Um chinês que tenha vivido a década de 1940 dificilmente imaginaria que seu país seria hoje uma potência global, com uma influência determinante sobre a política e a economia do resto do planeta. Naquela época, a China era um dos países mais pobres e isolados do mundo, destruído por uma guerra civil. As décadas seguintes trariam enormes mudanças políticas, sociais e econômicas que gerariam riqueza, mudariam toda a cadeia produtiva global - e ficariam marcadas por muita repressão e desigualdade.
E isso transformaria não só o país, mas o mundo neste século. Sou Camilla Veras Mota, da BBC News Brasil, e o avanço acelerado da China é mais um capítulo na nossa série 21 notícias que marcaram o século 21. Neste início de terceiro milênio, a China viu seu PIB se multiplicar por dez até os atuais 15 trilhões de dólares – fazendo daquele país pobre dos anos 1940 a segunda maior economia do planeta, a apenas alguns anos de distância de ultrapassar os Estados Unidos, como apontam muitas projeções.
Vem da China quase um terço de toda a produção manufatureira do mundo, e o apetite chinês por matérias-primas como soja e minério de ferro faz do país o maior parceiro comercial do Brasil. Mas para explicar essa trajetória precisamos voltar sete décadas no tempo. Antes de ser a República Popular da China que conhecemos hoje, o país tinha um dos dez menores PIBs per capita do mundo, não tinha parceiros comerciais nem relações diplomáticas com o resto do planeta e dependia basicamente do que produzia.
Os anos 1930 e 40 foram de intensos conflitos: a segunda guerra sino-japonesa basicamente dividiu a China em três partes – uma nacionalista, uma comunista e uma sob ocupação do Japão. Em 1945, quando o Japão foi derrotado na Segunda Guerra Mundial, teve início uma guerra civil entre nacionalistas e comunistas chineses pelo controle do país, o que só terminou em 1949, com a vitória comunista, sob a liderança de Mao Tsé-tung. Milhões de chineses morreram nesses anos de conflito, e muitos outros milhões morreram de fome ou doenças.
1949 é um ano chave: marca o começo do regime comunista, e também de mais tragédias humanitárias. Mao Tsé Tung tentou modernizar rapidamente a economia camponesa da China e eliminar os rivais do Partido Comunista com as políticas conhecidas como Grande Salto Adiante e Revolução Cultural. Mas, com uma produção insuficiente de alimentos e uma distribuição ineficiente do que era produzido, algo entre 10 milhões e 40 milhões de chineses morreram sem ter o que comer em um período de menos de três anos – a mais grave fome da história da humanidade.
A estimativa de mortes é ampla assim porque, como sabemos hoje, transparência está longe de ser uma das marcas do regime chinês. Foi só depois da morte de Mao, em 1976, que o novo líder Deng Xiaoping começou a reformular e abrir a economia chinesa, dando a ela os moldes que conhecemos hoje. Esse período foi muito importante: Os camponeses, por exemplo, ganharam o direito de explorar suas próprias terras, melhorando o padrão de vida e aliviando a escassez de comida.
A porta também foi aberta para investimentos estrangeiros, e a China restabeleceu seus laços diplomáticos com os Estados Unidos em 1979. Teve início então a construção do capitalismo à chinesa Deng Xiaoping decidiu promover o capitalismo na economia, mas sem abrir mão da centralização que marcava o comunismo chinês. Os fluxos globais de investimentos passaram a se voltar cada vez mais para a China, de olho em um mercado com mão de obra barata e baixos custos produtivos.
A população até então predominantemente rural começou a migrar em massa para as cidades, que passaram por um processo rápido de urbanização. O gigantesco êxodo rural faria com que a população urbana do país passasse de 191 milhões em 1980, para 691 milhões em 2011. Como resultado de todo esse processo, a China cresceu rapidamente ao longo dos anos 1990 e se integrou ao mundo.
Um marco dessa integração foi a entrada, em 2001, para a Organização Mundial do Comércio, que regulamenta o comércio entre países. A China começa a reduzir barreiras e tarifas comerciais. Com custos mais baixos de produção, os fabricantes chineses de roupas, brinquedos e equipamentos eletrônicos ficaram extremamente competitivos.
Não demorou para que, neste século 21, os produtos Made In China estivessem por toda a parte. O crescimento da economia veio acompanhado da modernização das cidades chinesas. O primeiro trem de alta velocidade chinês começou a operar em 2008, entre Pequim e Tianjin.
Em 2019, segundo a rede de notícias estatal chinesa CGTN, o país tinha mais de 35 mil quilômetros de linhas de trem que viajam a até 350 km por hora. Essa rede ferroviária de alta velocidade é maior do que a de todos os outros países juntos. Daxing, o novo aeroporto internacional de Pequim, é considerado o maior do mundo e estima-se que será também em breve o mais movimentado do planeta.
Um exemplo ilustrativo da escala da modernização chinesa é a cidade de Shenzen, na costa sul. Olha o tamanho da mudança: em 1979, Shenzhen era uma pequena cidade rural, de 50 mil habitantes. Um ano depois, o governo fez de Shenzhen uma das Zonas Econômicas Especiais do país, onde o capitalismo chinês seria testado com legislação econômica e tributária desenhadas para atrair o investimento estrangeiro.
Shenzhen teve décadas de crescimento ininterrupto e virou um polo de fábricas de todo o tipo de produtos – de sofás a eletrônicos. A população ultrapassou os 12 milhões de pessoas em 2020. Mas em meio a todo esse avanço, pipocaram denúncias a respeito das condições de trabalho nas enormes fábricas espalhadas pela China.
O olhar estrangeiro voltou-se em particular à Foxconn, fornecedora de gigantes como a americana Apple. Em junho de 2006, o jornal britânico The Mail on Sunday investigou a produção de iPods na unidade da Foxconn em Shenzhen e expôs as péssimas condições de trabalho dos funcionários – que incluíam desde jornadas diárias de 15 horas e salários irrisórios. O que inicialmente pareciam ser casos isolados virou uma crise.
Em 2010, ao menos dez trabalhadores da Foxconn em Shenzhen cometeram suicídio. O avanço econômico também trazia custos ambientais. Com uma economia fortemente dependente do carvão, a China se tornou em 2006 o maior emissor de gases de efeito estufa do mundo.
Como era de se esperar, essa combinação de poluição com abusos dos direitos humanos e trabalhistas começou a moldar a percepção internacional do mundo a respeito da China. Não à toa, o Partido Comunista voltou seus esforços para construir uma nova imagem do país, mais moderna e organizada. Os Jogos Olímpicos de Pequim, em 2008, tiveram um papel-chave nisso.
Depois de meses de tensos preparativos – incluindo protestos em favor da independência da província do Tibete, durante a passagem da tocha pelo país –, a China realizou uma cerimônia de abertura vista por 1 bilhão de pessoas. E ainda abocanhou 48 medalhas de ouro nas competições, 12 a mais do que os Estados Unidos, ficando na liderança. Um dos símbolos dos Jogos foi o estádio das cerimônias de abertura e encerramento, conhecido como Ninho do Pássaro.
A estrutura tinha sido desenhada pelo artista Ai Weiwei, uma obra que alimentava o orgulho nacional e do regime comunista. Mas não demorou para que Ai Weiwei também se tornasse um símbolo da repressão política na China. Com fama internacional, Ai virou um dos maiores críticos do regime comunista.
Sua arte passou a denunciar ao mundo as consequências devastadoras de um terremoto na província central de Sichuan, em maio de 2008, em que cerca de 69 mil pessoas morreram. O número inclui mais de 5 mil crianças, soterradas pelos prédios de suas escolas, que sucumbiram ao tremor. O episódio expôs um escândalo de corrupção na estrutura de governo – as escolas teriam sido construídas fora dos padrões de segurança e qualidade.
Ai Weiwei contou que foi censurado pelo governo chinês, teve seu estúdio demolido e passou um período preso até migrar para a Europa, onde vive atualmente. Essa faceta repressiva do Partido Comunista chinês, aliás, tem sido vista em vários momentos da sua história. Desde o massacre de milhares de estudantes que protestavam por democracia na Praça da Paz Celestial, em 1989, até a mão de ferro com que são tratadas as minorias étnicas como os uigures e o duro controle sobre a internet no país.
Se até aqui a gente falou de mudanças internas na China para acomodar seu crescimento econômico, é importante lembrar que a influência externa de Pequim também cresceu exponencialmente, principalmente na África e na América Latina. Desde os anos 2000 a China aportou dinheiro a centenas de projetos em mais de 20 países africanos, como Nigéria, Angola e Quênia. Alguns projetos são grandes obras de infraestrutura como ferrovias e portos, que facilitam o escoamento das matérias-primas de que a China tanto necessita.
Outros são a exploração de petróleo e gás e extração de minérios, principalmente ferro, cobre, urânio e cobalto. E no Brasil? Nas duas primeiras décadas do novo milênio, o Brasil recebeu um enorme volume de investimento direto chinês – para comprar empresas de setores como energia, distribuição de água, infraestrutura e mineração.
Empresas petroleiras chinesas arremataram diversos lotes nos leilões de campos de água profunda na costa brasileira. Em 2019, a China respondia por mais de 65% de todo o saldo da balança comercial brasileira. A vasta expansão chinesa em quase todos os cantos do mundo despertou críticas de que o governo usa esse poder econômico para fortalecer sua posição geopolítica global e, segundo críticos, também obter benefícios em fóruns supranacionais como a ONU.
O novo papel da China no mundo também criou focos de rivalidade com a outra grande potência global: os Estados Unidos. Aqui, vou fazer um pequeno parênteses com uma breve história da relação os esses dois: Os Estados Unidos haviam apoiado os nacionalistas na guerra civil chinesa que eu mencionei no começo deste vídeo – e que perderam a disputa para os comunistas. Os países ficaram em lados opostos durante a Guerra da Coreia, um apoiando o Sul e o outro, o Norte, em plena Guerra Fria.
Foi a chamada diplomacia do pingue-pongue que aproximou os dois países novamente, em 1971, culminando em uma famosa visita do presidente Richard Nixon à China no ano seguinte e, anos mais tarde, na normalização dessa relação. Ainda assim, a tensão sempre existiu. E, nas últimas décadas, essa tensão se concentrou principalmente na esfera comercial.
A avalanche de produtos baratos chineses criou, a partir dos anos 2000, um deficit na balança comercial americana – ou seja, os Estados Unidos passaram a importar da China muito mais do que exportar pra lá. Isso gerou insatisfação entre parte dos americanos, que associavam o fechamento de fábricas e a perda de empregos no país à terceirização da produção americana para a China. A retórica de que a China estaria “roubando” empregos dos americanos foi explorada pelo ex-presidente Donald Trump ainda na campanha eleitoral, em 2016.
Já no poder, em 2018, Trump impôs tarifas sobre importações vindas da China, que respondeu com sobretaxas a produtos americanos. Uma guerra comercial entre as duas maiores potências globais. Um balanço da consultoria americana China Briefing de agosto de 2020 calculou que até aquele momento os Estados Unidos haviam imposto tarifas sobre importações chinesas que valiam 550 bilhões de dólares.
Pequim, por sua vez, havia tarifado um total de 185 bilhões de dólares em produtos americanos. Em janeiro de 2020, Trump e o vice-premiê chinês, Liu He, assinaram a primeira fase de um acordo para gradualmente desescalar a guerra comercial. Trump também investiria contra a China em outras frentes.
A gente vai explorar dois deles aqui: o caso da empresa de tecnologia chinesa Huawei e a pandemia de coronavírus. No caso da Huawei, Trump pressionou países ao redor do mundo – incluindo o Brasil – a rejeitar a tecnologia chinesa para internet de quinta geração, o 5G. Trump alegava haver riscos de segurança, acusando a Huawei de facilitar a espionagem chinesa – algo que a China sempre negou.
Um dos países que cederam à pressão americana foi o Reino Unido, proibindo que suas empresas de telefonia comprassem novos equipamentos da Huawei a partir de 2021. No Brasil, o presidente Jair Bolsonaro inicialmente disse que atenderia o pedido de Trump e também excluiria a Huawei dos planos de 5G do país - o que não aconteceu. No fim das contas, embora a empresa não tenha participado do leilão do 5G em novembro, por não ser uma operadora de telefonia, ela poderá ser fornecedora de equipamentos para as operadoras que venceram o certame.
Agora, vamos à pandemia. Donald Trump culpou diretamente a China pelo Sars-Cov-2, coronavírus que foi identificado pela primeira vez em um mercado da cidade chinesa de Wuhan e se espalhou pelo mundo. Durante meses, referiu-se ao coronavírus como "o vírus da China" e disse que o país asiático pagaria um "alto preço" pela pandemia.
Seu sucessor, Joe Biden, mudou completamente a abordagem dos Estados Unidos no que se refere à pandemia. Mas manteve seu tom crítico com a China. Sob Biden, os Estados Unidos se tornaram o primeiro país a dizer que a China comete crimes contra a humanidade e genocídio contra a população uigur, majoritariamente muçulmana, no noroeste chinês.
As denúncias apontam que milhões de uigures sofrem com prisões arbitrárias, esterilização forçada e repressão religiosa. Por enquanto, porém, nem as denúncias nem as críticas à China têm abalado o poder crescente do atual presidente chinês, Xi Jinping, que comanda o país há quase uma década em uma era de nacionalismo, expansionismo e, também, autoritarismo. Nessa década, o PIB per capita chinês avançou de quatro mil e seiscentos dólares para dez mil e quatrocentos dólares em 2020.
Em novembro de 2020, o governo chinês anunciou ter acabado com a pobreza extrema no país. Segundo Pequim, 93 milhões de pessoas tinham sido retiradas da pobreza desde 2013. Mas isso é contestado por muitos especialistas, que argumentam que a China inflou esses números usando parâmetros incompatíveis com os do Banco Mundial para mensurar a pobreza extrema.
Além disso, a desigualdade social continua sendo um problema grave no país – a ponto de uma das principais políticas de Xi Jinping ser a da “prosperidade comum”. Na prática, essa política tem se traduzido em combate à sonegação de impostos pelos mais ricos e ao acúmulo de riqueza pelos bilionários. O objetivo é encurtar a enorme distância entre os chineses mais ricos e os mais pobres.
Xi Jinping também tem liderado uma aposta chinesa na geração de energia limpa. Em setembro de 2020, Pequim anunciou seu plano de reduzir o total das emissões de dióxido de carbono até 2030. A promessa é de que, até 2060, a China atinja a chamada neutralidade de carbono – ou seja, não emita mais carbono que a quantidade absorvida por florestas, solo ou oceanos.
Mas ambientalistas e críticos dizem que isso não está acontecendo na velocidade necessária para manter o aquecimento global dentro de limites aceitáveis. Na mais recente conferência climática da ONU, em Glasgow, a China foi um dos países que pressionaram por mudanças no acordo final, no trecho que antes da mudança falava da eliminação do carvão e dos subsídios a combustíveis fósseis. Isso fez com que ambientalistas e analistas vissem um enfraquecimento no acordo final da conferência, potencialmente dificultando o controle de emissões de gases do efeito estufa.
Isso com certeza ainda vai render muitas discussões, assim como o papel econômico e político da China no mundo. Que, segundo muitos especialistas, só tende a aumentar nas próximas décadas. Eu fico por aqui.
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