guerra justa. .
. só que Guerra Justa pra quem? Quem perdia achava justo ser vendido e comprado?
Se era justo para quem vendia, porque seria injusto pra quem comprava? Todas essas perguntas só podem ser respondidas pela ótica da época, evitando o famoso e anacronismo que tanta gente gosta de usar. Mas o fato é que essa tragédia iniciada há mais de 500 anos atrás, continua aterrorizando a humanidade mesmo nos dias de hoje: o continente africano infelizmente segue como o campeão de escravos no mundo todo, com 10 milhões de escravos entre os seus próprios países.
Lá, os africanos continuam sendo maltratados, abusados e escravizados pelos seus próprios “chefes”, lá as autoridades locais pouco ou nada fazem para impedir tamanho desrespeito e desonra que assola a humanidade em pleno século XXI.