Os superalimentos desprezados que poderiam ajudar a reduzir a fome no Brasil

477.73k views2148 WordsCopy TextShare
BBC News Brasil
A cada ano, entre 60 e 70 milhões de toneladas do fruto mais rico em carotenoides do mundo amadurece...
Video Transcript:
A cada ano, entre 60 e 70 milhões de toneladas  do fruto mais rico em carotenoides do mundo amadurecem no Brasil, mas só uma ínfima  parcela é aproveitada por seres humanos. A informação está em "Frutas comestíveis na Amazônia", livro do botânico  Paulo Bezerra Cavalcante, de 2010. A estimativa trata do buriti, fruto de uma  palmeira abundante na Amazônia e no Cerrado, mas que é desprezado pela indústria alimentícia.
As propriedades antioxidantes do buriti  ajudam a prevenir câncer e outras doenças. Ele é bem versátil: pode ser consumido in natura  ou transformado em farinha, doces e pães. Mesmo assim, o fruto é uma das váriasvespécies  alimentícias nativas do Brasil que têm perdido espaço em lares, restaurantes e mercados.
Isso tudo enquanto a fome cresce  e a comida encarece no país. Eu sou João Fellet, repórter da  BBC News Brasil em São Paulo. Neste vídeo eu vou falar do buriti e de outras  plantas com imenso potencial alimentício, mas que são pouco aproveitadas no nosso país.
São espécies como a beldroega, o  caruru, a ora-pro-nóbis e o babaçu. Você já deve ter visto várias delas dependendo  de onde mora, porque são plantas bastante comuns. Algumas delas são hortaliças  que nascem espontaneamente em campos agrícolas e canteiros, mas  são vistas como ervas "daninhas".
Em comum, várias dessas plantas são  consideradas superalimentos por terem grande quantidade de nutrientes - como  minerais, vitaminas e antioxidantes. Resistentes, essas hortaliças espontâneas toleram grandes variações climáticas e  dispensam cuidados especiais. O caruru, por exemplo, tem folhas  com propriedades semelhantes às do espinafre e sementes com 17,2% de proteínas.
Outra planta é a beldroega, rica  em ômega-3 e nas vitamina B e C, além de ter propriedades antioxidantes. Mas todos os anos muitos agricultores  recorrem a herbicidas para destruir grandes quantidades de caruru e beldroega  antes de substituí-las por espécies exóticas. E, em muitos casos, as novas espécies plantadas  têm menos nutrientes que as anteriores, são mais sujeitas a pragas e dependem de fertilizantes,  que também estão com os preços lá em cima.
Eu conversei sobre essas "ervas daninhas"  comestíveis com Nuno Rodrigo Madeira, pesquisador da Embrapa, que é a Empresa  Brasileira de Pesquisa Agropecuária. Ele me disse que hortaliças como o caruru e a  beldroega têm mais nutrientes que várias verduras convencionais, como alface e acelga,  justamente por serem mais resistentes. Ele me explicou que, como essas plantas,  como caruru e beldroega não são adubadas, elas disparam processos metabólicos para conseguir  viver na adversidade e tolerar calor e seca.
E isso faz com que essas  plantas fiquem mais nutritivas. Já as verduras convencionais, segundo ele,  costumam ter um metabolismo menos complexo. Como elas costumam receber adubo e ser cultivadas  com agrotóxicos, elas não precisam desenvolver essas características protetoras, e isso  faz com que elas fiquem menos nutritivas.
A beldroega é provavelmente originária da África, mas se tornou espontânea  em solos de todo o Brasil. Para o pesquisador da Embrapa,  o desprezo por essas espécies se deve ao "afastamento entre a  sociedade e a origem do alimento Ele diz que, conforme nos distanciamos da produção  de alimentos, nós ficamos na mão do mercado. E o mercado, segundo ele, não tem interesse  em produzir plantas que nascem sozinhas, porque isso reduziria suas margens de lucro.
Eu procurei a Confederação  Nacional da Agricultura e Pecuária - a CNA - pra conversar sobre esse tema. O diretor da CNA, Reginaldo Minaré,  me disse que não há qualquer preconceito dos agricultores ou indústria  alimentícia com plantas não convencionais. Mas ele afirmou que os agricultores só  vão produzir essas plantas se houver interesse dos consumidores - e que  hoje esse interesse ainda é pequeno.
O diretor da CNA defendeu que  escolas de gastronomia incluam esses ingredientes em suas aulas pra  ajudar a popularizá-los no Brasil. Hoje pouquíssimas espécies de plantas respondem  pela maior parte da alimentação humana no mundo. O o botânico Valdely Kinupp, professor  do Instituto Federal do Amazonas (Ifam) em Manaus me disse que 90% do  alimento mundial hoje vem de 20 tipos de plantas - embora se estime que até 30  mil espécies vegetais tenham partes comestíveis.
Os números parecem ainda mais paradoxais  no Brasil, país que abriga entre 15% e 20% das espécies vegetais do planeta, mas  alimenta a maior parte de sua população com o mesmo cardápio limitado  e majoritariamente estrangeiro. São estrangeiros quase todos os principais  produtos agrícolas do país, como a soja, a cana-de-açúcar, a laranja, o  milho, a batata, o arroz e o café. Entre as raras plantas que  fizeram o caminho inverso, saindo do Brasil para ganhar outras partes do  mundo, estão a mandioca, o cacau e o amendoim.
É por isso que o professor Kinupp costuma dizer  que vivemos um "imperialismo agroalimentar. " Em 2014, o botânico Kinupp lançou  com o colega botânico Harri Lorenzi o livro "Plantas Alimentícias  Não Convencionais no Brasil". Essa expressão também é  conhecida com a sigla curta: PANC Neste livro, são listadas 351  espécies alimentícias "subutilizadas, mal conhecidas e negligenciadas"  pela população brasileira.
Muitas delas são nativas; outras,  espécies estrangeiras que já estão aclimatadas ao Brasil, como  a Beldroega, que eu já citei. Kinupp é um dos principais líderes no Brasil de um movimento pela valorização das PANC,  o acrônimo que batiza seu livro. Nos últimos anos, alguns mercados e  feiras ampliaram a oferta de PANC, chefs as incorporaram em restaurantes,  e cozinheiros criaram contas no Instagram e YouTube para compartilhar receitas.
Mas ele afirma que ainda falta muito para que essas plantas deixem de ser  consideradas "não convencionais". No caso das espécies silvestres  presentes na lista, por exemplo, é preciso que agricultores e instituições de  pesquisa se dediquem a estudá-las - como fazem há milênios com plantas como o arroz e o trigo. A Confederação Nacional da Agricultura e Pecuária diz concordar com isso: o diretor Reginaldo  Minaré me disse que é preciso que as universidades brasileiras estudem essas espécies.
Esses estudos são importantes para que agricultores possam plantar as variedades  mais produtivas e tenham total domínio sobre o cultivo - o que garantirá uma  oferta regular para os compradores. Mas nem todas essas plantas  são domesticáveis - e tudo bem Há casos de espécies, que tem o cultivo  muito complexo e lento, como o Buriti, ou que só crescem em ambientes naturais. Nesses casos é preciso trabalhar com comunidades  tradicionais e pequenos agricultores para apoiar redes de coleta, beneficiamento e  comercialização com preço justo.
Algumas plantas do livro são consumidas em  partes do país, mas ignoradas em outras. Uma das espécies que mais entusiasmam é Kinupp  o cará-de-espinho. Essa é uma trepadeira nativa das regiões Norte, Centro-Oeste e Sudeste que  produz tubérculos comestíveis com até 180 kg.
Kinupp me disse que essa planta "é a solução  para a agricultura no trópico úmido". Isso porque. s tubérculos podem ficar armazenados por até 120 dias fora da geladeira sem  apodrecer e podem ser consumidos como a batata ou ainda virar farinha.
Hoje, no entanto, a espécie só é consumida em aldeias indígenas e  em comunidades rurais no Amazonas. Outras espécies citadas no livro têm mais  penetração popular. É o caso da ora-pro-nóbis, um arbusto com frutos, flores e folhas comestíveis  originário do Sul, Sudeste e Nordeste do Brasil.
Quem é de Minas Gerais provavelmente conhece  porque ela é da culinária típica do estado. Seus frutos são ricos em  carotenoides e vitamina C, e as folhas, quando desconsiderada  a água, têm até 35% de proteína. Outro exemplo é o babaçu, palmeira nativa do  Mato Grosso e de vários Estados do Nordeste.
A castanha do babaçu pode ser consumida  cru ou torrada. Ela pode virar leite ou ainda farinha para confecção de mingaus e pães. Essa castanha contém de 60% a 70% de óleo rico em ácido láurico, similar ao presente  no óleo de coco e no azeite de dendê.
Em 1984, a Embrapa identificou a existência de 12  a 18 milhões de hectares de babaçuzais no Brasil. Kinupp diz que essa espécie tem "imenso potencial  alimentício" e "deveria estar no mercado". E houve uma época em que o fruto  de fato esteve nas prateleiras.
Na década de 1990, cerca de 300 mil  famílias trabalhavam com o fruto. Em 2017, no entanto, o número havia  despencado para 15 mil famílias. Guilhermina Cayres, pesquisadora da Embrapa  Cocais, no Maranhão, diz que hoje quase toda a extração de babaçu é destinada à indústria  de cosméticos e materiais de limpeza.
Ela diz que o Maranhão chegou a ter várias  indústrias dedicadas à produção de óleo de cozinha de babaçu. Maso setor não foi capaz de competir  com o óleo de soja, mais barato, e tem sofrido com a expansão da pecuária sobre os babaçuzais. Além disso, ela diz que muitos trabalhadores deixaram o babaçu por associá-lo à pobreza  e por considerar a atividade extenuante.
Grande parte do serviço das famílias consiste em quebrar artesanalmente o  coco que abriga as castanhas Uma função desgastante e  normalmente assumida por mulheres. Mas ela diz esperar que o cenário mude  com o desenvolvimento pela Embrapa de uma ferramenta que facilita a quebra do coco. Ela também aposta no desenvolvimento de produtos com maior valor agregado à base  de babaçu, como biscoitos e sorvetes.
Também são consideradas PANC espécies  que são consumidas nacionalmente, mas têm partes comestíveis descartadas. Um exemplo é o miolo do mamoeiro, que  pode ser transformado em doces e farinha. Outro, o mangará, ou "coração" da bananeira, que pode ser servido refogado  ou sevir de recheio de pastéis.
Mas hoje quase todas as plantações comerciais  de mamão e banana do país desprezam os itens. Até mesmo a polpa de um fruto bastante popular,  o caju, é descartada às toneladas no Nordeste por indústrias que processam a castanha da fruta Isso quem me contou foi o sociólogo Carlos Alberto Dória, autor de vários livros sobre gastronomia. Ele diz que os galhos dos cajueiros são usados como lenha para aquecer a castanha e torrá-la  para que ela vá para exportação.
Mas que a polpa é descartada em grandes quantidades. x Dória me disse que o movimento pela valorização das PANC tem alcance limitado. Ele acha que se trata de "uma coisa de classe média" e que ingredientes que só sejam consumidos  em partes do Brasil tendem a desaparecer.
Uma exceção é o açaí, um produto regional  da Amazônia que virou uma commodity mundial, mas isso é muito raro - ele diz. O açaí virou um produto internacional depois de ser abraçado por uma juventude formadora de  tendências de grandes cidades brasileiras - como surfistas e lutadores de jiu-jitsu. Por meio dessa turma, a fruta chegou ao exterior e foi incorporada  por grandes redes de supermercados.
Mas que meios haveria para não só preservar  mas também ampliar o acesso a alimentos que não tiveram a mesma sorte que o açaí? Alimentos tão ricos, que exigem tão pouco para serem cultivados e  ocorrem em abundância no Brasil? O pesquisador Nuno Rodrigo Madeira,  da Embrapa, sugere três caminhos.
O primeiro seria incentivar o cultivo desses  alimentos não convencionais criando feiras para a venda desses itens, espaços para a troca de  conhecimentos e apoio técnico aos agricultores,. O segundo seria aprofundar o  debate sobre a comida nas escolas. Ensinar às crianças desde cedo a importância de  consumir produtos frescos e nutritivos, fazê-las se questionarem sobre a origem da comida.
O pesquisador da Embrapa diz que o movimento em torno das PANC não é só sobre alimentação,  mas também sobre sentir-se parte de um sistema integrado e vivo, observar a natureza, saber  qual papel a gente ocupa neste sistema. O terceiro caminho para diversificar e  baratear a comida, segundo o pesquisador, seria reaproximar a produção de alimentos da população  - especialmente a população que vive nas cidades. Ele diz que pessoas que morem em casas com  quintais poderiam se tornar quase autossuficientes em hortaliças, se cultivassem alguns pés de  espécies como ora-pro-nóbis, chaya ou moringa.
Mas como nem todos têm  espaço em casa para produzir, ele defende que as cidades destinem parte de  sua área para a criação de hortas urbanas. Ele afirma que é possível cultivar hortaliças  para todos os habitantes de uma cidade em 10% de sua área - iniciativa que já vem  sendo adotada com sucesso em cidades como Detroit (EUA), Havana (Cuba) ou  mesmo em Sete Lagoas, em Minas Gerais. A escolha das espécies levaria em  conta as aptidões de cada local, mesclando plantas convencionais  e não convencionais.
Ele diz que a produção de alimentos  dentro das cidades reduziria os custos, pois se economizaria com o  transporte dos itens até os mercados, e poderia ocupar moradores de rua  e outros grupos marginalizados. Madeira diz que o cultivo de alimentos foi  justamente o que propiciou o surgimento dos primeiros núcleos urbanos da história, conforme  famílias se agruparam em torno de plantações. As cidades se formaram por causa da  agricultura, e a agricultura não poderia jamais ter se afastado das cidades.
É isso. Se você gostou do vídeo, assine nosso canal pra ficar sabendo  dos próximos. Fico por aqui.
Tchau!
Related Videos
Como o Brasil que alimenta 1 bilhão no mundo tem 10 milhões passando fome
14:56
Como o Brasil que alimenta 1 bilhão no mun...
BBC News Brasil
426,998 views
9 erros de higiene comuns na cozinha que são risco à saúde
9:04
9 erros de higiene comuns na cozinha que s...
BBC News Brasil
233,416 views
Os tsimane: a comunidade indígena na Bolívia em que as pessoas envelhecem mais lentamente
14:56
Os tsimane: a comunidade indígena na Bolív...
BBC News Brasil
352,382 views
EPISÓDIO 89 - FOLHA DE QUIABO | #pancnaveia #valdelykinupp
24:22
EPISÓDIO 89 - FOLHA DE QUIABO | #pancnavei...
SÍTIO PANC
642,529 views
Caminhos da Reportagem | Desperdício de alimentos: quem paga essa conta?
52:46
Caminhos da Reportagem | Desperdício de al...
TV Brasil
46,747 views
O neurocientista que não acredita no livre-arbítrio: 'Somos a soma do que não podemos controlar'
17:20
O neurocientista que não acredita no livre...
BBC News Brasil
235,628 views
Os aditivos químicos presentes em 4 de cada 5 alimentos vendidos nos mercados do Brasil
9:56
Os aditivos químicos presentes em 4 de cad...
BBC News Brasil
447,417 views
Agricultores transformam deserto em floresta no Semiárido brasileiro
9:08
Agricultores transformam deserto em flores...
BBC News Brasil
962,240 views
Qual a Questão - Insegurança alimentar
20:15
Qual a Questão - Insegurança alimentar
Câmara dos Deputados
9,072 views
O que aprendi sendo vegano em experimento de 12 meses
20:29
O que aprendi sendo vegano em experimento ...
BBC News Brasil
33,175 views
Documentário: BBC revela venda ilegal de terras na Amazônia pelo Facebook
41:24
Documentário: BBC revela venda ilegal de t...
BBC News Brasil
591,321 views
Da imunidade à mente: a importância dos micróbios intestinais
11:18
Da imunidade à mente: a importância dos mi...
BBC News Brasil
296,527 views
Os efeitos da beterraba no coração, cérebro e exercício
6:02
Os efeitos da beterraba no coração, cérebr...
BBC News Brasil
1,773,017 views
4 lugares fascinantes onde o ser humano não pode pôr o pé
9:52
4 lugares fascinantes onde o ser humano nã...
BBC News Brasil
2,339,712 views
Os mitos sobre café e vinho em que talvez você ainda acredite
11:40
Os mitos sobre café e vinho em que talvez ...
BBC News Brasil
167,010 views
Lemna: A planta que pode EVITAR A FOME!
19:15
Lemna: A planta que pode EVITAR A FOME!
Sobrevivencialismo
1,883,412 views
BIG FOOD: O PODER DAS INDÚSTRIAS DE ULTRAPROCESSADOS
22:20
BIG FOOD: O PODER DAS INDÚSTRIAS DE ULTRAP...
Idec
113,196 views
Os quilombolas desafiando mineradora britânica acusada de soterrar rio na Chapada Diamantina
9:58
Os quilombolas desafiando mineradora britâ...
BBC News Brasil
99,108 views
O Incrível Projeto da China para Transformar o Brasil
13:49
O Incrível Projeto da China para Transform...
Urbana
1,157,838 views
Os desafios da insegurança alimentar no Brasil
13:42
Os desafios da insegurança alimentar no Br...
Aprendi com o Papai
64,659 views
Copyright © 2024. Made with ♥ in London by YTScribe.com